A OUTRA SÍNDROME - AIDS
Os efeitos sociais da AIDS revelam-se tão complexos como a própria enfermidade. Desde as campanhas educativas à exigência dos testes, todo um rol de problemas inesperados entra na ordem do dia. Uma coisa é certa: a doença mexe com a vida de todos.
Sete anos depois de ter sido identificada pela Medicina e de já ter provocado pelo menos 40 mil óbitos, a AIDS (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) derrama pelos quatro cantos do mundo uma variedade de conseqüências sociais tão complexas quanto a própria doença. De uma forma ou de outra, nas sociedades atuais ninguém está imune aos reflexos da AIDS nas relações humanas. "O problema da moléstia é muito maior do que aparece nas estatísticas de saúde", afirma Jonathan Mann, do alto de seu posto de observação como diretor do Programa Global da AIDS, da Organização Mundial da Saúde (OMS). "Existem implicações econômicas, comportamentais e demográficas que devem ser atendidas para atenuar o impacto pessoal da doença" adverte.
Foi com esse espírito que 1 milhão de delegados de 63 países e entidades internacionais como a OMS se reuniram recentemente em Londres para tentar montar o quebra-cabeça dos efeitos extraclínicos da AIDS. E, à medida que foram juntando as peças, começaram a enxergar os contornos de uma paisagem acidentada como poucas. Nela ressalta, por exemplo, o intrincado problema da linguagem, alcance e, em última análise, eficácia das campanhas de prevenção: como saber se elas estão ajudando de fato a conter a difusão de uma doença que - além de ser mortal e esconder ainda muitos segredos dos cientistas -tem a perversa peculiaridade de se manifestar só seis ou sete anos em média após o contágio?
Outro nó está na delicadíssima questão das tentativas (por parte de corporações e governos) de tornar obrigatórios os testes que identificam no organismo a presença dos anticorpos ao HIV, o vírus da AIDS: em que medida tais exigências podem configurar uma agressão aos direitos individuais e até que ponto têm alguma utilidade real? A reunião de Londres serviu também para confirmar que, assim como pode variar enormemente por país a proporção de doentes (por exemplo 2 por 100 mil habitantes na Alemanha e 20 por 100 mil nos Estados Unidos), também varia de país para país a escala dos problemas ligados à AIDS. Assim, enquanto na França o governo tem algum controle sobre 99 por cento do sangue usado em transfusões, no Brasil a fiscalização mal e mal cobre 50 por cento-uma carência que não pode ser subestimada, dado que as doações de sangue contaminado são uma das principais rotas de propagação da AIDS.
Mas, se com dinheiro e empenho os governos podem virtualmente acabar com o contágio por transfusão, muito dificilmente podem enquadrar as demais formas de transmissão, que, afinal de contas, de pendem exclusivamente do comportamento de cada um. "E nisso não se interfere sem tocar na liberdade individual", observa a médica Lair Guerra de Macedo Rodrigues, que representou o Brasil no encontro de Londres na condição de coordenadora do Programa Nacional de Controle da AlDS do Ministério da Saúde. "Neste particular, todos os países pisam o mesmo terreno escorregadio", constata.
O que torna o chão tão liso é o fato de se estar mexendo com um dos impulsos mais fundos do ser humano, a sexualidade-algo que, como na canção de Chico Buarque, "não tem juízo nem nunca terá". As obscuras leis que governam a conduta sexual de cada um às vezes se divorciam não só da moral sexual vigente como também dos mais razoáveis mandamentos do bom senso. Se a AIDS fosse tudo o que é, mas nada tivesse a ver com sexo, como tantas outras moléstias transmitidas por vírus, seria muitíssimo mais fácil apostar na racionalidade das pessoas como garantia contra a sua propagação. Para piorar ainda mais as coisas, a grande maioria dos transmissores da AIDS são pessoas clinicamente sadias-aquelas que (sem saber) carregam o vírus HIV mas ainda não apresentam os sintomas que ele provoca. Pelos melhores cálculos, existem para cada aidético entre 50 e 100 portadores do vírus. Isso significa que, se existem atualmente cerca de 80 mil casos notificados no mundo inteiro, a população de portadores pode chegar a 8 milhões. Mesmo que esses futuros doentes se distribuíssem mais ou menos por igual por uma centena e tanto de países, o mero porte de um número como aquele indica o tamanho do problema com o qual a humanidade terá de conviver antes que as esperadas mudanças de comportamento sexual se reflitam nas estatísticas (o que ainda é uma incerteza) e antes que a ciência descubra a cura ou a vacina para a AIDS (o que ainda vai demorar).
Em 1982, data das primeiras contas da OMS, os 366 casos da época haviam aparecido em dezenove países, incluindo o Brasil, com seis doentes. Hoje, a AIDS está em todos os continentes e em pelo menos 128 países. (Não se sabe, a rigor, se existe algum país sem AIDS; o que existe são países que não fornecem informações sobre o assunto.) No Brasil, com quase 3 mil aidéticos conhecidos e talvez outros 2 mil não registrados, o Ministério da Saúde estima em até meio milhão o número de possíveis portadores. A rapidez com que o vírus deu a volta ao mundo induziu alguns países a tentar barrar-lhe o caminho por meio de providências que em alguns casos deixaram à mostra uma face preconceituosa.
Na Índia (nove casos contabilizados) e na União Soviética (cinco) ninguém entra sem um teste anti-HIV negativo. Há pouco tempo, a cantora Alcione e os dezoito músicos que a acompanham precisaram submeter-se ao teste antes de viajar para uma temporada de shows na URSS. Mas nem sempre todos são iguais perante a AIDS-ou perante certos governos. A Bélgica, por exemplo, obrigou ao teste os quase mil estudantes negros do Zaire (sua antiga colônia) que ali residem, mas não incomodou alunos vindos de países brancos. O mesmo fez a Inglaterra em relação aos 1200 estudantes nascidos em Zâmbia, Uganda e Tanzânia, ex-colônias-e ainda em relação aos 20 mil turistas africanos, sem distinção de passaporte, que todo ano desembarcam em Londres. Só que não se exige teste dos ingleses que voltam de viagem da África.
Belgas e britânicos negam as acusações de racismo. Lembram que aqueles países não só estão entre os mais infectados como também que neles a AIDS não se espalha, como no Ocidente, a partir dos chamados grupos de risco (homossexuais, viciados em drogas injetáveis e hemofílicos), mas da população heterossexual. De fato, na região Centro-Leste, que compreende a Tanzânia, Ruanda, Burundi e Uganda, existem lugares onde um terço da população tem AIDS, incluindo mulheres e crianças. Ali a doença se propaga por causa da promiscuidade sexual. Mesmo assim, os especialistas da Organização Mundial da Saúde estão longe de se pôr de acordo sobre o efeito das políticas de testes obrigatórios para determinados grupos humanos. No Brasil, membros do governo e da classe média defendem que se exija teste anti-HIV de estrangeiros que solicitarem visto de permanência no país -umas 3 mil pessoas por ano. "Não vejo sentido nisso", objeta Lair Rodrigues, do Ministério da Saúde. Ela explica que, devido ao fato de não ser o teste verdadeiro em 100 por cento dos casos-daí os chamados "falsos positivos" e "falsos negativos" -, sempre se correrá o risco de se abrirem as portas a imigrantes contaminados e de fechá-las a pessoas sadias.
Mais complicado é o debate sobre a exigência do teste de candidatos a emprego. A discussão é muito acesa nos Estados Unidos, onde algumas corporações já adotam essa prática, enquanto uma lei a proíbe em empresas que recebem recursos do governo federal. Como no Brasil não existe lei alguma a respeito, a possibilidade de que certas companhias venham a pedir o teste preocupa o Conselho Federal de Medicina. "É uma questão de ética", explica Gabriel Oselka, vice-presidente do CFM. "O médico só deve informar ao empregador se o candidato está ou não apto ao trabalho; se é portador do vírus, só ele mesmo deve ser informado."
Com seus 13 500 funcionários espalhados por cinco Estados, a Rhodia é o exemplo da grande empresa que prefere apostar na informação e não na discriminação. Há dois anos ela gasta dinheiro em campanhas educativas, que incluem um filme de duas horas e meia sobre a AIDS. A Rhodia não oferece testes aos funcionários "porque não temos estrutura montada para isso", segundo Marcos Wasserstein, gerente do departamento médico. Mas não o nega aos interessados. A empresa tem dois funcionários com o vírus. Um deles, que já apresenta os primeiros sintomas da AIDS, recebe assistência de saúde. Nos Estados Unidos, onde um aidético gasta em tratamento algo como 20 mil dólares por ano (no Brasil o custo é um pouco maior devido aos medicamentos importados), as companhias de seguros estão em pé de guerra para recusar clientes portadores do HIV.
A maioria das seguradoras brasileiras já não dão cobertura a despesas com doenças infecto-contagiosas, como a AIDS. Uma exceção é o Itaú, com 1,2 milhão de clientes. "Não recusamos quem quer que seja", garante Alfredo del Bianco, diretor técnico da seguradora. "Damos cobertura à AIDS se a doença for notificada após o início do contrato e dentro dos limites nele estipulados." Com o inevitável aumento do número de aidéticos nos próximos anos, não faltarão episódios de discriminação. "Já é hora de as pessoas se organizarem pensando nisso", acredita o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa presidente da Comissão Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de São Paulo. Ele não vê, no caso da AIDS, um conflito entre direitos individuais e direitos coletivos, "mesmo porque, com o crescimento da doença, logo estaremos falando em direitos de uma coletividade com dezenas de milhares de indivíduos".
Nos Estados Unidos, onde em 1991 haverá 270 mil aidéticos, ocupando (em Nova York) dois em cada dez leitos de hospital, muita gente já reclama que as pesquisas sobre a AIDS consomem montanhas de dólares que deveriam ser gastas na busca da cura; para o câncer. Isso mostra uma competição por recursos sociais que só tende a se acirrar, com reflexos sobre a atitude das pessoas diante dos aidéticos. Também para conter esses conflitos as campanhas informativas são necessárias. "Elas são na verdade a única arma contra a AIDS", ressalta Lair Rodrigues. O problema é como fazê-las acertar o alvo.
Para começar, existe um verdadeiro tiroteio no escuro entre os que criticam as campanhas por serem desbocadas e os que acham que é preciso falar mais claro ainda. "Raramente a reação das pessoas é adequada", observa, desalentado, o médico Gabriel Oselka, do CFM. Além disso, para não pouco homossexuais, as campanhas não passam de propaganda moralista. Para um número talvez ainda maior de heterossexuais, as campanhas escondem que os riscos de se contrair AIDS são na verdade bem maiores. Mesmo em países desenvolvidos a desinformação e o medo alcançam níveis surpreendentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais da metade da população não sabe com segurança como o vírus da AIDS se transmite -e um em cada três médicos tem receio de tratar de aidéticos.
A paranóia não é menor aqui", suspira a médica Lair do Ministério da Saúde. "Quase todo dia algum colega me liga achando que pegou AIDS." Da mesma forma, a discussão sobre a linguagem das campanhas não é exclusividade desse ou daquele país. Na liberadíssima Dinamarca, uma organização de país conseguiu tirar do ar um filmete que insinuava sexo entre adolescentes. Na União Soviética, não poucas resistências precisaram ser vencidas para que um locutor pudesse dizer pela primeira vez na TV a palavra preservativo - agora, em março último. Na religiosa Itália, volta e meia trechos de filme sobre AIDS são censurados. É provável que, para funcionarem, as campanhas devam mesmo ser fortes, diretas e sem meias palavras. Mas não há como negar que, irrompendo nas casas via TV, proporcionam uma aula de educação sexual, prematura e carregada de problemas, ao público infantil. A AIDS também obriga as sociedades a virar a cabeça diante de certos comportamentos até bem pouco tempo frontalmente reprovados. Em Nova York, por exemplo, já se distribuem agulhas descartáveis a drogados, para que ao menos não transmitam o vírus. A experiência sofre cerrada oposição de setores sociais para quais ela significaria na prática aceitação da droga. Em outros Estados americanos, briga-se por causa da iniciativa de distribuir preservativo nas prisões: segundo os críticos, isso estimularia o homossexualismo, "Seria ótimo se o mesmo fosse aqui", retruca o médico Gabriel Oselka. Motivo: estima-se que até três em cada dez dos 300 mil sentenciados brasileiros são portadores do vírus HIV.
Às vezes, o próprio público-alvo rejeita as campanhas. Em certas tribos africanas, apesar das advertências, não se pensa em parar com certos ritos que envolvem cortes no corpo-uma prática milenar que se transformou em outra fonte de transmissão da AIDS. Apesar desses percalços todos, os maiores especialistas no assunto insistem em que só não se pode uma coisa na guerra contra a doença: ferir os direitos das pessoas. Não se trata apenas de um valor moral. Como observou na reunião de Londres, o diretor do programa da AIDS da Organização Mundial da Saúde, Jonathan Mann,"as ameaças aos direitos individuais acabam estimulando clandestinidade da doença-mais casos deixarão de ser notificados e mais difícil ficará atacar o problema".
De vigia a traidor
Cientistas americanos descobriram recentemente que o vírus da AIDS penetra no organismo não apenas na forma de microorganismos soltos no sangue ou no esperma, mas também dentro de macrófagos-e isso faz uma enorme diferença. Células do sistema imunológico, os macrófagos têm o notável poder de romper barreiras: assim, atravessam as paredes dos vasos sangüíneos em direção à mucosa ou em sentido contrário. Nesse trajeto, eles prendem os agentes estranhos que encontrarem, como os vírus, para que sejam melhor atacados pelo exército de anticorpos do sangue. Ora, se o HIV pode contaminar os macrófagos, isso significa-ao contrário do que se tinha como certo-que a transmissão do vírus não depende necessariamente do rompimento de microvasos sangüíneos durante a relação sexual.
Dentro dos macrófagos, os vírus atravessam a mucosa até chegar à corrente sangüínea O pior, nesse processo, é o que acontece com os próprios macrófagos. Normalmente, são eles que disparam os mecanismos de defesa do organismo, ao avisar as células que portam um inimigo a ser combatido. Infectados pelo vírus da AIDS, porém, eles passam a agir como traidores, deixando de avisar que há um invasor a caminho. Sem esse alarme, uma eventual vacina anti AIDS poderia ser inútil, visto que os anticorpos adquiridos graças a ela não seriam despertados. A descoberta, portanto, sugere que há mais obstáculos entre a AIDS e sua cura do que supunha a ciência.
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sábado, 28 de janeiro de 2012
Deixando de Fumar - Vicio
DEIXANDO DE FUMAR - Vicio
A luta para largar o cigarro é um vale-tudo. Sem muita força de vontade não há campanha ou pressão que resolva.
Há pelo menos quatro anos o ator Nuno Leal Maia anota todos os dias na agenda a quantidade de cigarros que fumou. Assim, descobriu que nunca ultrapassa a marca de quinze-melhor ainda, alguns dias a agenda fica em branco, prova de que não fumou nada. Essa proeza ele conseguiu submetendo-se a um treinamento curto e grosso: trancou-se um dia inteiro dentro de casa sem fumar. "Foi ai que comecei a me libertar um pouco da muleta", conta o ator, um homem bem menos simplório na vida real do que o bicheiro Tony Carrado por ele interpretado na novela Mandola. Mesmo assim, ainda não conseguiu vencer o vício: basta ficar tenso para acabar fumando. Assim como Leal Maia, um número indeterminado mas ao que parece cada vez maior de brasileiros levanta todos os dias com a disposição-inabalável porém nem tanto, como se verá-de romper relações com o cigarro. Eles são a fatia arrependida de uma legião de 33 milhões de pessoas (algo como quatro em cada dez habitantes) que devem queimar este ano 168 bilhões de cigarros. É uma áspera peleja, essa de apagar o derradeiro cigarro e não tornar nunca mais a acender outro. Só os que tentaram e conseguiram sabem o quanto custa. Para começar, o candidato a ex-fumante vive num mundo onde é mais fácil ele ser estimulado a retomar o hábito do que o contrário.
Além disso, nos primeiros tempos de abstinência, os sintomas físicos e psíquicos tendem a ser desencorajadores. Por fim, como o cigarro está associado a uma série de situações prazerosas, das quais não há razão para se privar, o desejo de voltar atrás muitas vezes ameaça afogar as mais firmes promessas. Não são raros, por isso, os que acabam voltando. Estimativas sugerem que sete entre dez pessoas as desistem antes de completar um ano longe do fumo. Depois, porém, as chances de recaída diminuem drasticamente. O segredo, aparentemente, está em tentar de novo-e de novo-até vencer a batalha. Foi o que aconteceu com o pianista Arthur Moreira Lima, que fumou dos 15 aos 40 e libertou-se há sete anos, cansado de respirar mal e do gosto ruim que Ihe deixavam na boca os quatro maços consumidos por dia. Ele já fizera três tentativas, até que um dia decidiu procurar um acupunturista na esperança de que a aplicação de agulhas em pontos da orelha o ajudasse, como tinha ouvido dizer. "Era uma sexta-feira e a consulta estava marcada para a tarde. Aí pensei comigo: "Por que não paro agora mesmo de manhã? ", lembra-se ele com precisão. Moreira Lima não sabe, a rigor, se foi a acupuntura ou a força de vontade o que resolveu a parada. Mas recorda como se fosse ontem os heróicos tempos sem o cigarro: o primeiro fim de semana foi terrível e para me ocupar fiquei arrumando os armários de casa. O primeiro mês também foi o mais difícil. Eu comia chocolate feito doido; engordei uns 5 quilos. Mas depois fui me acalmando. Comecei até a pensar melhor".
Ex-fumante há nove anos, depois de 24 de cigarro entre os dedos, a atriz Dina Sfat também tinha tentado parar mais de uma vez, porque se sentia cansada e não respirava direito. "De repente, depois de vários fracassos, resolvi que fumar era ridículo e larguei", diz. A decisão mexeu com muita coisa em sua vida cotidiana. "Minha primeira providência foi cortar o café da manhã, para desfazer uma forte associação com o cigarro. Em compensação, passei a comer doces", lembra. Moral da história: Dina engordou 6 quilos (que perdeu um ano e meio depois à custa de muita ginástica), mas nunca mais fumou. Como Moreira Lima e Dina Sfat, muita gente engorda quando pára de fumar-algo que, nestes tempos de culto à forma física, pode submeter a dura prova uma decisão de banir o cigarro, mas na verdade é uma das evidências mais palpáveis das mudanças que ocorrem no organismo. Isso porque as células passam a respirar melhor e a metabolizar melhor os alimentos.
Não há dúvida, porém, de que se engorda também por causa de tudo que se leva à boca (e ao estômago) para compensar a falta de um cigarro nos lábios, principalmente balas, chocolates, chicletes e assemelhados. Outras válvulas de escape diminuem a tensão sem a desvantagem de aumentar o peso-no máximo, podem virar cacoetes: morder lápis, tampas de caneta, hastes de óculos ou o que estiver ao alcance da mão.
Afinal, explica o psiquiatra Arthur Kaufman, da Universidade de São Paulo, "como o cigarro representa quase um companheiro, as pessoas ficam sem apoio afetivo quando param de fumar; por isso alguns passam a consumir mais café, analgésicos e tranqüilizantes, na tentativa de substitui-lo". Em sua opinião, os motivos que levam o fumante a tentar abandonar o hábito-conselhos médico, campanhas educativas, conhecimento sobre os males do fumo, uma doença em família-não bastam logicamente para garantir a vitória na batalha. "É acima de tudo uma questão de resistir à frustração", acredita ele, credenciado por sua condição de ex-fumante.
Depois de vinte anos, Kaufman deixou de fumar pela primeira vez quando começou a escrever um artigo sobre os aspectos psicológicos do tabagismo. Duas recaídas mais tarde (a primeira ao cabo de vinte meses), recorreu à acupuntura e está sem fumar há um ano e meio. "Mas a determinação ajuda bastante", diz o médico. Resistir à frustração, como todos sabem, não é um desafio simples e é justamente quando enfrentam situações emocionais difíceis que alguns ex-fumantes acabam sucumbindo. Assim aconteceu com a assistente social Cecy Gonçalves, que parou duas vezes e duas vezes recomeçou por causa de complicações sentimentais. "Há questão de um ano resolvi segurar a barra tentar parar de vez", diz. "Por isso, conto cada cigarro que fumo-cinco em média por dia-e cada vez a consciência pesa mais, porque sei que estou me prejudicando", confessa ela.
De modo geral, problemas de saúde, menos ou mais graves, são a causa principal das decisões de abandonar o tabagismo. Não se sabe que influência em no Brasil as campanhas antifumo ou as notícias sobre restrições ao cigarro em outros países. Tampouco se sabe porque certas pessoas deixam de fumar e não sentem nada. Há quatro anos o advogado Luis Antônio Campos Arrudão descobriu que precisava fazer exercícios para baixar a taxa de gordura no sangue. Por isso ele deixou o cachimbo que fumava há dez anos. "Foi tranqüilo. Não tive qualquer tipo de ansiedade", garante.
Situação bem mais dramática-pelo motivo e pela dificuldade de parar -viveu um dos fumantes mais notórios do país, o senador paulista Mário Covas, quatro maços por dia. Em conseqüência de uma angina, que há dois anos o obrigou a uma semana de hospedagem no Instituto do Coração de São Paulo, muito a contragosto Covas deixou o partido dos fumantes. Isso, porém, não o livrou de uma cirurgia de ponte de safena no ano passado. O senador, que anos a fio ignorou os apelos de parentes, amigos e eleitores para aderir ao antitabagismo, ainda hoje não resiste à tentação de levar um cigarro aos lábios-felizmente para ele, o cigarro está sempre apagado. Tamanha é a força do hábito que, além disso, Covas mantém os gestos típicos de fumante: bate o cigarro na cinzeiro e o "apaga".
Às vezes nem o bisturi é suficiente. O prefeito de Petrópolis (RJ), Paulo Rattes, deixou de fumar após uma cirurgia de safena em 1984. Resistiu bravamente até 1986, mas a agitação da campanha eleitoral de sua mulher Ana Maria à Câmara dos Deputados revelou-se mais forte que o medo de um novo susto cardíaco. "É um hábito mecânico, tanto dos dedos como dos lábios", justifica o prefeito. Embora não fume mais os quase seis maços de antigamente, o cinqüentão Rattes fila um maço por dia dos amigos e costuma mastigar hastes de óculos, obrigando sua secretária a mandar trocá-los a cada quinze dias. Pressionado pela familia e pelos amigos que colocaram em sua mesa um pequeno cartaz com a frase "Ame-se e deixe-o", Rattes confessa que todos os dias pensa em parar de fumar. "Vou conseguir", promete.
Por mais que o cumprimento de tais promessas dependa da disciplina de cada um, é claro que o clima social, menos ou mais tolerante em relação ao fumo, joga um papel de peso. No Brasil, onde provavelmente há mais novos fumantes do que ex, o ambiente, de modo geral, ainda não é hostil ao tabagismo, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os fumantes são hoje apenas 26 por cento da população (contra 42 por cento há vinte anos). Ali, um relatório da Academia Nacional de Ciências, chamando a atenção para os riscos de saúde que correm os fumantes passivos ou involuntários- aqueles que convivem com o fumo alheio em casa ou no trabalho-, vem tornando o ar muito pesado para os dependentes da nicotina. Em Nova York, por exemplo, uma lei recente proíbe fumar em táxis, lojas, hospitais, escritórios, museus, teatros e bancos e ainda obriga os restaurantes com mais de cinqüenta lugares a reservar metade das mesas a não-fumantes. Ao mesmo tempo, uma lei federal baniu o fumo de todos os vôos domésticos de duração inferior a duas horas. Os Estados Unidos são reconhecidamente os campeões mundiais da atual onda antitabagista.
Na maioria dos países europeus, sem falar no enfumaçado Oriente, fumar ainda é um hábito aceito pela grande maioria das pessoas. No entanto, em 68 países existem leis de combate ao tabagismo, incluindo (em 42 casos) medidas de proteção aos não fumantes. Às vezes, porém, o fumo faz inimigos onde menos se espera. Quem diria que o presidente do país que é o terceiro maior produtor mundial de tabaco começasse uma guerrilha contra o tabagismo? Pois foi o que aconteceu em Cuba, onde há dois anos Fidel Castro não só jogou fora o charuto que sempre esteve associado à sua imagem como também mandou promover ampla campanha antifumo. Nem por isso Cuba deixou de produzir seus afamados charutos. No Brasil, quem gostaria de se livrar do cigarro pode encontrar algum apoio nas campanhas que o governo começou a promover de dois anos para cá.
Existe até um Dia Nacional de Combate ao Fumo (29 de agosto) como parte do Programa Nacional de Combate ao Fumo. O alvo da propaganda contra o fumo são principalmente os jovens. Faz sentido: 20 por cento da população entre 15 e 19 anos -quase 3 milhões de pessoas-são fumantes. "A meta é criar uma consciência nacional para que os jovens nem comecem a fumar", explica o pneumologista José Rosemberg, do Grupo de Controle ao Tabagismo do Ministério da Saúde e seguramente a maior especialista brasileiro no assunto. Não há quem não perceba que as coisas começam a mudar. "Muitos fumantes, hoje, já perguntam aos outros se podem acender um cigarro", observa com satisfação Rosemberg.
De fato, ao acender o cigarro, o fumante é visto como aquele egoísta que incomoda muita gente. Para reforçar ainda mais essa idéia, os antifumantes espalham onde podem cartazes e adesivos contra o cigarro e fazem desaparecer os cinzeiros. É quase certo que essa pressão social induza os fumantes a pensar duas vezes antes de acender um cigarro-se não por amor à saúde, pelo menos por vergonha. No início do ano passado, ao criar cinco cartazes para uma campanha antitabagista, o cartunista Ziraldo Alves Pinto aproveitou a ocasião e deixou de fumar. "Era complicado viver a situação - do "faça o que eu mando mas não faça o que eu faço", explica ele, outro sócio do vastíssimo clube dos que tentaram parar mais de uma vez. "Deixar de fumar é uma saga", discursa Ziraldo. "Você tenta uma, duas, três vezes e acaba voltando." Para não voltar de novo, ele descobriu que o jeito é "botar na cabeça que você tem ódio do cigarro". Não porque tivesse ódio ao cigarro, mas porque a tosse e o pigarro estavam interferindo em seu trabalho, a atriz Cristiane Torloni deixou de fumar no primeiro dia deste ano. "Pouco depois", conta, "senti a maior gratificação em cena, quando percebi minha voz muito melhor." Isso, mais o aplauso dos filhos gêmeos de 9 anos, dão-lhe ânimo para não desistir. "De qualquer forma", observa, "a situação está ficando chata para quem fuma."
Leis contra o fumo no Brasil existem há bom tempo-mas poucas pessoas conhecem direito e menos ainda se preocupam em cumprir a legislação. Em São Paulo, por exemplo, é proibido fumar em elevadores, meios de transportes urbanos, hospitais e áreas de saúde, museus, lojas e supermercados, cinemas, teatros e garagens. No Rio de Janeiro é proibido fumar em recintos fechados e estabelecimentos comerciais É ainda proibido (desde 1958) fumar em ônibus. Também em outras capitais, como Florianópolis e Porto Alegre, existem leis semelhantes. É humanamente impossível fiscalizar o cumprimento desse tipo de lei. Ela será ou não respeitada conforme a atitude das pessoas -fumantes e não fumantes - diante da transgressão.
Se em muitos ambientes o fumante se sente uma espécie de agressor, isso resulta, não da existência de leis e fiscais, mas da iniciativa das vítimas- os não-fumantes reivindicando os seus direitos. Da mesma forma, não há lei no mundo capaz de fazer com que alguém deixe de fumar. A última tragada vai depender sempre dos pulmões e da consciência de cada um.
"Uma bela tarde, depois que deixei o cigarro, tomei um copo de vinho. Foi um prazer extraordinário como eu nunca tinha sentido"Dina Sfat, 49 anos, atriz, ex-fumante"Logo que saí do hospital, não tinha desejo de fumar, porque o receio era mais forte que a vontade "Paulo Rattes, 54 anos, prefeito de Petrópolis, fumante. "Não posso ver defunto sem chorar. Sempre que alguém acende um cigarro perto de mim me dá vontade de fumar"Nuno Leal Maia, 40 anos, ator, fumante"Sem fumar, o estudo rende muito mais e me livrei do problema de queimar as teclas do piano com os cigarros caídos do cinzeiro" .Arthur Moreira Lima 47 anos pianista, ex-fumante"Vou para o Instituto do Coração mas não deixo de fumar." (1983)"O caminho mais curto para o Incor é o maço de cigarro." (1986)Mario Covas, 58 anos, senador, ex-fumante
O mal e o bem da abstinência
Quem deixa de fumar geralmente experimenta um conjunto de sintomas desagradáveis que variam em intensidade e duração-de 24 horas a dois meses, em média. É a síndrome da abstinência, que se caracteriza por inquietação, ansiedade, nervosismo, fadiga, perturbações do sono e do ritmo cardíaco, dificuldade de concentração no trabalho e, naturalmente, intensa vontade de fumar. O motivo é a supressão da nicotina, um alcalóide presente nas folhas do tabaco; sua ação no sistema nervoso central cria a dependência, cujos mecanismos ainda são desconhecidos. É isso que explica o pouco êxito das drogas antagônicas à nicotina.
Depois de uma tragada, as substâncias tóxicas do fumo chegam ao pulmão, vão para o sangue e se difundem pelo organismo. Quando a nicotina chega ao cérebro, aumenta a produção de substâncias que através da circulação atingem o coração. Sem a nicotina, o organismo passa por uma readaptação. Livres do monóxido de carbono (que combinado com a hemoglobina do sangue acaba limitando a oxigenação do organismo), as células tornam a respirar. A irrigação sangüínea se normaliza e a pele recupera o viço. Sem as substâncias tóxicas do fumo, que lesam as papilas gustativas e o nervo olfativo, os ex-fumantes redescobrem cheiros e sabores. Com a desintoxicação do cérebro, o sono também melhora.
A luta para largar o cigarro é um vale-tudo. Sem muita força de vontade não há campanha ou pressão que resolva.
Há pelo menos quatro anos o ator Nuno Leal Maia anota todos os dias na agenda a quantidade de cigarros que fumou. Assim, descobriu que nunca ultrapassa a marca de quinze-melhor ainda, alguns dias a agenda fica em branco, prova de que não fumou nada. Essa proeza ele conseguiu submetendo-se a um treinamento curto e grosso: trancou-se um dia inteiro dentro de casa sem fumar. "Foi ai que comecei a me libertar um pouco da muleta", conta o ator, um homem bem menos simplório na vida real do que o bicheiro Tony Carrado por ele interpretado na novela Mandola. Mesmo assim, ainda não conseguiu vencer o vício: basta ficar tenso para acabar fumando. Assim como Leal Maia, um número indeterminado mas ao que parece cada vez maior de brasileiros levanta todos os dias com a disposição-inabalável porém nem tanto, como se verá-de romper relações com o cigarro. Eles são a fatia arrependida de uma legião de 33 milhões de pessoas (algo como quatro em cada dez habitantes) que devem queimar este ano 168 bilhões de cigarros. É uma áspera peleja, essa de apagar o derradeiro cigarro e não tornar nunca mais a acender outro. Só os que tentaram e conseguiram sabem o quanto custa. Para começar, o candidato a ex-fumante vive num mundo onde é mais fácil ele ser estimulado a retomar o hábito do que o contrário.
Além disso, nos primeiros tempos de abstinência, os sintomas físicos e psíquicos tendem a ser desencorajadores. Por fim, como o cigarro está associado a uma série de situações prazerosas, das quais não há razão para se privar, o desejo de voltar atrás muitas vezes ameaça afogar as mais firmes promessas. Não são raros, por isso, os que acabam voltando. Estimativas sugerem que sete entre dez pessoas as desistem antes de completar um ano longe do fumo. Depois, porém, as chances de recaída diminuem drasticamente. O segredo, aparentemente, está em tentar de novo-e de novo-até vencer a batalha. Foi o que aconteceu com o pianista Arthur Moreira Lima, que fumou dos 15 aos 40 e libertou-se há sete anos, cansado de respirar mal e do gosto ruim que Ihe deixavam na boca os quatro maços consumidos por dia. Ele já fizera três tentativas, até que um dia decidiu procurar um acupunturista na esperança de que a aplicação de agulhas em pontos da orelha o ajudasse, como tinha ouvido dizer. "Era uma sexta-feira e a consulta estava marcada para a tarde. Aí pensei comigo: "Por que não paro agora mesmo de manhã? ", lembra-se ele com precisão. Moreira Lima não sabe, a rigor, se foi a acupuntura ou a força de vontade o que resolveu a parada. Mas recorda como se fosse ontem os heróicos tempos sem o cigarro: o primeiro fim de semana foi terrível e para me ocupar fiquei arrumando os armários de casa. O primeiro mês também foi o mais difícil. Eu comia chocolate feito doido; engordei uns 5 quilos. Mas depois fui me acalmando. Comecei até a pensar melhor".
Ex-fumante há nove anos, depois de 24 de cigarro entre os dedos, a atriz Dina Sfat também tinha tentado parar mais de uma vez, porque se sentia cansada e não respirava direito. "De repente, depois de vários fracassos, resolvi que fumar era ridículo e larguei", diz. A decisão mexeu com muita coisa em sua vida cotidiana. "Minha primeira providência foi cortar o café da manhã, para desfazer uma forte associação com o cigarro. Em compensação, passei a comer doces", lembra. Moral da história: Dina engordou 6 quilos (que perdeu um ano e meio depois à custa de muita ginástica), mas nunca mais fumou. Como Moreira Lima e Dina Sfat, muita gente engorda quando pára de fumar-algo que, nestes tempos de culto à forma física, pode submeter a dura prova uma decisão de banir o cigarro, mas na verdade é uma das evidências mais palpáveis das mudanças que ocorrem no organismo. Isso porque as células passam a respirar melhor e a metabolizar melhor os alimentos.
Não há dúvida, porém, de que se engorda também por causa de tudo que se leva à boca (e ao estômago) para compensar a falta de um cigarro nos lábios, principalmente balas, chocolates, chicletes e assemelhados. Outras válvulas de escape diminuem a tensão sem a desvantagem de aumentar o peso-no máximo, podem virar cacoetes: morder lápis, tampas de caneta, hastes de óculos ou o que estiver ao alcance da mão.
Afinal, explica o psiquiatra Arthur Kaufman, da Universidade de São Paulo, "como o cigarro representa quase um companheiro, as pessoas ficam sem apoio afetivo quando param de fumar; por isso alguns passam a consumir mais café, analgésicos e tranqüilizantes, na tentativa de substitui-lo". Em sua opinião, os motivos que levam o fumante a tentar abandonar o hábito-conselhos médico, campanhas educativas, conhecimento sobre os males do fumo, uma doença em família-não bastam logicamente para garantir a vitória na batalha. "É acima de tudo uma questão de resistir à frustração", acredita ele, credenciado por sua condição de ex-fumante.
Depois de vinte anos, Kaufman deixou de fumar pela primeira vez quando começou a escrever um artigo sobre os aspectos psicológicos do tabagismo. Duas recaídas mais tarde (a primeira ao cabo de vinte meses), recorreu à acupuntura e está sem fumar há um ano e meio. "Mas a determinação ajuda bastante", diz o médico. Resistir à frustração, como todos sabem, não é um desafio simples e é justamente quando enfrentam situações emocionais difíceis que alguns ex-fumantes acabam sucumbindo. Assim aconteceu com a assistente social Cecy Gonçalves, que parou duas vezes e duas vezes recomeçou por causa de complicações sentimentais. "Há questão de um ano resolvi segurar a barra tentar parar de vez", diz. "Por isso, conto cada cigarro que fumo-cinco em média por dia-e cada vez a consciência pesa mais, porque sei que estou me prejudicando", confessa ela.
De modo geral, problemas de saúde, menos ou mais graves, são a causa principal das decisões de abandonar o tabagismo. Não se sabe que influência em no Brasil as campanhas antifumo ou as notícias sobre restrições ao cigarro em outros países. Tampouco se sabe porque certas pessoas deixam de fumar e não sentem nada. Há quatro anos o advogado Luis Antônio Campos Arrudão descobriu que precisava fazer exercícios para baixar a taxa de gordura no sangue. Por isso ele deixou o cachimbo que fumava há dez anos. "Foi tranqüilo. Não tive qualquer tipo de ansiedade", garante.
Situação bem mais dramática-pelo motivo e pela dificuldade de parar -viveu um dos fumantes mais notórios do país, o senador paulista Mário Covas, quatro maços por dia. Em conseqüência de uma angina, que há dois anos o obrigou a uma semana de hospedagem no Instituto do Coração de São Paulo, muito a contragosto Covas deixou o partido dos fumantes. Isso, porém, não o livrou de uma cirurgia de ponte de safena no ano passado. O senador, que anos a fio ignorou os apelos de parentes, amigos e eleitores para aderir ao antitabagismo, ainda hoje não resiste à tentação de levar um cigarro aos lábios-felizmente para ele, o cigarro está sempre apagado. Tamanha é a força do hábito que, além disso, Covas mantém os gestos típicos de fumante: bate o cigarro na cinzeiro e o "apaga".
Às vezes nem o bisturi é suficiente. O prefeito de Petrópolis (RJ), Paulo Rattes, deixou de fumar após uma cirurgia de safena em 1984. Resistiu bravamente até 1986, mas a agitação da campanha eleitoral de sua mulher Ana Maria à Câmara dos Deputados revelou-se mais forte que o medo de um novo susto cardíaco. "É um hábito mecânico, tanto dos dedos como dos lábios", justifica o prefeito. Embora não fume mais os quase seis maços de antigamente, o cinqüentão Rattes fila um maço por dia dos amigos e costuma mastigar hastes de óculos, obrigando sua secretária a mandar trocá-los a cada quinze dias. Pressionado pela familia e pelos amigos que colocaram em sua mesa um pequeno cartaz com a frase "Ame-se e deixe-o", Rattes confessa que todos os dias pensa em parar de fumar. "Vou conseguir", promete.
Por mais que o cumprimento de tais promessas dependa da disciplina de cada um, é claro que o clima social, menos ou mais tolerante em relação ao fumo, joga um papel de peso. No Brasil, onde provavelmente há mais novos fumantes do que ex, o ambiente, de modo geral, ainda não é hostil ao tabagismo, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os fumantes são hoje apenas 26 por cento da população (contra 42 por cento há vinte anos). Ali, um relatório da Academia Nacional de Ciências, chamando a atenção para os riscos de saúde que correm os fumantes passivos ou involuntários- aqueles que convivem com o fumo alheio em casa ou no trabalho-, vem tornando o ar muito pesado para os dependentes da nicotina. Em Nova York, por exemplo, uma lei recente proíbe fumar em táxis, lojas, hospitais, escritórios, museus, teatros e bancos e ainda obriga os restaurantes com mais de cinqüenta lugares a reservar metade das mesas a não-fumantes. Ao mesmo tempo, uma lei federal baniu o fumo de todos os vôos domésticos de duração inferior a duas horas. Os Estados Unidos são reconhecidamente os campeões mundiais da atual onda antitabagista.
Na maioria dos países europeus, sem falar no enfumaçado Oriente, fumar ainda é um hábito aceito pela grande maioria das pessoas. No entanto, em 68 países existem leis de combate ao tabagismo, incluindo (em 42 casos) medidas de proteção aos não fumantes. Às vezes, porém, o fumo faz inimigos onde menos se espera. Quem diria que o presidente do país que é o terceiro maior produtor mundial de tabaco começasse uma guerrilha contra o tabagismo? Pois foi o que aconteceu em Cuba, onde há dois anos Fidel Castro não só jogou fora o charuto que sempre esteve associado à sua imagem como também mandou promover ampla campanha antifumo. Nem por isso Cuba deixou de produzir seus afamados charutos. No Brasil, quem gostaria de se livrar do cigarro pode encontrar algum apoio nas campanhas que o governo começou a promover de dois anos para cá.
Existe até um Dia Nacional de Combate ao Fumo (29 de agosto) como parte do Programa Nacional de Combate ao Fumo. O alvo da propaganda contra o fumo são principalmente os jovens. Faz sentido: 20 por cento da população entre 15 e 19 anos -quase 3 milhões de pessoas-são fumantes. "A meta é criar uma consciência nacional para que os jovens nem comecem a fumar", explica o pneumologista José Rosemberg, do Grupo de Controle ao Tabagismo do Ministério da Saúde e seguramente a maior especialista brasileiro no assunto. Não há quem não perceba que as coisas começam a mudar. "Muitos fumantes, hoje, já perguntam aos outros se podem acender um cigarro", observa com satisfação Rosemberg.
De fato, ao acender o cigarro, o fumante é visto como aquele egoísta que incomoda muita gente. Para reforçar ainda mais essa idéia, os antifumantes espalham onde podem cartazes e adesivos contra o cigarro e fazem desaparecer os cinzeiros. É quase certo que essa pressão social induza os fumantes a pensar duas vezes antes de acender um cigarro-se não por amor à saúde, pelo menos por vergonha. No início do ano passado, ao criar cinco cartazes para uma campanha antitabagista, o cartunista Ziraldo Alves Pinto aproveitou a ocasião e deixou de fumar. "Era complicado viver a situação - do "faça o que eu mando mas não faça o que eu faço", explica ele, outro sócio do vastíssimo clube dos que tentaram parar mais de uma vez. "Deixar de fumar é uma saga", discursa Ziraldo. "Você tenta uma, duas, três vezes e acaba voltando." Para não voltar de novo, ele descobriu que o jeito é "botar na cabeça que você tem ódio do cigarro". Não porque tivesse ódio ao cigarro, mas porque a tosse e o pigarro estavam interferindo em seu trabalho, a atriz Cristiane Torloni deixou de fumar no primeiro dia deste ano. "Pouco depois", conta, "senti a maior gratificação em cena, quando percebi minha voz muito melhor." Isso, mais o aplauso dos filhos gêmeos de 9 anos, dão-lhe ânimo para não desistir. "De qualquer forma", observa, "a situação está ficando chata para quem fuma."
Leis contra o fumo no Brasil existem há bom tempo-mas poucas pessoas conhecem direito e menos ainda se preocupam em cumprir a legislação. Em São Paulo, por exemplo, é proibido fumar em elevadores, meios de transportes urbanos, hospitais e áreas de saúde, museus, lojas e supermercados, cinemas, teatros e garagens. No Rio de Janeiro é proibido fumar em recintos fechados e estabelecimentos comerciais É ainda proibido (desde 1958) fumar em ônibus. Também em outras capitais, como Florianópolis e Porto Alegre, existem leis semelhantes. É humanamente impossível fiscalizar o cumprimento desse tipo de lei. Ela será ou não respeitada conforme a atitude das pessoas -fumantes e não fumantes - diante da transgressão.
Se em muitos ambientes o fumante se sente uma espécie de agressor, isso resulta, não da existência de leis e fiscais, mas da iniciativa das vítimas- os não-fumantes reivindicando os seus direitos. Da mesma forma, não há lei no mundo capaz de fazer com que alguém deixe de fumar. A última tragada vai depender sempre dos pulmões e da consciência de cada um.
"Uma bela tarde, depois que deixei o cigarro, tomei um copo de vinho. Foi um prazer extraordinário como eu nunca tinha sentido"Dina Sfat, 49 anos, atriz, ex-fumante"Logo que saí do hospital, não tinha desejo de fumar, porque o receio era mais forte que a vontade "Paulo Rattes, 54 anos, prefeito de Petrópolis, fumante. "Não posso ver defunto sem chorar. Sempre que alguém acende um cigarro perto de mim me dá vontade de fumar"Nuno Leal Maia, 40 anos, ator, fumante"Sem fumar, o estudo rende muito mais e me livrei do problema de queimar as teclas do piano com os cigarros caídos do cinzeiro" .Arthur Moreira Lima 47 anos pianista, ex-fumante"Vou para o Instituto do Coração mas não deixo de fumar." (1983)"O caminho mais curto para o Incor é o maço de cigarro." (1986)Mario Covas, 58 anos, senador, ex-fumante
O mal e o bem da abstinência
Quem deixa de fumar geralmente experimenta um conjunto de sintomas desagradáveis que variam em intensidade e duração-de 24 horas a dois meses, em média. É a síndrome da abstinência, que se caracteriza por inquietação, ansiedade, nervosismo, fadiga, perturbações do sono e do ritmo cardíaco, dificuldade de concentração no trabalho e, naturalmente, intensa vontade de fumar. O motivo é a supressão da nicotina, um alcalóide presente nas folhas do tabaco; sua ação no sistema nervoso central cria a dependência, cujos mecanismos ainda são desconhecidos. É isso que explica o pouco êxito das drogas antagônicas à nicotina.
Depois de uma tragada, as substâncias tóxicas do fumo chegam ao pulmão, vão para o sangue e se difundem pelo organismo. Quando a nicotina chega ao cérebro, aumenta a produção de substâncias que através da circulação atingem o coração. Sem a nicotina, o organismo passa por uma readaptação. Livres do monóxido de carbono (que combinado com a hemoglobina do sangue acaba limitando a oxigenação do organismo), as células tornam a respirar. A irrigação sangüínea se normaliza e a pele recupera o viço. Sem as substâncias tóxicas do fumo, que lesam as papilas gustativas e o nervo olfativo, os ex-fumantes redescobrem cheiros e sabores. Com a desintoxicação do cérebro, o sono também melhora.
Guerreiros do Ar - Combate
GUERREIROS DO AR - Combate
Os novos aviões de combate são como falcões equipados com computadores. Neles, os ases da caça e os mais avançados recursos eletrônicos agem como partes de um mesmo organismo.
A cena se passa num dia qualquer de 1998. O lugar pode ser um país do hemisfério norte. No frio amanhecer, as silhuetas cobertas de gelo dos caças alinhados na pista aparecem recortadas contra o horizonte. De capacete e com o traje escuro que o fazem parecer um personagem de ficção científica, o piloto é levado por um carrinho elétrico para junto do avião. A uma ordem verbal, identificada por um dos computadores de bordo, a carlinga transparente se abre. Já dentro, conectado ao assento ejetor, o jovem oficial começa a sentir o ar quente do sistema de manutenção vital penetrar no traje de vôo. É o momento de ligar o dispositivo antiG, um tubo que entra na roupa pouco acima do joelho esquerdo e serve para injetar ar comprimido, de forma a contrabalançar os efeitos da gravidade artificial resultante de manobras repentinas.
Com base no desempenho dos melhores caças atualmente em serviço, como o F-16 americano e o Sukhoi Su-27 soviético, já começam a ser testados os protótipos dos aparelhos que tentarão dominar os céus no final do século. Um bom exemplo da geração que vem aí é o Lavi israelense, capaz de voar a 1900 quilômetros horários, carregando sob as asas um par de mísseis ar-terra, além de canhões, bombas e, ainda, nas pontas, dois foguetes-7 toneladas de armamentos ao todo.
Nesse modelo se destacam o canard -pequena asa presa ao lado da carlinga, que dá ao avião maior poder de manobra-e a qualidade dos chamados aviônicos, os componentes eletrônicos do aparelho. O radar do Lavi, localizado no nariz, será dirigido por um microprocessador programável apoiado por uma rede embutida de computadores extremamente avançados, que terá a capacidade de manejar todo o avião. No mesmo estágio de protótipo está outro guerreiro do futuro, o Eurofighter, criação de um consórcio de países europeus na Inglaterra, cuja característica mais marcante é só precisar de 500 metros de pista para levantar vôo. Enquanto isso, a França lançou o Rafale, que se destina a substituir os Mirage a partir de 1996. Segundo seus construtores-por sinal os mesmos da família Mirage-, o Rafale é a última palavra em aviação de combate. Reúne o que há de mais sofisticado em eletrônica, além de novos materiais como o titânio e derivados do carbono. Deverá ser capaz de destruir ao mesmo tempo até oito aviões inimigos, voando a altitudes diferentes e em direções opostas, à distância de até 30 quilômetros. De seu lado, a Suécia comparece com o Saab Grypen JAS 39. Com apenas 8 metros de envergadura, é o menor de sua geração ). À frente do piloto, o painel de controle apresenta a situação geral do aparelho, cujos reatores haviam sido ligados por controle remoto momentos antes da sua chegada. "Bom dia, tenente", soa a voz sintetizada dentro de seu capacete. A voz confirma os dados que aparecem na tela do monitor colorido do painel. Imediatamente, enquanto o computador começa a mover o avião rumo à pista de decolagem, o piloto toma conhecimento de sua missão por meio de um relato verbal do computador, enriquecido com mapas e ilustrações projetados no monitor. O audiovisual nem terminou e o caça já levanta vôo: bastaram-lhe 300 metros de pista.
Se nos anos 60 e 70 a velocidade e a capacidade de levar armamentos é que definiam a cotação de um novo caça no disputadíssimo mercado internacional de aviões de combate, o final do século será testemunha da valorização de um perfil diversificado.
O caça dos sonhos dos pilotos de hoje seria uma contraditória mistura do triplano Fokker do barão Von Richthofen-o temível Barão Vermelho da Primeira Guerra Mundial - com o supersônico S R-71, o avião espião americano Blackbird que ultrapassa Mach 2, o dobro da velocidade do som. Ou seja, unir a leveza e o poder de manobra de um antigo triplano com a força e a velocidade de um superjato. O mais ambicioso programa conhecido para um futuro caça de combate (pelo menos fora da União Soviética) é o do americano ATF, sigla em inglês de Caça Tático Avançado. Para gerá-lo concorrem as sete melhores equipes de projetistas da indústria aeronáutica dos Estados Unidos. A recompensa é um contrato estratosférico 50 bilhões de dólares.
Especula-se que a Força Aérea e americana tenda a escolher.os projetos das empresas Lockheed e s Northrop-talvez não por acaso as mesmas que detêm a tecnologia dos chamados aviões invisíveis ou stealth, desenhados para driblar os sistemas de detecção do inimigo. Pretende-se que o ATF seja capaz de usar pistas mínimas e ainda por cima danificadas de dar combate ao mesmo tempo a vários caças inimigos, dentro ou fora do alcance visual do piloto, e subir a 20 mil metros de altitude em um minuto.Tudo isso com uma eletrônica tão sofisticada que fará do ATF uma espécie "supercomputador de rapina". como dizem americanos. Missão: destruir posição de artilharia inimiga. Localização: 428 quilômetros da base. Defesa a ser enfrentada: mísseis inteligentes terra-ar. Possibilidade de confrontação aérea: positiva.
Em segundos, o avião ganha altitude. Seu perfil lateral estreito. A carlinga tem uma cobertura de policarbonato que se destaca corpo do aparelho. As asas, encurvadas para baixo e arredondadas absorver as ondas de radar, são enflechadas para trás, dando a impressão de que o avião voa ao contrário a mão direita sobre o reduzido manche, o piloto dirige o caça para um sobrevôo rente ao solo para fugir à detecção. Chegando à altitude desejada, aperta uma tecla amarela no console à sua esquerda. A tecla aciona um computador localizado na barriga do avião, que controla automaticamente as manobras necessárias para mantê-lo num trajeto paralelo ao perfil do terreno. Acionando outro botão ao alcance da mão que segura o manche, o piloto ordena ao computador central que ativa sua visão eletrônica, fazendo uma busca de 360 graus num raio de mais de 100 quilômetros. Por enquanto, nenhum outro aparelho à vista. Novo movimento do polegar ativa o controle de ataque por voz humana. "Foco do alvo, acionar", comanda o piloto. "Estado das defesas inimigas?", pergunta. "Passivas", responde imediatamente o computador.
O aperfeiçoamento constante dos sistemas de defesa tem obrigado os aviões de combate a voar o mais baixo possível. Como voar baixo é bem mais complicado do que voar alto, devido ao problema da estabilidade do avião, "o número de decisões a serem tomadas pelo piloto por unidade de tempo aumenta rapidamente", segundo constata o especialista inglês Bill Gunston, da Jane´s All the World´s Aircraft, a mais respeitada publicação aeronáutica do mundo. Tanto que cada ato do piloto é transmitido ao avião por meio de impulsos elétricos (bits digitais) transportados por fibras óticas as informações percorrem o trajeto em frações mínimas de tempo, dentro de um cabo de 25 milímetros de diâmetro. A alavanca ou manche lateral, como um joystick de fliperama, começou a ser introduzido nos modernos caças F-16 americanos e tende a se tornar equipamento padrão. A inovação, adotada pela primeira vez na aviação civil no Airbus A320 francês, facilita o controle do aparelho, pois cada movimento do manche determina eletronicamente uma resposta dos sistemas hidráulicos que movimentam os flaps das asas. Outra característica da nova geração de caças é a drástica redução da quantidade de instrumentos na cabine. O F-18, Hornet, americano, opera com uma cabine quase completamente monitorizada-para ocupar o mínimo da atenção do piloto. Isso se conjuga com a miniaturização dos componentes eletrônicos: quanto menores os aviônicos, maior número deles cabe no avião, o que permite multiplicar os sistemas vitais montados em paralelo. Assim, se um aviônico essencial ao funcionamento do caça é atingido, o computador central passa a trabalhar com outro idêntico, localizado em outra parte da aeronave e tudo segue como antes. "Alvo a 2 quilômetros", diz a voz do computador. Com o dedo, o piloto aperta o gatilho do manche, acionando os mísseis ar-terra inteligentes presos sob as asas. Sua velocidade é tão rápida que o piloto prefere acompanhar a trajetória no monitor. Graças a seus microcomputadores autônomos-daí sua característica inteligente-, os mísseis voam rente ao solo e em 20 segundos atingem o alvo. "Impacto", constata o computador. "Alvo atingido", completa. Dura pouco, porém, a satisfação do piloto. "Caça inimigo detectado", informa a máquina. Imediatamente aparece na tela a posição do adversário, devidamente identificado pela silhueta, marca, autonomia de vôo e capacidade bélica. Sem tirar os olhos do monitor, o piloto ao mesmo tempo reduz a velocidade do avião e o faz cair sobre a asa direita, numa curva fechada. Outro movimento repentino e o caça começa a subir rapidamente. "Armamentos de combate, acionar", ordena o piloto.
Embora seja mais um avião de pesquisa do que um caça operacional, o Grumman X-29 americano fornece o perfil do que será o combatente dos ares no final do século. Com uma tecnologia peculiar, menor tamanho e bom desempenho nas mais diversas condições de vôo, o X-29 tem as asas voltadas para a frente, o que melhora o aproveitamento do fluxo de ar que percorre o corpo do avião em vôo. As asas têm um revestimento de fibra de carbono para suportarem maior atrito com o ar. Além disso, ao lado da cabine há um par de asas móveis (cannards), cujo ângulo é checado e ajustado por um computador quarenta vezes por segundo. A fuselagem esguia do caça termina nos flaps estabilizadores, que proporcionam maior controle quando o avião perde a sustentação no ar (estol). O primeiro a atirar foi o inimigo. Com uma guinada rápida sobre a esquerda, o piloto conseguiu desviar-se do míssil. Com outra guinada, desta vez para a direita, faz uma curva bem fechada, reduzindo bastante a velocidade, para se pôr atrás do oponente e sair em sua perseguição. Como numa briga de gato e rato, toda manobra do perseguido é imediatamente respondida pelo perseguidor. Assumindo o papel de piloto artilheiro dos caças de gerações atrás, o computador informa: "Inimigo no alvo, disparar".Quando a eletrônica passou a ocupar a aviação militar, chegou-se a imaginar que os pilotos de caças estivessem com os dias contados. Máquinas comandariam máquinas, dispensando praticamente o engenho humano. A previsão espatifou-se. "O piloto é mais importante hoje do que na Batalha da Inglaterra", compara o engenheiro aeronáutico Anastácio Katsanos, brasileiro de origem grega, assessor da diretoria de Programas Militares da Embraer, numa referência aos famosos combates aéreos entre ingleses e alemães no começo da Segunda Guerra Mundial. De fato, se então nunca tantos deveram tanto a tão poucos, como disse o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em homenagem aos pilotos que salvaram a Inglaterra da invasão alemã, hoje se acredita que no moderno cenário de combate aéreo o papel de um piloto bem treinado é nada menos que definitivo. "Isso foi provado tanto nos combates entre israelenses e sírios no Oriente Médio como na Guerra das Malvinas, entre ingleses e argentinos", observa Katsanos, que acompanha os projetos das Forças Aéreas de todo o mundo. A rigor, piloto e avião são cada vez mais partes complementares de um mesmo organismo. Diz o inglês Bill Gunston: "O piloto tornou-se um administrador que toma decisões de posse das informações instantâneas que Ihe são passadas pelo computador central. Isso só aumenta sua perícia na hora do combate.O piloto aperta o gatilho do manche e dispara uma rajada do canhão de projéteis guiados por laser. Em vão. O inimigo já se havia desviado para cima, dando início a um movimento que acabaria por deixá-lo na traseira do oponente. Com um giro rápido sobre o próprio corpo do avião, o piloto agora no papel de perseguido fica por um instante de cabeça para baixo. A manobra quase o fez tocar o solo, mas o resultado foi perfeito. À medida que subia na vertical, o inimigo se colocou sem querer dentro do campo de ação dos mísseis ar-ar inteligentes. O disparo foi instantâneo. Em fração de segundos, o avião adversário era uma bola de fogo se consumindo como um meteoro. Um estilhaço do caça atingido quase acerta a carlinga do vitorioso. O exercício de combate simulado por computador estava encerrado.
Os novos aviões de combate são como falcões equipados com computadores. Neles, os ases da caça e os mais avançados recursos eletrônicos agem como partes de um mesmo organismo.
A cena se passa num dia qualquer de 1998. O lugar pode ser um país do hemisfério norte. No frio amanhecer, as silhuetas cobertas de gelo dos caças alinhados na pista aparecem recortadas contra o horizonte. De capacete e com o traje escuro que o fazem parecer um personagem de ficção científica, o piloto é levado por um carrinho elétrico para junto do avião. A uma ordem verbal, identificada por um dos computadores de bordo, a carlinga transparente se abre. Já dentro, conectado ao assento ejetor, o jovem oficial começa a sentir o ar quente do sistema de manutenção vital penetrar no traje de vôo. É o momento de ligar o dispositivo antiG, um tubo que entra na roupa pouco acima do joelho esquerdo e serve para injetar ar comprimido, de forma a contrabalançar os efeitos da gravidade artificial resultante de manobras repentinas.
Com base no desempenho dos melhores caças atualmente em serviço, como o F-16 americano e o Sukhoi Su-27 soviético, já começam a ser testados os protótipos dos aparelhos que tentarão dominar os céus no final do século. Um bom exemplo da geração que vem aí é o Lavi israelense, capaz de voar a 1900 quilômetros horários, carregando sob as asas um par de mísseis ar-terra, além de canhões, bombas e, ainda, nas pontas, dois foguetes-7 toneladas de armamentos ao todo.
Nesse modelo se destacam o canard -pequena asa presa ao lado da carlinga, que dá ao avião maior poder de manobra-e a qualidade dos chamados aviônicos, os componentes eletrônicos do aparelho. O radar do Lavi, localizado no nariz, será dirigido por um microprocessador programável apoiado por uma rede embutida de computadores extremamente avançados, que terá a capacidade de manejar todo o avião. No mesmo estágio de protótipo está outro guerreiro do futuro, o Eurofighter, criação de um consórcio de países europeus na Inglaterra, cuja característica mais marcante é só precisar de 500 metros de pista para levantar vôo. Enquanto isso, a França lançou o Rafale, que se destina a substituir os Mirage a partir de 1996. Segundo seus construtores-por sinal os mesmos da família Mirage-, o Rafale é a última palavra em aviação de combate. Reúne o que há de mais sofisticado em eletrônica, além de novos materiais como o titânio e derivados do carbono. Deverá ser capaz de destruir ao mesmo tempo até oito aviões inimigos, voando a altitudes diferentes e em direções opostas, à distância de até 30 quilômetros. De seu lado, a Suécia comparece com o Saab Grypen JAS 39. Com apenas 8 metros de envergadura, é o menor de sua geração ). À frente do piloto, o painel de controle apresenta a situação geral do aparelho, cujos reatores haviam sido ligados por controle remoto momentos antes da sua chegada. "Bom dia, tenente", soa a voz sintetizada dentro de seu capacete. A voz confirma os dados que aparecem na tela do monitor colorido do painel. Imediatamente, enquanto o computador começa a mover o avião rumo à pista de decolagem, o piloto toma conhecimento de sua missão por meio de um relato verbal do computador, enriquecido com mapas e ilustrações projetados no monitor. O audiovisual nem terminou e o caça já levanta vôo: bastaram-lhe 300 metros de pista.
Se nos anos 60 e 70 a velocidade e a capacidade de levar armamentos é que definiam a cotação de um novo caça no disputadíssimo mercado internacional de aviões de combate, o final do século será testemunha da valorização de um perfil diversificado.
O caça dos sonhos dos pilotos de hoje seria uma contraditória mistura do triplano Fokker do barão Von Richthofen-o temível Barão Vermelho da Primeira Guerra Mundial - com o supersônico S R-71, o avião espião americano Blackbird que ultrapassa Mach 2, o dobro da velocidade do som. Ou seja, unir a leveza e o poder de manobra de um antigo triplano com a força e a velocidade de um superjato. O mais ambicioso programa conhecido para um futuro caça de combate (pelo menos fora da União Soviética) é o do americano ATF, sigla em inglês de Caça Tático Avançado. Para gerá-lo concorrem as sete melhores equipes de projetistas da indústria aeronáutica dos Estados Unidos. A recompensa é um contrato estratosférico 50 bilhões de dólares.
Especula-se que a Força Aérea e americana tenda a escolher.os projetos das empresas Lockheed e s Northrop-talvez não por acaso as mesmas que detêm a tecnologia dos chamados aviões invisíveis ou stealth, desenhados para driblar os sistemas de detecção do inimigo. Pretende-se que o ATF seja capaz de usar pistas mínimas e ainda por cima danificadas de dar combate ao mesmo tempo a vários caças inimigos, dentro ou fora do alcance visual do piloto, e subir a 20 mil metros de altitude em um minuto.Tudo isso com uma eletrônica tão sofisticada que fará do ATF uma espécie "supercomputador de rapina". como dizem americanos. Missão: destruir posição de artilharia inimiga. Localização: 428 quilômetros da base. Defesa a ser enfrentada: mísseis inteligentes terra-ar. Possibilidade de confrontação aérea: positiva.
Em segundos, o avião ganha altitude. Seu perfil lateral estreito. A carlinga tem uma cobertura de policarbonato que se destaca corpo do aparelho. As asas, encurvadas para baixo e arredondadas absorver as ondas de radar, são enflechadas para trás, dando a impressão de que o avião voa ao contrário a mão direita sobre o reduzido manche, o piloto dirige o caça para um sobrevôo rente ao solo para fugir à detecção. Chegando à altitude desejada, aperta uma tecla amarela no console à sua esquerda. A tecla aciona um computador localizado na barriga do avião, que controla automaticamente as manobras necessárias para mantê-lo num trajeto paralelo ao perfil do terreno. Acionando outro botão ao alcance da mão que segura o manche, o piloto ordena ao computador central que ativa sua visão eletrônica, fazendo uma busca de 360 graus num raio de mais de 100 quilômetros. Por enquanto, nenhum outro aparelho à vista. Novo movimento do polegar ativa o controle de ataque por voz humana. "Foco do alvo, acionar", comanda o piloto. "Estado das defesas inimigas?", pergunta. "Passivas", responde imediatamente o computador.
O aperfeiçoamento constante dos sistemas de defesa tem obrigado os aviões de combate a voar o mais baixo possível. Como voar baixo é bem mais complicado do que voar alto, devido ao problema da estabilidade do avião, "o número de decisões a serem tomadas pelo piloto por unidade de tempo aumenta rapidamente", segundo constata o especialista inglês Bill Gunston, da Jane´s All the World´s Aircraft, a mais respeitada publicação aeronáutica do mundo. Tanto que cada ato do piloto é transmitido ao avião por meio de impulsos elétricos (bits digitais) transportados por fibras óticas as informações percorrem o trajeto em frações mínimas de tempo, dentro de um cabo de 25 milímetros de diâmetro. A alavanca ou manche lateral, como um joystick de fliperama, começou a ser introduzido nos modernos caças F-16 americanos e tende a se tornar equipamento padrão. A inovação, adotada pela primeira vez na aviação civil no Airbus A320 francês, facilita o controle do aparelho, pois cada movimento do manche determina eletronicamente uma resposta dos sistemas hidráulicos que movimentam os flaps das asas. Outra característica da nova geração de caças é a drástica redução da quantidade de instrumentos na cabine. O F-18, Hornet, americano, opera com uma cabine quase completamente monitorizada-para ocupar o mínimo da atenção do piloto. Isso se conjuga com a miniaturização dos componentes eletrônicos: quanto menores os aviônicos, maior número deles cabe no avião, o que permite multiplicar os sistemas vitais montados em paralelo. Assim, se um aviônico essencial ao funcionamento do caça é atingido, o computador central passa a trabalhar com outro idêntico, localizado em outra parte da aeronave e tudo segue como antes. "Alvo a 2 quilômetros", diz a voz do computador. Com o dedo, o piloto aperta o gatilho do manche, acionando os mísseis ar-terra inteligentes presos sob as asas. Sua velocidade é tão rápida que o piloto prefere acompanhar a trajetória no monitor. Graças a seus microcomputadores autônomos-daí sua característica inteligente-, os mísseis voam rente ao solo e em 20 segundos atingem o alvo. "Impacto", constata o computador. "Alvo atingido", completa. Dura pouco, porém, a satisfação do piloto. "Caça inimigo detectado", informa a máquina. Imediatamente aparece na tela a posição do adversário, devidamente identificado pela silhueta, marca, autonomia de vôo e capacidade bélica. Sem tirar os olhos do monitor, o piloto ao mesmo tempo reduz a velocidade do avião e o faz cair sobre a asa direita, numa curva fechada. Outro movimento repentino e o caça começa a subir rapidamente. "Armamentos de combate, acionar", ordena o piloto.
Embora seja mais um avião de pesquisa do que um caça operacional, o Grumman X-29 americano fornece o perfil do que será o combatente dos ares no final do século. Com uma tecnologia peculiar, menor tamanho e bom desempenho nas mais diversas condições de vôo, o X-29 tem as asas voltadas para a frente, o que melhora o aproveitamento do fluxo de ar que percorre o corpo do avião em vôo. As asas têm um revestimento de fibra de carbono para suportarem maior atrito com o ar. Além disso, ao lado da cabine há um par de asas móveis (cannards), cujo ângulo é checado e ajustado por um computador quarenta vezes por segundo. A fuselagem esguia do caça termina nos flaps estabilizadores, que proporcionam maior controle quando o avião perde a sustentação no ar (estol). O primeiro a atirar foi o inimigo. Com uma guinada rápida sobre a esquerda, o piloto conseguiu desviar-se do míssil. Com outra guinada, desta vez para a direita, faz uma curva bem fechada, reduzindo bastante a velocidade, para se pôr atrás do oponente e sair em sua perseguição. Como numa briga de gato e rato, toda manobra do perseguido é imediatamente respondida pelo perseguidor. Assumindo o papel de piloto artilheiro dos caças de gerações atrás, o computador informa: "Inimigo no alvo, disparar".Quando a eletrônica passou a ocupar a aviação militar, chegou-se a imaginar que os pilotos de caças estivessem com os dias contados. Máquinas comandariam máquinas, dispensando praticamente o engenho humano. A previsão espatifou-se. "O piloto é mais importante hoje do que na Batalha da Inglaterra", compara o engenheiro aeronáutico Anastácio Katsanos, brasileiro de origem grega, assessor da diretoria de Programas Militares da Embraer, numa referência aos famosos combates aéreos entre ingleses e alemães no começo da Segunda Guerra Mundial. De fato, se então nunca tantos deveram tanto a tão poucos, como disse o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em homenagem aos pilotos que salvaram a Inglaterra da invasão alemã, hoje se acredita que no moderno cenário de combate aéreo o papel de um piloto bem treinado é nada menos que definitivo. "Isso foi provado tanto nos combates entre israelenses e sírios no Oriente Médio como na Guerra das Malvinas, entre ingleses e argentinos", observa Katsanos, que acompanha os projetos das Forças Aéreas de todo o mundo. A rigor, piloto e avião são cada vez mais partes complementares de um mesmo organismo. Diz o inglês Bill Gunston: "O piloto tornou-se um administrador que toma decisões de posse das informações instantâneas que Ihe são passadas pelo computador central. Isso só aumenta sua perícia na hora do combate.O piloto aperta o gatilho do manche e dispara uma rajada do canhão de projéteis guiados por laser. Em vão. O inimigo já se havia desviado para cima, dando início a um movimento que acabaria por deixá-lo na traseira do oponente. Com um giro rápido sobre o próprio corpo do avião, o piloto agora no papel de perseguido fica por um instante de cabeça para baixo. A manobra quase o fez tocar o solo, mas o resultado foi perfeito. À medida que subia na vertical, o inimigo se colocou sem querer dentro do campo de ação dos mísseis ar-ar inteligentes. O disparo foi instantâneo. Em fração de segundos, o avião adversário era uma bola de fogo se consumindo como um meteoro. Um estilhaço do caça atingido quase acerta a carlinga do vitorioso. O exercício de combate simulado por computador estava encerrado.
Salvos pelo Mimetismo - Insetos
SALVOS PELO MIMETISMO - Insetos
Certos animais fingem ser o que não são para escapar de seus perseguidores. Moscas parecem vespas, borboletas saborosas parecem venenosas, sapos parecem monstros pré-históricos. Eles são a melhor demonstração de que as espécies evoluem pela seleção natural, com a sobrevivência dos mais aptos, tal como Darwin descobriu há mais de um século.
Se a legendária figura de Sherlock Holmes houvesse um dia se aventurado pela Amazônia, caçando borboletas com uma redinha de filó, certamente estaria na pele de um naturalista inglês que viveu no século XIX, chamado Henry Walter Bates. Bates não era um detetive, mas, tal como Holmes, conseguiu enxergar através de sua lente de bolso as pistas de um grande mistério. Aliás, de um dos maiores enigmas biológicos ligados à história evolutiva das espécies. O fenômeno, parcialmente esclarecido por Bates, tem hoje o nome de mimetismo batesiano, em sua homenagem, mas na época do naturalista ficou conhecido como "o estranho caso das borboletas imitadoras".
Depois de haver passado onze anos embrenhado na selva amazônica, Bates embarcou de volta para a Inglaterra em 1860, levando uma espantosa coleção de animais e plantas. Mas foram os insetos e, muito em particular, as borboletas que acabaram se tornando o principal objeto de suas investigações. Maravilhado com a exuberância da fauna tropical, ele já havia escrito em seu livro O naturalista no rio Amazonas que capturara cerca de setecentas espécies de borboletas, depois de alguns passeios em volta da cidade de Belém. Bates tinha conhecimento de que em toda a Europa só haviam sido registradas 341 espécies e que ele retornara, portanto, com uma das maiores coleções de borboletas do mundo.
Porém, entre todas aquelas centenas de caixas repletas de exemplares belos e exóticos, havia uma que reservava algo de muito mais importante. Ela estava rotulada com a palavra Heliconii, indicando tecnicamente o conteúdo: um grupo bem característico de borboletas tropicais (hoje é a família das helicônidas). Quando o naturalista passou a examiná-las detidamente, com o auxílio de sua lente de bolso, verificou, surpreendido, que a caixa estava cheia de falsas helicônidas.
Sem dúvida, Bates tinha levado para casa "gato por lebre". Só que, naquele caso, os "gatos" é que eram de grande valor, pois evidenciavam um alto padrão de imitações entre animais sem nenhum parentesco entre si. Aquilo foi suficiente para despertar na cabeça do naturalista uma série de recordações adormecidas desde a época em que caçava insetos nas florestas da Amazônia. Ele recordou-se de como eram abundantes as helicônidas em algumas regiões que visitara e que, a despeito de seus coloridos chamativos, raras vezes eram atacadas pelos pássaros caçadores de insetos. Bates entregou-se, então, a uma série de suposições. Se aquelas borboletas não eram perseguidas por seus predadores naturais, possivelmente não deveriam servir de alimento e a causa mais provável daquilo seria, de certo, um gosto muito ruim. Talvez, se o colorido de certas borboletas "comestíveis" se aproximasse do padrão Heliconii, elas tivessem alguma vantagem na luta pela sobrevivência ao se passar por repulsivas frente aos predadores. Daí por diante, através de sucessivos cruzamentos entre si, elas produziriam raças cada vez mais parecidas com as verdadeiras helicônidas.
Essas brilhantes deduções teriam feito com que o naturalista retirasse o cachimbo da boca e exclamasse um "elementar, meu caro Bates", se ele não soubesse o quanto seria difícil comprová-las. E isso ele jamais chegou a fazer completamente. Entre tanto, todas as suas investigações sobre as borboletas "imitadoras" foram apresentadas em 1861, incluídas num trabalho de grande vulto sobre os insetos da Amazônia. Aí, pela primeira vez, os cientistas tomaram conhecimento da existência de um incrível fenômeno biológico batizado de mimetismo.
Uma experiência desagradável pode permanecer na memória de um animal por um certo tempo. Por exemplo: gosto ruim de uma presa. É quase certo que nas investidas seguintes o predador irá evitar qualquer presa que se assemelhe a um modelo reconhecido como repulsivo. Esse processo de aprendizado, tão comum entre os animais, foi profundamente observado em pássaros insetívoros, demonstrando que as formas, as cores e o comportamento de borboletas determinam a freqüência dos ataques das aves caçadoras.
Muitas espécies de borboletas são evitadas como alimento porque em seus organismos circulam substâncias repulsivas e venenosas. Essas substâncias são geralmente alcalóides de origem vegetal, absorvidos pelas lagartas que se alimentam de plantas tóxicas. Mesmo depois da metamorfose, os alcalóides continuam incorporados ao inseto adulto, tornando-o repulsivo para diversos predadores. Principalmente para aves .
Quanto mais abundante for uma espécie de borboleta repulsiva numa determinada área, tanto mais rápido será o "aprendizado" da população de pássaros insetívoros dali. Pequenas variações de colorido ou desvios na distribuição dos desenhos das asas podem condenar a borboleta ao ataque da ave. Assim, ficam geralmente poupados os indivíduos (machos e fêmeas) que menos se afastam do tipo padrão. Estes, ao se acasalar, perpetuarão o velho sinal de reconhecimento-inalterado- nas gerações seguintes. Da mesma forma como acontecem variações desastrosas entre as borboletas do grupo repulsivo, podem ocorrer desvios de padrão entre as de um grupo comestível que viva na mesma área. Uma pequena mutação genética pode produzir sobre as asas das "comestíveis" uma discreta mancha colorida ou desenho que se assemelhe vagamente com o sinal das "repulsivas". Isso já é suficiente para provocar, no mínimo, momentos de hesitação entre as aves durante as investidas sobre essas formas variantes. Como resultado, as variantes passam então a escapar das aves com mais freqüência do que as for mas menos desviadas do antigo colorido. Então, dos sucessivos acasalamentos dessas sobreviventes, resultam descendentes com o novo sinal de "imitação" cada vez mais aperfeiçoado.
Pode parecer incrível, porém, são os próprios predadores que indiretamente aperfeiçoam os padrões de imitação que irão enganá-los no futuro. Se tudo corresse só por conta dos disfarces, as "imitadoras" deixariam de ter problemas depois que as cores de suas asas atingissem um certo grau de perfeição como sinal de advertência. Não sendo mais perseguidas, elas poderiam se multiplicar à vontade, tornando-se mais abundantes do que as verdadeiras "repulsivas". Mas isso nunca acontece.
Um mecanismo de correção começa a funcionar sempre que as "imitadoras" começam a se tornar mais numerosas. Aves ainda sem aprendizado, que usam atacar as borboletas coloridas, acabam comendo mais "saborosas" do que "repulsivas", e assim não criam os mecanismos que as fariam evitar a espécie. Automaticamente, começa a diminuir o número das "imitadoras"-até que elas se tornam tão raras que os pássaros acertam cada vez mais nas "repulsivas". O mecanismo se refaz, as "saborosas" ficam outra vez defendidas e começam a proliferar. E assim o ciclo vai se repetindo indefinidamente, de forma que o equilíbrio, embora alterado momentaneamente, sempre se restabelece.
Esses preferem a camuflagem
A mímica é a arte da imitação, mas, quando se trata de um animal que exibe a aparência de outro, o problema não tem nada a ver com imitação e, muito menos, com arte. O nome usado para esse fenômeno é mimetismo e, embora sendo uma palavra derivada de mímica ela indica um curioso mecanismo genético colocado em funcionamento por um processo de seleção natural. Em outras palavras: nenhum animal chega a se parecer com outro movido por uma intenção, ainda que essa semelhança Ihe confira vantagem na luta pela sobrevivência.
A natureza está cheia de exemplos de animais miméticos. Existem moscas inofensivas que se parecem com vespas, serpentes não peçonhentas com o colorido das perigosas corais, e borboletas com desenhos de assustadores olhos de coruja sobre as asas. Estes exemplos já mostram que tanto o mecanismo genético quanto a seleção natural envolvidos no mimetismo têm como produto final uma espécie de sinal. Eles elaboram geralmente "mensagens" do tipo "Cuidado comigo" ou "Não sirvo para comida". Mas outras podem funcionar, ao contrário, como atrativos. Além disso, no jogo fantasioso de mimetismo, os sinais fluem ora como imagens, ora como sons e, em alguns casos, como odores. Entretanto, há uma outra variação da mímica natural que se caracteriza por não chamar a atenção. Isto significa que o resultado final deste tipo de mimetismo passa a ser a ausência de sinais, e podemos chamá-lo então de camuflagem. A prova mais evidente de que a camuflagem é o tipo mais comum de mimetismo é a freqüente frustração dos "naturalistas" novatos que retornam de suas excursões pelas matas sem ter visto bicho nenhum.
Certos animais fingem ser o que não são para escapar de seus perseguidores. Moscas parecem vespas, borboletas saborosas parecem venenosas, sapos parecem monstros pré-históricos. Eles são a melhor demonstração de que as espécies evoluem pela seleção natural, com a sobrevivência dos mais aptos, tal como Darwin descobriu há mais de um século.
Se a legendária figura de Sherlock Holmes houvesse um dia se aventurado pela Amazônia, caçando borboletas com uma redinha de filó, certamente estaria na pele de um naturalista inglês que viveu no século XIX, chamado Henry Walter Bates. Bates não era um detetive, mas, tal como Holmes, conseguiu enxergar através de sua lente de bolso as pistas de um grande mistério. Aliás, de um dos maiores enigmas biológicos ligados à história evolutiva das espécies. O fenômeno, parcialmente esclarecido por Bates, tem hoje o nome de mimetismo batesiano, em sua homenagem, mas na época do naturalista ficou conhecido como "o estranho caso das borboletas imitadoras".
Depois de haver passado onze anos embrenhado na selva amazônica, Bates embarcou de volta para a Inglaterra em 1860, levando uma espantosa coleção de animais e plantas. Mas foram os insetos e, muito em particular, as borboletas que acabaram se tornando o principal objeto de suas investigações. Maravilhado com a exuberância da fauna tropical, ele já havia escrito em seu livro O naturalista no rio Amazonas que capturara cerca de setecentas espécies de borboletas, depois de alguns passeios em volta da cidade de Belém. Bates tinha conhecimento de que em toda a Europa só haviam sido registradas 341 espécies e que ele retornara, portanto, com uma das maiores coleções de borboletas do mundo.
Porém, entre todas aquelas centenas de caixas repletas de exemplares belos e exóticos, havia uma que reservava algo de muito mais importante. Ela estava rotulada com a palavra Heliconii, indicando tecnicamente o conteúdo: um grupo bem característico de borboletas tropicais (hoje é a família das helicônidas). Quando o naturalista passou a examiná-las detidamente, com o auxílio de sua lente de bolso, verificou, surpreendido, que a caixa estava cheia de falsas helicônidas.
Sem dúvida, Bates tinha levado para casa "gato por lebre". Só que, naquele caso, os "gatos" é que eram de grande valor, pois evidenciavam um alto padrão de imitações entre animais sem nenhum parentesco entre si. Aquilo foi suficiente para despertar na cabeça do naturalista uma série de recordações adormecidas desde a época em que caçava insetos nas florestas da Amazônia. Ele recordou-se de como eram abundantes as helicônidas em algumas regiões que visitara e que, a despeito de seus coloridos chamativos, raras vezes eram atacadas pelos pássaros caçadores de insetos. Bates entregou-se, então, a uma série de suposições. Se aquelas borboletas não eram perseguidas por seus predadores naturais, possivelmente não deveriam servir de alimento e a causa mais provável daquilo seria, de certo, um gosto muito ruim. Talvez, se o colorido de certas borboletas "comestíveis" se aproximasse do padrão Heliconii, elas tivessem alguma vantagem na luta pela sobrevivência ao se passar por repulsivas frente aos predadores. Daí por diante, através de sucessivos cruzamentos entre si, elas produziriam raças cada vez mais parecidas com as verdadeiras helicônidas.
Essas brilhantes deduções teriam feito com que o naturalista retirasse o cachimbo da boca e exclamasse um "elementar, meu caro Bates", se ele não soubesse o quanto seria difícil comprová-las. E isso ele jamais chegou a fazer completamente. Entre tanto, todas as suas investigações sobre as borboletas "imitadoras" foram apresentadas em 1861, incluídas num trabalho de grande vulto sobre os insetos da Amazônia. Aí, pela primeira vez, os cientistas tomaram conhecimento da existência de um incrível fenômeno biológico batizado de mimetismo.
Uma experiência desagradável pode permanecer na memória de um animal por um certo tempo. Por exemplo: gosto ruim de uma presa. É quase certo que nas investidas seguintes o predador irá evitar qualquer presa que se assemelhe a um modelo reconhecido como repulsivo. Esse processo de aprendizado, tão comum entre os animais, foi profundamente observado em pássaros insetívoros, demonstrando que as formas, as cores e o comportamento de borboletas determinam a freqüência dos ataques das aves caçadoras.
Muitas espécies de borboletas são evitadas como alimento porque em seus organismos circulam substâncias repulsivas e venenosas. Essas substâncias são geralmente alcalóides de origem vegetal, absorvidos pelas lagartas que se alimentam de plantas tóxicas. Mesmo depois da metamorfose, os alcalóides continuam incorporados ao inseto adulto, tornando-o repulsivo para diversos predadores. Principalmente para aves .
Quanto mais abundante for uma espécie de borboleta repulsiva numa determinada área, tanto mais rápido será o "aprendizado" da população de pássaros insetívoros dali. Pequenas variações de colorido ou desvios na distribuição dos desenhos das asas podem condenar a borboleta ao ataque da ave. Assim, ficam geralmente poupados os indivíduos (machos e fêmeas) que menos se afastam do tipo padrão. Estes, ao se acasalar, perpetuarão o velho sinal de reconhecimento-inalterado- nas gerações seguintes. Da mesma forma como acontecem variações desastrosas entre as borboletas do grupo repulsivo, podem ocorrer desvios de padrão entre as de um grupo comestível que viva na mesma área. Uma pequena mutação genética pode produzir sobre as asas das "comestíveis" uma discreta mancha colorida ou desenho que se assemelhe vagamente com o sinal das "repulsivas". Isso já é suficiente para provocar, no mínimo, momentos de hesitação entre as aves durante as investidas sobre essas formas variantes. Como resultado, as variantes passam então a escapar das aves com mais freqüência do que as for mas menos desviadas do antigo colorido. Então, dos sucessivos acasalamentos dessas sobreviventes, resultam descendentes com o novo sinal de "imitação" cada vez mais aperfeiçoado.
Pode parecer incrível, porém, são os próprios predadores que indiretamente aperfeiçoam os padrões de imitação que irão enganá-los no futuro. Se tudo corresse só por conta dos disfarces, as "imitadoras" deixariam de ter problemas depois que as cores de suas asas atingissem um certo grau de perfeição como sinal de advertência. Não sendo mais perseguidas, elas poderiam se multiplicar à vontade, tornando-se mais abundantes do que as verdadeiras "repulsivas". Mas isso nunca acontece.
Um mecanismo de correção começa a funcionar sempre que as "imitadoras" começam a se tornar mais numerosas. Aves ainda sem aprendizado, que usam atacar as borboletas coloridas, acabam comendo mais "saborosas" do que "repulsivas", e assim não criam os mecanismos que as fariam evitar a espécie. Automaticamente, começa a diminuir o número das "imitadoras"-até que elas se tornam tão raras que os pássaros acertam cada vez mais nas "repulsivas". O mecanismo se refaz, as "saborosas" ficam outra vez defendidas e começam a proliferar. E assim o ciclo vai se repetindo indefinidamente, de forma que o equilíbrio, embora alterado momentaneamente, sempre se restabelece.
Esses preferem a camuflagem
A mímica é a arte da imitação, mas, quando se trata de um animal que exibe a aparência de outro, o problema não tem nada a ver com imitação e, muito menos, com arte. O nome usado para esse fenômeno é mimetismo e, embora sendo uma palavra derivada de mímica ela indica um curioso mecanismo genético colocado em funcionamento por um processo de seleção natural. Em outras palavras: nenhum animal chega a se parecer com outro movido por uma intenção, ainda que essa semelhança Ihe confira vantagem na luta pela sobrevivência.
A natureza está cheia de exemplos de animais miméticos. Existem moscas inofensivas que se parecem com vespas, serpentes não peçonhentas com o colorido das perigosas corais, e borboletas com desenhos de assustadores olhos de coruja sobre as asas. Estes exemplos já mostram que tanto o mecanismo genético quanto a seleção natural envolvidos no mimetismo têm como produto final uma espécie de sinal. Eles elaboram geralmente "mensagens" do tipo "Cuidado comigo" ou "Não sirvo para comida". Mas outras podem funcionar, ao contrário, como atrativos. Além disso, no jogo fantasioso de mimetismo, os sinais fluem ora como imagens, ora como sons e, em alguns casos, como odores. Entretanto, há uma outra variação da mímica natural que se caracteriza por não chamar a atenção. Isto significa que o resultado final deste tipo de mimetismo passa a ser a ausência de sinais, e podemos chamá-lo então de camuflagem. A prova mais evidente de que a camuflagem é o tipo mais comum de mimetismo é a freqüente frustração dos "naturalistas" novatos que retornam de suas excursões pelas matas sem ter visto bicho nenhum.
Artes de Computador - Infografia
ARTES DE COMPUTADOR - Infografia
Da ciência ao cinema, da indústria à publicidade, uma nova técnica cria mundos sob medida. Produto da informática e das artes gráficas, estimula ousadias até os limites da imaginação.
Entediado com a monotonia do Paraíso e saudoso dos tempos em que representava o galã aventureiro, Humphrey Bogart renasce na tela e convida Marilyn Monroe para acompanhá-lo de volta Terra. Eles decidem, então, se encontrar no interior de um prédio na praça Jacques Cartier, em Montreal, no Canadá. Quando Marilyn se materializa, não é feita propriamente de carne e osso, mas de linhas e escalas. Em seguida, como num sonho, ela se transforma em pedra, depois em ouro. Bogart, impaciente para vê-la nas formas e curvas que a tornara inesquecível, desperta-a para a vida com um beijo, como um príncipe encantado. Assim, o romance tem início-e o filme acaba.Os fanáticos por cinema podem ficar tranqüilos. O filme que contém essas cenas e pode ser visto numa tela colorida de TV não estava perdido e alguma prateleira empoeirada de Hollywood. Tudo não passou de uma completa ilusão, criada por uma nova e fascinante técnica: a infografia.
Produto de uma feliz associação entre a informática e as artes gráficas daí o nome, essa técnica já vem revolucionando o cinema e a TV e promete criar espaços de extraordinária inovação nas ciências aplicadas e nas indústrias de ponta. Com ela, prevê-se por exemplo um salto na Medicina nos próximos dez anos, tornando real a fantástica viagem pelo corpo humano, até agora só conseguida pela ficção. Utilizando computador de quarta geração e programas de inteligência artificial, a infografia começa a realizar o que ainda ontem parecia impossível.
Até bem pouco tempo, de fato, não havia como ver imagens de um motor em movimento por dentro, pois não há câmara capaz de entrar num deles e filmar seus pistões. Hoje, não apenas se pode ver isso acontecendo, como algo muito melhor: pode-se observar o interior de um motor que nem sequer existe fisicamente, em funcionamento numa câmara de testes que, como ele próprio, só se materializa nas cores de um monitor de computador. "O computador gráfico está abrindo a porta de um imenso laboratório que antes só existia na imaginação dos cientistas", resume o engenheiro Márcio Lobo Netto, professor de computação digital da Universidade de São Paulo.
Desenvolvida para ajudar a indústria a aperfeiçoar ao máximo os projetos de novos produtos e a favorecer a ciência na simulação de experiências impossíveis na vida real, a computação gráfica logo foi absorvida por artistas e publicitários. No cinema, permite transportar o espectador literalmente para os limites da imaginação, utilizando o amplo leque de recursos conhecidos como efeitos especiais. Já em 1969, o diretor Stanley Kubrick, no filme 2001, uma odisséia no espaço buscou no computador não apenas seu personagem principal- o HAL 9000- como também uma ferramenta indispensável ao trabalho de manipular as câmaras em tomadas que requeriam precisão matemática. Mais recentemente, em 1977, certas cenas do filme Guerra nas estrelas, de Georges Lucas, foram resultado de mais de uma dezena de seqüências rodadas separadamente e superpostas com o auxílio de um computador gráfico.
"Podemos representar qualquer personagem, vivo ou morto, e dar-lhe expressões tiradas da vida real ou simplesmente de nossa imaginação", afirma Nadia Magnenat-Thalmann, professora de Comunicação e Ciência da Computação da Universidade de Montreal. Foi ela, junto com o marido Daniel, quem produziu o filme de sete minutos Rendez-vous à Montreal (Encontro marcado em Montreal), que trouxe Marilyn e Bogart de volta à vida. O filme foi todo concebido em computador, utilizando um programa chamado "Human Factory", um exemplo do estado da arte na infografia, e premiado no Computer Graphics 87, festival internacional do setor, realizado no ano passado em Karuizawa, Japão.
Para se ter uma idéia de sua complexidade, leis da Física são aplicadas a certos parâmetros das figuras humanas, como o movimento das juntas dos membros e o impacto do toque dos dedos da mão numa taça de vinho. Nadia e Daniel deram início a sua obra-prima definindo o esqueleto de Marilyn e Bogart. Aplicaram em seguida as leis físicas mais simples para proporcionar movimento às figuras. Cobrindo os esqueletos com formas facetadas, obtiveram desenhos tridimensionais. A superfície de cada faceta foi preenchida depois com cores que esconderam as linhas das juntas e dos segmentos dos esqueletos. Outras leis físicas, mais complicadas, deram flexibilidade aos movimentos. Enfim, as vozes e a trilha sonora foram sintetizadas no computador a partir de gravações originais de filmes antigos. Na televisão, o show proporcionado pela infografia tem sido sem dúvida impressionante. Quem não se lembra do videoclip Sledgehammer, de Peter Gabriel? Ou o Raspberry beret, de Prince? No início do ano passado, o público de uma emissora de TV por cabo em Nova York ficou fascinado com o programa do repórter Max Headroom, personificação da imagem digitalizada de uma cabeça, criada a partir do rosto filmado em vídeo do ator canadense Matt Frewer. Desde então, toda semana Max protagoniza um entrevistador que leva a seu programa personalidades da vida americana, brincando com as possibilidades sem fim dos efeitos especiais de vídeo manipulados por computador.
No Brasil, o público começou a se familiarizar com a infografia assistindo aos trabalhos feitos por Hans Donner diretor de arte da Rede Globo, com a abertura do Fantástico, que superpõe a imagem de um balé a um fundo de paisagem inteiramente concebida em computador. Nos intervalos, o telespectador brasileiro acompanhou o aparecimento de comerciais cujo apelo está nas figuras geométricas tridimensionais que passeiam na tela e se transformam em símbolos das marcas dos produtos. "Criamos todo tipo de imagens para as agências de publicidade", orgulhava-se Ewa Wawelberg, a desenhista industrial que se especializou em imagens computadorizadas depois de um curso nos Estados Unidos e agora cuida desse setor na Diana Cinematográfica, produtora paulista de comerciais para a televisão.Uma esfera girando em direção do espectador transporta uma miniatura de carro de Fórmula 1 que traz no chassi o nome do anunciante. Para fazer essa seqüência, o computador usado pela Diana passa cerca de trinta horas trabalhando sem parar. Pode parecer um tempo demasiado longo, mas, levando em consideração os milhões de cálculos realizados pela máquina, chega a ser um assombro de rapidez. Profissionais como Ewa definem inicialmente um esboço da imagem que querem criar, traçam o movimento desejado e assinalam na tela onde se localizam os focos de luz e as tonalidades de cor que serão usadas. Feito isso, o computador sozinho se encarrega do resto. Outro campo onde a computação gráfica vem sendo usada de forma crescente é o do desenvolvimento dos chamados CAD-CAM, sigla em inglês para projetos de desenho industrial assistidos por computador. Os CAD-CAM nasceram nos centros de pesquisa de material bélico dos Estados Unidos e da Europa e depois migraram para as indústrias aeronáutica e automobilística. Essas indústrias foram muito além da criação de imagens computadorizadas: tornaram-nas inteligentes. Um exemplo: apoiados por supercomputadores, capazes de processar em segundos milhões de operações matemáticas, projeta-se um novo modelo de avião e se fazem os testes de túnel de vento-tudo numa tela de computador.
O Boeing 737-300, em operação no Brasil, é um caso típico de projeto bem-sucedido em computador-e é muito mais do que uma simples animação. A Boeing precisava desenvolver em tempo recorde uma versão maior, mais versátil e econômica do modelo 737. Isso porque o inicio de sua produção deveria coincidir com a de outro modelo, o 757, para que as cabines de controle fossem similares, o que facilitaria o treinamento conjunto de equipes de pilotos para os dois modelos. Introduzindo as especificações do antigo 737 no computador, os engenheiros precisaram apenas digitar as modificações necessárias para dar vida ao novo 737-300.
Um simulador de vôo exemplifica muito bem a habilidade dessa moderna tecnologia em imitar a realidade. O computador faz uma espécie de orquestração de som, forças e movimentos que se aproximam do comportamento aerodinâmico real de um avião. Como o efeito visual tem de ser muito convincente, pode-se considerar esse tipo de máquina um verdadeiro mestre de ilusões. Mas por que confinar essa capacidade a uma cabine de pilotagem? Por que não levá-la para um laboratório e construir ali uma realidade artificial que possa ser manipulada por um cientista? Muitos problemas científicos, particularmente aqueles que podem ser representados em três dimensões, requerem um elevado grau de interação entre o homem e a máquina. "Essa relação entre o usuário e o computador já está sendo considerada a última fronteira na ciência da computação", afirma James Foley, professor da Universidade George Washington, na capital dos Estados Unidos. Por isso mesmo, o maior objetivo da pesquisa nessa área é desenvolver um ambiente de simulação que pareça tão real quanto a própria realidade, onde seja possível manipular problemas numa escala que poderá ir desde os átomos às galáxias.
O Centro de Pesquisas Ames, da NASA, levou essa idéia ao pé da letra. Construiu-se uma pequena tela de cristal líquido, com dimensões um pouco maiores do que os óculos de um motociclista. Ao mesmo tempo, foi desenvolvida uma espécie de luva recheada de terminais de fios. Óculos e luvas foram então ligados a um computador. Resultado: um novo aparelho que poderá fazer com que os astronautas do futuro dirijam um robô como se fossem seu cérebro. Tal robô será enviado em missões perigosas, tanto no espaço quanto em planetas de clima hostil ao homem e fará todos os trabalhos requeridos como uma marionete sem fios. Dirigirá as lentes de seus olhos artificiais para onde o astronauta quiser olhar, virará a cabeça quando o astronauta também o fizer e assim por diante.
Quando essa nova tecnologia for aplicada nos experimentos científicos, o resultado poderá ser realmente a abertura de novas portas de um grande laboratório, até agora só vislumbrada na imaginação dos cientistas. De posse das luvas sensoras e de uma tela de alta definição, um pesquisador poderá, por exemplo, tocar com as mãos a imagem tridimensional de uma molécula ou de um vírus, devidamente ampliados, simulando uma situação impossível na prática. "Brevemente, os astrônomos poderão visualizar um encontro de galáxias e obter milhares de respostas sem sair do laboratório, bastando apenas sentar à frente de um monitor de computador", prevê Piet Hut, professor de Astrofísica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Uma das mais recentes novidades da infografia, que promete tornar-se muito popular, são os programas para projetos de arquitetura. Os profissionais da área em breve irão aposentar as velhas pranchetas de desenho para deixar entrar em seus escritórios os monitores de microcomputadores. Já é fácil imaginar as possibilidades: munido do elenco de desejos do cliente e de todas as informações sobre o lugar da futura obra, o arquiteto projeta na tela a planta da casa em seus mínimos detalhes, incluindo fachada, tipo de piso, forma de telhado etc. Mas a grande sacada virá em seguida. Os efeitos de animação permitirão que clientes e arquiteto façam uma visita simulada à nova casa. Assim, como se ela já estivesse pronta, percorrerão seu interior apreciando a disposição dos cômodos corrigindo imperfeições e até mesmo ensaiando uma idéia de decoração com figuras de móveis e utensílios Tudo pela tela do computador. Depois, é só mandar imprimir as plantas e pôr mãos à obra. A partir de então sem dúvida, se poderá afirmar que a realidade construída pelo imaginário não é apenas uma ilusão.
De ponto em ponto
Uma ilusão tão realista como o encontro entre Bogart e Marilyn requer um trabalho muito complexo, mesmo com o auxílio imprescindível de um excelente computador. Para entender como isso acontece, é preciso ir aos primórdios da computação gráfica, há cerca de vinte anos. Naquela época, um cientista sentava-se à frente do monitor de um grande computador (os micros ainda não existiam) e assinalava dois pontos na tela. Alimentando a máquina com conceitos geométricos, pedia-lhe que unisse os dois pontos com uma reta. Em seguida, assinalava novo ponto e determinava ao computador que desenhasse mais duas retas, unindo os três pontos. Estava feito um triângulo.Nessa tarefa aparentemente simples, os técnicos tinham de ensinar ao computador que a tela era composta de milhares de pontos (pixels, em inglês) organizados em linhas - a rigor um quadro de pontos numerados em seqüência. Assim, ao marcar um ponto na tela, o de número 52, por exemplo, o técnico estava tornando-o luminoso. Dois pontos quaisquer, o 52 e o 63, poderiam ser unidos bastando que o computador acendesse a seqüência de pontos do 53 ao 62. Da mesma forma, para preencher um quadrado já definido a máquina iluminava todos os pontos contidos entre os limites das quatro retas.No fundo, o desenvolvimento da infografia foi uma questão de aperfeiçoar a capacidade de memória do computador - para armazenar uma quantidade maior de informações gráficas-, aumentar a velocidade de cálculo das operações matemáticas e melhorar a chamada resolução espacial ou definição da imagem, dada pelo número de linhas de pontos. Sem falar na cor. O desenho de pontos e traços foi a fase unidimensional da infografia. Cubos e pirâmides em perspectiva tornaram possível a bidimensionalidade. Com a cor e suas nuanças, atingiu-se a tridimensão. Para obter a cor foi suficiente superpor muitas imagens monocromáticas, como o vermelho, o verde e o azul.Um belo dia, algum especialista em computação gráfica há de se ter perguntado como o computador poderia dar vida àqueles objetos desenhados no monitor. Como, por exemplo, seria possível fazer uma pirâmide girar na tela? Buscando inspiração no cinema, onde a ilusão do movimento é obtida pela projeção acelerada dos sucessivos quadros do filme, os técnicos pediram ao computador que desenhasse uma pirâmide. Fixaram então um eixo, ou seja, uma linha reta, partindo do vértice superior em direção ao centro da base. O encontro do eixo com o vértice e com o plano da base resultou em dois pontos. Em seguida, todas as coordenadas que compunham a pirâmide foram enviadas à memória da máquina, ficando na tela apenas aqueles dois pontos. A partir deles, nova pirâmide foi desenhada, desta vez, porém, com os vértices inferiores levemente deslocados em relação ao primeiro desenho. A operação foi repetida exaustivamente, até que o desenho final coincidisse com as coordenadas do primeiro. Instruiu-se então computador para projetar na tela desenho por desenho, à velocidade de um décimo de segundo cada aparição. Resultado: a pirâmide começou a girar sem parar.
Assim, toda e qualquer forma de um virabrequim a um vírus adquire o movimento que tem ou poderia ter na vida real; o essencial é o computador estar de posse das dimensões e propriedades do objeto. Para que as imagens tridimensionais imitem a realidade, é importante ainda, além de colorir, determinar o foco de luz, como um abajur iluminando uma bola de bilhar em cima de uma mesa. As formas que compõem o logotipo da Rede Globo, por exemplo, brilham de acordo com um foco de luz que está fora do alcance visual da tela. Para produzir esse efeito, Hans Donner determinou ao computador que quando uma face lisa qualquer passar por um certo plano de imagem ela deve adquirir a coloração mais clara possível-o branco. Assim tem-se a impressão de que houve um reflexo.
O que já se faz por aqui
Mestre na produção de imagens computadorizadas para a TV, como demonstram as vinhetas que abrem o Jornal Nacional, o Fantástico e, mais recentemente, o Chico Anysio Show, o alemão Hans Donner, 39 anos, trabalha em estreita associação com a bem equipada Globo Computação Gráfica, do Rio de Janeiro, cujos quatro minicomputadores e programas (softwares) especializados criam imagens sintéticas também para comerciais de TV. A empresa tem menos de dois anos-o que indica que, embora recente no país, a infografia se desenvolve com notável rapidez. No final da década de 70, Donner era um pioneiro no Brasil. Hoje, com certeza, está menos solitário. Uma prova é a existência da cadeira de Computação Gráfica nos cursos de pós-graduação de Engenharia Elétrica e de Ciência da Computação da USP, bem como na UFRJ e na PUC, também do Rio. O Laboratório de Sistemas Digitais da USP é um bom exemplo do que se começa a fazer no país nesse campo. AIi se encontram oito professores e outros tantos alunos desenvolvendo tecnologia nacional para o processamento de imagens em computador. Um deles é o professor Márcio Loba Netto, 25 anos, que trabalha num programa capaz de conceber desenho e estrutura de chips na tela de um computador, de acordo com determinadas especificações. O esforço brasileiro de pesquisa em infografia derrapa, no entanto, na falta dos equipamentos necessários, porque a atual legislação impede a importação de micro e minicomputadores. Diante disso, os técnicos ou desistem da idéia ou vão buscar no mercado negro suas ferramentas de trabalho.
Da ciência ao cinema, da indústria à publicidade, uma nova técnica cria mundos sob medida. Produto da informática e das artes gráficas, estimula ousadias até os limites da imaginação.
Entediado com a monotonia do Paraíso e saudoso dos tempos em que representava o galã aventureiro, Humphrey Bogart renasce na tela e convida Marilyn Monroe para acompanhá-lo de volta Terra. Eles decidem, então, se encontrar no interior de um prédio na praça Jacques Cartier, em Montreal, no Canadá. Quando Marilyn se materializa, não é feita propriamente de carne e osso, mas de linhas e escalas. Em seguida, como num sonho, ela se transforma em pedra, depois em ouro. Bogart, impaciente para vê-la nas formas e curvas que a tornara inesquecível, desperta-a para a vida com um beijo, como um príncipe encantado. Assim, o romance tem início-e o filme acaba.Os fanáticos por cinema podem ficar tranqüilos. O filme que contém essas cenas e pode ser visto numa tela colorida de TV não estava perdido e alguma prateleira empoeirada de Hollywood. Tudo não passou de uma completa ilusão, criada por uma nova e fascinante técnica: a infografia.
Produto de uma feliz associação entre a informática e as artes gráficas daí o nome, essa técnica já vem revolucionando o cinema e a TV e promete criar espaços de extraordinária inovação nas ciências aplicadas e nas indústrias de ponta. Com ela, prevê-se por exemplo um salto na Medicina nos próximos dez anos, tornando real a fantástica viagem pelo corpo humano, até agora só conseguida pela ficção. Utilizando computador de quarta geração e programas de inteligência artificial, a infografia começa a realizar o que ainda ontem parecia impossível.
Até bem pouco tempo, de fato, não havia como ver imagens de um motor em movimento por dentro, pois não há câmara capaz de entrar num deles e filmar seus pistões. Hoje, não apenas se pode ver isso acontecendo, como algo muito melhor: pode-se observar o interior de um motor que nem sequer existe fisicamente, em funcionamento numa câmara de testes que, como ele próprio, só se materializa nas cores de um monitor de computador. "O computador gráfico está abrindo a porta de um imenso laboratório que antes só existia na imaginação dos cientistas", resume o engenheiro Márcio Lobo Netto, professor de computação digital da Universidade de São Paulo.
Desenvolvida para ajudar a indústria a aperfeiçoar ao máximo os projetos de novos produtos e a favorecer a ciência na simulação de experiências impossíveis na vida real, a computação gráfica logo foi absorvida por artistas e publicitários. No cinema, permite transportar o espectador literalmente para os limites da imaginação, utilizando o amplo leque de recursos conhecidos como efeitos especiais. Já em 1969, o diretor Stanley Kubrick, no filme 2001, uma odisséia no espaço buscou no computador não apenas seu personagem principal- o HAL 9000- como também uma ferramenta indispensável ao trabalho de manipular as câmaras em tomadas que requeriam precisão matemática. Mais recentemente, em 1977, certas cenas do filme Guerra nas estrelas, de Georges Lucas, foram resultado de mais de uma dezena de seqüências rodadas separadamente e superpostas com o auxílio de um computador gráfico.
"Podemos representar qualquer personagem, vivo ou morto, e dar-lhe expressões tiradas da vida real ou simplesmente de nossa imaginação", afirma Nadia Magnenat-Thalmann, professora de Comunicação e Ciência da Computação da Universidade de Montreal. Foi ela, junto com o marido Daniel, quem produziu o filme de sete minutos Rendez-vous à Montreal (Encontro marcado em Montreal), que trouxe Marilyn e Bogart de volta à vida. O filme foi todo concebido em computador, utilizando um programa chamado "Human Factory", um exemplo do estado da arte na infografia, e premiado no Computer Graphics 87, festival internacional do setor, realizado no ano passado em Karuizawa, Japão.
Para se ter uma idéia de sua complexidade, leis da Física são aplicadas a certos parâmetros das figuras humanas, como o movimento das juntas dos membros e o impacto do toque dos dedos da mão numa taça de vinho. Nadia e Daniel deram início a sua obra-prima definindo o esqueleto de Marilyn e Bogart. Aplicaram em seguida as leis físicas mais simples para proporcionar movimento às figuras. Cobrindo os esqueletos com formas facetadas, obtiveram desenhos tridimensionais. A superfície de cada faceta foi preenchida depois com cores que esconderam as linhas das juntas e dos segmentos dos esqueletos. Outras leis físicas, mais complicadas, deram flexibilidade aos movimentos. Enfim, as vozes e a trilha sonora foram sintetizadas no computador a partir de gravações originais de filmes antigos. Na televisão, o show proporcionado pela infografia tem sido sem dúvida impressionante. Quem não se lembra do videoclip Sledgehammer, de Peter Gabriel? Ou o Raspberry beret, de Prince? No início do ano passado, o público de uma emissora de TV por cabo em Nova York ficou fascinado com o programa do repórter Max Headroom, personificação da imagem digitalizada de uma cabeça, criada a partir do rosto filmado em vídeo do ator canadense Matt Frewer. Desde então, toda semana Max protagoniza um entrevistador que leva a seu programa personalidades da vida americana, brincando com as possibilidades sem fim dos efeitos especiais de vídeo manipulados por computador.
No Brasil, o público começou a se familiarizar com a infografia assistindo aos trabalhos feitos por Hans Donner diretor de arte da Rede Globo, com a abertura do Fantástico, que superpõe a imagem de um balé a um fundo de paisagem inteiramente concebida em computador. Nos intervalos, o telespectador brasileiro acompanhou o aparecimento de comerciais cujo apelo está nas figuras geométricas tridimensionais que passeiam na tela e se transformam em símbolos das marcas dos produtos. "Criamos todo tipo de imagens para as agências de publicidade", orgulhava-se Ewa Wawelberg, a desenhista industrial que se especializou em imagens computadorizadas depois de um curso nos Estados Unidos e agora cuida desse setor na Diana Cinematográfica, produtora paulista de comerciais para a televisão.Uma esfera girando em direção do espectador transporta uma miniatura de carro de Fórmula 1 que traz no chassi o nome do anunciante. Para fazer essa seqüência, o computador usado pela Diana passa cerca de trinta horas trabalhando sem parar. Pode parecer um tempo demasiado longo, mas, levando em consideração os milhões de cálculos realizados pela máquina, chega a ser um assombro de rapidez. Profissionais como Ewa definem inicialmente um esboço da imagem que querem criar, traçam o movimento desejado e assinalam na tela onde se localizam os focos de luz e as tonalidades de cor que serão usadas. Feito isso, o computador sozinho se encarrega do resto. Outro campo onde a computação gráfica vem sendo usada de forma crescente é o do desenvolvimento dos chamados CAD-CAM, sigla em inglês para projetos de desenho industrial assistidos por computador. Os CAD-CAM nasceram nos centros de pesquisa de material bélico dos Estados Unidos e da Europa e depois migraram para as indústrias aeronáutica e automobilística. Essas indústrias foram muito além da criação de imagens computadorizadas: tornaram-nas inteligentes. Um exemplo: apoiados por supercomputadores, capazes de processar em segundos milhões de operações matemáticas, projeta-se um novo modelo de avião e se fazem os testes de túnel de vento-tudo numa tela de computador.
O Boeing 737-300, em operação no Brasil, é um caso típico de projeto bem-sucedido em computador-e é muito mais do que uma simples animação. A Boeing precisava desenvolver em tempo recorde uma versão maior, mais versátil e econômica do modelo 737. Isso porque o inicio de sua produção deveria coincidir com a de outro modelo, o 757, para que as cabines de controle fossem similares, o que facilitaria o treinamento conjunto de equipes de pilotos para os dois modelos. Introduzindo as especificações do antigo 737 no computador, os engenheiros precisaram apenas digitar as modificações necessárias para dar vida ao novo 737-300.
Um simulador de vôo exemplifica muito bem a habilidade dessa moderna tecnologia em imitar a realidade. O computador faz uma espécie de orquestração de som, forças e movimentos que se aproximam do comportamento aerodinâmico real de um avião. Como o efeito visual tem de ser muito convincente, pode-se considerar esse tipo de máquina um verdadeiro mestre de ilusões. Mas por que confinar essa capacidade a uma cabine de pilotagem? Por que não levá-la para um laboratório e construir ali uma realidade artificial que possa ser manipulada por um cientista? Muitos problemas científicos, particularmente aqueles que podem ser representados em três dimensões, requerem um elevado grau de interação entre o homem e a máquina. "Essa relação entre o usuário e o computador já está sendo considerada a última fronteira na ciência da computação", afirma James Foley, professor da Universidade George Washington, na capital dos Estados Unidos. Por isso mesmo, o maior objetivo da pesquisa nessa área é desenvolver um ambiente de simulação que pareça tão real quanto a própria realidade, onde seja possível manipular problemas numa escala que poderá ir desde os átomos às galáxias.
O Centro de Pesquisas Ames, da NASA, levou essa idéia ao pé da letra. Construiu-se uma pequena tela de cristal líquido, com dimensões um pouco maiores do que os óculos de um motociclista. Ao mesmo tempo, foi desenvolvida uma espécie de luva recheada de terminais de fios. Óculos e luvas foram então ligados a um computador. Resultado: um novo aparelho que poderá fazer com que os astronautas do futuro dirijam um robô como se fossem seu cérebro. Tal robô será enviado em missões perigosas, tanto no espaço quanto em planetas de clima hostil ao homem e fará todos os trabalhos requeridos como uma marionete sem fios. Dirigirá as lentes de seus olhos artificiais para onde o astronauta quiser olhar, virará a cabeça quando o astronauta também o fizer e assim por diante.
Quando essa nova tecnologia for aplicada nos experimentos científicos, o resultado poderá ser realmente a abertura de novas portas de um grande laboratório, até agora só vislumbrada na imaginação dos cientistas. De posse das luvas sensoras e de uma tela de alta definição, um pesquisador poderá, por exemplo, tocar com as mãos a imagem tridimensional de uma molécula ou de um vírus, devidamente ampliados, simulando uma situação impossível na prática. "Brevemente, os astrônomos poderão visualizar um encontro de galáxias e obter milhares de respostas sem sair do laboratório, bastando apenas sentar à frente de um monitor de computador", prevê Piet Hut, professor de Astrofísica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Uma das mais recentes novidades da infografia, que promete tornar-se muito popular, são os programas para projetos de arquitetura. Os profissionais da área em breve irão aposentar as velhas pranchetas de desenho para deixar entrar em seus escritórios os monitores de microcomputadores. Já é fácil imaginar as possibilidades: munido do elenco de desejos do cliente e de todas as informações sobre o lugar da futura obra, o arquiteto projeta na tela a planta da casa em seus mínimos detalhes, incluindo fachada, tipo de piso, forma de telhado etc. Mas a grande sacada virá em seguida. Os efeitos de animação permitirão que clientes e arquiteto façam uma visita simulada à nova casa. Assim, como se ela já estivesse pronta, percorrerão seu interior apreciando a disposição dos cômodos corrigindo imperfeições e até mesmo ensaiando uma idéia de decoração com figuras de móveis e utensílios Tudo pela tela do computador. Depois, é só mandar imprimir as plantas e pôr mãos à obra. A partir de então sem dúvida, se poderá afirmar que a realidade construída pelo imaginário não é apenas uma ilusão.
De ponto em ponto
Uma ilusão tão realista como o encontro entre Bogart e Marilyn requer um trabalho muito complexo, mesmo com o auxílio imprescindível de um excelente computador. Para entender como isso acontece, é preciso ir aos primórdios da computação gráfica, há cerca de vinte anos. Naquela época, um cientista sentava-se à frente do monitor de um grande computador (os micros ainda não existiam) e assinalava dois pontos na tela. Alimentando a máquina com conceitos geométricos, pedia-lhe que unisse os dois pontos com uma reta. Em seguida, assinalava novo ponto e determinava ao computador que desenhasse mais duas retas, unindo os três pontos. Estava feito um triângulo.Nessa tarefa aparentemente simples, os técnicos tinham de ensinar ao computador que a tela era composta de milhares de pontos (pixels, em inglês) organizados em linhas - a rigor um quadro de pontos numerados em seqüência. Assim, ao marcar um ponto na tela, o de número 52, por exemplo, o técnico estava tornando-o luminoso. Dois pontos quaisquer, o 52 e o 63, poderiam ser unidos bastando que o computador acendesse a seqüência de pontos do 53 ao 62. Da mesma forma, para preencher um quadrado já definido a máquina iluminava todos os pontos contidos entre os limites das quatro retas.No fundo, o desenvolvimento da infografia foi uma questão de aperfeiçoar a capacidade de memória do computador - para armazenar uma quantidade maior de informações gráficas-, aumentar a velocidade de cálculo das operações matemáticas e melhorar a chamada resolução espacial ou definição da imagem, dada pelo número de linhas de pontos. Sem falar na cor. O desenho de pontos e traços foi a fase unidimensional da infografia. Cubos e pirâmides em perspectiva tornaram possível a bidimensionalidade. Com a cor e suas nuanças, atingiu-se a tridimensão. Para obter a cor foi suficiente superpor muitas imagens monocromáticas, como o vermelho, o verde e o azul.Um belo dia, algum especialista em computação gráfica há de se ter perguntado como o computador poderia dar vida àqueles objetos desenhados no monitor. Como, por exemplo, seria possível fazer uma pirâmide girar na tela? Buscando inspiração no cinema, onde a ilusão do movimento é obtida pela projeção acelerada dos sucessivos quadros do filme, os técnicos pediram ao computador que desenhasse uma pirâmide. Fixaram então um eixo, ou seja, uma linha reta, partindo do vértice superior em direção ao centro da base. O encontro do eixo com o vértice e com o plano da base resultou em dois pontos. Em seguida, todas as coordenadas que compunham a pirâmide foram enviadas à memória da máquina, ficando na tela apenas aqueles dois pontos. A partir deles, nova pirâmide foi desenhada, desta vez, porém, com os vértices inferiores levemente deslocados em relação ao primeiro desenho. A operação foi repetida exaustivamente, até que o desenho final coincidisse com as coordenadas do primeiro. Instruiu-se então computador para projetar na tela desenho por desenho, à velocidade de um décimo de segundo cada aparição. Resultado: a pirâmide começou a girar sem parar.
Assim, toda e qualquer forma de um virabrequim a um vírus adquire o movimento que tem ou poderia ter na vida real; o essencial é o computador estar de posse das dimensões e propriedades do objeto. Para que as imagens tridimensionais imitem a realidade, é importante ainda, além de colorir, determinar o foco de luz, como um abajur iluminando uma bola de bilhar em cima de uma mesa. As formas que compõem o logotipo da Rede Globo, por exemplo, brilham de acordo com um foco de luz que está fora do alcance visual da tela. Para produzir esse efeito, Hans Donner determinou ao computador que quando uma face lisa qualquer passar por um certo plano de imagem ela deve adquirir a coloração mais clara possível-o branco. Assim tem-se a impressão de que houve um reflexo.
O que já se faz por aqui
Mestre na produção de imagens computadorizadas para a TV, como demonstram as vinhetas que abrem o Jornal Nacional, o Fantástico e, mais recentemente, o Chico Anysio Show, o alemão Hans Donner, 39 anos, trabalha em estreita associação com a bem equipada Globo Computação Gráfica, do Rio de Janeiro, cujos quatro minicomputadores e programas (softwares) especializados criam imagens sintéticas também para comerciais de TV. A empresa tem menos de dois anos-o que indica que, embora recente no país, a infografia se desenvolve com notável rapidez. No final da década de 70, Donner era um pioneiro no Brasil. Hoje, com certeza, está menos solitário. Uma prova é a existência da cadeira de Computação Gráfica nos cursos de pós-graduação de Engenharia Elétrica e de Ciência da Computação da USP, bem como na UFRJ e na PUC, também do Rio. O Laboratório de Sistemas Digitais da USP é um bom exemplo do que se começa a fazer no país nesse campo. AIi se encontram oito professores e outros tantos alunos desenvolvendo tecnologia nacional para o processamento de imagens em computador. Um deles é o professor Márcio Loba Netto, 25 anos, que trabalha num programa capaz de conceber desenho e estrutura de chips na tela de um computador, de acordo com determinadas especificações. O esforço brasileiro de pesquisa em infografia derrapa, no entanto, na falta dos equipamentos necessários, porque a atual legislação impede a importação de micro e minicomputadores. Diante disso, os técnicos ou desistem da idéia ou vão buscar no mercado negro suas ferramentas de trabalho.
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
A saga do sultão Suleiman
A SAGA DO SULTÃO SULEIMAN
Em 46 anos de mando, no século XVI, ele estende as fronteiras do Império Otomano desde a Hungria até o litoral da Índia. Criou leis, estimulou as artes, mas também foi duro e cruel no jogo do poder.
No domingo, 30 de setembro de 1520, Suleiman foi entronizado sultão do Império Otomano, na capital, Constantinopla, hoje Istambul. Quarenta e seis anos ele ficaria no poder: sob seu comando os turcos otomanos viveriam um período inigualável da sua história. Conduzidos por Suleiman - o Magnífico, para os ocidentais, e Kanuni, o Legislador, para seus súditos -, eles conquistaram Budapeste, capital da atual Hungria, e chegaram às portas de Viena no que hoje é a Áustria. De Argel, na África do Norte, a Bahrein no golfo Pérsico, de Áden, na Arábia, a Diu, na Índia, as tropas de Suleiman expandiram as fronteiras do império e a fé em Alá.
Os otomanos, assim chamados por causa de seu primeiro sultão, Osman, eram de fato um povo guerreiro. E foi como guerreiros que irromperam na história do mundo ao aniquilar o Império Romano do Oriente. Originários dos remotos montes Altai, ao sul do lago Baikal, quase onde a Rússia e a Mongólia se encontram-portanto sem parentesco étnico com os povos árabes do Oriente Médio-, os turcos durante séculos travaram intermináveis batalhas por todo o vasto mundo das estepes russas, chegando às fronteiras da China. No século XIII aparecem às portas do decadente Império Romano do Oriente velho de 1 100 anos. Em 1453 chefiados por Mehmed II, bisavô de Suleiman, conquistam Constantinopla e transformam em mesquita a imponente catedral de Santa Sofia.
O progresso otomano pode ser medido pela própria Constantinopla: no ano da ascensão de Suleiman, com seus 400 mil habitantes, era uma das maiores metrópoles do planeta. Suleiman nasceu provavelmente a 6 de novembro de 1494 em Trebizonda. atual Trabzom, na costa nordeste da Turquia, no mar Negro. Era um importante porto por onde circulava boa parte do comércio entre o mundo mediterrâneo e o Oriente. Seu pai, que passaria à história como Selim, o Severo, então ainda herdeiro do sultanato, governava a rica província. A mãe, Hafsa, descendia do khan dos tártaros da Criméia, de onde se supõe que o sangue de Gengis Khan corria nas veias do fabuloso chefe militar que viria a ser Suleiman.
E certo, em todo caso, que ele foi educado na estrita observância da lei muçulmana, segundo a qual a primeira obrigação de um soberano é combater os infiéis Suleiman tratou de cumprir esse mandamento sem perda de tempo. A 6 de fevereiro de 1521, com menos de cinco meses no poder, partiu em campanha rumo ao norte. Importante ponto de travessia do Danúbio, nos Bálcãs, Belgrado. hoje capital da Iugoslávia, resistiu três semanas antes de cair nas mãos dos turcos. A noticia dessa primeira proeza de Suleiman espalhou rapidamente o medo nos reinos cristãos da Europa central: a porta para a conquista da Transilvânia de Budapeste e Viena, estava aberta.
A Europa que os otomanos avinham ameaçar era um mundo em conflito. Tanto que as profundas rivalidades dinásticas, territoriais, comerciais e religiosas entre os cristãos impediriam que o Ocidente enfrentasse unido o avanço dos soldados do islamismo. Em 1509 tinha chegado ao poder na Inglaterra Henrique VIII, que em breve romperia com o papa e criaria a religião anglicana. Em 1515, é coroado na França Francisco I, que tentará, por todos os meios, sem excluir uma aliança com o próprio Suleiman, resistir ao poder da vizinha Espanha. Em 1516 é a vez de Carlos V subir ao trono da Espanha recentemente unificada. Quatro anos depois - e 22 dias após a posse de Suleiman, - ele será eleito imperador do Sacro Império Romano-Germânico, reunindo sob sua autoridade desde os até então dispersos principados alemães e grande parte da península italiana.
Ao mesmo tempo, a Europa vivia também uma fase de rápidas transformações econômicas, fruto da expansão comercial gerada pelos descobrimentos. Em 1498 o português Vasco da Gama chega a Calcutá, na Índia.
Rapidamente os portugueses instalariam fortalezas não só na costa indiana, mas também na entrada do golfo Pérsico e no mar Vermelho, tentando controlar o comércio de especiarias que por ali transitava. Isso iria abrir uma nova frente de batalha para os otomanos, cuja hegemonia em toda essa região já era disputada pelos persas, do ramo xiita do islamismo.
Como bom muçulmano sunita, Suleiman provavelmente detestava os xiitas mais que os próprios cristãos, mas o seu grande inimigo político era o espanhol Carlos V, cujo título de imperador Suleiman, não reconhecia. "Eu sou o sultão dos sultões, o soberano dos soberanos, o distribuidor das coroas aos monarcas do globo a sombra de Deus sobre a Terra..." escrevia ele numa carta a Francisco I da França. Assim, ao longo do seu reinado, Suleiman, ou a Espada do Islã. ano após ano dirigiu seus exércitos para o norte, sempre com o objetivo de atrair Carlos V à luta direta.
As suas vitórias foram muitas - embora o alvo maior não fosse alcançado: em 1526, na batalha de Mohács, derrotou os húngaros; logo depois invadiu a cidade de Buda (atual Budapeste). Em 1529, cercou Viena e por pouco não a ocupa. Três anos depois, de novo na Áustria, chega às portas de Graz. Em 1541 volta a submeter a Hungria, então formalmente anexada ao Império Otomano. Na realidade. as únicas forças que se opunham ao avanço do exército de Suleiman, eram as da natureza, especialmente o frio. e as distancias. Para vencer, por exemplo os 1500 quilômetros entre Constantinopla e Belgrado, os turcos chegavam a gastar dois meses.
De qualquer forma, o exército otomano era o instrumento militar mais poderoso que o mundo tinha; conhecido até então. Artilheiros, especialistas em minas, morteiros, bombas davam às tropas de Suleiman um poder bélico incomparável. Somavam-se a isso a agilidade e a ferocidade dos janízaros, a elite combatente formada por ex-escravos, a maioria deles, por sinal, de origem cristã. Convertidos ao islamismo, o janízaros cultivavam uma lealdade cega ao sultão. O temível poder ofensivo desse exército era garantido por uma disciplina de ferro, que nunca deixou de surpreender os cristãos.
No seu apogeu, o Império Otomano abrangia os territórios onde hoje se encontram mais de 25 países. Neles, viviam povos de etnias, costumes e religiões muito diversas. Sobre os Estados vassalos o domínio turco tomava formas brandas, limitando-se em muitos casos à cobrança de impostos, desde que a paz fosse preservada. Geralmente, mantinha intacta a organização social anterior à conquista. Quando a modificava, por vezes trazia até certas vantagens para a população Sob os turcos, os camponeses eram homens livres, ao contrário do que acontecia na Europa Oriental cristã onde subsistiam a servidão e as arbitrariedades dos senhores feudais.
Os cristãos ortodoxos, aliás muita numerosos no império, tinham completa liberdade religiosa-desde que não desrespeitassem o islamismo. E os judeus, mais que tolerados, foram até encorajados a se instalar no império; sua presença era considerada extremamente benéfica para a economia otomana.
Se esse mosaico de povos se manteve unido ao longo dos séculos, apesar das periódicas rebeliões, aliás implacavelmente castigadas, isso se devia certamente a uma organização econômica, social e jurídica extremamente complexa. Um ditado turco exprime essa idéia com clareza: `Não há Estado sem exército, não há exército sem dinheiro, não há dinheiro sem bons súditos, não há bons súditos sem justiça-e sem justiça não há Estado".
A mais perfeita expressão da civilização turca forjada na era Suleiman foi sem dúvida a justiça-mas na política as arbitrariedades eram muitas. Suleiman, que detinha o poder de vida e morte sobre seus súditos, era duro e cruel quando seu mando pessoal estava em causa ou quando se deixava envolver pelas intrigas da corte. Por volta de 1530, ele recebeu de presente para seu harém de trezentas mulheres uma jovem chamada Roxelana, de origem rutena, povo dos confins do império, entre a Hungria e a Moldávia. Como numa lenda das mil e uma noites, ela encantou o sultão, apaixonado pelos seus "olhos de antílope". Em breve Roxelana se viu na condição de favorita.
Sem perder tempo, afastou de Suleiman sua primeira esposa e instalou-se no próprio Palácio Topkapi-uma verdadeira cidade dentro de Constantinopla, com seus 3 mil residentes, a começar do sultão, e onde funcionava o Divan, órgão central do poder (de onde vem a palavra divã). Transformado em museu, o Topkapi é atualmente uma das maiores atrações de Istambul.
A influência política de Roxelana custaria a vida ao grão-vizir Ibrahim, uma espécie de vice-sultão. De origem grega e extremamente humilde-ao que tudo indica era um escravo capturado na infância-, subiu todos os degraus do poder, graças a seus méritos pessoais e à intima amizade que o ligava desde a juventude ao sultão.
Ibrahim apareceu morto na cama, na manhã de 15 de março de 1556, sem que se conheçam as razões que teriam levado Suleiman a mandar assassiná-lo. Mas a mão de Roxelana, a cujo poder ele fazia sombra, não deve ter andado longe das pontas da corda de seda que o estrangulou. Ela voltaria a agir mais adiante, com conseqüências não menos terríveis. No começo da década de 1550, quatro dos oito filhos de Suleiman ainda viviam: Mustafa, da primeira esposa; e Selim, Bayazid e Cihangir, de Roxelana. Suleiman tinha perto de 60 anos, para a época uma idade avançada- era, portanto, necessário resolver logo o problema da sucessão.
O direito turco, ao contrário do que prevalecia nas monarquias ocidentais, não assegurava a primazia absoluta do primogênito. Por isso, as sucessões eram extremamente tumultuadas. Para evitar a dispersão do poder, o sultão Mehmed II, bisavô de Suleiman, havia legitimado o assassínio dos irmãos entre os herdeiros do sultões. Roxelana sabia que, se o primogênito Mustafa tomasse o poder após a morte do pai, os filhos dela seriam assassinados e ela mesma, no melhor dos casos, exilada. Então a brutal máquina sucessória entrou em funcionamento.
Em 1552, o próprio Suleiman manda assassinar Mustafa e o filho dele, Murad. Pouco depois morreria Cihangir, ao que parece de morte natural. Em 1558, morre Roxelana; seus dois filhos ainda vivos se envolvem numa luta sem perdão. Três anos depois, Bayazid e quatro dos seus cinco filhos são estrangulados por ordem de Suleiman. O Quinto, de três anos, sucumbirá pouco depois nas mãos de um eunuco. Selim seria o sucessor de Suleiman com o nome de Selim II. Como tão primitiva violência podia coexistir com o requinte e o luxo da estranha civilização otomana? Durante o sultanato de Suleiman, de fato, a arte e a cultura atingiram ali o auge.
Os turcos, povo de origem nômade, nunca haviam desenvolvido a arquitetura civil. Mas nas cidades do império ergueram magníficas mesquitas, muitas delas assinadas por um grande arquiteto protegido de Suleiman, Sinan. As mais notáveis são sem dúvida a de Suieymaniye. em Constantinopla, e a de Selimiye, em Edirna, também na Turquia A época de Suleiman é também a do apogeu de uma arte maior entre os turcos: a cerâmica. Os objetos de uso cotidiano e os "azulejos" de revestimento, utilizando predominantemente motivos florais, atingem uma perfeição e uma delicadeza de traço e colorido incomparáveis. Enfim, calígrafos, ourives, tapeceiros, miniaturistas, pintores e poetas fizeram do longo reinado de Suleiman a idade de ouro da civilização otomano.
No dia 1 de maio de 1566, Suleiman sai de Constantinopla à frente do exército, na sua décima terceira incursão rumo ao norte. Em meados de agosto, é alcançado um dos objetivos da campanha, a destruição da cidade húngara de Szigetvár, onde um conde havia assassinado um dos governadores de Suleiman. Então, durante 43 dias, só alguns próximos do sultão são autorizados a penetrar na sua tenda. Oficialmente, Suleiman estava doente. Depois, instalado numa liteira fechada, é conduzido de volta a Constantinopla, via Belgrado, aonde acorreria Selim. Na realidade era um corpo embalsamado que seguia viagem. Suleiman, o Magnifico, morrera na noite de 5 para 6 de setembro, dois meses antes de completar 72 anos. O império lhe sobreviveria por mais três séculos.
Pequeno grande homem
Assim que se tornou sultão, Suleiman mandou libertar 1500 pessoas encarceradas por ordem do pai. O povo comentou: "Uma ovelha mansa está no lugar do leão feroz". Num dos muitos poemas que escreveu em persa com esmerada caligrafia, ele se definiu: "Sou o sultão do amor". Os poemas eram assinados Muhibi, amigo gentil. Ao conquistar a fortaleza cristã de Rodes, autorizou seus defensores a partir, sem lhes fazer mal. Suleiman vinha de Salomão, o sábio rei dos hebreus-e os otomanos diziam que ele fazia jus ao nome. Era um homem pequeno e magro -o oposto do sultão de caricatura -, mas a fragilidade era enganadora: o rosto exprimia um rigor que nunca o abandonou, provavelmente herança do temperamento da mãe e do convívio com o pai.
Foi educado para ser muçulmano e exercer o poder. Sultão, orava cinco vezes por dia na mesquita particular do palácio- menos às sextas-feiras, quando, cercado de pompa, ia rezar na grande mesquita de Constantinopla, a antiga catedral de Santa Sofia. Mas a tolerância de que fez prova diante de outras religiões e o gosto pelas discussões teológicas levam a crer que não era um fanático. Ainda jovem aprendeu tudo que a tradição recomendava: ourivesaria e História, religião e esgrima, governo e equitação, ciência e astrologia, poesia e arco e flecha. Falava fluentemente, além do turco, persa, árabe-e chegava a conversar com dignitários das terras conquistadas nos Bálcãs nos dialetos deles.
Culto-sem dúvida mais culto do que os reis cristãos do Ocidente -e sensível à beleza das artes, Suleiman tinha, porém, uma personalidade inescrutável, que não se dava a conhecer. Fazia questão de produzir relatos impessoais das campanhas que comandava, cavalgando sua montaria negra selada em ouro: seus diários de guerra eram escritos sempre na terceira pessoa. O luxo de que fazia rodear os desfiles militares abismava os cristãos: vestido de cetim branco com botões que eram na realidade grandes pérolas, ele encabeçava as tropas, trazendo no turbante uma rosa de ouro e um enorme rubi. Da orelha direita pendia uma pérola em forma de pêra.
Não menos requintados eram os rituais no Palácio Topkapi, a residência oficial do sultão. O cerimonial das refeições, por exemplo, era extravagante: das portas das cozinhas ao salão, os pratos passavam de mão em mão por uma cadeia de duzentos servidores até chegar ao provador oficial que experimentava qualquer iguaria antes do sultão. A dieta de Suleiman era simples, porém: frutas, saladas, cereais e aves, sobretudo pombos, tudo regado a água perfumada. O vinho, proibido pela religião, jamais era consumido em público. No fim da vida, Suleiman suprimiu-o completamente, da mesma forma como mandou trocar o serviço de porcelana chinesa por pratos comuns de cerâmica.
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Em 46 anos de mando, no século XVI, ele estende as fronteiras do Império Otomano desde a Hungria até o litoral da Índia. Criou leis, estimulou as artes, mas também foi duro e cruel no jogo do poder.
No domingo, 30 de setembro de 1520, Suleiman foi entronizado sultão do Império Otomano, na capital, Constantinopla, hoje Istambul. Quarenta e seis anos ele ficaria no poder: sob seu comando os turcos otomanos viveriam um período inigualável da sua história. Conduzidos por Suleiman - o Magnífico, para os ocidentais, e Kanuni, o Legislador, para seus súditos -, eles conquistaram Budapeste, capital da atual Hungria, e chegaram às portas de Viena no que hoje é a Áustria. De Argel, na África do Norte, a Bahrein no golfo Pérsico, de Áden, na Arábia, a Diu, na Índia, as tropas de Suleiman expandiram as fronteiras do império e a fé em Alá.
Os otomanos, assim chamados por causa de seu primeiro sultão, Osman, eram de fato um povo guerreiro. E foi como guerreiros que irromperam na história do mundo ao aniquilar o Império Romano do Oriente. Originários dos remotos montes Altai, ao sul do lago Baikal, quase onde a Rússia e a Mongólia se encontram-portanto sem parentesco étnico com os povos árabes do Oriente Médio-, os turcos durante séculos travaram intermináveis batalhas por todo o vasto mundo das estepes russas, chegando às fronteiras da China. No século XIII aparecem às portas do decadente Império Romano do Oriente velho de 1 100 anos. Em 1453 chefiados por Mehmed II, bisavô de Suleiman, conquistam Constantinopla e transformam em mesquita a imponente catedral de Santa Sofia.
O progresso otomano pode ser medido pela própria Constantinopla: no ano da ascensão de Suleiman, com seus 400 mil habitantes, era uma das maiores metrópoles do planeta. Suleiman nasceu provavelmente a 6 de novembro de 1494 em Trebizonda. atual Trabzom, na costa nordeste da Turquia, no mar Negro. Era um importante porto por onde circulava boa parte do comércio entre o mundo mediterrâneo e o Oriente. Seu pai, que passaria à história como Selim, o Severo, então ainda herdeiro do sultanato, governava a rica província. A mãe, Hafsa, descendia do khan dos tártaros da Criméia, de onde se supõe que o sangue de Gengis Khan corria nas veias do fabuloso chefe militar que viria a ser Suleiman.
E certo, em todo caso, que ele foi educado na estrita observância da lei muçulmana, segundo a qual a primeira obrigação de um soberano é combater os infiéis Suleiman tratou de cumprir esse mandamento sem perda de tempo. A 6 de fevereiro de 1521, com menos de cinco meses no poder, partiu em campanha rumo ao norte. Importante ponto de travessia do Danúbio, nos Bálcãs, Belgrado. hoje capital da Iugoslávia, resistiu três semanas antes de cair nas mãos dos turcos. A noticia dessa primeira proeza de Suleiman espalhou rapidamente o medo nos reinos cristãos da Europa central: a porta para a conquista da Transilvânia de Budapeste e Viena, estava aberta.
A Europa que os otomanos avinham ameaçar era um mundo em conflito. Tanto que as profundas rivalidades dinásticas, territoriais, comerciais e religiosas entre os cristãos impediriam que o Ocidente enfrentasse unido o avanço dos soldados do islamismo. Em 1509 tinha chegado ao poder na Inglaterra Henrique VIII, que em breve romperia com o papa e criaria a religião anglicana. Em 1515, é coroado na França Francisco I, que tentará, por todos os meios, sem excluir uma aliança com o próprio Suleiman, resistir ao poder da vizinha Espanha. Em 1516 é a vez de Carlos V subir ao trono da Espanha recentemente unificada. Quatro anos depois - e 22 dias após a posse de Suleiman, - ele será eleito imperador do Sacro Império Romano-Germânico, reunindo sob sua autoridade desde os até então dispersos principados alemães e grande parte da península italiana.
Ao mesmo tempo, a Europa vivia também uma fase de rápidas transformações econômicas, fruto da expansão comercial gerada pelos descobrimentos. Em 1498 o português Vasco da Gama chega a Calcutá, na Índia.
Rapidamente os portugueses instalariam fortalezas não só na costa indiana, mas também na entrada do golfo Pérsico e no mar Vermelho, tentando controlar o comércio de especiarias que por ali transitava. Isso iria abrir uma nova frente de batalha para os otomanos, cuja hegemonia em toda essa região já era disputada pelos persas, do ramo xiita do islamismo.
Como bom muçulmano sunita, Suleiman provavelmente detestava os xiitas mais que os próprios cristãos, mas o seu grande inimigo político era o espanhol Carlos V, cujo título de imperador Suleiman, não reconhecia. "Eu sou o sultão dos sultões, o soberano dos soberanos, o distribuidor das coroas aos monarcas do globo a sombra de Deus sobre a Terra..." escrevia ele numa carta a Francisco I da França. Assim, ao longo do seu reinado, Suleiman, ou a Espada do Islã. ano após ano dirigiu seus exércitos para o norte, sempre com o objetivo de atrair Carlos V à luta direta.
As suas vitórias foram muitas - embora o alvo maior não fosse alcançado: em 1526, na batalha de Mohács, derrotou os húngaros; logo depois invadiu a cidade de Buda (atual Budapeste). Em 1529, cercou Viena e por pouco não a ocupa. Três anos depois, de novo na Áustria, chega às portas de Graz. Em 1541 volta a submeter a Hungria, então formalmente anexada ao Império Otomano. Na realidade. as únicas forças que se opunham ao avanço do exército de Suleiman, eram as da natureza, especialmente o frio. e as distancias. Para vencer, por exemplo os 1500 quilômetros entre Constantinopla e Belgrado, os turcos chegavam a gastar dois meses.
De qualquer forma, o exército otomano era o instrumento militar mais poderoso que o mundo tinha; conhecido até então. Artilheiros, especialistas em minas, morteiros, bombas davam às tropas de Suleiman um poder bélico incomparável. Somavam-se a isso a agilidade e a ferocidade dos janízaros, a elite combatente formada por ex-escravos, a maioria deles, por sinal, de origem cristã. Convertidos ao islamismo, o janízaros cultivavam uma lealdade cega ao sultão. O temível poder ofensivo desse exército era garantido por uma disciplina de ferro, que nunca deixou de surpreender os cristãos.
No seu apogeu, o Império Otomano abrangia os territórios onde hoje se encontram mais de 25 países. Neles, viviam povos de etnias, costumes e religiões muito diversas. Sobre os Estados vassalos o domínio turco tomava formas brandas, limitando-se em muitos casos à cobrança de impostos, desde que a paz fosse preservada. Geralmente, mantinha intacta a organização social anterior à conquista. Quando a modificava, por vezes trazia até certas vantagens para a população Sob os turcos, os camponeses eram homens livres, ao contrário do que acontecia na Europa Oriental cristã onde subsistiam a servidão e as arbitrariedades dos senhores feudais.
Os cristãos ortodoxos, aliás muita numerosos no império, tinham completa liberdade religiosa-desde que não desrespeitassem o islamismo. E os judeus, mais que tolerados, foram até encorajados a se instalar no império; sua presença era considerada extremamente benéfica para a economia otomana.
Se esse mosaico de povos se manteve unido ao longo dos séculos, apesar das periódicas rebeliões, aliás implacavelmente castigadas, isso se devia certamente a uma organização econômica, social e jurídica extremamente complexa. Um ditado turco exprime essa idéia com clareza: `Não há Estado sem exército, não há exército sem dinheiro, não há dinheiro sem bons súditos, não há bons súditos sem justiça-e sem justiça não há Estado".
A mais perfeita expressão da civilização turca forjada na era Suleiman foi sem dúvida a justiça-mas na política as arbitrariedades eram muitas. Suleiman, que detinha o poder de vida e morte sobre seus súditos, era duro e cruel quando seu mando pessoal estava em causa ou quando se deixava envolver pelas intrigas da corte. Por volta de 1530, ele recebeu de presente para seu harém de trezentas mulheres uma jovem chamada Roxelana, de origem rutena, povo dos confins do império, entre a Hungria e a Moldávia. Como numa lenda das mil e uma noites, ela encantou o sultão, apaixonado pelos seus "olhos de antílope". Em breve Roxelana se viu na condição de favorita.
Sem perder tempo, afastou de Suleiman sua primeira esposa e instalou-se no próprio Palácio Topkapi-uma verdadeira cidade dentro de Constantinopla, com seus 3 mil residentes, a começar do sultão, e onde funcionava o Divan, órgão central do poder (de onde vem a palavra divã). Transformado em museu, o Topkapi é atualmente uma das maiores atrações de Istambul.
A influência política de Roxelana custaria a vida ao grão-vizir Ibrahim, uma espécie de vice-sultão. De origem grega e extremamente humilde-ao que tudo indica era um escravo capturado na infância-, subiu todos os degraus do poder, graças a seus méritos pessoais e à intima amizade que o ligava desde a juventude ao sultão.
Ibrahim apareceu morto na cama, na manhã de 15 de março de 1556, sem que se conheçam as razões que teriam levado Suleiman a mandar assassiná-lo. Mas a mão de Roxelana, a cujo poder ele fazia sombra, não deve ter andado longe das pontas da corda de seda que o estrangulou. Ela voltaria a agir mais adiante, com conseqüências não menos terríveis. No começo da década de 1550, quatro dos oito filhos de Suleiman ainda viviam: Mustafa, da primeira esposa; e Selim, Bayazid e Cihangir, de Roxelana. Suleiman tinha perto de 60 anos, para a época uma idade avançada- era, portanto, necessário resolver logo o problema da sucessão.
O direito turco, ao contrário do que prevalecia nas monarquias ocidentais, não assegurava a primazia absoluta do primogênito. Por isso, as sucessões eram extremamente tumultuadas. Para evitar a dispersão do poder, o sultão Mehmed II, bisavô de Suleiman, havia legitimado o assassínio dos irmãos entre os herdeiros do sultões. Roxelana sabia que, se o primogênito Mustafa tomasse o poder após a morte do pai, os filhos dela seriam assassinados e ela mesma, no melhor dos casos, exilada. Então a brutal máquina sucessória entrou em funcionamento.
Em 1552, o próprio Suleiman manda assassinar Mustafa e o filho dele, Murad. Pouco depois morreria Cihangir, ao que parece de morte natural. Em 1558, morre Roxelana; seus dois filhos ainda vivos se envolvem numa luta sem perdão. Três anos depois, Bayazid e quatro dos seus cinco filhos são estrangulados por ordem de Suleiman. O Quinto, de três anos, sucumbirá pouco depois nas mãos de um eunuco. Selim seria o sucessor de Suleiman com o nome de Selim II. Como tão primitiva violência podia coexistir com o requinte e o luxo da estranha civilização otomana? Durante o sultanato de Suleiman, de fato, a arte e a cultura atingiram ali o auge.
Os turcos, povo de origem nômade, nunca haviam desenvolvido a arquitetura civil. Mas nas cidades do império ergueram magníficas mesquitas, muitas delas assinadas por um grande arquiteto protegido de Suleiman, Sinan. As mais notáveis são sem dúvida a de Suieymaniye. em Constantinopla, e a de Selimiye, em Edirna, também na Turquia A época de Suleiman é também a do apogeu de uma arte maior entre os turcos: a cerâmica. Os objetos de uso cotidiano e os "azulejos" de revestimento, utilizando predominantemente motivos florais, atingem uma perfeição e uma delicadeza de traço e colorido incomparáveis. Enfim, calígrafos, ourives, tapeceiros, miniaturistas, pintores e poetas fizeram do longo reinado de Suleiman a idade de ouro da civilização otomano.
No dia 1 de maio de 1566, Suleiman sai de Constantinopla à frente do exército, na sua décima terceira incursão rumo ao norte. Em meados de agosto, é alcançado um dos objetivos da campanha, a destruição da cidade húngara de Szigetvár, onde um conde havia assassinado um dos governadores de Suleiman. Então, durante 43 dias, só alguns próximos do sultão são autorizados a penetrar na sua tenda. Oficialmente, Suleiman estava doente. Depois, instalado numa liteira fechada, é conduzido de volta a Constantinopla, via Belgrado, aonde acorreria Selim. Na realidade era um corpo embalsamado que seguia viagem. Suleiman, o Magnifico, morrera na noite de 5 para 6 de setembro, dois meses antes de completar 72 anos. O império lhe sobreviveria por mais três séculos.
Pequeno grande homem
Assim que se tornou sultão, Suleiman mandou libertar 1500 pessoas encarceradas por ordem do pai. O povo comentou: "Uma ovelha mansa está no lugar do leão feroz". Num dos muitos poemas que escreveu em persa com esmerada caligrafia, ele se definiu: "Sou o sultão do amor". Os poemas eram assinados Muhibi, amigo gentil. Ao conquistar a fortaleza cristã de Rodes, autorizou seus defensores a partir, sem lhes fazer mal. Suleiman vinha de Salomão, o sábio rei dos hebreus-e os otomanos diziam que ele fazia jus ao nome. Era um homem pequeno e magro -o oposto do sultão de caricatura -, mas a fragilidade era enganadora: o rosto exprimia um rigor que nunca o abandonou, provavelmente herança do temperamento da mãe e do convívio com o pai.
Foi educado para ser muçulmano e exercer o poder. Sultão, orava cinco vezes por dia na mesquita particular do palácio- menos às sextas-feiras, quando, cercado de pompa, ia rezar na grande mesquita de Constantinopla, a antiga catedral de Santa Sofia. Mas a tolerância de que fez prova diante de outras religiões e o gosto pelas discussões teológicas levam a crer que não era um fanático. Ainda jovem aprendeu tudo que a tradição recomendava: ourivesaria e História, religião e esgrima, governo e equitação, ciência e astrologia, poesia e arco e flecha. Falava fluentemente, além do turco, persa, árabe-e chegava a conversar com dignitários das terras conquistadas nos Bálcãs nos dialetos deles.
Culto-sem dúvida mais culto do que os reis cristãos do Ocidente -e sensível à beleza das artes, Suleiman tinha, porém, uma personalidade inescrutável, que não se dava a conhecer. Fazia questão de produzir relatos impessoais das campanhas que comandava, cavalgando sua montaria negra selada em ouro: seus diários de guerra eram escritos sempre na terceira pessoa. O luxo de que fazia rodear os desfiles militares abismava os cristãos: vestido de cetim branco com botões que eram na realidade grandes pérolas, ele encabeçava as tropas, trazendo no turbante uma rosa de ouro e um enorme rubi. Da orelha direita pendia uma pérola em forma de pêra.
Não menos requintados eram os rituais no Palácio Topkapi, a residência oficial do sultão. O cerimonial das refeições, por exemplo, era extravagante: das portas das cozinhas ao salão, os pratos passavam de mão em mão por uma cadeia de duzentos servidores até chegar ao provador oficial que experimentava qualquer iguaria antes do sultão. A dieta de Suleiman era simples, porém: frutas, saladas, cereais e aves, sobretudo pombos, tudo regado a água perfumada. O vinho, proibido pela religião, jamais era consumido em público. No fim da vida, Suleiman suprimiu-o completamente, da mesma forma como mandou trocar o serviço de porcelana chinesa por pratos comuns de cerâmica.
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Por favor, leia este texto - Comportamento
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Desculpe a pergunta, mas onde ficam as boas maneiras no mundo de hoje?
Uma pesquisa de opinião realizada em fins do ano passado junto a 2 mil entrevistados do Rio de Janeiro e de São Paulo revelou que os brasileiros dessas duas capitais tendem a guardar dentro de si um forte senti-mento saudosista. De fato, muita gente parece acredi-tar que se vivia melhor décadas atrás-e um dos motivos dessa suposta qualidade superior de vida seria o bom trato então vigente entre as pessoas. "Hoje se convive com o próximo na base da cotovelada", atesta o ator Mário Lago, ecoando um ponto de vista de tal forma compartilhado nos dias que correm que dis-pensa pesquisas sofisticadas para ser aferido.
Um advogado do diabo de maus bofes talvez se sentisse tentado a invocar a idade de Lago - 76 anos-para reduzir a pó seu diagnóstico a golpes desrespeitosos de "isso é coisa de velho". Só que não é: brasileiras e brasileiros das mais diversas condições e idades, entre uma cotovelada e outra, assinam embaixo da teoria segundo a qual no tur-bilhão das grandes cidades não sobra cabeça, nem lugar, nem tempo, nem mesmo dinheiro, para que se possa praticar como exercício diário o mandamento "respeitai-vos uns aos outros". E não faltará quem se pergunte-na improvável hipótese de parar para pensar no assunto, que serventia podem ter as chamadas boas maneiras no mundo atual.
Não seriam elas um anacronismo com cheiro de naftalina, algo como uma cartola ou um par de anáguas na era do jeans-e-tênis? A própria expressão boas maneiras soa maneirismos, ademanes, rapapés, salamaleques-em suma, frescuras de tempos idos com perdão da má palavra. Essa, porém, é apenas a primeira de uma longa lista de confusões e mal-entendidos que desfiguram a questão e favorecem o mau comportamento. E comum colocar no mesmo saco boas maneiras e rituais de etiqueta-como se tratar bem o próximo e saber qual o talher apropriado para comer peixe fossem rigorosamente a mesma coisa. Na realidade, há um mundo de diferenças.
O que se chama etiqueta e um conjunto de cerimoniais surgido na Europa há uns cinco séculos para pôr as pessoas nos seus devidos lugares, ou seja, para mostrar quem era nobre e quem era plebeu. Já as boas maneiras são formas de agir que lubrificam o convívio em sociedade ao permitir que as pessoas se entendam, independentemente de quaisquer diferenças entre elas. Não foi por outra razão que se desenvolveram de mãos dadas com o aumento do padrão cultural nos países industriais e no mesmo passo em que se difundiu a idéia da igualdade de direitos entre os homens. Apesar disso, nada mais freqüente do que fazer das boas maneiras um sinalizador das diferenças sociais.
A professora de Filosofia Terezinha Azeredo Rios, da PUC de São Paulo, que está preparando uma tese sobre o assunto, conta um episódio exemplar: "Certo dia, tomei um táxi e pedi ao motorista que me levasse à faculdade. Começamos a conversar e ele me tratava por "você". Em dado momento, perguntou o que eu estava estudando. Pois bem: a partir do momento em que respondi que não era aluna mas professora, ele passou a me chamar de "senhora ". Isto é, o motorista em questão deve achar, como tanta gente, que boa educação é algo que convém reservar para a pessoas situadas em degraus mais altos da escada social, como uma roupa que só se usa em ocasiões especiais.
Confundidas como forma de servilismo (quando praticadas de baixo para cima) ou como máscara da opressão (quando exercidas de cima para baixo), as pobres boas maneiras acabaram impiedosamente arrastadas ao banco dos réus da revolução nos costumes que explodiu nos anos 60. E ali, de cambulhada com hábitos arcaicos e de fato inibidores da naturalidade nas relações humanas-como a secular obrigação imposta aos filhos de só chamar o pai de senhor-. rolaram comportamentos os mais inocentes e civilizados-como o homem abrir a porta de um carro para a mulher-, acusados, por exemplo, de ser vir de disfarce hipócrita à dominação machista. O resultado foi um breu geral.
"Traumatizadas pela idéia de repressão, as pessoas resolveram educar os filhos de forma diferente da que foram educadas", observa a advogada e autora feminista Sílvia Pimental, de São Paulo. "Derrubaram-se padrões considerados repressores e muitas vezes não se conseguiu colocar outros no lugar. Isso pode ter provocado uma certa baixa no comportamento dos jovens." Num recente fim de tarde, uma dúzia de alunos de um colégio progressista da zona oeste paulistana infernizava com seus gritos e cantorias a vida dos passageiros do ônibus em que viajavam. E nem sequer tomaram conhecimento do protesto de uma passageira que se levantou para reclamar que "depois de um dia de trabalho tenho o direito de ir para casa em silêncio".
É possível que tenha razão o professor Haroldo Meira Teixeira Júnior, que dirige o Curso Anglo Vestibulares e nessa condição convive diariamente com multidões de adolescentes. Diz ele: "No meu tempo os jovens eram muito mais educados, mas o mundo também era muito melhor". Só que fica difícil o mundo melhorar se não se entender que as boas maneiras começam no respeito humano e são exercidas de pessoa para pessoa, desde o trato com as empregadas em casa até o plano geral na sociedade", como lembra muito seriamente o humorista Millôr Fernandes, fino observador da cena brasileira.
Certamente não comete delito algum o cidadão que, ao sair para o trabalho, mal encara o vizinho com quem divide o espaço no elevador. Afinal, adverte o antropólogo José Guilherme Cantor Magnani, da USP, "não se pode esperar que num edifício de apartamentos, onde cada qual vive sua vida, as pessoas se tratem com o afeto e a cordialidade de vizinhos de cidade do interior". O problema é que o ato de ignorar o companheiro de viagem na breve jornada de um décimo andar ao térreo costuma ser a expressão literal de outra cegueira: o comportamento que consiste em não enxergar os direitos dos companheiros de vida em sociedade.
De alguma forma, as boas maneiras abrem os olhos de cada um para o mundo em volta-e para as pessoas que o habitam. Promovem a tolerância e previnem atritos, como chumaços de algodão entre cristais: é sempre mais difícil agredir alguém a quem se acabou de desejar bom dia ou pedir um favor-e a recíproca, naturalmente, é verdadeira. Levadas às últimas conseqüências, boas maneiras salvam vidas-as estatisticas de acidentes de transito no Brasil seriam com certeza menos sangrentas se os motoristas cessas-sem de atropelar os direitos dos demais motoristas e, sobretudo, dos pedestres. E, ao contrário do que imaginavam os contestadores de vinte anos atrás, os bons modos, longe de serem modos disfarçados de dominar o próximo, funcionam a favor da parte mais fraca numa situação de conflito. Qualquer criança sabe disso - literalmente.
O que se convencionou chamar qualidade de vida nas sociedades modernas depende diretamente da prática habitual das boas maneiras, mesmo quando não envolvem relações pessoa a pessoa. É maior a qualidade de vida onde as pessoas têm a boa educação de não atirar coisas pela janela do carro-ou onde serão multadas se o fizerem. Recentemente, o jornalista Zózimo Barroso do Amaral registrou em sua coluna no Jornal do Brasil, com admiração, o caso de uma moça, por sinal muito bonita, que se deu ao trabalho de limpar o cocô que seu cachorrinho tinha acabado de fazer no calçadão de Ipanema - algo que devia ser rotina e não notícia.
Ninguém deixa cascas de banana largadas no chão da sala de visitas. Fora de casa, porém, é outra conversa; os outros que se danem, como dizem os mais grossos. "As boas maneiras são prejudicadas quando as pessoas não consideram o que é coletivo, público, também como seu e cuidam apenas do que é particular, exclusivo", diz a socióloga Laura Tetti, da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo. "Para manter uma praça limpa, você tem de mandar escrever nos cestos de lixo o lembrete "Cuide como se fosse seu". Se é de todos. não se deve cuidar?" Inimiga ainda maior das boas maneiras e, portanto, da coexistência pacífica em sociedade é a esperteza-a atitude que parte do princí-pio de que com bons modos não se consegue nada e termina no jeitinho de quem busca conseguir sempre alguma vantagem sobre os demais.
Esse modo de proceder obedece ao que se pode chamar de Lei de Gérson, em alusão ao anúncio de uma marca de cigarros veiculado no final de 1976, no qual o meia-esquerda da seleção tricampeã mundial se vangloriava de "levar vantagem em tudo". Diga-se em defesa de Gérson que ele garante não agir assim na vida real. "Tanto que se a campanha tivesse a intenção que depois lhe atribuiram eu não teria participado dela ", afirma. seja como for, o respeito humano vai por água abaixo sempre que, na busca da vantagem a qualquer preço, "tenta-se transformar procedimentos imorais em algo moralmente correto e socialmente desejável, nas palavras do publicitário paulista Roberto Duailibi.
Para ele, por sinal, a "propaganda Macunaína como diz, aquela que pretende enganar o consumidor, é a forma pela qual a malandragem aparece no seu ramo de atividade. A vida econômica é onde mais se faz sentir a caça às vantagens, abatendo pelo caminho as normas de boa educação a golpes de borduna. "As pessoas já saem de casa como se estivessem partindo para uma guerra". compara Dílson Funaro, o empresário de fino trato que como ministro da Fazenda lançou o Plano Cruzado para acabar com a inflação, a seu ver a causa número 1 dessa guerra. Em tal clima, uma simples compra pode transformar-se numa escaramuça, se vendedores e compradores não se derem o devido desconto das boas maneiras.
"Por causa da situação econômica, o relacionamento nas lojas está tensionado", atesta Raul Sulzbacher, presidente do Clube dos Lojistas do Shopping Iguatemi, de São Paulo. "0 vendedor, que não consegue viver com seu salário, descarrega sua insatisfação no cliente." Para quem acha que misturar economia com educação é forçar demais a barra dos fatos, o ex-ministro Funaro tem uma resposta pronta na gaveta. Trata-se de uma carta que recebeu de um motorista de táxi no auge da euforia do Cruzado. "Agora que o dinheiro vai valer", escreveu-lhe o motorista, "vou respeitar os sinais de transito."
Mas é verdade também que a astúcia do jeitinho, o drible com que se quer passar para trás os direitos do próximo, como a sagrada norma de que deve ser atendido primeiro quem primeiro chegou, existe igualmente em tempos de vacas gordas. "É uma estratégia de sobrevivência causada pela desigualdade de direitos entre as pessoas na vida diária", define o cientista social Paulo Sérgio Pinheiro, da USP. "Fura-se uma fila para ter um mínimo de direitos." Pode ser. Certamente não faltarão motivos para explicar os desrespeitos cotidianos às normas da convivência civilizada. Mas não adiantará muito esperar que essas causas se evaporem para só então implantar o reino das boas maneiras. É até uma questão de bom senso. A psicóloga Maria José Néri, do Centro de Controle do Stress, de Campinas, nota que "quem tem o costume de revidar à falta de boas maneiras dos outros acaba chegando em casa de noite com os nervos em frangalhos". E ensina: "Quem mantém a boa educação acaba levando vantagem".
Obrigado pela atenção.
O teatro da etiqueta
No século XV, quando se instalavam os Estados nacionais e a monarquia absoluta na Europa,nãohavia sequer garfos e colheres nas mesas de refeição: cada comensal trazia sua faca para cortar um naco da carne- e, em caso de briga, para cortar o vizinho. Nessa Europa bárbara, que começava a sair da Idade Média, em que nem os nobres sabiam escrever., o poder do rei devia se afirmar de todas as maneiras aos olhos de seus súditos" como uma espécie de teatro. Nesse contexto surge a etiqueta, marcando momento a momento o espetáculo da realeza: só para servir o vinho ao monarca havia um ritual que durava até dez minutos.
Quando Luis XV, que reinou na França de 1715 a 1774, passou a usar lenço não como simples peça de vestuário, mas para limpar o nariz, ninguém mais na corte de Versalhes ousou assoar-se com os dedos, como era costume. Mas todas essas regras, embora servissem para diferenciar a nobreza dos demais, não tinham a petulância que a etiqueta adquiriu depois", compara o filósofo Renato Janine Ribeiro, da USP, autor de um estudo sobre o assunto. "Os nobres usavam as boas maneiras com naturalidade, para marcar uma diferença política que já existia. E representavam esse teatro da mesma forma para todos. Depois da Revolução Francesa, as pessoas começam a aprender etiqueta para ascender socialmente." Daí por que ela passou a ser usada de forma desigual-só na hora de lidar com os poderosos.
Uma palavrinha à-toa
Um certo reverendo Creary, que andou pelo Brasil em 1861, registrou em seu diário: "As brasileiras, ao contrário das inglesas, não desmaiam se pronunciamos a palavra "colo" ou "perna" ". O fato chamou-lhe a atenção porque na boa sociedade vitoriana da Inglaterra, de onde vinha o reverendo, não se falava nem em perna de mesa, pois a palavra "perna", por suas abusões eróticas, estava banida das conversas educadas. Era um palavrão. Já no Portugal dos séculos XVI a XIX, homem que não falasse palavrão nem fizesse gestos obscenos tinha a virilidade posta em dúvida.
O palavrão, em toda parte, sempre foi retirado do vocabulário relacionado com a sexualidade e com as funções excretoras-dai ser incompatível com a boa educação. Pelo mesmo motivo que fez surgir os banheiros. "Mas toda palavra depreciativa também pode ser considerada palavrão", diz o lingüista Fervia di Giorgi, de São Paulo. Hoje em dia, como se sabe, o palavrão começa a ser admitido na conversa normal, sem distinção de sexo. Em parte, isso se deve ao fato de haver diminuido a distancia social entre a casa e a rua. Antigamente, as fronteiras entre uma e outra batizavam rigidamente os comportamentos - coisas ditas e feitas lá fora não eram toleradas no lar. Tão importante como isso foi a mudança na linguagem falada, que perdeu o tom formal de outrora. Infiltrando-se nas conversas, como gíria ou interjeição, o palavrão foi perdendo o estigma de coisa escandalosa e feia. Falado com naturalidade, deixou de ofender. Virou uma palavrinha à toa-mesmo assim, a reação de quem ouve é que deve guiar a atitude de quem fala. Essa é uma boa maneira de lidar com o problema.
Desculpe a pergunta, mas onde ficam as boas maneiras no mundo de hoje?
Uma pesquisa de opinião realizada em fins do ano passado junto a 2 mil entrevistados do Rio de Janeiro e de São Paulo revelou que os brasileiros dessas duas capitais tendem a guardar dentro de si um forte senti-mento saudosista. De fato, muita gente parece acredi-tar que se vivia melhor décadas atrás-e um dos motivos dessa suposta qualidade superior de vida seria o bom trato então vigente entre as pessoas. "Hoje se convive com o próximo na base da cotovelada", atesta o ator Mário Lago, ecoando um ponto de vista de tal forma compartilhado nos dias que correm que dis-pensa pesquisas sofisticadas para ser aferido.
Um advogado do diabo de maus bofes talvez se sentisse tentado a invocar a idade de Lago - 76 anos-para reduzir a pó seu diagnóstico a golpes desrespeitosos de "isso é coisa de velho". Só que não é: brasileiras e brasileiros das mais diversas condições e idades, entre uma cotovelada e outra, assinam embaixo da teoria segundo a qual no tur-bilhão das grandes cidades não sobra cabeça, nem lugar, nem tempo, nem mesmo dinheiro, para que se possa praticar como exercício diário o mandamento "respeitai-vos uns aos outros". E não faltará quem se pergunte-na improvável hipótese de parar para pensar no assunto, que serventia podem ter as chamadas boas maneiras no mundo atual.
Não seriam elas um anacronismo com cheiro de naftalina, algo como uma cartola ou um par de anáguas na era do jeans-e-tênis? A própria expressão boas maneiras soa maneirismos, ademanes, rapapés, salamaleques-em suma, frescuras de tempos idos com perdão da má palavra. Essa, porém, é apenas a primeira de uma longa lista de confusões e mal-entendidos que desfiguram a questão e favorecem o mau comportamento. E comum colocar no mesmo saco boas maneiras e rituais de etiqueta-como se tratar bem o próximo e saber qual o talher apropriado para comer peixe fossem rigorosamente a mesma coisa. Na realidade, há um mundo de diferenças.
O que se chama etiqueta e um conjunto de cerimoniais surgido na Europa há uns cinco séculos para pôr as pessoas nos seus devidos lugares, ou seja, para mostrar quem era nobre e quem era plebeu. Já as boas maneiras são formas de agir que lubrificam o convívio em sociedade ao permitir que as pessoas se entendam, independentemente de quaisquer diferenças entre elas. Não foi por outra razão que se desenvolveram de mãos dadas com o aumento do padrão cultural nos países industriais e no mesmo passo em que se difundiu a idéia da igualdade de direitos entre os homens. Apesar disso, nada mais freqüente do que fazer das boas maneiras um sinalizador das diferenças sociais.
A professora de Filosofia Terezinha Azeredo Rios, da PUC de São Paulo, que está preparando uma tese sobre o assunto, conta um episódio exemplar: "Certo dia, tomei um táxi e pedi ao motorista que me levasse à faculdade. Começamos a conversar e ele me tratava por "você". Em dado momento, perguntou o que eu estava estudando. Pois bem: a partir do momento em que respondi que não era aluna mas professora, ele passou a me chamar de "senhora ". Isto é, o motorista em questão deve achar, como tanta gente, que boa educação é algo que convém reservar para a pessoas situadas em degraus mais altos da escada social, como uma roupa que só se usa em ocasiões especiais.
Confundidas como forma de servilismo (quando praticadas de baixo para cima) ou como máscara da opressão (quando exercidas de cima para baixo), as pobres boas maneiras acabaram impiedosamente arrastadas ao banco dos réus da revolução nos costumes que explodiu nos anos 60. E ali, de cambulhada com hábitos arcaicos e de fato inibidores da naturalidade nas relações humanas-como a secular obrigação imposta aos filhos de só chamar o pai de senhor-. rolaram comportamentos os mais inocentes e civilizados-como o homem abrir a porta de um carro para a mulher-, acusados, por exemplo, de ser vir de disfarce hipócrita à dominação machista. O resultado foi um breu geral.
"Traumatizadas pela idéia de repressão, as pessoas resolveram educar os filhos de forma diferente da que foram educadas", observa a advogada e autora feminista Sílvia Pimental, de São Paulo. "Derrubaram-se padrões considerados repressores e muitas vezes não se conseguiu colocar outros no lugar. Isso pode ter provocado uma certa baixa no comportamento dos jovens." Num recente fim de tarde, uma dúzia de alunos de um colégio progressista da zona oeste paulistana infernizava com seus gritos e cantorias a vida dos passageiros do ônibus em que viajavam. E nem sequer tomaram conhecimento do protesto de uma passageira que se levantou para reclamar que "depois de um dia de trabalho tenho o direito de ir para casa em silêncio".
É possível que tenha razão o professor Haroldo Meira Teixeira Júnior, que dirige o Curso Anglo Vestibulares e nessa condição convive diariamente com multidões de adolescentes. Diz ele: "No meu tempo os jovens eram muito mais educados, mas o mundo também era muito melhor". Só que fica difícil o mundo melhorar se não se entender que as boas maneiras começam no respeito humano e são exercidas de pessoa para pessoa, desde o trato com as empregadas em casa até o plano geral na sociedade", como lembra muito seriamente o humorista Millôr Fernandes, fino observador da cena brasileira.
Certamente não comete delito algum o cidadão que, ao sair para o trabalho, mal encara o vizinho com quem divide o espaço no elevador. Afinal, adverte o antropólogo José Guilherme Cantor Magnani, da USP, "não se pode esperar que num edifício de apartamentos, onde cada qual vive sua vida, as pessoas se tratem com o afeto e a cordialidade de vizinhos de cidade do interior". O problema é que o ato de ignorar o companheiro de viagem na breve jornada de um décimo andar ao térreo costuma ser a expressão literal de outra cegueira: o comportamento que consiste em não enxergar os direitos dos companheiros de vida em sociedade.
De alguma forma, as boas maneiras abrem os olhos de cada um para o mundo em volta-e para as pessoas que o habitam. Promovem a tolerância e previnem atritos, como chumaços de algodão entre cristais: é sempre mais difícil agredir alguém a quem se acabou de desejar bom dia ou pedir um favor-e a recíproca, naturalmente, é verdadeira. Levadas às últimas conseqüências, boas maneiras salvam vidas-as estatisticas de acidentes de transito no Brasil seriam com certeza menos sangrentas se os motoristas cessas-sem de atropelar os direitos dos demais motoristas e, sobretudo, dos pedestres. E, ao contrário do que imaginavam os contestadores de vinte anos atrás, os bons modos, longe de serem modos disfarçados de dominar o próximo, funcionam a favor da parte mais fraca numa situação de conflito. Qualquer criança sabe disso - literalmente.
O que se convencionou chamar qualidade de vida nas sociedades modernas depende diretamente da prática habitual das boas maneiras, mesmo quando não envolvem relações pessoa a pessoa. É maior a qualidade de vida onde as pessoas têm a boa educação de não atirar coisas pela janela do carro-ou onde serão multadas se o fizerem. Recentemente, o jornalista Zózimo Barroso do Amaral registrou em sua coluna no Jornal do Brasil, com admiração, o caso de uma moça, por sinal muito bonita, que se deu ao trabalho de limpar o cocô que seu cachorrinho tinha acabado de fazer no calçadão de Ipanema - algo que devia ser rotina e não notícia.
Ninguém deixa cascas de banana largadas no chão da sala de visitas. Fora de casa, porém, é outra conversa; os outros que se danem, como dizem os mais grossos. "As boas maneiras são prejudicadas quando as pessoas não consideram o que é coletivo, público, também como seu e cuidam apenas do que é particular, exclusivo", diz a socióloga Laura Tetti, da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo. "Para manter uma praça limpa, você tem de mandar escrever nos cestos de lixo o lembrete "Cuide como se fosse seu". Se é de todos. não se deve cuidar?" Inimiga ainda maior das boas maneiras e, portanto, da coexistência pacífica em sociedade é a esperteza-a atitude que parte do princí-pio de que com bons modos não se consegue nada e termina no jeitinho de quem busca conseguir sempre alguma vantagem sobre os demais.
Esse modo de proceder obedece ao que se pode chamar de Lei de Gérson, em alusão ao anúncio de uma marca de cigarros veiculado no final de 1976, no qual o meia-esquerda da seleção tricampeã mundial se vangloriava de "levar vantagem em tudo". Diga-se em defesa de Gérson que ele garante não agir assim na vida real. "Tanto que se a campanha tivesse a intenção que depois lhe atribuiram eu não teria participado dela ", afirma. seja como for, o respeito humano vai por água abaixo sempre que, na busca da vantagem a qualquer preço, "tenta-se transformar procedimentos imorais em algo moralmente correto e socialmente desejável, nas palavras do publicitário paulista Roberto Duailibi.
Para ele, por sinal, a "propaganda Macunaína como diz, aquela que pretende enganar o consumidor, é a forma pela qual a malandragem aparece no seu ramo de atividade. A vida econômica é onde mais se faz sentir a caça às vantagens, abatendo pelo caminho as normas de boa educação a golpes de borduna. "As pessoas já saem de casa como se estivessem partindo para uma guerra". compara Dílson Funaro, o empresário de fino trato que como ministro da Fazenda lançou o Plano Cruzado para acabar com a inflação, a seu ver a causa número 1 dessa guerra. Em tal clima, uma simples compra pode transformar-se numa escaramuça, se vendedores e compradores não se derem o devido desconto das boas maneiras.
"Por causa da situação econômica, o relacionamento nas lojas está tensionado", atesta Raul Sulzbacher, presidente do Clube dos Lojistas do Shopping Iguatemi, de São Paulo. "0 vendedor, que não consegue viver com seu salário, descarrega sua insatisfação no cliente." Para quem acha que misturar economia com educação é forçar demais a barra dos fatos, o ex-ministro Funaro tem uma resposta pronta na gaveta. Trata-se de uma carta que recebeu de um motorista de táxi no auge da euforia do Cruzado. "Agora que o dinheiro vai valer", escreveu-lhe o motorista, "vou respeitar os sinais de transito."
Mas é verdade também que a astúcia do jeitinho, o drible com que se quer passar para trás os direitos do próximo, como a sagrada norma de que deve ser atendido primeiro quem primeiro chegou, existe igualmente em tempos de vacas gordas. "É uma estratégia de sobrevivência causada pela desigualdade de direitos entre as pessoas na vida diária", define o cientista social Paulo Sérgio Pinheiro, da USP. "Fura-se uma fila para ter um mínimo de direitos." Pode ser. Certamente não faltarão motivos para explicar os desrespeitos cotidianos às normas da convivência civilizada. Mas não adiantará muito esperar que essas causas se evaporem para só então implantar o reino das boas maneiras. É até uma questão de bom senso. A psicóloga Maria José Néri, do Centro de Controle do Stress, de Campinas, nota que "quem tem o costume de revidar à falta de boas maneiras dos outros acaba chegando em casa de noite com os nervos em frangalhos". E ensina: "Quem mantém a boa educação acaba levando vantagem".
Obrigado pela atenção.
O teatro da etiqueta
No século XV, quando se instalavam os Estados nacionais e a monarquia absoluta na Europa,nãohavia sequer garfos e colheres nas mesas de refeição: cada comensal trazia sua faca para cortar um naco da carne- e, em caso de briga, para cortar o vizinho. Nessa Europa bárbara, que começava a sair da Idade Média, em que nem os nobres sabiam escrever., o poder do rei devia se afirmar de todas as maneiras aos olhos de seus súditos" como uma espécie de teatro. Nesse contexto surge a etiqueta, marcando momento a momento o espetáculo da realeza: só para servir o vinho ao monarca havia um ritual que durava até dez minutos.
Quando Luis XV, que reinou na França de 1715 a 1774, passou a usar lenço não como simples peça de vestuário, mas para limpar o nariz, ninguém mais na corte de Versalhes ousou assoar-se com os dedos, como era costume. Mas todas essas regras, embora servissem para diferenciar a nobreza dos demais, não tinham a petulância que a etiqueta adquiriu depois", compara o filósofo Renato Janine Ribeiro, da USP, autor de um estudo sobre o assunto. "Os nobres usavam as boas maneiras com naturalidade, para marcar uma diferença política que já existia. E representavam esse teatro da mesma forma para todos. Depois da Revolução Francesa, as pessoas começam a aprender etiqueta para ascender socialmente." Daí por que ela passou a ser usada de forma desigual-só na hora de lidar com os poderosos.
Uma palavrinha à-toa
Um certo reverendo Creary, que andou pelo Brasil em 1861, registrou em seu diário: "As brasileiras, ao contrário das inglesas, não desmaiam se pronunciamos a palavra "colo" ou "perna" ". O fato chamou-lhe a atenção porque na boa sociedade vitoriana da Inglaterra, de onde vinha o reverendo, não se falava nem em perna de mesa, pois a palavra "perna", por suas abusões eróticas, estava banida das conversas educadas. Era um palavrão. Já no Portugal dos séculos XVI a XIX, homem que não falasse palavrão nem fizesse gestos obscenos tinha a virilidade posta em dúvida.
O palavrão, em toda parte, sempre foi retirado do vocabulário relacionado com a sexualidade e com as funções excretoras-dai ser incompatível com a boa educação. Pelo mesmo motivo que fez surgir os banheiros. "Mas toda palavra depreciativa também pode ser considerada palavrão", diz o lingüista Fervia di Giorgi, de São Paulo. Hoje em dia, como se sabe, o palavrão começa a ser admitido na conversa normal, sem distinção de sexo. Em parte, isso se deve ao fato de haver diminuido a distancia social entre a casa e a rua. Antigamente, as fronteiras entre uma e outra batizavam rigidamente os comportamentos - coisas ditas e feitas lá fora não eram toleradas no lar. Tão importante como isso foi a mudança na linguagem falada, que perdeu o tom formal de outrora. Infiltrando-se nas conversas, como gíria ou interjeição, o palavrão foi perdendo o estigma de coisa escandalosa e feia. Falado com naturalidade, deixou de ofender. Virou uma palavrinha à toa-mesmo assim, a reação de quem ouve é que deve guiar a atitude de quem fala. Essa é uma boa maneira de lidar com o problema.