sábado, 21 de abril de 2018

Luzia Homem - Parte 2 de 5 - Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 2 de 5 -  Domingos Olímpio




- Deus te pague - repetia a velha, fazendo uma careta de repugnância e escarrando com 
ruído - e perdoe os teus pecados. Bem sabia que o teu coração é bom... Ai... o que te falta é 
cabeça...


- A minha sina é que não foi boa... - observou a moça com requintes de ternura e meiguice - 
Se a gente pudesse adivinhar; se soubera o que me havia reservado quando saí de casa...

- E Luza que não volta!...

- Se não fossem os cuidados estaria melhor, porque o puxado vai passando...

- É o remédio... Tome outra vez...

- Já estou encharcada de mezinha... Coitada da minha filha!...

- Descanse que ela não tarda aí...

- Pobrezinha! ... O dia inteiro, com uma triste xícara de café escoteiro.

Ao escurecer regressou Luzia. Vinha taciturna e triste, rendida de fadiga. Tomou a bêncão à 
mãe; apertou Teresinha contra o seio, numa demorada e silenciosa expansão de 
reconhecimento, e deixou-se cair acocorada à soleira da porta do quarto, em postura de 
desânimo, os cotovelos fincados sobre os joelhos e a cabeça apoiada nas mãos.

- Seu de-comer - disse-lhe Teresinha - está guardado...

- Não tenho fome...

- Ao menos uma xícara de café...

- Deixa-me descansar.

- E Alexandre, filha? - inquiriu a velha plangente.

- Está preso!... Levaram-no para a cadeia como um mal-feitor...

- Diz-me o coração - atalhou Teresinha - que ele está penando injustamente... Mas... deixem 
estar que vou farejar o ladrão... Conheço uma velha que faz a adivinhação da urupema e 
sabe rezar o respônsio de Santo Antônio. Não há furto que não descubra. Uma coisa é ver, 
outra é dizer. Parece que tem parte com o cão...Meu Deus perdoai-me...

- São abusões - murmurou a velha.

- Pois amanhã cedo vou atrás dela, da Rosa Veado, que mora na Fortaleza, nos quartos da 
Lianor, e vosmecê há de ver...

- Pode ir embora, Teresinha - disse-lhe Luzia, quebrando o longo silêncio - Você já fez 
muito por nós...

- Eu?!... Ai, gentes! Que grande incômodo!... Agora é que fico mesmo aqui ajudando. 
Durmo ali, na esteira, junto do jiral, ou em qualquer parte. Basta ter onde encostar a 
cabeça...



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E, acendendo fogo num cigarro de papel amarelo, continuou contando casos maravilhosos 
da feitiçaria de Rosa Veado que, além dessa habilidade, era insigne parteira, muito 
cuidadosa, muito feliz.

Teresinha ficou. Passou a. fazer parte da família pois não tinha ânimo de abandonar as duas 
criaturas, repassadas de amargos sofrimentos, sozinhas naquela casa, sem uma alma 
condoída que as consolasse. Sabia quanto custava a privação súbita da companhia afetuosa 
de um ente querido; tinha a dolorosa experiência do abandono e das fatais conseqüências da 
orfandade do coração. Era quem cuidava da doente nas ausências de Luzia, muito 
preocupada no andamento do inquérito sobre o roubo. Às provisões que, escassamente, 
chegariam para mantê-las, ajuntava o pouco que podia conseguir: algumas gulodices, ovos, 
manteiga e açúcar, adquiridas por preços absurdos. Tomara a seu cargo os serviços da casa, 
menos os braçais, como rachar lenha e pilar café, porque era aberta dos peitos cuspia sangue 
sempre que abusava dos seus delicados músculos.

Procurara, conto dissera, Rosa Veado para rezar o respônsio; esta, porém, exigira dinheiro 
para comprar duas velas para o santo, luz sagrada, indispensável para o êxito do sortilégio, 
circunstância que ela não revelou a Luzia, por querer que o descobrimento do criminoso 
fosse devido, exclusivamente, à sua iniciativa.

Arguta rapariga, afeita ao contacto do vício e do crime, a percebê-los por intuição, estava 
convencida da inocência de Alexandre, e julgava obra de malvados, a infamante imputação.

- Ele não tem cara de ladrão - dizia - Conheço pela pinta quem pega no alheio; e nunca me 
enganei... Não se me dava de apostar... Enfim, não quero condenar a minha alma, 
levantando falso a ninguém; mas... deixem estar que hei de desmascarar os safados, que não 
têm consciência para fazerem sofrer um pobre...

As reticências irritavam Luzia que, por sua vez, só pensava em deslindar o mistério.

- Ah! Se eu tivesse dois mil réis!... - suspirou Teresinha.

- Para que queres dois mil réis?...

- Para uma coisa que só eu sei...

E passaram-se dias.

Da frugal comida Luzia separava, todos os dias, uma porção que levava a Alexandre. 
Apesar dos remoques de Belota e dos encontros com Crapiúna, ela cumpria, pontualmente, 
o dever de visitar o preso e conversava com ele alguns momentos, por entre as grades da 
cadeia, uma grande sala, no andar térreo da casa da Câmara, onde estavam empocilgados 
mais de cem homens.

Alexandre não se conformara com a promiscuidade entre criminosos dos mais abjetos. 
Havia ali assassinos, condenados a penas máximas, envelhecidos naquele recinto 
miasmático; ladrões que narravam, com repugnante bravata, façanhas deprimentes; moços 
impulsivos, culpados de crimes passionais, cometidos sob a influência nefasta de paixões 
incoercíveis, e alguns idiotas, maníacos que apodreciam caquéticos, roídos de moléstias, 
vegetando, como plantas daninhas, conservados naquela sórdida estufa de podridão e de 


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vício. No ambiente escuro da prisão cruzavam-se redes em todas as direções, umas sobre 
outras, paralelas ou atravessadas, todas sujas e nauseabundas. A um canto estava o barril 
d'água; noutro, a cuba do despejo; e, defronte do amplo portão, das quatro janelas largas, 
abertas para a praça, protegidas por dupla grade de grossos vergalhões de ferro, trabalhavam 
os sentenciados em sapatos, chapéus de palha e obras de funileiro. Essas janelas eram o 
parlatório e o balção dos negócios. Diante delas estavam, continuamente aglomerados, 
agentes de comércio, ou pessoas da família, mulheres, mães, irmãs ou amantes dos reclusos 
no ergástulo fedorento e imundo, que a piedade dos Comissários ia extinguir, construindo a 
penitenciária no morro do Curral do Açougue.

Dentro de dez dias de prisão, Alexandre foi acometido de fortes dores de cabeça e imensa 
fadiga física e moral. Privado de sol, a tez do rosto perdera o vivo colorido, fez-se pálida e 
baça; a barba e os cabelos castanhos pareciam pardacentos como erva crestada, e os olhos 
amortecidos ,e encovaram nas órbitas rouxeadas. Toda a sua pele estava seca e fria, coberta 
de descamação esbranquiçada, que lhe zebrava o corpo quando se coçava. Queixou-se ao 
carcereiro, ao Juiz da prisão, que era o Galucho, antigo cangaceiro, portador de um rosário 
de crimes.

- É assim mesmo - respondeu-lhe o facínora - Nos primeiros tempos, a gente estranha; fica 
banzeira. Depois se acostuma. Estou aqui há dez anos; ainda me faltam quatro e pretendo, 
se Deus não mandar o contrário, sair com forças para liquidar contas velhas. Olhe, moço, 
para essas dores de cabeça só há um remédio: sair, pela manhã, com a faxina...

Mas, a Alexandre repugnava o carregar a infecta cuba de resíduos e secreções, ligado a um 
criminoso por comprida corrente de ferro, atada ao pescoço pela gargalheira, fechada a 
cadeado. Mil vezes a morte, intoxicado no ambiente mefítico, à vida maculada pela infâmia, 
que lhe custaria alguns momentos ao ar livre.

As noites infinitas, cruciantes, ele as passava encolhido perto de uma das janelas, o sono 
cortado pelos brados de alerta das sentinelas e contando as horas pelo sino do relógio da 
Matriz fronteira, até ao toque de alvorada, que lhe repercutia no coração, evocando a ânsia 
de tornar a ver Luzia com informações do processo, e talvez mensageira da liberdade.

Quase todos os dias ela passava pela casa do Promotor, sinceramente interessado na sorte 
de Alexandre, para se consolar com promessas. A última fora que, terminado o balanço dos 
gêneros armazenados, o inquérito seria rapidamente concluído.

Até então nada se havia adiantado para esclarecer a justiça. Permanecia a situação indecisa 
de presunções, meras suspeitas, indícios pouco veementes; e nenhuma prova de alcance 
jurídico fora colhida, além dos depoimentos dos soldados e de duas mulheres de má vida, a 
Romana e a Cangati. O fato de ser Alexandre depositário das chaves deixava de ter 
importância por se haver verificado que a fechadura da porta do armazém, antes tão 
corrente, estava perra, denotando a introdução de outra chave ou de qualquer instrumento 
de violência. Nada ocorrera, entretanto, para encaminhar a ação da polícia em direção a 
outro responsável, tendo sido infrutífera a vigilância, secretamente feita, em volta de 
Crapiúna.

E, nessa incerteza, dias de penar, noites mal dormidas sucederam-se: Alexandre estiolado na 
prisão, como planta silvestre, privado de ar e luz; Luzia nutrida de esperanças, que se 
adelgaçavam em quimera fugitiva.


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Num dia desses, regressando a casa, ela respondeu com um gesto de desânimo aos olhares 
interrogativos da mãe e de Teresinha:

- Por ora... nada... amanhã... amanhã...

- Ah! - suspirou Teresinha - Se eu tivesse dois mil-réis!... 

- Para quê? - inquiriu Luzia impacientada pelo estribilho, repetido toda a vez que se 
queixava da ineficácia das diligências para libertar Alexandre.

- Mortifica-me com essa cantiga... Já vendi os meus brincos de ouro; a vara de cordão, que 
havíamos reservado para um aperto, também passara a outras mãos... Nada mais temos, nem 
com que comprar um par de chinelas... Veja?... As minhas já estão com boca de sapo...

- A você, tornou Teresinha à puridade - nada devo ocultar - Eu queria os dois mil-réis para 
o respônsio...

- O respônsio?!...

- Sim, para comprar duas velas de libra... A Rosa não reza sem isso...

- Como há de ser? Onde irei achar tanto dinheiro!...

- Fosse eu você, Luzia, era só pedir por boca...

- Que fazia?

E cravou na companheira, um prescrutador e sereno olhar, desses que traspassam o corpo e 
devassam a alma.

- Eu - balbuciou a moça confusa e dominada - Eu?... Não fazia nada... Foi uma asneira que 
me veio à cabeça... Não pode ser... não se faz a reza... E eu que tinha uma fé... É melhor 
tirar daí o juízo...

- E acredita que Rosa Veado é capaz de descobrir?...

- Ora... ora... ora!... É dito e feito... Tenho fé cega em Santo Antônio. Em casa de meu pai 
havia um deste tamaninho e milagroso como ele só. Quando se perdia alguma coisa, bastava 
prometer-lhe dois vinténs; a gente achava logo sem saber como. E, não se cumprindo a 
promessa, era castigo certo. De uma feita, desapareceu urna vaca leiteira. Meu pai, 
desconfiando que a houvessem furtado, chamou o pai Pedro, negro velho ladino e 
rastejador, e disse-lhe: "Não quero saber de histórias; vosmecê dá-me conta da vaca, ou 
come relho." Quando o velho falava assim, era aquela certeza. O negro coçou a cabeça, 
lastimou-se e saiu resmungando. Bateu capões de mato; esgravatou grotas e já estava 
desesperado, pensando no que lhe aconteceria, por voltar com as mãos abanando, quando se 
lembrou de prometer dois vinténs a Santo Antônio. Mal tinha feito a promessa, olhou para 
uma banda e o que havia de ver? A vaca pastando muito de seu, no lugar onde escondera o 
bezerro. Pedro pulou de contente, laçou a vaca, e partiu. Em caminho, entrou a pensar que o 
santo nada havia feito; ele é que estava banzando sem prestar atenção. Por que, então, lhe 


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havia de dar o dinheiro?... Nisto , o animal deu um safanão; arrancou e deitou a boca no 
mundo: Que santo desconfiado!... Eu estava caçoando... Pago os dois vinténs e até mais!... 
A vaca voltou ao curral com os pés dela e foi o que valeu ao pai Pedro. Olhe, Luzia, tenho 
visto verdadeiros milagres...

- Amanhã - afirmou Luzia jubilosa como se lhe houvesse ocorrido o meio de resolver a 
dificuldade - amanhã arranjarei os dois mil-réis...

- Como? Que vai fazer?... Ah! Luzia, não se guie pela minha ruim cabeça ...

- Não se arreceie...

- Que é que vocês tanto conversam? - perguntou a velha.

- Nada, tia Zefinha - respondeu Teresinha - Bobages de moças. Eu dizia que se 
pudéssemos pagar um doutô para soltar Alexandre...

- Não há, então, uma criatura que faça de graça essa caridade?...

- Qual!... Neste mundo tudo se move a peso de dinheiro... Doutô é como padre que não diz 
missa sem dinheiro... O saber é a foice e o machado deles...

- Não são todos - observou Luzia - O Promotor é um doutô muito bom... Tem feito o que 
pode pelo pobre que está penando naquele inferno... Amanhã... Amanhã...

Teresinha preparou a candeia de azeite de carrapato; espevitou o pavio de algodão torcido; 
acendeu-o, soprando com força num tição, e colocou-a no caritó, donde, bruxuleando, 
vacilante e fumarenta, iluminou em tons melancólicos, em firmes e vagarosos contrastes de 
claro e escuro, como nas telas imortais de Rembrandt e Espanholeto, um quadro admirável e 
emotivo, cena íntima da pobreza sofredora e resignada.





IX



Apagavam-se no céu pálido os astros e a estrela-d'alva desmaiava, lívida, quando Luzia 
deixou a rede. Espreguiçando, estremunhada ao fresco terral da manhã, que lhe agitava o 
traje com suave carícia, desfez os cabelos impregnados de forte fragância de mulher 
amorosa, como se a própria essência da força e da saúde evolasse deles em capitoso filtro 
sensual; e, tomando de um largo pente de chifre, começou a desembaraçar as densas 
madeixas, que se afofavam e intumesciam crespas e lustrosas. Aos seus ouvidos, chegavam 
os clamores vibrantes do toque de alvorada, recordando-lhe Alexandre encerrado na prisão 
infecta e escura, entre celerados, àquela hora despertados do profundo sono perturbado 
pelos sonhos de remorsos implacáveis.

Nos arredores, até onde o olhar podia chegar fendendo a vaporosa nebrina da madrugada, 


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surgiam massas pardacentas de moitas desgrenhadas em gravetos ressequidos, espectros de 
árvores, a terra poeirenta e as casas ainda fechadas, donde partia o surdo rumor de choro de 
crianças, ranger de chaves nas fechaduras perras, prolongados bocejos, resmungando frases 
de vago, quase imperceptível queixume.

No quarto próximo, a velha mãe ressonava com intermitentes gemidos. Teresinha dormia 
ainda, estirada na esteira, seminua, num abandono ingênuo, debuxando-se-lhe as formas 
delgadas e graciosas. No alpendre esmoreciam, na extremidade dos grossos tições, grandes 
brasas rubras, sob tênue camada de cinzas brancas.

Ao espetáculo do alvorecer sem alegria, o campo desolado, sem cânticos de pássaros e 
rumores harmoniosos do trabalho venturoso e fecundante, ela revia a infância, na fazenda 
Ipueiras: a campina verdejante umedecida de orvalho congregado no côncavo das folhas em 
gotas trêmulas, os cabeças-vermelhas gorjeando nos mais altos ramos dos juazeiros 
frondosos; caraúnas airosas papeando em volatas vibrantes nos leques das carnaubeiras 
esguias, rolas arrepiadas e friorentas aguardando, aos casais quietos, bem juntinhas, os 
primeiros raios do sol. Ouvia o mugir lamentoso das vacas presas nos currais, o gemido 
soturno e tímido dos bezerros e monjolos famintos; o balir das ovelhas irrequietas no 
fumegante chiqueiro; o gaguejar dos bodes lúbricos, ébrios de luxúria; e o relincho 
triunfante do fogoso cavalo castanho, a galopar peado das mãos, de crinas eriçadas, de 
orelhas espetadas e de rúbidas narinas acesas. E com o cheiro do pasto florido, dos aguapés 
flutuantes na lagoa azulada, nenúfares de caçoilas entreabertas, sentia o fartum da 
prodigiosa terra exuberante, e o bafio agro dos rebanhos fecundados. Recordava-se do 
banho na lagoa, que espalhava o céu, e a paisagem pitoresca, e onde ela nadava como as 
marrecas ariscas; mergulhava e voltava a flux, espadanando a água com o açoite de 
cangapés acrobáticos, espantando os paturis e jaçanãs medrosos, os graves socós pousados 
sobre uma perna e os bandos de alvas garças elegantes. Como era saboroso o leite morno, 
espumando nas cuias, o tassalho de carne-do-sol chiando no espeto, o cuscuz vaporoso e os 
queijinhos de cabra, em forma de peito de moça; as merendas e o mel de rapadura e 
macaxeira, o mocunzá com coco da praia, a coalhada escorrida e os fofos manuês assados 
em folha de bananeira?!...

Nessa evocação saudosa de um passado morto, ressurgiram as adoráveis peripécias da 
infância, os episódios da vida de adolescente na penumbra da puberdade, salteada pelas 
primeiras investidas dos instintos; as festas, os Sãos Gonçalos, os Bumba-meu-boi, as 
vaquejadas, as caçadas de avoantes nos bebedoiros, a colheita dos ovos que elas, 
abatendo-se em nuvens sobre as várzeas, punham aos milhões, junto dos seixos, das 
toiceiras de capim, ou nas barrocas feitas, durante o inverno, pelas patas do gado. Sentia 
ainda zumbir o vento nos ouvidos, quando, em desapoderada carreira, o castanho perseguia, 
através dos campos em flor, as novilhas lisas ou os fuscos barbatões, que espirravam dos 
magotes; o ecoar da voz gutural do pai, cavalgando, à ilharga, o melado caxito, e 
bradando-lhe, quente de entusiasmo: Atalha, rapariga!... Não deixes ganharem a catinga!... 
E quando ela, triunfante das façanhas do campeio, o castanho a passarinhar nas pontas dos 
cascos, garboso, vibrátil de árdego, as ventas resfolegantes, os grandes e meigos olhos 
rutilantes, todo ele reluzente de suor, como um bronze iluminado, o enlevo do pai a 
contemplá-la, orgulhoso, e indicando-a aos outros vaqueiros: Vejam, rapaziada!... Isto não é 
rapariga, é um homem como trinta, o meu braço direito, uma prenda que Deus me deu... E 
as moças, suas companheiras, murmuravam espantadas: Virgem Maria! Credo!... Como é 
que a Luzia não tem vergonha de montar escanchada!...



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Paisagem, fatos, coisas, criaturas queridas perpassavam, confundidos, sós, ou em 
torvelinhos fantásticos: tudo ao longe, num horizonte de nebrinas, como recordações 
truncadas e vagas de um delicioso sonho interrompido.

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O sol surgia rubro, sem pompas de nuvens, destoldado.

Teresinha apareceu à porta do quarto, bocejando e fazendo cruzes sobre a boca escancarada:

- Credo!... - murmurou - Pegou-me o sono que não foi graça... Bom dia, Luzia... Você é 
muito faceira com esses cabelos...

Bom dia, Teresinha! - respondeu Luzia com uma das madeixas presa aos dentes para lhe 
poder desembaraçar a extremidade - E mãezinha?...

- Está dormindo, coitadinha, que nem uma criança. Que santo remédio! ... Somente - já 
reparou? - de vez em quando ela a modos que se engasga...

- É da moléstia...

- Que inveja tenho dessa cabeleira! Que é que você fez para crescer assim?

- Nada... Água do pote e pente duas vezes por dia...

- Qual! Isso é do calibre da gente... Eu tenho usado tudo quanto me ensinam: óleo de coco, 
enxúndia de galinha, uma porção de porcarias... Cheguei até a botar nos meus, remédio de 
botica... Foi mesmo que nada... Sempre ficaram nestes rabichos que nem me chegam às 
cadeiras...

- Veja só. Ninguém está contente com a sua sorte... Eu, por mim, não se me dava que os 
meus fossem como os seus. Dariam menos canseira para os desembaraçar e alisar todos os 
dias...

- Enfim, cada um como Deus o fez...

- Por que não os ensaboas com raspa de juá? Todas as moças, na redondeza das Ipueiras, 
têm cabelos lindos, que crescem depressa - dizem - por causa da água de lá, que é virtuosa, 
e da tal raspa... 

- Vou experimentar.

Houve longa pausa. Teresinha, de olhos apertados, sufocada pela fumaça, soprava os tições. 
Luzia subjugava os cabelos em grande cocó, no alto da cabeça.

- Às vezes - disse Luzia - tenho vontade de cortar os meus bem rente. Para que pobre quer 
cabeleira?...

- Que horror! - exclamou Teresinha - Ficar sura?!... Nem falar nisso é bom.



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- Não faz mal. Cabelo é bem de raiz: quanto mais se corta mais cresce. Assim foi com os 
meus.

- Há gente que usa cabelos postiços. A Maria Caiçara, aquela cara de lua cheia, que é caseira 
do Belota, tem um enchumaço, que parece dela mesma. Algumas moças brancas e ricas 
também gostam disso. Dizem até que compram cabelos de defuntas, cortados pelos coveiros 
do cemitério... Credo!... Eu teria um nojo...

Nessa ocasião, chegou Raulino, sertanejo muito afamado, alto, todo músculos, de cabelos 
vermelhos e olhos azuis, genuíno tipo de bretão, bravo e meigo, contador de histórias 
maravilhosas de grande voga. Trazia, em balança, nos ombros, uma grande toalha de 
algodão da terra, com uma trouxa em cada extremidade.

- Bons dias, meninas! Como vai tudo por esta casa?

- Assim, assim - respondeu Luzia - E você?

- Eu? Como pobre. Não estou bem em pé, mas encostado, e vou furando, como Deus é 
servido, o oco deste mundo, até topar na morte. Estão aqui as rações: a sua, sa Luzia, e mais 
a da velha. Como vccê não pôde ir trabalhar o capitão José Silvestre me perguntou se eu 
podia trazê-las. Então respondi: Que é que eu não farei por semelhante gente? Era para vir 
ontem de tarde, mas porém fui pegar um veado de estimação, que fugiu da casa do doutor e 
só pude dar com o bicho à boca da noite, lá perto do córrego da Roça. Então resolvi vir 
agora de manhãzinha.

- Deus lhe pague.

- Ainda não lhe paguei eu, sa Luzia, a esmola que me fez... Se não fosse você, abaixo de 
Deus, o boi me desgraçava daquela feita...

- Ora, ora, ora... Grande coisa!...

- Mangando, mangando, eu ia, mas era sendo varado pelas galhadas do bicho traiçoeiro... 
Ainda estou com este pé meio esnocado, mas já lhe piso em riba com vontade...

Luzia desatou as trouxas, e arrumou, cuidadosamente, os víveres, que elas continham, sobre 
o tosco jirau, enquanto Teresinha torrava café em um caco de pote, mexendo os grãos que se 
coloriam de castanho, exalando saboroso cheiro.

- Bom, agora vou para a obra - disse Raulino - Até mais ver...

- Espere o café. A Luzia pila num instantinho.

- Café é comigo. Não posso enjeitar - respondeu o sertanejo, com mesuras de 
agradecimento - Não bebendo de manhã, passo todo o dia com a cabeça dolorida e as 
fontes latejando...

Teresinha despejou o café fumegante no pilão, e Luzia tomando da mão pesada de 
pau-d'arco, em poucos minutos, a golpes firmes e cadenciados, reduziu os grãos a leve pó 
inebriante.


[Linha 1800 de 6979 - Parte 2 de 5]



Pouco depois Raulino sorvia, a largos tragos, o adorado líquido, que ele entornava no pires e 
soprava, tão quente estava. Ao terminar, puxou do cós da ceroula um grande corrimboque 
de retorcido chifre de carneiro, cuja tampa, de casco de cuia, estava presa pelas correias a 
um velho lenço vermelho; sorveu enorme pitada do caco, e partiu troteando em ligeiro 
chouto de andarilho.

A velha, cujo sono já causava estranheza à filha, despertou muito melhorada. Havia muito, 
não lhe fora dado dormir uma hora a fio.

- É do remédio, mãezinha - dizia-lhe Luzia com alegria infantil, beijando-lhe a mão, trêmula 
e descarnada - Se Deus for servido, vai ficar boa, aliviada desse martírio. Também já basta, 
tanto tempo dentro de uma rede!... Mais dias, menos dias, estamos de viagem...

A velha, sorriu-se, complacente e irônica.

- A demora - continuou a filha - é soltarmos Alexandre...

Às nove horas, partiu ela para a cidade, levando a comida do preso. Já estava quase na volta 
do caminho, quando Teresinha gritou por ela:

- Não esqueça o que me prometeu ontem.

- Deixa estar - respondeu Luzia, fazendo de longe, um gesto de certeza, e desapareceu.

A entrevista na grade da prisão foi a de todos os dias: palavras de consolações de 
esperança. Alexandre desanimado e doente, para espairecer as amarguras da reclusão, 
trabalhava para um sentenciado sapateiro que lhe dera, em pagamento do salário, um par de 
chinelos de marroquim verde para Luzia, presente muito oportuno, porque os dela já os não 
podia quase sustentar nos pés, tão estragados estavam.

Depois da refeição - disse-lhe o moço à puridade:

- Tenho que lhe dizer; mas só quando não estiverem outros presos perto de nós...

- O que é?...

- Uma intrigalhada... Imagine que levantaram...

A confidência foi interrompida pela aproximação de Crapiúna, que estava de serviço.

- Vamos isso - bradou ele, afetando energia, e piscando sensualmente o olho para a moça - 
Não quero paleios com os presos. Aqui não é lugar de namoro, nem de bandalheiras. É fazer 
o que tem de fazer e muscar-se. São as ordens...

Luzia, perturbada com a súbita presença do terrível soldado, não ousou proferir palavra; 
compôs a trouxa, e partiu, rapidamente, para não ouvir as graçolas, que lhe dirigia a meia 
voz:

- Ingrata! Não se zangue comigo, meu benzinho... Tenha pena de seu mulato, feiticeira da 


[Linha 1850 de 6979 - Parte 2 de 5]


gente...

Alexandre tiritava de raiva, murmurando entre os dentes cerrados:

- Deixa estar, miserável!... Não hei de ficar preso toda a vida... Nossa Senhora há de me 
tirar daqui e então aprenderás a respeitar os outros... Peste!...

- Não quero conversa com presos e, de mais a mais, gatunos...

A injúria feriu certeira o coração de Alexandre, que se conteve para se não agravar.

O Promotor recebeu Luzia com a benevolência com que sempre lhe ouvia as queixas, as 
censuras, com ingênuo desembaraço feitas à morosidade da justiça e das diligências, 
principalmente o tal balanço que nunca mais se acabava.

- Você tem razão, em parte - dizia-lhe, com brandura, o jovem bacharel - Mas a justiça é 
cega, não pode correr; deve andar com muita cautela, e, por não tropeçar, muito devagar. 
Além disso; essa demora, que a impacienta, é favorável a Alexandre, para que ele saia limpo 
de tão malfadado incidente. Tenha paciência, espere mais alguns dias. Há uma pequena 
complicação por esclarecer.

Luzia ouvia em silêncio, torcendo e destorcendo a ponta do lençol...

- Noto que está hoje muito preocupada. Que lhe aconteceu?... - Nada... - respondeu ela de 
olhos baixos, hesitante - Sempre que topo com aquele soldado, o coração me bate ao pé da 
goela e fico meio sufocada... É preciso ter muita paciência...

-Fez-lhe alguma?...

- Fez... Mas não é disso que eu queria falar a vossa senhoria... Era...

- Diga sem hesitação...

- Eu queria pedir-lhe um favor, pelo bem que quer a sa dona...

- Fale...

- Lembrei-me que achou os meus cabelos bonitos...

- Sim, é verdade - afirmou o Promotor corando - E... depois?...

- Então vim aqui para lhe vender... 

- Vender os cabelos, Luzia?!...

- Não tenho mais o que vender... É a necessidade... Contento-rne com dois mil réis por 
eles... Não é caro...





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Dois mil réis por esse tesoiro?!... Eis um bom negócio, Matilde - disse, dirigindo-se à 
esposa, formosa senhora, que, em adorável traje matinal, um roupão de cambraia e rendas, 
entrava no gabinete - Esta moça quer vender os cabelos...

- Oh! É horrível - exclamou Matilde penalizada.

Deslumbrada com a presença da senhora, cujos belos olhos, claros e suavíssimos, se fitavam 
nela compassivos, ergueu-se e arrancando o pente, deixou caírem as fartas, fulvas madeixas 
encaracoladas.

- Magníficos - continuou Matilde - Mas... para que serviriam? São muito diferentes dos 
meus...

Faça-me esta esmola, minha dona. Veja, não é por me gabar, parece cabelo de branca... 
Pegue neles, não tenha nojo...

Matilde, após curta hesitação, tomou as madeixas nas mãos alvas e delicadas; fixou nelas os 
finos dedos, com unhas de nácar, e apertou-os a rangerem como meadas de retrós.

- Que belos, que extraordinários cabelos!... Com que os trata?

- Pente e água do pote. Então? Fique com eles que tenho muito gosto nisso...

- Fico, sim... - respondeu Matilde, tomando súbita resolução - Dou-lhe cinco mil réis por 
eles; mas... imponho uma condição. 

- Quer cortá-los já?... - atalhou Luzia, vivamente.

- Ao contrário - continuou a senhora - não os cortará. São meus, mas ficam na sua cabeça.

Iluminou-se o semblante de Luzia de irrepressível alegria; seus olhos se umedeceram e os 
lábios, trêmulos, murmuraram:

- Deus lhe pagará, santa criatura!... Nossa Senhora lhe dê uma boa sorte ... Oh! a senhora 
não parece deste mundo... Perdoe-me!... Eu tinha um grande aperto aqui, no coração... 
Faz-me bem chorar...

- Aqui tem o dinheiro - disse o Promotor, entregando uma nota a Luzia - Amanhã, talvez 
tenhamos boas notícias...

- Amanhã?... - perguntou Luzia, guardando o dinheiro no seio e compondo os cabelos.

- Sim. Creio que teremos novidade... Vá descansada, que aqui fica o seu advogado - disse 
ele, indicando Matilde.

E voltando-se para ela, enquanto Luzia partia, alastrando agradecimentos, disse-lhe em tom 
de afetuoso carinho, muito enternecido:

- Bom negócio fizeste, meu amor! Belíssima ação praticaste... És um anjo de bondade...



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X



Rosa Veado voltara extenuada de penosíssimo trabalho. Sentada à porta da casa de taipa, 
onde morava com os filhos entre o cemitério velho e a Fortaleza, contava o caso às vizinhas 
atentas, acocoradas em redor dela, curiosas e admiradas.

- É o que digo a vocês. As outras comadres não lhe puderam dar volta e não tiveram 
remédio senão me procurarem, porque, não é por me gavar, todo o mundo sabe que eu sou a 
tira-teimas. Que horror! A mulher tinha a criança atravessada, lá nela; era cheia de dengues; 
e, quando vinham as dores, não havia meio de ter mão nela. Eram gritos, exclamações!... E 
botava a boca no mundo, que não era para graças... Também era a primeira barriga, 
coitada!... Eu lhe dizia: Tenha paciência, comadrinha... É assim mesmo. - Mas eu já não 
posso mais, sinhá Rosa. Estas dores me arrebentam - respondia ela, com as mãos fincadas 
nas cadeiras - Ai... ai... ai... que estou me acabando!... - É porque vosmecê não está afeita... 
A primeira vez custa um bocado... Nisto, vinha-lhe o sono... Ela passava por uma modorra, 
como se não tivesse nada. De repente, estremecia... - Lá vem ... lá vêm elas - repetia 
espantada. Ai... ai... Minha Santa Virgem!... -Ah, meu maridinho... da minha alma... Ai!... 
Ai!... E eram ais de cortar o coração de quem não labuta, como eu, desde rapariga. Estava 
eu já esfalfada; não sabia mais como enganar a pobre, quando ela teve um puxo forte e 
quebraram-se as águas. Então eu disse: daqui a um nadinha, se Deus quiser, está aí a criança. 
- As dores foram amiudando, umas em riba das outras e... nada... Por fim a mulher não 
tinha mais forças: os puxos se espaçaram muito escassos, estava lavada em suores, branca 
como um pano, os olhos revirados e o nariz afilado... Credo! Parecia uma defunta... - Tenha 
coragem, minha comadre. Mais uma vez e estará livre... Ela não falava; berrava como uma 
bezerra. Peguei-me, então, com o Senhor São Raimundo e rezei o Magnificat. Já estava para 
mandar tocar, no sino da Matriz, sinal de mulher de parto, quando me veio uma fé... Mandei 
sujicá-la por outra mulher, que estava junto, e vistoriei-a à fina força, porque, toda cheia de 
luxo e de vergonhas, me dava com os pés como uma desesperada. O menino estava mesmo 
atravessado. - Vão ver uma botija, minha gente - disse eu. Trouxeram, uma botija de 
zinebra vazia, onde eu mandei que ela assoprasse com toda a força. - Sopre... sopre de 
verdade... Vamos... vamos... mais... mais um bocadinho... Agora... agora... Nisto dei um 
jeito que só eu sei... A mulher largou um grito rasgado e a criança pulou!... Estava roixo 
corno uma berinjela... Mal se viu aliviada, era só arremetendo para ver o filho... Eu, com 
medo de dizer que a criança parecia morta, tinha mão na mãe... A criança não dava sinal de 
vida. Amarrei-lhe o embigo; arrumei-lhe quatro palmadas fortes; meti-lhe o dedo na boca 
cheia de gosma... Foi dito e feito: chorou logo com força, pois era um menino macho, com a 
graça de Deus... A mulher ficava cada vez mais branca e com uma sede de engolir 
quartinhas d'água. Era um frouxo danado. Parecia que se havia sangrado um boi... Então 
mandei assoprar outra vez na botija. E, como as párias não se despregassem, chamei o 
marido, mandei que botasse o pé em cruz na barriga da mulher enquanto esta rezava 
comigo: "Minha Santa Margarida, não estou prenha, nem parida, mas de vós favorecida." 
Ao cabo da terceira vez, estava tudo acabado. Arre! Que nem com dez mil réis me pagavam 
o trabalho e o susto... Ainda tenho uma dor aqui, na ponta da costela mindinha, de uma 
feita que ela me empurrou o pé para fazer firmeza... Credo!...


[Linha 2000 de 6979 - Parte 2 de 5]



- Vosmecê tem muita sorte, tia Rosa!...

- Qual! O que eu tenho é fé em Deus.

- Não sei como, em semelhante sequidão, ainda há quem se lembre de ter filhos...

- Você não vê como estão cheios de crianças os abarracamentos de retirantes?! ... Até parece 
imundície, tanto menino...

- É só o que Deus dá aos pobres...

- É um morrer de crianças que até parece praga...

- Se não morressem, mulher, o mundo já não cabia mais a gente. Depois, anjinhos, não faz 
mal morrerem... Vão para o céu rezar pelos pais...

- Assim mesmo - retorquiu uma gorda matrona que tinha junto quatro crianças - eu não 
quero que os meus morram... Já que nasceram é melhor que se criem...

- Pois eu tive cinco - atalhou outra - que Deus chamou à sua santa glória. Foram para o céu 
direitinho, só passaram pelo purgatório para vomitar o leite pecador...

Em meio da conversa, chegou Teresinha.

- Que fim levou você? - perguntou-lhe Rosa.

- Ando por aí mesmo. Boas tardes a vosmecês todas...

As mulheres corresponderam, friamente, à saudação de Teresinha; e, desconfiando que 
vinha tratar de algum particular, foram saindo, uma a uma. Era muito comezinho receber a 
parteira visitas misteriosas, em busca das suas artes, das suas maravilhas.

- Trago aqui os dois mil-réis - dizia Teresinha quando se acharam a sós.

- Hoje talvez não possa fazer a reza - disse Rosa, tomando a cédula e examinando com os 
olhos pequeninos e cinzentos; armados duns óculos de cangalha, remendados com cera - 
Estou que não posso me mexer de cansada de um trabalho que me pôs sal na moleira...

E repetiu o caso com peripécias novas, apesar da impaciência da moça.

- Enfim - condescendeu a parteira - como você tem pressa, vou ver se, com a ajuda de 
Deus, posso fazer hoje alguma coisa...

- Faça, sa Rosa. É em beneficio de um pobre que já não se astreve com a cadeia...

- E tem razão. Preso nem para ganhar doce. Só d'eu pensar naquela sepultura, tapa-me o 
fôlego...

- Podia fazer a esmola de experimentar hoje...


[Linha 2050 de 6979 - Parte 2 de 5]



- Eu tinha de servir uma dona, separada do marido, que foi para o Amazonas e nunca mais 
se soube dele; nem novas, nem mandados... Ela, que esperou tanto tempo, pode esperar 
mais alguns dias... Vamos lá... Entra para dentro de casa ...

E conduziu Teresinha a um quarto estreito, sombrio, atravessado de frechas esguias de sol 
que, das fendas do telhado, iriadas de doirado pó irrequieto, o iluminavam, e marcavam no 
chão mornos discos palidos. No centro, sobre uma esteira, havia um banco, envernizado 
pelo uso e marcado com pingos de cera. Tirou, depois, de uma velha mala, carcomida e 
desconjuntada, duas velas e uma pequena imagem de Santo Antônio, tão amarrado e 
enrolado em fitas de cores tantas, que só lhe aparecia a cabeça tonsurada e o microscópico 
Menino Jesus, nuzinho, sentado sobre o livro vermelho e estendendo os bracinhos para 
abraçar o santo.

Um gato negro, de olhos fulvos, veio lentamente, a passos tardos e preguiçosos, encolher-se 
perto do banco.

Dominada por secreto terror do contacto com o mistério, Teresinha acompanhava, com o 
olhar espantado, os preparativos. Quando a parteira acendeu as velas, que espargiram 
mortiça claridade no ambiente, e aspergiu os quatro cantos do quarto com uma palha benta, 
molhada na água do copo, colocado defronte da imagem, se sentiu aniquilada e caiu de 
joelhos, baixando os olhos para não encontrarem os dela, pequeninos e vivos como os do 
gato, a fitarem-na com insistência e energia, como se lhe prescrutassem a alma.

- Reze o Creio em Deus Padre - ordenou Rosa Veado, com voz soturna.

Enquanto a moça repetia, maquinalmente, a oração, ela murmurava o responsório, que 
terminou implorando a Santo Antônio, deparador do perdido àqueles que recorriam à sua 
intercessão junto do Trono do Altíssimo, fizesse a graça de indicar o ladrão por quem estava 
padecendo um inocente.

Rosa Veado saiu, então, do quarto, como um espectro, a deslizar sem ruído, e fechou a 
porta cautelosamente.

Teresinha ficou só no sítio de mistério e esconjúrio. Seus olhos esgazeados acompanhavam 
os movimentos sensuais do gato, que entrou a caminhar de um para outro lado, farejando e 
chamando a feiticeira com plangentes miados. Havia, no ambiente enfumarado, sombras 
adejantes, a atravessarem céleres, os traços luminosos das frestas, como enormes pássaros 
negros. Toda ela tremiam em arrepios aflitivos. Um formigueiro subia-lhe pelas pernas frias, 
entorpecidas. Gelado suor colava-lhe às têmporas, as loiras madeixas. Arfava-lhe o seio, 
angustiado por mortal compressão. Quis gritar, mas a voz esbarrou na garganta, embargada 
por um nó. Fixou o olhar fascinada no brilho do copo e viu se moverem nele, como em uma 
câmara clara, confusas figuras humanas, mulheres e homens, arrebatados por um furacão, 
com doidos volteios de dança macabra. Ao mesmo tempo, experimentava a impressão de 
alar-se do chão, sorvida pelo enorme e poderoso hausto de colossal boca invisível. Cresciam 
as figuras; tinham feições de pessoas conhecidas; riam com esgares ferozmente sarcásticos; 
envolviam-na; arrastavam-na no galope diabrino... Ela desmaiava de gozo, à deliciosa 
sensação de adejar no espaço, subtraída à gravitação, como um floco de nuvem, alma sem 
corpo.



[Linha 2100 de 6979 - Parte 2 de 5]


Em plena alucinação, não perdera, todavia, os sentidos e a idéia, fixada e dominante em seu 
cérebro conturbado: o crime imputado a Alexandre e a infamação do castigo. As suspeitas, 
que lhe haviam cavado largo sulco no espírito, se acentuavam com o testemunho dos olhos, 
porque via, nos vultos cabriolantes em redor, autores e cúmplices do delito, indicados por 
Santo Antônio. O responsório produzira o apetecido efeito. Quando, entretanto, empregava 
enorme esforço por apreender bem os traços dos semblantes deformados por horríveis 
caretas, tênue fumaça, de cheiro inebriante, começou a invadir o quarto. As figuras mais se 
adelgaçaram, imergiram outras nos rolos vaporosos, para surgirem, depois, mais confusas, 
mais disformes e misturadas, até desaparecerem em treva densa.

Teresinha despertou, sacudida por forte acesso de terror, e vomitou um bolo de saliva 
efervescente.

As velas ardiam, lacrimejantes, ao lado do pequenino santo. De um fogareiro de barro, cheio 
de brasas amortecidas, subia tênue fio de fumo, cheiroso, dum azul delido. Rosa Veado, de 
joelhos, fitava nela os olhinhos fulvos como os do gato negro, que ressonava, então, estirado 
na esteira.

- Não se assuste... - observou baixinho, a feiticeira - O incenso consagrado foi-lhe aos 
grogomilhos...

- Vosmecê não saiu daqui?... - perguntou a moça, com voz magoada e débil, esfregando os 
olhos lacrimosos e congestos.

- Saí, sim. Fui buscar o fogareiro e o incenso...

- E não viu?!...

- O quê?!...

- Eles... pelo ar...

- Vi, mas foi você, de queixos cerrados e olhos esbugalhados, sem responder às minhas 
perguntas... Que rapariga medrosa!... Credo!... Nem que lhe houvesse aparecido alguma 
visagem!...

- Pois vi mesmo... Estou bem certa... Dê-me uma pinga d'água... que tenho uma coisa... 
aqui... na boca do estômago. Um entalo...

- Tome um golinho deste copo...

- Deste, não!... - atalhou vivamente Teresinha, com um gesto de repugnância - Não quero, 
está enfeitiçada... Ai... que tenho as pernas bambas, sem ossos...

- É o que eu digo. Tudo isso é medo... Bem se vê que você nunca assistiu a respônsio. Daí, 
bem pode ser que o glorioso Senhor Santo Antônio tivesse feito o milagre...

- Fez... fez... Eu vi tudo, muita coisa; mas não lembro bem... Espere... Era uma porção de 
gente maluca; era... Oh! tenho a cabeça a andar à roda e besoiros nos ouvidos...



[Linha 2150 de 6979 - Parte 2 de 5]


Rosa Veado apagou as velas, guardou-as com o santo e conduziu Teresinhia, que mal podia 
caminhar, vacilante, trêmula, para fora do quarto. À impressão violenta da claridade e do ar 
livre, ela esfregou, de novo, os olhos, e espreguiçou-se fatigada, em contorções felinas...

- Quando estiver com o juizo assentado - ponderou a feiticeira - há de recordar tudo... 
Agora é esperar com fé, e verá como a coisa se descobre, quando menos pensar. Quando 
pilhar uma ocasião, farei a adivinhação da urupema, que nunca falhou... Deixe por minha 
conta... Já sei que, nessa história, anda metida alguma mulher...

Confusa, envergonhada, todos os seus membros desmantelados, Teresinha partiu perseguida 
pelos olhares matreiros do mulherio da vizinhança, mal podendo arrastar as pernas trôpegas 
e doloridas, com as articulações a estalarem de perras e as virilhas traspassadas por 
alfinetadas pungentes.

Quando se viu longe da casa da Rosa, murmurou, irada e suspeitosa:

- Aquela bruxa me botou quebranto...





XI



Contra a expectativa de Luzia, Teresinha regressou desanimada e lânguida, sem a natural 
vivacidade e rapidez de movimentos, que lhe assinalavam a índole instável, a indiferença, 
quase inconsciente, da torpeza a que a fatalidade a arrastara. Tinha amortecidos e sombrios 
os olhos faceiros, e a comissura dos lábios, sempre arqueada pelo hábito do sorriso 
desdenhoso e irônico, se dilatava, desgraciosa, em torvo traço de sofrimento.

- Então?... - inquiriu Luzia, com ânsia.

- Quase morro... - respondeu ela, comprimindo os quadris magoados - Nunca mais... me 
meto em outra... Credo!... Quem de uma escapa...

- Que houve?... Que te aconteceu?...

- Um horror!...

- E o respônsio?...

- A Rosa rezou...

- O ladrão não é Alexandre...

- Não sei...

- Fala, mulher, pelo amor de Deus. É preciso que a gente esteja a te espremer...


[Linha 2200 de 6979 - Parte 2 de 5]



- Ainda tenho a cabeça meia atordoada e as pernas lassas... Sinto ainda uma dor aqui nas 
cadeiras...

Teresinha gemia as palavras e contorcia-se em requebros lascivos e dolentes. Depois, 
fixando, com esforço, as idéias, que lhe giravam dispersas no cérebro, como reminiscências 
de fatos remotos, fez a narrativa dos episódios da bruxaria, com minúcias exageradas, 
tocadas do forte colorido de fetichismo e alucinação.

- Quando vi, minha negra, as horrendas figuras crescerem dançarem como demônios do 
inferno, são os ladrões - disse comigo - mas não lhes pude divisar bem as feições, tantas e 
tão feias era as caretas que me faziam. Parecia um bando de papangus.

- E não os reconheceu?...

- Qual!... Aquilo foi, por força, arte do cão... Que horror!.. Disse-me a Rosa que esperasse 
com fé... Vamos ver...

- Descansa... É possível que, depois de assentares o juizo, te lembres melhor...

- Ninguém me tira da cabeça que aquela esconjurada, meu Deus perdoai-me, botou-me coisa 
ruim no corpo...

- Não pensa nisso, criatura... Você está nervosa.

- Isto é doença de moça rica...

- Doença não quer saber de branco nem de preto, não respeita fortuna nem pobreza... Venha 
cá - acrescentou, empolgante, com o olhar áspero e desconfiado - Você viu alguma coisa, 
mas não que ser franca...

Teresinha fez com a cabeça um gesto negativo, e sentou-se acabrunhada. Luzia continuava a 
contemplá-la ansiosa. Seus olhos reluzentes de aflição, exprimiam a esperança no milagre e a 
revelação anelada para restaurar a honra de Alexandre, e restituí-lo à liberdade...

Quanto tempo teria ainda de esperar? Quantos dias e quantas noites seria ainda o mísero 
obrigado a passar entre aquelas quatro paredes infectas?... E se não fosse possível salvá-lo; 
se a justiça descobrisse provas contra ele; se, na verdade, fosse o culpado de tão feio 
críme?!...

Tais dúvidas empanavam, como nuvens fugaces, o atribulado espírito de Luzia.

Alexandre teria energia para suportar a prisão, o vilipêndio da pena infamante; ela, porém, 
não se podia conformar com a idéia de reconhecê-lo criminoso, acusado de ladrão e 
maculado para sempre. Preferiria vê-lo morto, estirado no chão, fulminado por um corisco.

- Ninguém me tira da cabeça - acentuou Teresinha, emergindo da prostração que a 
subjugara - que aquilo é obra de soldado...

- Também eu - ajuntou Luzia - já pensei nisso... Um homem, como Alexandre, não teria 


[Linha 2250 de 6979 - Parte 2 de 5]


astúcia para tanto... Além disso haviam de, por força, desconfiar dele...

- Com efeito... Era preciso ser muito besta para furtar coisas do armazém, fazendas, 
mantimentos, dinheiro...

- Sim, coisas que davam logo na vista... Quem só vive do trabalho, que mal dá para o 
de-comer e arranjar um molambo para cobrir, não poderia esconder semelhante furto... 
Quando aparecesse com roupa nova ou fizesse gastos...

- É mesmo. Perguntava-se: onde foi o fogo, onde arranjou isso?... Quem cabras não tem e 
cabrito vende... Eu, por mim, não se me dava de jurar que não foi Alexandre... Gente que 
tem furto na consciência não olha direito para os outros... Cara de ladrão não me engana...

- Ah! Teresinha!... É Santo Antônio quem está falando pela tua boca... Os anjos digam 
amém...

- Tanto hei de teimar que descobrirei tudo... Não é a primeira nem será a última vez que eles 
fazem das suas e botam a culpa nos outros...

Ocorreu, então, a Luzia o que lhe havia dito Alexandre, aludindo em termos vagos, a uma 
intriga que não queria revelar diante do outros presos. O Promotor também lhe falara, com 
meias palavras de uma pequena complicação, naturalmente alguma coisa desfavorável, 
algum indício de culpa... Que seria?... Que intervencão diabólica frustara o milagre, 
perturbando a visão de Teresinha, lhe ofuscando a memória? Quem sabe se ela não vira o 
ladrão e, por natural delicadeza, se esquivava de lhe patentear a dolorosa realidade para não 
a magoar, privando-a do inefável conforto da esperança com a desilusão e a tristeza 
esmagadora de deparar a verdade fria e implacável?!

A razão é a luz; a dúvida é a treva, congeminação de contrastes engendrados pela mesma 
causa. Felizes os irracionais, porque não duvidam.

Apesar da sua energia máscula, ela se sentia aniquilada, num colapso de nervos enrijados à 
contínua tensão de tantas amarguras e cuidados, vexames, a pobreza, duras privações de 
haveres, a moléstia da mãe, o pressentimento de perdê-la a qualquer momento e a obsessão 
do soldado, além da orfandade, o desamparo pela prisão de Alexandre, a única pessoa que a 
poderia ajudar a viver.

Não lhe bastavam para tormento constante, as próprias aflições? Para que se mortificar com 
a sorte dele? Não era seu parente; nada os ligava, a não ser recíproca troca de favores, a 
gratidão, orvalhando o gérmen da simpatia instintiva e um projeto vago, a proposta de se 
aliarem pelo matrimônio.

Quem sabe - pensava ela - se, em vez de partir de impulso do coração, não fora feita por 
generosidade, compaixão, ou desejo sensual de possuí-la, onerá-la com a responsabilidade 
da família, filhos, que aumentariam os vexames já oprimentes, para depois, como tantos 
outros, abandoná-la, inflingir-lhe a abjeção de ser preterida por outra mulher, crime que os 
homens cometem como um direito do sexo, ou divertimento cruel, igual ao de matar rolas e 
desmanchar ninhos?!

Culpado e punido, ficaria livre de penar por ele, do compromisso de gratidão e das 


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conseqüências funestas do triste consórcio de dois pobres. Sozinha no mundo, poderia, com 
a graça de Deus, e os seus músculos, trabalhar para viver, ou emigrar para a praia em busca 
da proteção e amparo do padrinho José Frederico.

Tais pensamentos, bons e maus, perversos ou generosos, acudiam, em tumulto, disparatados 
e contraditórios, ao seu cérebro perturbado pela dúvida. Acariciava-os ou lutava para 
expungi-los; e vinha-lhe, por fim, o remorso de haver pecado por soberba, por falta de 
caridade, julgando mal Alexandre, quando, em verdade, os sofrimentos dele repercutiam no 
seu coração com dobrada intensidade, como se ele fora parte de seu ser, porção de sua alma.

Seria isso bem-querer, como imaginava; duas criaturas confundidas de corpo e alma em 
harmonia ininterrupta de afetos e idéias, vivendo da mesma nutrição moral, dos mesmos 
anelos, eternamente ligados no prazer e na dor, na vida e na morte?!

Sentia-se incapaz de amar; carecia-lhe a fraqueza sublime, essa languidez atributiva da 
função da mulher no amor, a passividade pudica, ou aviltante da fêmea submissa ao macho, 
forte e dominador, irresistível, como aprendera na intuitiva lição da natureza; essa 
comovente timidez de novilha ante a investida brutal do touro lascivo, sem prévios afagos 
sedutores, sem carícias de beijos correspendidos, como nos idílios das rolas mimosas. Não; 
não fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus músculos possantes para resistir, fechara-lhe 
o coração para dominar, amando como os animais fortes: procurar o amor e conquistá-lo; 
saciar-se sem implorar, como onça faminta caindo sobre a presa, estrangulando-a, 
devorando-a. Não era mulher como as outras, como Teresinha, para abandonar a família, o 
lar, a honra, por um momento de ventura efêmera, escravizando-se ao homem amado, 
contente do sacrifício, orgulhosa do crime, insensível ao vilipêndio, sem olhar para trás onde 
ficaram os tranquilos afetos, para sempre perdidos; e, por fim, consolada à torpeza do 
repúdio infame, à margem da estrada da vida, como um resíduo inútil, condenado a vis 
serventias, trapo que foi adorno cobiçado, molambo que vestiu damas formosas, casca de 
fruto saboroso e aromático.

Não; não fora feita para amar. Seu destino era penar no trabalho; por isso, fora marcada com 
estigma varonil: por isso, a voz do povo, que é o eco da de Deus, lhe chamava 
Luzia-Homem.





XII

A velha dormia tranqüilamente, e as duas moças continuavam a conversar no alpendre.

Queria você muito bem ao Cazuza? - perguntou Luzia a Teresinha, de súbito emergindo de 
um vago cismar.

- Se queria!... - respondeu-lhe ela, com saudoso suspiro. Por ele larguei pai, mãe e irmã de 
quem eu era um ai-Jesus! Era o seu tudo e sentia-me tão feliz com ele que, desde o dia em 
que Deus o levou, fiquei insensível como uma pedra, vivendo por viver, rolando à toa pelo 
mundo...



[Linha 2350 de 6979 - Parte 2 de 5]


- Nunca teve inclinação para outro?

- Eu, não. Vendo-me sozinha e desacostumada a trabalhar para comer, não tive remédio 
senão me resignar à minha sorte e estar por tudo. Quando algum homem se engraçava de 
mim, eu fingia gostar dele. Encontrei um desalmado que me queria como uma fera; tinha 
maus bofes e me trazia, ciumento como o demônio, que nem negra cativa. Aquilo não era 
homem; era o cão em figura de gente. Por qualquer suspeita ficava danado como se me 
quisesse comer viva. De uma feita, arranchou-se na casa em que morávamos como marido e 
mulher, um moço rico e bonito, que se pós a olhar muito para mim; e eu, ao levar-lhe o café, 
cai na asneira de sorrir para ele. Ah! Luzia, se você me visse naquele tempo!... Não é por me 
gabar, alva como uma imagem, com duas rosas nas faces e carnes rijas como pau!... Meus 
cabelos pareciam de oiro e meus olhos eram azuis e claros como duas contas. O mundo e a 
pobreza estragam a gente. Hoje, veja como estou murcha, engelhada, cheia de sardas... Mas, 
para encurtar razões, quando o moço foi embora, o homem pôs-me de confissão; e, não 
sabendo eu o que lhe dizer para me desculpar de falta que não me passara pela cabeça, 
disse-me uma porção de desaforos porcos, nomes de mãe; chamou-me sem-vergonha, 
safada, deslambida, e, agarrando-me pelos cabelos, deu-me tabefes...

- E você? - perguntou Luzia, indignada.

- Eu chorei muito; lamentei a minha desgraça; jurei por todos os santos do céu, que era 
inocente, até que ele, com um pontapé, me atirou para dentro da camarinha, berrando 
possesso: "Anda, peste!... Amanhã não me ficas aqui em casa; ponho-te fora na estrada, 
onde te apanhei como uma cachorra vadia... "E fechou, com estrondo, a porta. Fiquei na 
escuridão, maginando no que faria de mim, quando amanhecesse. Ao mesmo tempo que me 
fervia o coração, estava contente com ver-me livre de semelhante bruto; mas tive medo de 
apanhar outra vez, e esperei quieta o que desse e viesse. - Que me importa - disse comigo - 
Hei de achar quem me queira ... E, pensando no moço causador daquela desgraceira, peguei 
no sono, deitada numa rede velha que ali estava armada. Quando os galos estavam 
amiudando, ouvi bulir na porta; levantei-me de um pulo; fui deitar-me no mesmo lugar onde 
havia caído e pus-me a soluçar baixinho. Abriu-se a porta, e a claridade do copiar, alumiado 
por uma vela, deu em cheio sobre mim. Eu estava derreada, no chão, sustendo o corpo com 
a mão esquerda, enquanto tapava os olhos com as costas da direita, olhando por baixo. O 
desalmado entrou devagarinho; chegou perto de mim; ficou alguns minutos parado e 
disse-me, depois, em voz sumida e zangada: "Vá se deitar no seu quarto... " Eu não 
respondi, nem me mexi; entrei a soluçar mais forte. Tocou-me, então, de mansinho, no 
braço, dizendo, já com outra voz, manhosa e adocicada - "Teresa, você está zangada 
comigo?" Repeli o agrado com um safanão do cotovelo. Ele continuou, procurando 
abraçar-me: - "Este meu gênio!... Às vezes faço coisas!... Veja: estou arrependido... do que 
fiz..." Estava quase acocorado junto de mim. "Só o que falta - resmunguei, soluçando mais 
forte - é mandar-me surrar pelos seus vaqueiros com um nó de peia." - "Perdoa, coração - 
continuou, tentando ainda me abraçar - Eu não sou mau, mas o ciúme me tira o juízo. 
Esqueça tudo, minha cunhãzinha da minha alma... Prometo nunca mais te ofender. Pede o 
que quiseres, benzinho; serei teu escravo..." E, suspendendo-me do chão, levou-me ao colo 
como uma criança... Todo ele tremia; eu sentia-lhe o baticum do coração; suava e bufava 
como um novilho... Eu, nem como coisa: zangada, gemendo e soluçando. No outro dia, 
enquanto ele se derretia e se babava em agrados e promessas, eu maginava no moço e no 
Cazuza que, lá do céu, me pedia vingança...

- Você não abandonou logo esse malvado?!...


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- A falar a verdade, não era de todo mau. Fiquei por medo e por não ter coragem de 
começar a vida de novo... Já tinha padecido tanto, que mais um pouco não me fazia mossa. 
Mal com ele, pior sem ele, que, tirante as venetas de cíúme, era bom para mim; dava-me 
tudo: era só pedir por boca, como dona de casa... Maridos, casados na igreja, batem nas 
mulheres, quanto mais... Ora, deixei-me estar, mas pensando sempre que o meu adorado 
Cazuza nunca me havia maltratado, e que eu devia, mais cedo ou mais tarde, tomar 
desforra; porque, apesar de franzina, ninguém mas faz, que não as pague, tão certo como 
Deus estar no céu.

- Vingou-se então?...

- Ora, ora, ora!... Eu lhe conto. Seu Berto (ele se chama Bartolomeu, mas tcdos o tratavam 
assim) foi em fins d'águas fazer a ferra em uma fazenda dos Crateús. O outro parece que 
soube disso, e se apresentou uma tarde, debaixo de um pé d'água, que se diria vir o céu 
abaixo. Eram relâmpagos e trovões de encandear e ensurdecer a gente. Aboletou-se e passou 
a noite. Soube, então, que era um tal capitão Bentinho, de família muito rica e poderosa. 
Trajava bem, gibão, guarda-peito, e perneiras de coiro de capoeiro, muito macio, bordados 
de flores, pospontadas à sovela, com abotoadura e esporas de prata. Não imagina como 
tinha a cor fina e branca, e uma barba parecida, comparando mal, com a de Jesus Cristo. 
Como estou falando com o coração aberto, não tenho vergonha de confessar que me 
engracei dele, acho que por capricho ou por ser em tudo diferente do outro. De madrugada, 
ainda chuviscando e antes que a gente da casa acordasse, arrumei algumas peças de roupa e 
meti-as em sacos com alguns patacões dados pelo Berto; e fugimos: ele montado num 
possante quartau pedrez, eu à garupa. Arre! que foi uma viagem de arrebentar. Tivemos de 
atravessar muitas léguas de sertão, passando rios a nado, dormindo no mato e comendo de 
alforje até chegarmos a uma povoação, perto da fazenda onde moravam os pais dele. Aí fui 
aboletada em casa de uma velha. Passamos três dias como noivos: ele, fino como seda; eu, 
cheia de denguices e manhas, como rapariga donzela. E contudo, Luzia, você não é capaz 
de acreditar que, amimada pelo Bentinho, todo delicadezas e cerimônias, tinha saudades do 
Berto com o seu sangue na gueira, aqueles olhos devoradores, aquela brutalidade...

- É possível?!... Pai do céu!...

- Você não sabe de quanto o bicho mulher é capaz, quando vira a cabeça.

- Anda; conta o resto.

- Eu fazia idéia da fúria, da danação dele, quando deu por falta de mim, da cunhãzinha 
russa. Imaginei os berros, os despropósitos, as pragas, que me irrogou, as ameaças de 
desforra, pois sabia que não era homem para se conformar com o roubo da mulher. Meu 
dito, meu feito. Um dia chegou Bentinho muito assustado, recomendando que me 
escondesse, porque lhe haviam inculcado gente do Berto nos arredores da povoação. Fiquei 
mais morta do que viva. Não me podia levar para a fazenda, porque a família, que tudo 
ignorava, não consentiria nisso. A velha que quase não dava fé de mim e vivia muito 
ocupada na criação, entrou a tomar precauções para ninguém suspeitar a minha estada em 
sua casa. Um dia, era dia de, feira, e eu tinha um desejo doido de ver a reunião de gente de 
uma redondeza de vinte léguas, vendendo legumes, farinha, rapadura e outras produções da 
lavoura; mas a megera não consentiu que eu botasse o nariz de fora. Ali por volta de 
meio-dia, ouvimos tiros de bacamarte e uma algazarra dos demônios, um bate-boca 


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desadorado. Pouco depois soubemos que houvera um pega entre cangaceiros, 
desconhecidos no lugar, e a gente do Bentinho, e que já havia morrido um homem... Que 
seria?... Fiquei numa aflição, tremendo de susto, mas experimentava uma secreta satisfação 
que fosse por minha causa a briga e o sangue derramado.

- Que horror!...

- Estava num pé e noutro para ter notícias certas do barulho, quando, entrou, de repente, 
Bentinho. Vinha muito amarelo, com a mão enrolada em um pano e acompanhado por dois 
cabras, armados até os dentes. - Que foi? - perguntei-lhe assustada - "Nada, um arranhão 
no pulso, respondeu com voz sacudida - amarre-me, endireite-me isto, sa Quitéria." 
Enquanto a velha punha mezinha na ferida, um talho que ia da palma da mão esquerda ao 
meio do braço, Bentinho, forá do seu natural, com os olhos espantados, a voz surda e seca, 
ainda trêmulo de raiva, contou-me que, chegando à feira, fora desfeiteado por uns cabras, 
novatos na terra, já muito encachacados e intimando com todo o mundo. Chamou a gente 
para amarrá-los, mas um deles, saltando como um gato sobre o ginete, disse-lhe: - Você 
pensa, seu alvarinto, que amarrar homem é furtar, à traição, mulher alheia? Nisto chegou, à 
toda, o João Brincador com três homens escolhidos, e eu disse-lhe: - Amarra essa cambada 
de desordeiros. - Em cima das minhas palavras, riscou o Berto, e foi dizendo: Você, pode 
amarrá-los seu filho desta, filho daquela, mas depois de ne pagar e ajustarmos as contas. - 
Eu e os meus demos de rédea para sairmos do meio do povo; eles, rente, atrás da nossa 
poeira. A certa distância rodamos sobre os pés os animais, e os cabras que também estavam 
bem montados, quase esbarram em riba de nós. - Agüenta, rapazes! - disse ao João, que me 
respondeu sorrindo: Não há novidade, capitão. Deixe eles para nós. Palavras não eram ditas, 
o Berto papocou-me fogo. Abaixei-me, e a bala tirou um taco da beira do chapéu do João 
-O cabra mata seu Bentinho! - gritou ele - Os outros cangaceiros atiraram, e os meus 
responderam com uma descarga. O cavalo de um deles empinou-se e rodou morto por cima 
do cavaleiro, também ferido. O Berto, então, veio seco em cima de mim, e correu dois 
palmos de faca do Pasmado - Tenha mão, capitão Berto - disse-lhe eu, aparando o golpe, 
com a minha parnaíba - Tenha mão que se desgraça. Mas o homem estava roxo de raiva; 
espumava como um touro feroz. Avançou outra vez num ímpeto, que não era para graças. 
Suspendi o russo-pombo passarinhando como um gato; salto pra aqui; pulo pra acolá, e o 
homem decidido atravessando-se na minha frente, com o cavalo preto e ligeiro que nem um 
tigre. Na terceira investida, meteu-me o ferro com vontade. Rebati com a mão; mas quando 
senti o aço ranger-me na carne e o sangue espirrar, saquei da garrucha. O homem estava 
cego, arremeteu de novo e meteu-me o ferro outra vez aqui na aba do gibão. Vendo, então, 
que o diabo me matava mesmo, e que eu não podia com vantagem brigar com ele a ferro 
frio, perdi as cerimônias, e lasquei-lhe fogo... O homem soltou um berro; abriu os braços 
como se quisesse abraçar o vento, e derreou pra trás. O cavalo, sentindo falta de rédea, deu 
quatro galões e meio, como um poldro brabo e desembestou desapoderado, arrastando 
Berto enganchado no estribo. Morreu?!... - perguntei, tiritando de frio, e batendo os dentes 
como se tivesse sezões. "Não sei. Foi batendo por troncos e barrancos até desaparecer de 
nossa vista com os dois cabras restantes metidos em uma nuvem de poeira. Dois dos dele 
ficaram no barro. Da minha rapaziada,, o Chico Pintado levou uma bala aqui na coxa - lá 
nele -; o Borburema perdeu o gibão, e foi ferido com um pontaço nas cruzes; o Brincador 
ficou com o chapéu, novo em folha, estragado. Todo o mundo sabe que ele tem o corpo 
fechado. Enquanto brigávamos, o povo fazia um barulho medonho. Todos viram que me 
defendi o mais que pude, negaceando, para lhe poupar a vida. O diabo do ferro cortava 
como navalha. O talho está doendo de verdade. "E voltando-se para mim, disse: - "Não 
chores, Teresa. Isto, com sumo de angico ou de maçã de algodão, sara depressa.... É uma 


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arranhadura de nada." Supunha que eu chorava por ele; mas, naquela ocasião, meu 
pensamento acompanhava Berto, desfigurado pelos encontrões, coberto de sangue e pó, 
arrebatado pelo Moleque, cavalo de estimação que eu bem conhecia. Minha vontade era 
correr atrás do pobre, apanhar os pedaços da sua carne, arrancados pelos tocos e pedras. 
Talvez o encontrasse ainda vivo para pedir-lhe perdão... Desde esse dia, ficou decretada a 
minha desgraça. Bentinho me achava sempre triste e sucumbida. Eu tinha repugnância 
daquele homem manchado com o sangue do outro. Não era já a mesma mulher... Ele parece 
que percebeu isso, e foi também esfriando, até que me participou o seu casamento com uma 
prima bonita e rica. Eu respondi que lhe fizesse bom proveito... Deu-me um maço de 
dinheiro e não voltou mais a casa da velha Quitéria.

Luzia, embebida nas palavras de Teresinha, acompanhava a narrativa com intenso interesse, 
intenso abalo.

- E... depois? - perguntou.

- Depois? Enquanto durou o dinheiro, quase um ano, fiquei com a tal velha que foi a minha 
asa-negra. Tomou conta de mim como de uma besta de carga; fazia de mim o que queria; 
mandava e eu me sujeitava, calejada, estando por tudo sem protestar, sem me aborrecer. A. 
velha, que era toda agrados enquanto eu estava rica, virou para me insultar e, uma vez por 
outra, me atirava à cara que era necessário ganhar com que pagar o pirão que eu comia, 
porque não era minha escrava...

- Não prenderam Bentinho?...

- Qual prisão, qual nada!... Ficou solto, e respondeu o jurado quando muito bem quis. O pai 
dele, o coroné Manel Fernandes era o maioral dono da terra.

- Ficou um ano, dizia você...

- Pouco mais ou menos, contando do dia da briga, até quando a velha morreu de um nó na 
tripa. Dei graças a Deus por me haver livrado de semelhante bruxa, e resolvi voltar para a 
casa de meu pai, embora ele, que era teimoso e ríspido, me matasse; mas, em caminho, 
tentou-me o demônio e fui rolando de um lado para outro, de povoação em povoação, até 
que a seca me apanhou. E aí está, minha camarada, como vim bater aqui.

Ela, com efeito, peregrinara pelo vasto sertão, de miséria em miséria, rastolhando, perdida 
como um pedaço de pau arrastado pela correnteza do rio, caindo nas cachoeiras, 
mergulhando nos rebojos, surgindo adiante, para bater de novo sobre pedras, tornando a ser 
arrebatado, até que, ao baixar das águas, pára, coberto de paul e ervas secas, garranchos e 
flores, que transportou de longe, esperando a enchente na próxima estação, e continuando a 
trágica jornada, até apodrecer em ribas desoladas, ou perder-se na imensidade do oceano.

É essa a história da peregrinação mundana das desgraçadas, que se desterram no seio amigo 
da família, quebrando o suporte dos afetos puros, e vagando sem rumo, na ebriedade de 
gozos efêmeros, à mercê da fatalidade intangível e cega.



XIII


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Esteve-se Luzia absorta, fitando em Teresinha demorado olhar aceso de admiração, como se 
lhe ela se revelasse sob a forma estranha e sugestiva de uma heroína provada nos mais rudes 
lances da luta pela vida, e conservando ainda o coracão sensível aos nobres impulsos de 
ternura, de dedicação e piedade do infortúnio alheio. Os episódio romanescos, que ouvira 
num enlevo de surpresa e espanto, como as criancas ouvem, tímidas, maravilhosas histórias 
de fadas e princesas encantadas, ou as proezas de lobisomem e cavalos sem cabeça, 
vagando pelos campos, nas noites tétricas em que os jacurutus sinistros piam à beira dos 
rios; todos aqueles casos da paixão dominadora arrastando, lentamente, para a voragem, a 
rapariga franzina, indiferente ao perigo, sem saudades da casa paterna e sem remorso da 
culpa que a poluíra, incapaz de resistir, e reincidindo no pecado como um vicioso na 
absorção de licores capitosos que o intoxicam, flutuando na embriaguez da volúpia e 
despertando maculada e resignada à própria vergonha, assumiam, na sua imaginação 
excitada, proporções gigantescas de feitos valorosos, extraordinárias façanhas de uma 
criatura forte, disfarçada sob ilusórias aparências de debilidade doentia. Disseram-lhe que o 
sofrimento embotava as delicadas fibras do coração; que o pecado o esterilizava, como o sol 
esteriliza a terra, e estiolava as florações sadias da semente do bem; entretanto, Teresinha 
era a negação viva dessas verdades afirmadas por uma moral de convenção, sentimental e 
absurda. Tinha a superioridade da mulher contente de sofrer pelo seu amor, como um crente 
pela sua fé, o martírio ultrajante do desprezo, o vilipêndio de viver execrada; aceitara, com 
resignação de forte, as conseqüências todas do primeiro passo, dado no enlevo de um sonho 
delicioso, para o declive fatal, onde ninguém mais se detém e se equilibra. Deveriam ser 
fortes, admiráveis, as mulheres que sobrevivessem às provações do opróbio, com a alma 
imaculada; e Luzia, apesar de seus músculos exuberantes, se sentia aniquilada, ao pensar em 
ser colhida por um só dos incidentes da pitoresca vida de Teresinha; morreria extenuada 
como um pássaro cativo na arapuca. Seria horrível ver morrer o homem amado, o abandono, 
o ser surrada pelo amante, brutalmente sensual, e, todavia, lamentar-lhe a morte... Seria 
horrível, seria monstruosa essa escravidão da mulher desbriada ao senhor do seu corpo, essa 
passividade de animal, de coisa a mudar de dono. Ocorria-lhe, então, que não havendo 
experimentado essa abjeção, não tinha direito de maldizer da sua sorte, incomparavelmente 
mais propícia que a de Teresinha, a heróica rapariga que se não queixava.

Surgia no horizonte o Cruzeiro rutilante, reclinado nos coxins nebulosos da Via-Láctea e a 
bafagem morna da madrugada parecia o arfar da terra extenuada, sucumbida de cansaço, 
quando, interrompendo a conversa, as duas se entreolharam espantadas: tinham percebido 
algo de suspeito, estalidos de galhos secos, rumor de passos precavidos, vozes abafadas, 
sumidas, muito perto da casa, na direção das touceiras de mandacarus que defendiam, com 
intransponível cerca de espinhos, o pequeno quintal abandonado.

- Ouviu? - perguntou Luzia.

- É talvez - respondeu Teresinha, que escutava atenta - o barulho do terral nos galhos, 
algum animal roendo o mandacaru.

- Não é a primeira vez que ouço esses passos furtados, fora de horas, ali pela cerca e no 
terreiro... Parece que alguém nos espia.

- Tens medo, fracalhona?...


[Linha 2600 de 6979 - Parte 2 de 5]



- Não tenho medo, não; mas é melhor irmos lá para dentro.

- Pois sim. Não se me dava de ver o que é.

Recolheram ao quarto. Luzia abeirou -se da rede onde, encolhida como uma criança, a velha 
ressonava tranquila. Teresinha ficou a espreitar, cozida à porta entreaberta em estreita fenda; 
com um aceno de alvoroço, chamou a outra, e viram, ao lusco-fusco, um grupo.

- Parece que são soldados - observou-lhe Teresinha.

- Talvez a ronda... - balbuciou Luzia.

Não: são dois homens e uma mulher. Espera... Olha: estão conversando...

Então, muito juntas e apavoradas, ouviram:

- Eu não dizia que estão dormindo?!...

- Qual - teimou uma voz feminina - estão acordadas. Juro que ouvi, ainda agorinha, falação 
de gente no alpendre...

- Também ouvi - afirmou outra voz mais clara e forte - Deixemos de histórias. É melhor não 
teimar. Elas botam a boca no mundo e estamos perdidos... Nada. Aquilo, aquela bruta, não 
é mulher de brincadeira...

O conselho foi aceito pelo grupo, que se esgueirou sorrateiro, apressadamente.

- O diabo roncou-lhe na tripa - disse Teresinha triunfante, mostrando a Luzia, a lâmina nua 
do grande canivete de mola Era tocarem na porta, eu fisgar logo um deles, para não ser 
atrevido.

- Parece que ouvi a voz de Crapiúna.

- Pode ser; mas não estava fardado. Só queria saber quem foi a safada que veio com eles...

- Que intenções teriam? Olha, Teresinha, não é a primeira vez que ouço esses passos 
suspeitos. Há muito tempo, desconfio que andam rondando a nossa casa.

- Também ouvi, mas não maginei que fosse gente. Não maldei nada.

- São capazes de tudo.

- Lá isso é verdade.

- Várias noites, Crapiúna e Belota andaram a cantar fora de horas, aqui por perto...

- Só me dá que pensar a mulher... Será possível que viessem botar feitico? E... não é outra 
coisa; é mandinga...



[Linha 2650 de 6979 - Parte 2 de 5]


- Outro dia, quando abri a porta de manhã cedo, topei, mesmo na soleira, um saquinho com 
penas de galinha pretas arrepiadas...

- E não o abriu para ver o que continha?...

- Deus me livre. Eu não. Tive nojo e varri tudo com o cisco para dentro daquele buraco, 
cheio de carrapateiras e que foi barreiro.

- Pois eu não resistia. Havia de revistar tudo, pegasse-me, embora, o malefício.

- E você acredita nisso?...

- Não sei o que é, se feitiço ou obra do cão; mas, tenho visto casos de pôr tonto o juízo da 
gente. Há malefício para abrandar coração, curar ciúmes e até para produzir moléstias. Lá 
em casa havia um velho, que curava bicheiros dos bezerros pelo rasto...

- Abusões...

- Busões?!... Conheci um moço que foi enfeitiçado por uma rapariga, embelezada por ele. A 
criatura, de repente, ficou toda torta, como se lhe desse o ar... Ave-Maria; foi murchando, 
secando até ficar pele e osso. Parecia mais um defunto em pé, que gente viva. Desenganado 
de remédios de botica, foi se receitar ao padre João Crisóstomo; chupou chave de sacráriol 
do Santíssimo, mandou fazer orações fortes... Foi bobage... A felicidade dele foi topar uma 
cigana, que lhe deu contra-feitiço, uns poses para beber com leite de peito... Santo remédio, 
menina! ... Uma coisa é ver outra é dizer, como ele se levantou, já tendo os pés na cova.

- Bem, fecha a porta e vamos dormir que é quase de madrugada.

- É mesmo... E eu que estou moída... Parece que levei uma surra...

Fechada a porta com precaução para não despertar a doente, Teresinha despiu-se 
rapidamente; coçou o vinco do cordão das saias na cintura; enrolou, espreguiçando-se, em 
gestos felinos, os cabelos; persignou-se e derreou-se na esteira.

Lentas passaram as horas para Luzia, sentada na rede, estremecendo ao menor ruído do 
vento nas folhas da latada, e aguardando, ansiosa, o quebrar das barras, com os primeiros 
fulgores da aurora. Seu olhar compassivo flutuava entre a doente, a moça adormecida e a 
candeia a crepitar melancólica, no caritó enfumarado.

Renascia-lhe, no coração, a esperança de melhoras da mãe adorada; e, ao mesmo tempo, 
suspeitava que aquele prolongado sono fosse efeito de dormideiras, que lhe houvesse dado 
o médico. Meditava na tranquilidade angélica de Teresinha, seminua, apenas coberta por 
uma leve camisa de esguião, preciosa relíquia de antiga abastança, e acreditava que lhe 
houvera Deus perdoado as culpas, porque era boa na essência, e as purgara neste mundo. 
Entretanto, ela, que nunca havia feito mal a ninguém, que não abandonara os pais, nem 
traíra, nem ocasionara a morte de homens que a amassem, ela que tudo sacrificara, 
aspirações de moça e prazeres, que resistira aos instintos de mulher, para manter, em meio 
do paul, a sua pureza imaculada, ali estava, acabrunhada de pensamentos tristes, cruciantes 
como remorsos, com a alma inquieta e o coração latejando de susto, à previsão de perigos 
tremendos.


[Linha 2700 de 6979 - Parte 2 de 5]



Que havia feito para sofrer tanto? Que funesta influência exercia sobre as pessoas que lhe 
queriam? Fora, talvez, ela que trouxera desgraça a Alexandre. Bastou que ele lhe desse os 
cravos rubros, crestados ao calor de seu seio, para lhe imputarem um crime infamante e ser 
preso como um réprobo.

Teria má sina, mau olhado?... Seria dessas criaturas fatídicas, cujo contacto desorganiza e 
destrói? Conhecera uma formosa moça, em cujas mãos, ovos batidos para mal-assadas, não 
cresciam e desandavam em aguadilha choca; talhava o leite; definhava e morria a planta de 
que ela colhesse uma flor, ou matava com o olhar ninhadas de pintos espertos e lindos, 
como macias borlas de veludo? Havia, então, criaturas, predestinadas para o bem e para o 
mal?... Nasciam umas para o sofrimento, outras para o gozo, da mesma forma que as havia 
destinadas ao céu ou ao inferno?... E Deus, Deus, pai de misericórdia, permitia isso, essa 
iniquidade revoltante?!...

E o seu espírito, flutuando à mercê de noções incompletas do bem e do mal, das causas e 
efeitos reguladores da vida, se rebelava, em assomos impotentes, contra as injustiças do 
destino cego e louco.





XIV



Uma surpresa auspicicsa assinalara o amanhecer: a velha enferma erguera-se, sozinha, da 
rede; e, escorada a um pequeno cacete de cocão, envernizado pelo uso, apareceu à porta do 
quarto.

- Deus seja louvado - exclamou Luzia, em gárrula expansão alvoroçada.

- Seja bem-vinda, tia Zefinha!... - disse Teresinha, com largos ademanes maneirosos - 
Abanque-se aqui, no alpendre, que está mais fresco. Ora, até que enfim... Não há mal que 
sempre dure...

- É a minha promessa a São Francisco das Chagas, de Canindê - observou a enferma - que 
me restituiu a saúde... Eu tinha uma fé...

E o seu rosto de pergaminho, retalhado de rugas e dobras, se dilatava em meigo sorriso.

- Olhem - continuou, caqueando no seio do cabeção, bordado de cacundês, onde imergiam 
confundidos, entrelaçados, os rosários, bentinhos e medidas de santos, que lhe pendiam do 
pescoço; e mostrando uma caçoila com a imagem do milagroso padroeiro em péssima 
gravura, cujos milagres admiráveis atraíam os fiéis, vindos de longínquas paragens, em 
contínua romaria à sua bela igreja cheia de ex-voto, pernas, braços, mãos e cabeças, 
modelados em cera, ou toscamente esculpidos em madeira, viscosamente coloridos e 
marcados de chagas hediondas, muito sarapintados de sangue e arrouxeados de equimoses e 
alguns verdadeiros aleijões, monstruosidades repugnantes; muletas e ligaduras de pano 


[Linha 2750 de 6979 - Parte 2 de 5]


velho, duras de sânie embebida; todas essas relíquias de piedade, penduradas, em simetria, 
às paredes da nave, rememorando curas, obtidas pela intercessão do santo, a quem Jesus 
Cristo concedera a graça de marcar com o estigma das cinco chagas.

Também fizera uma promessa a São Gonçalo da Serra dos Cocos e a outros patronos 
celestiais, não menos afamados pelo prestígio de sarar enfermos, desesperados da saúde. 
Estava em verdadeiro apuro para dar conta de todas elas; mas, o padre Antônio Fialho, 
ouvindo-a em confissão, lhas comutara em leve penitência, impondo-lhe a obrigação de 
rezar algumas coroas, terços e o ofício de Nossa Senhora, hino mirífico, que, quando é 
cantado na terra, os anjos se ajoelham no céu. Nas horas de alívio, ela se penitenciava 
debulhando, entre vagos fulgores de esperança, as contas luzidias de um rosário bento pelo 
santo missionário frei Vidal.

- Não sinto quase o puxado, minhas filhas, e aquele entalo, que me sufocava, também 
desapareceu. Dormi, que nem um passarinho, louvado Deus.

- Eu bem lhe dizia, tia Zefinha, que o remédio, abaixo de Deus, havia de ser a sua salvação.

- Agora - observou Luzia - é continuar com ele: estamos de viagem.

- E tu a dar-lhe, filha. Espera mais um pouco. Estou tão afeita a sofrer que, se não fosse 
falta de fé, desconfiava ser isso visita da saúde...

- Qual, vosmecê vai arribar mesmo - afirmou Teresinha, com muita convicção.

A velha sentou-se, acariciada pela filha, que lhe endireitou as dobras da saia e o lenço da 
cabeça, enquanto Teresinha preparava o chá de erva-cidreira, que ela tomava todas as 
manhãs.

- Agora, disse a velha, com um suspiro de alívio - vocês podem cuidar do trabalho, que 
ficarei tomando conta da casa. Se não fosse esta pobreza, tomaria uma menina para 
fazer-me companhia, varrer o terreiro, dar-me um caneco d'água, enquanto estivessem fora 
labutando... Já passei, aqui, dias e dias sem ver vivalma, até que a Luzia voltasse da obra... 
Que dias compridos!...

- Dias que não voltarão, tia Zefa, porque aqui estou eu, que a não largo mais...

- Se houvesse por aí - continuou a velha - uma pasta de algodão, fiaria um novelo para não 
estar banzando sem fazer nada... e só pensando na moléstia ...

Às nove horas Luzia, ansiosa por saber o que lhe começara a contar Alexandre, a revelação 
interrompida pela sobrevinda insolente de Crapiúna, partia com o almoço para o 
desconsolado preso, que, mal terminada a refeição, lhe perguntou se sabia alguma coisa de novo...


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