A Arte da Capoeira - Parte 1 de 3 - Camille Adorno
A Arte da Capoeira - Camille Adorno
A Arte da Capoeira - Camille Adorno
Prefácio
Herança africana legada à cultura brasileira, o jogo da Capoeira
significa valioso contributo à formação da nossa identidade cultural.
Neste livro estabelecemos os caracteres delineadores da
Capoeira, propiciando uma oportunidade de iniciação à arte. Na leitura
desse tema ampliam-se as possibilidade de compreensão da nossa
história, onde se insere a Capoeira e que preservou a lembrança das
lutas sociais que forjaram a cidadania brasileira.
Esta obra é um passo para se promover o resgate das tradições
da Capoeira divulgando essa bela expressão nacional.
Kleber Adorno
ÍNDICE
PREFÁCIO
I - O CAMINHO DA CAPOEIRA
O QUE É A CAPOEIRA?
ITINERÁRIOS
AS ORIGENS DA CAPOEIRA
ZUMBI DOS PALMARES: O MESTRE DA RESISTÊNCIA
A LEI ÁUREA
TÍTULO II - CAPOEIRA&CAPOEIRAS
A CAPOEIRA NO PASSADO
MESTRE PASTINHA
MESTRE BIMBA
TÍTULO III - NA RODA DE CAPOEIRA
A MÚSICA
A RODA
O JOGO DE ANGOLA
OS MOVIMENTOS
A CAPOEIRA HOJE
NOTA DO AUTOR
BIBLIOGRAFIA
I
O CAMINHO DA CAPOEIRA
"Em nome do Deus de todos os nomes
Javé, Obatalá, Olorum, Oió.
Em nome de Deus, que a todos os Homens
nos faz da ternura e do pó.
Em nome do Povo que espera
na graça da fé, à voz do Xangô
o Quilombo Páscoa que o libertará.
Em nome do Povo sempre deportado
pelas brancas velas no exílio dos mares
marginalizados no cais, nas favelas e até nos altares.
Em nome do povo que fez seu Palmares,
que ainda fará Palmares de novo
Palmares, Palmares, Palmares do Povo."
missa dos Quilombos
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O QUE É A CAPOEIRA?
'Os negros usavam a Capoeira
para defender sua liberdade.'
Mestre Pastinha
Capoeira é luta, jogo e dança. Brincadeira de movimentos
perigosos executados com graça, malícia e muitos rituais. Dança negra
em que prevalece a agilidade da esquiva e a esperteza da fuga. Os pés
que deslizam sobre o chão podem desferir golpes fatais: de repente,
ante os olhos surpresos do adversário, o gesto rápido. O ataque
fulminante. Então, prostrado, o inimigo se dá conta de que foi vítima da
mandinga. Isto, se ainda tiver vida... Essa dança - enquanto forma
de expressão corporal - possui uma linguagem onde cada gesto significa
e representa idéias e sentimentos, emoções. Sensações.
"No tempo em que o negro chegava/fechado em gaiola/Nasceu
no Brasil/Quilombo e quilombola/E todo dia/Negro fugia/
juntando a curriola/De estalo de açoite, de ponta de faca/ e
zunido de bala/Negro voltava p'ra argola/ no meio da
senzala/E ao som do tambor primitivo/ berimbau, maraca e
viola/Negro gritava: abre ala! Vai ter jogo de Angola"
Mauro Duarte & Paulo Cesar Pinheiro,
Jogo de Angola
O jogo da Capoeira é a síntese da dança. A sua essência,
disfarçada em brinquedo: vadiação; distração de quem busca extravasar
cada função interior nos gestos exteriores. Nessa dança se manifesta a
tradição milenar da cultura negra de reverenciar as origens, cada vez
que se repetem gestos ancestrais,. renovados: o jogo da Capoeira é um
vínculo com antepassados que praticaram os mesmos atos. A
habilidade, agilidade e destreza do capoeira estão expressos com
astúcia no balanço dos braços, no arremesso oportuno dos pés, no
meneio desconcertante do tronco, na harmonia de todo o corpo em
gestos circulares que não perdem a continuidade - como se fora um
ininterrupto perambular pelo círculo, em estreita ligação com o solo.
A Capoeira consiste numa dança onde o emprego dos
movimentos arriscados - dado à circunstância de camuflar possível
contenda - envolve os participantes e contagia quem assiste. A natureza
dúplice de luta disfarçada em brincadeira dá forma a um jogo de
movimentos combinando objetividade e precisão no ataque com defesas
velozes, originais, em que o corpo é utilizado no limite dos recursos de
elasticidade e flexibilidade muscular, compondo assim uma bela
plástica humana em gestos despojados, naturais, numa estranha dança
do perigo. É ainda mais a dança da Capoeira: o contato com o chão,
intenso como o vínculo dos filhos com a mãe terra,. que envolve e
protege, gera e alimenta a vida, acolhendo a dança que é também em
seu louvor.
A postura respeitosa dos capoeiras uns com os outros, para com o
jogo, o "chão", o berimbau e o atabaque, se explica no propósito maior
da dança: unir. Ligar estreitamente, como as mãos que se apertam ao
[Linha 150 de 3846 - Parte 1 de 3]
final de cada jogo, na saudação dos camarás.
O jogo da Capoeira é o corpo e a essência de 500 anos de luta de
resistência negra, constituindo-se na primeira e original manifestação
libertária da cultura brasileira; é o corpo e a força dos ritos que
preservam os mitos e os arquétipos da nossa gente. Participando
ativamente da resistência comum às variadas formas de dominação
física e cultural, desde o seu aparecimento nas terras brasileiras a
Capoeira insurge-se em defesa da construção de uma nova identidade
coletiva: esse jogo não foi somente um fermento revolucionário; é
realmente um instrumento de transformações firmado nas mais antigas
raízes culturais do povo brasileiro; instrumento e voz de um povo na
luta por um diálogo igualitário, respeitoso e fraterno entre todas as
pessoas.
"Dança guerreira/Corpo do negro é de mola
Na Capoeira/ Negro embola e desembola/E a dança que era
uma festa pro povo da terra/Virou a principal defesa do negro
na guerra/Pelo que se chamou libertação/E por toda força,
coragem e rebeldia/Louvado será todo dia/Que esse povo
cantar e lembrar o jogo de Angola/Da escravidão no Brasil"
Nas rodas do jogo a luta da Capoeira é um brinquedo guerreiro,
uma diversão entre camaradas unidos na mesma luta, irmãos no
combate da cidadania. Quando o jogo degenera em luta explícita, já não
ocorre a Capoeira. O objetivo da luta é tornar o capoeira senhor de si
mesmo e integrado ao grupo: é no recesso da comunidade que ocorre o
aprendizado e a prática do jogo, de forma coletiva e fraterna. E, se às
vezes isto não acontece, não se pode falar em Capoeira na plenitude;
quando muito em adestramento nos movimentos básicos, de forma
desvinculada dos objetivos e fundamentos da arte.
O ponto alto da luta sempre foi resistir: contra o preconceito, a
discriminação disfarçada; contra oportunistas e aproveitadores
astuciosos que se apropriam dos valores da nossa cultura e tentam
adulterá-la, fazendo isto de tal forma que ao negro é mesmo vedado o
acesso à manifestação que deram origem. O jogo da Capoeira é a luta
de resistência de um povo que sempre reagiu à dominação das elites
que detêm o poder: a luta da Capoeira é insubordinação, é subversão, é
reação, mais que nunca reafirmando os principal valor do homem:
liberdade.
"Capoeira vai lutar/já cantou e já dançou/não pode mais
esperar.../Não há mais o que falar/cada um dá o que
tem/Capoeira vai lutar.../Vem de longe, não tem pressa/mas
tem hora p'ra chegar/ já deixou de lado sonhos/dança, canto
e berimbau/abram alas, batam palmas
poeira vai levantar/ quem sabe da vida espera
dia certo p'ra chegar/ Capoeira não tem pressa/mas na hora
vai lutar..."
Geraldo Vandré, Hora de Lutar
Luta negra. Presente no cotidiano dos morros, terreiros, favelas,
praças e ruas. Companheira do trabalho e diversão das feiras e festas,
acompanhando o negro em qualquer ambiente social.
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ITINERÁRIOS
"Fomos ao rio de Meca/ Pelejamos e roubamos/E muito risco
passamos/ e vela./E árvore seca./(...) A renda que
apanhais/O melhor que vós podeis,/Nas igrejas não
gastais/Aos pobres pouco dais/E não sei o que lhe fazeis."
Gil Vicente,
Exortação da Guerra
PORTUGAL, ÁFRICA E BRASIL:
A AVENTURA TRANSOCEÂNICA
O período histórico onde se situa o descobrimento do Brasil e a
conseqüente formação da nossa cultura teve o valioso testemunho dos
relatos e narrativas deixadas por escritores portugueses da época.
A literatura lusa - constituída ainda no período medieval -
alcançou o apogeu com Gil Vicente, Camões e Fernão Mendes Pinto,
justamente na fase em que é completada a expansão do povo português
no mundo. O Brasil, portanto, é contemporâneo dessa expansão, nela
se inserindo tanto o fato primordial da sua descoberta e colonização,
quanto o dos belos trabalhos produzidos pela talentosa literatura
portuguesa terem por motivo inspirador os fatos decorrentes da sua
descoberta - além da conquista na África.
A língua portuguesa, instrumento dessa literatura e que com ela
se aprimorou, deriva do latim popular, que teria chegado à Península
Ibérica no século III antes de Cristo.
Na história literária - assim como na história geral - encontramos
divisões em épocas ou períodos, compreendendo fases de tempo em
evolução cronológica e englobando conjuntos de obras literárias com
características comuns. Nesse trabalho, os historiadores da literatura
consideram se as obras obedecem aproximadamente à mesma ordem
de valores estáticos, ao reuni-las com vistas à exposição histórica.
Segundo o Prof. Fidelino Figueiredo, dividindo a literatura
portuguesa em eras, temos as seguintes: medieval (do século XII até
1502), clássica (1502 a 1825) e romântica (de 1825 aos dias atuais).
O período medieval da literatura portuguesa se caracteriza pela
poesia, reunida em repositórios coletivos (os Cancioneiros), que são os
seguintes: o Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana, o
Cancioneiro Português Colocci-Brancuti e o Cancioneiro Português da
Ajuda.
Esta fase medieval é geralmente considerada como finda no
começo do século XVI - quando é representada a primeira obra teatral
de Gil Vicente, o Monólogo do Vaqueiro, em 1502. Começa então o
período clássico (já contemporâneo do Brasil), onde a literatura produz
obras importantes para a compreensão da gente que realizaria a
colonização, evidenciando o seu caráter e a perspectiva em que
encaravam a nossa terra.
Na fase clássica encontramos os trabalhos literários que mais
diretamente se relacionam à nossa história, abordando as conquistas
na África, os costumes de Portugal, as viagens de descobrimento na
América e análises e observações importantes acerca da sociedade da
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época.
Salientamos a importância da consulta às obras de Gil Vicente
(1460-1536), fundador do teatro português, autor das farsas Juiz da
Beira, Clérigo da Beira, Inês Pereira e Quem tem Farelos; dos autos da
Barca da Glória, da Barca do Inferno e da Barca do Purgatório. Gil
Vicente distinguiu-se ainda como poeta e cronista de costumes ao
retratar a vida portuguesa do seu tempo.
Outro vulto de destaque para a compreensão do que era a gente
portuguesa é Luis de Camões (1524-1580), não somente o grande poeta
lírico do período clássico mas o mais importante poeta da língua
portuguesa, como épico em Os Lusíadas, ou lírico, com as Rimas.
Dramaturgo, distinguiu-se com as comédias El-Rei Seleuco, Anfitriões e
Filodemo.
Muitos foram os poetas e romancistas deste período, cujo talento
não se ofusca ante o infausto brilho das conquistas na África e no
Brasil. Destacam-se: Bernardim Ribeiro (1475-1553), poeta e
romancista, autor famoso de Menina e Moça; Francisco de Sá Miranda
(1495-1558), poeta e teatrólogo: Antonio Ferreira (1528-1559), também
poeta e teatrólogo; João de Barros (1496-1570), autor das Décadas da
Ásia, prosador e historiador; Damião de Góis (1502-1574), autor da
Crônica do Príncipe D. João; Fernão Mendes Pinto (1509-1580) viajante
e prosador, autor do relato Peregrinação, de suas viagens ao Oriente; e
Diogo do Couto (1542-1616), continuador das Décadas da Ásia,
companheiro de Camões em Moçambique, autor do Soldado Prático.
À época, destacaram-se como historiadores mais especificamente
do descobrimento e início da colonização do Brasil: Pero de Magalhães
Gandavo ( ? - 1576), autor da História da Província de Santa Cruz e do
Tratado da Terra do Brasil; Gabriel Soares de Sousa (1540-1592), autor
do Tratado Descritivo do Brasil; e Frei Luis de Sousa (1555-1632), autor
da Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.
Dentre os escritores brasileiros, um dos primeiros historiadores
foi o Frei Vicente do Salvador (1564-1639), nascido na Bahia, o
primeiro a fazer uso da prosa literária em sua História do Brasil, que
somente seria publicada em 1889. Segundo o crítico José Veríssimo, ao
fazermos a lista dos nossos clássicos, com certeza Frei Vicente do
Salvador seria o primeiro.
Estes são alguns dos principais autores e trabalhos que nos
permitem uma introdução à história do Brasil e seus problemas, com
vistas a formarmos a nossa própria crítica do processo de surgimento da
civilização brasileira.
Aos amantes da leitura, fica a sugestão para pesquisa e estudo
.AS ORIGENS DA CAPOEIRA
'São dois pra bater no negro/de pau, chicote e facão/p'ra se
safar tem o negro/só dois pés e duas mãos/é a mão pelo pé/
é o pé pela mão
bate na cara/derruba no chão
Sérgio Ricardo, Brincadeira de Angola
[Linha 300 de 3846 - Parte 1 de 3]
As origens do jogo da Capoeira se encontram no princípio da
nação brasileira, e seu desenvolvimento acompanhou o relacionamento
de negros, brancos e índios no continente americano. A terra
descoberta aos olhos do colonizador seria o berço de uma nova cultura -
fruto das peculiaridades do ambiente e da forma em que se
processavam as relações entre os conquistadores europeus; os
ameríndios - primeiros senhores do continente; e os africanos - trazidos
à força para realizar todo o trabalho.
No entender do descobridor o novo mundo deveria ser explorado
em todos os aspectos, como fonte supridora da necessidade de riquezas
fáceis sentida na Europa. E nada mais natural que o emprego do
trabalho escravo. De nativos e africanos. Afinal, a nobreza que
governava o mundo ocidental gozava do privilégio de ser ociosa. Para as
agruras de todos os serviços, somente seres inferiores, aí incluídos
todos que não tivessem a pele branca.
A presença dos portugueses na África tem registro desde meados
de 1430. Lá, o europeu incentivava astuciosamente as diferenças
tribais, fomentando rivalidades entre grupos. Depois, adquiria os
prisioneiros feitos por ocasião dos conflitos, negociando com
exploradores de toda espécie a aquisição de seres humanos para o
trabalho forçado.
A chegada dos colonizadores significava destruição completa para
os nativos da África - o provável berço da humanidade, segundo
recentes estudos. Os africanos apresados eram obrigados a trabalhar
nas plantações canavieiras das ilhas do Atlântico. À época da
descoberta do Brasil, Portugal já vivia da exploração de colônias na
África, Ásia e no Atlântico. Seu caráter já amolecera na aventura da
escravidão. Luis de Camões, que via muito bem com seu único olho, se
lamentava de ver sua pátria mergulhada "no gosto da cobiça e na
rudeza/de uma austera, apagada e vil tristeza".
Em 1441, Antão Gonçalves levou a D. Henrique dez negros que
trocara por dez mouros colhidos na costa da África. Segundo Azorara,
que além de chefe de expedições portuguesas que praticaram
massacres nas terras africanas revelou pendores literários, manifestos
em crônicas aduladoras, D. Henrique mostrou-se "ledo" ao ver os
africanos. Não pelo número, acentuou o cronista, "mas pella sperança
dos outros que podya aver". No ano de 1444 fundou-se a Companhia de
Lagos, cuja finalidade era intensificar o tráfico de escravos. No fim do
século, Portugal recebia em média 12.000 escravos por ano,
provenientes a princípio de Guiné, São Tomé, Príncipe e mais tarde, de
Angola, Moçambique e demais regiões africanas. A escravidão
tornara-se a mais próspera indústria do país.
O empreendimento desumano cresceu de tal forma que cerca de
um século após iniciado, o flamengo Nicolaus Cleynaerts, humanista
que se encontrava na corte portuguesa como preceptor dos filhos de D.
João III, fez as seguintes observações a respeito do reino ibérico: "Tudo
ali pulula de escravos, todos os trabalhos são executados por negros e
cativos, dos quais Portugal está tão cheio que, segundo creio, existem
em Lisboa mais escravos e escravas dessa espécie do que portugueses livres."
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Foi aí que entramos na história. Os interesses econômicos e
ideológicos dos portugueses - "a dilatação da Fé e do Império" - segundo
Camões -, não estavam voltados exclusivamente para o Oriente fértil
das ricas especiarias, sedas, objetos de valor como tapetes, perfumes,
produtos medicinais. Vasco da Gama retornara da Índia com um
carregamento de pimenta que permitiu lucros de até 6.000%, quando
vendido na Europa. Mas no seu Diário de Viagem ele contava ter
percebido sinais seguros da existência de terras a oeste de sua rota. A
Espanha já tinha descoberto novos mundos na sua tentativa de chegar
ao oriente navegando sempre para ocidente. E Portugal já tinha
assegurado para si uma parte desse território, com a Capitulação da
Partição do Mar Oceano, mais conhecida como Tratado de Tordesilhas,
assinado entre as duas potências de então, em 1494.
Não é absurdo supor que Cabral recebera orientação no sentido
de afastar-se ao máximo da costa africana, podendo confirmar a
existência dessas terras e delas tomar posse. Essa seria outra tarefa de
sua expedição. O descobrimento do Brasil é apenas um episódio da
expansão marítima européia, no momento da transição do feudalismo
para o capitalismo. As práticas mercantilistas e a predominância dos
interesses econômicos sobre os aspectos religiosos e ideológicos se
refletem até no nome definitivo que a terra ganha, provocando
protestos do cronista João de Barros: "Por artes diabólicas se mudava o
nome de Santa Cruz, tão pio e devoto, para o de um pau de tingir
panos".
O início da colonização das terras brasileiras se deu sob o reinado
de D. João III, conhecido como O Colonizador em razão das expedições
que organizou. Em 1530 uma nova esquadra veio para o Brasil sob o
comando de Martim Afonso de Sousa, com instruções similares àquelas
emitidas aos navegadores que o antecederam: as suas cinco
embarcações explorariam o litoral compreendido entre o Maranhão e o
Rio da Prata, capturando os contrabandistas encontrados ao longo da
Costa do Pau-Brasil. Entretanto, eram mais amplos os objetivos
específicos do Capitão: fundamentar a efetiva invasão da terra,
implantando núcleos de povoamento dos portugueses. Pero Lopes de
Sousa, irmão de Martim Afonso, relata como isso aconteceu, em seu
Diário: "A todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão
determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem
fazendas: e fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove léguas a
dentro pelo sertão, à borda de um rio que se chama Piratininga; e
repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficinas, e fez tudo em
boa obra de justiça."
Em meados de 1532 foi introduzido no Brasil o cultivo da
cana-de-açúcar e no seu desenvolvimento os colonos fixaram-se à terra,
adquirindo glebas e se instalando com plantações e engenhos.
Surgiram as duas primeiras vilas brasileiras no mesmo ano: São
Vicente e Piratininga. Desobedecendo às ordens reais as povoações não
se localizavam na chamada Costa do Pau-Brasil: revelava-se a
prioridade dos portugueses - que era a busca dos metais preciosos. A
escolha do local para a fundação das vilas facilitava a procura das minas
[Linha 400 de 3846 - Parte 1 de 3]
do Peru e do Paraguai, à época em conquista - a ferro e fogo! - pelos
espanhóis chefiados por Francisco Pizarro, que destruiriam o Império
Inca.
A sede da riqueza dos metais levou os lusitanos a explorarem o
estuário platino, organizando entradas com destino ao interior, saindo
de Cananéia e Guanabara. A entrada que partiu de Cananéia foi
dizimada pelas populações indígenas da região do atual Paraná,
mostrando que a dominação das novas terras não seria uma tarefa fácil.
Quem era a gente portuguesa que se propunha a empreender
uma tarefa que não se apresentava como das mais fáceis? Àquela
altura, segundo Fernando Palha, Portugal importava tudo, desde o pão
que comia até a lã que fiava. Nenhum português queria fazer nada:
"A prática bissecular da pilhagem no seu próprio país (os
impostos escorchantes), a aventura oceânica e o tráfico negreiro, tudo
isso minou a resistência moral do povo, dando-lhe até repugnância pelo
trabalho."
Como o Brasil só era habitado por silvícolas, ninguém queria vir
para cá - além dos que seriam proprietários das terras. Francisco de Sá
Miranda, grande poeta português, mas inegavelmente dominado pela
ambição, refere-se ao fascínio das especiarias da Ásia e da África - que o
Brasil não tinha - com estas palavras: "ao cheiro desta canela/o reino
nos despovoa". Antonio Ferreira, poeta renascentista, retrata bem o
espírito da época em Portugal, a ambição do reino pelos metais
preciosos: "tudo obedece a este só Tirano/Esta é a idade que chamaram
de ouro/Tanto valho, Senhor, quanto entesouro". Ainda sobre o
caráter da nobreza e do povo português ao tempo da descoberta e
exploração, fala melhor o holandês Cleynaerts. Diz ele que "se há povo
algum dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele
exista (...)". Esse tal Cleynaerts foi ainda mais direto em suas
considerações: "em Portugal somos todos nobres, e tem-se como uma
grande desonra exercer uma profissão qualquer". Outro que também se
queixou do caráter dos compatriotas foi Diogo do Couto: "(é) muito
antiga esta miséria portuguesa de não saber dar lugar às virtudes nem
engrandecer honrosos pensamentos". Quanto à moral da nobreza - a
começar pela família real, que tinha origem bastarda - era a pior
possível. Frei Luis de Sousa disse que nela "o vício era posto a cavalo".
Revela Fernão Lopes que D. Pedro I (de Portugal) confessara um dia a
Nuno Freire que alguém lhe dissera ter ele um filho de nome João que
subiria muito alto, mas ele próprio não sabia qual fosse, pois tinha
vários filhos com o mesmo nome, inclusive um deles com a bela Inês de
Castro...
Apesar da ausência de ouro e prata, São Vicente adquire
contornos definitivos: a primeira unidade produtora de açúcar - o
Engenho do Senhor Governador - foi instalada em 1533. Passado um
ano chegam as primeiras cabeças de gado provenientes de Cabo Verde.
Logo ficou evidente a insuficiência dos núcleos isolados de
povoamento para assegurar o domínio português. A maior extensão do
litoral brasileiro continuava à mercê de incursões estrangeiras. É hora
de D. João III mais uma vez justificar o cognome de Colonizador:
seguindo conselhos de um descendente de colonos das ilhas do
[Linha 450 de 3846 - Parte 1 de 3]
Atlântico, Cristóvão Jacques, do reitor da Universidade de Bordéus e de
outros destaques da corte, resolve implementar a colonização. A tantos
bons conselhos se acrescentou a cobiça, objetivamente: manter o
monopólio oriental era muito dispendioso e a notícia da descoberta de
ouro e prata na América Espanhola valorizou ainda mais o novo mundo.
A ocupação e colonização do Brasil era um imenso desafio para
um reino de dois milhões de habitantes. A saída, como no caso do
extrativismo vegetal do Pau-Brasil, foi transferir a particulares os
encargos desse empreendimento. Baseando-se nas informações
emitidas por Martim Afonso, foi estabelecida a divisão do litoral
brasileiro em 14 faixas lineares - as Capitanias Hereditárias. Era a
repetição da experiência realizada nas ilhas de Açores, Cabo Verde,
Madeira, Porto Santo, São Tomé e Príncipe e no Território de Angola,
no continente africano. As capitanias foram entregues a 12 membros da
pequena nobreza - os donatários - dependentes do aparelho burocrático
do Estado. Alguns nem vieram ao Brasil. O pequeno interesse e a
ausência de significação econômica destes aventureiros evidencia que a
iniciativa privada não acreditava nas possibilidades da terra.
D. João III procurou incentivar os donatários concedendo-lhes
amplos poderes, utilizando a ideologia feudal de prestígio e poder
associados a extensos domínios territoriais: cada capitão era um rei.
O embasamento jurídico da ocupação da terra era garantido pela
Carta de Doação e pelo Foral. A Carta cedia ao donatário uma
propriedade de 10 léguas de terra ao longo da costa, em quatro ou
cinco lotes, não sujeita a tributos, com exceção do dízimo. Sobre o
território total da capitania, apenas a posse. Havia ainda os privilégios
da montagem de engenhos, venda de 24 índios por ano em Portugal,
redízima das rendas pertencentes à coroa, vintena do Pau-Brasil e
dízima do quinto real sobre metais. O Foral era uma espécie de código
tributário, destinando os rendimentos dos produtos da terra ao
donatário e os da produção do subsolo, mata e mar, cabendo à Coroa.
Era ainda pelo Foral que o donatário concedia sesmarias, que não podia
retomar - direito privativo do rei. Estabelecia ainda a liberdade de
circulação de mantimentos e munições na capitania, definindo a
responsabilidade de defesa da terra ao donatário e colonos.
Algumas das características desse processo de colonização são
medievais: extensas faixas territoriais entregues a senhores que
dispõem de poder absoluto sobre coisas e pessoas. Mas do feudalismo
só tivemos alguns traços na estrutura política e jurídica do sistema das
Hereditárias. A base econômica era a produção escravista e
exportadora, concentrada no mercado externo. O trabalho nunca foi
essencialmente servil nem a produção dominial, fechada. E a estrutura
de clãs não era propriamente feudal, parental: limitava-se à existência
dos laços familiares nobiliárquicos e do enorme poder militar e político
dos senhores de terras e escravos.
Genericamente, por intermédio do sistema de capitanias foram
consolidados os objetivos de colonização e posse da terra. É comum a
avaliação do pouco progresso da colônia neste período
responsabilizando os índios e seus ataques. Ora, a resistência à
dominação portuguesa era a simples defesa da terra pelos seus
[Linha 500 de 3846 - Parte 1 de 3]
legítimos proprietários. Isso além de disporem os invasores de
superioridade militar. O problema maior foi a falta de investimentos e a
total ausência de interesse em estabelecer relações fraternas com os
índios.
Para coordenar as iniciativas de povoamento - então muito
isoladas - D. João III criou o Governo Geral. Era sua função combater
tribos rebeldes (de preferência aliando-se a outras), promover entradas
à procura de riquezas, fomentar a construção naval (que garantiria a
defesa contra ataques externos), incentivar a catequese e organizar os
colonos na defesa do território, entre outros. Uma das promoções do
primeiro governador-geral, Tomé de Sousa, foi a vinda de jovens órfãs
que iriam constituir famílias católicas com os colonos.
O verdadeiro poder político da época estava nas unidades
produtoras em mãos da classe proprietária. E a máquina governamental
atendia a seus interesses.
A classe dominante colonial estava voltada para suas fazendas.
Seu poder (e prestígio) estava evidente nas câmaras, milícias, no clero.
A civilização do mundo da cruz se impunha pelo arcabuz. Autênticos
caudilhos, os senhores de escravos e terras, os homens bons é que
conferiam vida às câmaras do período colonial, o que perduraria
durante a época imperial. O povo não participava da administração nem
dispunha de representação.
Foi nascendo um Brasil bem diferente daquele que sequer tinha
esse nome. Nascia também uma nova sociedade, de poucos senhores e
muitos trabalhadores, a maioria escravos. Surgiram pequenas vilas,
grandes plantações, casas grandes das fazendas e fortificações. Os
primeiros donos da terra se refugiaram no interior enquanto o litoral
era transformado em canaviais.
Isso tudo não acontecia por acaso. A explicação do expansionismo
europeu está no mercantilismo e suas práticas: com o desenvolvimento
das muitas formas de acumulação de capital, foi acelerada a transição
do feudalismo para o capitalismo. A burguesia mercantil portuguesa
(com apoio do Estado absolutista) se estabeleceu na Ásia e África,
montando feitorias para a guarda do marfim, metais preciosos,
especiarias, tecidos de luxo e homens escravizados. O negócio era
excelente - para os mercadores, claro. A venda de tudo isso na Europa
ou na colônia do novo mundo dava lucros fabulosos... E não precisava
produzir nada: apenas fazer circular as mercadorias.
A simples existência de feitorias não se mostrou satisfatória na
América. Para que as novas terras se tornassem um negócio ainda mais
lucrativo, aumentando a acumulação capitalista, era imperioso
produzir. E para isto, intensificar a colonização. A agricultura comercial
foi uma das soluções, baseada na produção de gêneros tropicais,
conforme as necessidades do mercado externo; o comércio
determinando o empreendimento produtivo. A economia central
(metropolitana) era complementada pela colônia.
Houve variações nas formas dos esforços colonizadores nas
Américas. Nas colônias tropicais de zona temperada se desenvolveram
as denominadas colônias de povoamento, recebendo o excedente
demográfico da Europa, como algumas colônias inglesas da América do
[Linha 550 de 3846 - Parte 1 de 3]
Norte; nos trópicos surgiram as colônias chamadas de exploração, com
uma composição social completamente original, como as colônias
portuguesas e espanholas na América do Sul. O traço mais original é
que a sociedade se baseava no latifúndio, na extensa propriedade
agro-exportadora, denominadas plantation ou hacienda. Nesta
sociedade há um terrível contraste entre a riqueza dos colonos
branco-europeus, mozambos (filhos de portugueses) ou criollos (filhos
de espanhóis) se contrapondo à extrema miséria das populações a eles
submetidas, nativas ou africanas. Enfim, a peculiaridade de uma
sociedade constituída essencialmente para benefício da metrópole.
Para exercitar a dominação política e econômica, o monopólio é
fundamental aos interesses da classe proprietária. Segundo o Bispo
Azeredo Coutinho, um dos teóricos do colonialismo português do século
XVIII, temos o seguinte enunciado para estabelecer as atividades na
colônia: "(...) É necessário que as colônias, de sua parte, sofram: 1) que
só possam comerciar diretamente com a metrópole, excluída toda e
qualquer outra nação, ainda que lhes faça um comércio mais vantajoso;
2) que não possam ter fábricas, principalmente de algodão, linho e
seda, e que sejam obrigados a vestir-se das manufaturas e das
indústrias da metrópole. Desta sorte, os justos interesses e as relativas
dependências mutuamente serão ligadas."
A exclusividade da metrópole e o total domínio das atividades
pelos reinóis, comerciantes portugueses, foi garantida com a criação
das Companhias Privilegiadas de Comércio. Limitações foram impostas
à imprensa e à circulação de livros. Como em todas as épocas, este tipo
de censura visava impedir que idéias novas sugerissem à população que
essa exploração não era justa e nem resultava da vontade de Deus...
São acrescidos impostos, taxas e proibições, definindo que a função
econômica da colônia é suprir o que a metrópole não tem condições de
produzir - e não concorrer com ela. O lucro deve ser máximo: outro
indicativo de que o modelo escravista é a solução. Contra o trabalho
livre, o interesse dos proprietários em impedir que os assalariados, com
o tempo, se apropriassem de glebas e desenvolvessem atividades de
subsistência - já que havia abundância de terras. Ficava assim
impedida (por meio da escravidão) a incômoda presença de
trabalhadores livres.
Para as elites dominantes a escravidão no Brasil era duplamente
lucrativa: incrementava a circulação da mercadoria humana -
possibilitando à burguesia traficante a acumulação de lucros -, e
garantia elevados índices de produtividade com mão-de-obra escrava de
custo mínimo. Enquanto mercadoria o africano trazia altíssimos lucros
para os comerciantes da metrópole - o que não era o caso da escravidão
dos indígenas, apenas um "negócio local". Quanto aos lucros na
produção, a exploração da força do escravo garantia os recursos para a
renovação dos meios de trabalho, assalariamento dos poucos
trabalhadores especializados e a continuidade do tráfico. Aliás, a
manutenção do tráfico era fundamental, visto que o crescimento
vegetativo da população negra era insuficiente para atender à
demanda. Essas razões terminaram dominando os religiosos que vieram
para o Brasil e não apenas deram cobertura ideológica à escravidão,
[Linha 600 de 3846 - Parte 1 de 3]
como a praticaram em larga e proveitosa escala. O padre Vieira, a quem
se deve tanta indignação contra a exploração dos índios, colocado certa
vez diante do dilema de ficar ao lado dos escravistas do Maranhão ou do
lado dos silvícolas, não fugiu à conclusão de que era "fácil conciliar a
consciência com o interesse". Foi assim que tivemos desde o século XVI
o Poder Temporal e o Poder Espiritual conciliando a consciência com o
interesse, a cruz com o arcabuz, a castidade com o estupro, a
fraternidade com a escravidão, o direito com a força.
NAVEGAR É PRECISO...
A expansão marítima teve como significado a escravização dos
africanos. Desde meados do século XV os negros foram submetidos ao
trabalho nas plantações do sul de Portugal (Algarve), nas minas da
Espanha e serviços domésticos em geral na França e Inglaterra.
No decorrer do tempo e como resultado da valorização do tráfico
negreiro - uma atividade comercial altamente lucrativa - as formas de
exploração sobre o continente negro foram se sofisticando. Chefes de
grupos tribais eram corrompidos por mercadores europeus em troca de
tecidos, jóias, metais preciosos (como ouro e cobre), armas, tabaco,
algodão, cachaça e mesmo búzios - considerados objetos sagrados, e até
funcionando como moeda.
As incursões com o objetivo de apresar nativos foram se tornando
raras, já que os sobas, chefes locais, se encarregavam da apreensão da
mercadoria, inclusive organizando ataques a outras tribos. O comércio
começava a ser feito harmonicamente...
Ao serem embarcados nos portos da África os negros eram
batizados pelos padres encarregados de convertê-los ao cristianismo e
marcados com ferro quente. A marca servia também para distinguir os
batizados daqueles que ainda não haviam recebido os sacramentos...
Viajando nos porões dos navios negreiros, chamados tumbeiros,
amontoados como coisas, na mais completa promiscuidade, inúmeros
africanos morriam em razão dos maus tratos e doenças, dos ferimentos
diversos e ainda sucumbindo ante a condição desumana a que eram
submetidos. A dor imensa causada pela perda da liberdade, o
afastamento de tudo que lhes era caro, provocava o banzo - sentimento
de revolta, dor, pesar e nostalgia. Depois, vinha a morte. Rugendas fez
o registro: "Tenha-se a imagem cruel do negro em face da separação de
tudo quanto lhe era caro e sejam recordados os efeitos do mais
profundo abatimento ou mais terrível desespero de espírito, unido às
privações do corpo e às provações da viagem. Então não se estranhará a
baixa mortal de tantos, no alto-mar."
Na chegada às terras brasileiras os negros eram leiloados. E as
melhores peças de imediato adquiridas por capatazes ou pelos próprios
senhores, que não raro se dedicavam à escolha cuidadosa dos cativos.
A vida rural predominava com características de exploração que
perduram até os dias atuais. Aliás, têm um forte sabor de atualidade as
observações feitas por frei Vicente do Salvador a respeito dos hábitos
extrativistas cultivados pelos colonizadores europeus: "Não só os que de
lá vieram, mas também os que nasceram cá, não usam da terra como
[Linha 650 de 3846 - Parte 1 de 3]
senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem
destruída."
Os africanos trabalhavam nas lavouras e tarefas domésticas nas
casas dos senhores. Viviam nas senzalas, quase sempre formadas de
muitas construções apertadas umas às outras. Na senzala e na casa
grande, onde moravam os donos dos engenhos, o proprietário era
senhor absoluto. Os negros eram submetidos aos trabalhos forçados e
cabia aos feitores estabelecer a disciplina e garantir a produtividade dos
escravos.
Nos séculos XVI e XVII o Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram
os mais importantes centros receptores de negros sudaneses - como os
iorubás, geges, haussas e minas; de bantos - como os angolas e os
cabindas; e de malês, de idioma árabe e islamizados.
Um alto preço foi pago em razão da cruel valorização mercantilista
do homem negro, absurda fonte da riqueza dos que traficavam e dos
que o utilizavam, como afirma Herbert Aptheker: "Em quatro séculos,
do XV ao XIX, a África perdeu, entre escravizados e mortos, 65 a 75
milhões de pessoas e estas constituem uma parte selecionada da
população, uma vez que ninguém, intencionalmente, escraviza os
velhos, os aleijados, os doentes".
Afonso Taunay estima que teriam entrado no Brasil, nos séculos
XVI, XVII e XVIII, respectivamente 100.000, 600.000 e 1.300.000
negros escravizados. Arrancados à força da sua terra, uma vida de
sacrifícios os aguardava: trabalho árduo de sol a sol nas grandes
fazendas-engenhos de açúcar, por exemplo. Tão grande era o esforço
que um africano sobrevivia em média de sete a dez anos. Chegar ao
Brasil já era uma demonstração de incrível resistência: cerca de 40%
dos negros malungos, denominação para os aprisionados e
transportados, pereciam durante a viajem.
Charles Ribeyrolles discorreu longamente acerca dos trabalhos
desenvolvidos pelos negros no Brasil: "Quem cavou a terra, quem abriu
as galerias, desviou as correntes, lavou as areias, achou o ouro e os
diamantes? Os negros. As tribos dos índios foram escorraçadas pelos
colonos proprietários, de floresta em floresta ou de morro em morro.
Mas quem arroteou os terrenos e cultivou o solo, ou quem semeou,
plantou e colheu? Os negros. Quem aprontou os trabalhos do campo,
tão rudes e penosos, em plena zona tórrida, e quem se encontrava a
mourejar nas usinas, moinhos, estaleiros e estradas? Os negros."
Já foi dito que os escravos faziam de tudo. Eram as mãos e pés do
senhor de engenho. As riquezas produzidas no Brasil dependiam
desses trabalhadores. André João Antonil, jesuíta que analisou nossa
vida econômica e social em seu Cultura e Opulência do Brasil por Suas
Drogas e Minas, escrito no início do século XVIII, noticia a necessidade
da importação de trabalhadores escravizados por serem indispensáveis.
Afirmou Antonil: "(...) É necessário comprar cada ano algumas peças e
reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas."
As tarefas mais especializadas (de caldeireiro, carpinteiro,
tacheiro e marinheiro) eram realizadas pelos negros que se adaptavam
mais rapidamente à nova situação. Serviços brutais eram realizados por
homens e mulheres que também pegavam na foice e na enxada, nos
[Linha 700 de 3846 - Parte 1 de 3]
canaviais, nas oficinas ou na casa grande; e um número pequeno de
trabalhadores livres, assalariados, desempenhando funções de
vigilância ou que exigiam conhecimento técnico - como no caso do
preparo do açúcar - aumentavam a enorme multidão de explorados.
Formadas de roças e pomares, as grandes fazendas alcançavam
praticamente a auto-suficiência. Era comum os escravos terem um dia
na semana para plantarem para si; o básico em sua alimentação era a
mandioca. Havia ainda nos engenhos outros homens livres e
expropriados, que não foram integrados à produção mercantil. Como
trabalhavam nas roças de subsistência eram chamados roceiros. Como
pagamento do seu trabalho os escravos recebiam castigos: "pau, pano e
pão". E reagiam. Em troca dos tormentos, assassinavam feitores,
suicidavam-se, evitavam a reprodução, eliminavam capitães-do-mato e
mesmo proprietários. A resistência se manifestava nos seus cultos,
onde a dominação era simbolicamente contestada. O candomblé foi - e
ainda é - um ritual de liberdade, protesto, reação à crueldade e
opressão do Deus dos brancos. Dançar, batucar, rezar e cantar eram
modos encontrados para alívio da asfixia da escravidão. A dominação
era contestada também ao nível do real - na fuga das fazendas e na
formação de quilombos, aldeias de negros foragidos, onde tentavam
reconstituir em matas brasileiras o modo de vida que levavam na África.
Em seu esforço para estabelecer a verdade quanto ao autêntico
trabalho de construção do Brasil, informa Ribeyrolles: "Nas chácaras,
nas fazendas, nas moradas urbanas, nas ruas e nas praças das grandes
cidades, sobre quem recaíam os trabalhos servis e domésticos? Nas
fábricas e nas oficinas, quem girava as molas, acendia os fornos,
esfregava, suava, carregava e se incumbia, numa só palavra, dos mais
baixos misteres? Os negros, os negros, quase unicamente os negros. O
trabalho africano, em todas as coisas e todas as tarefas, foi o
instrumento, a mão, a roda e a ferramenta, intervindo em tudo como
agente de produção, dos transportes e das mudanças, vivendo para
todos os serviços e todos os encargos."
Os castigos corporais eram uma constante. Punições
inimagináveis aplicadas sem compaixão. O trabalho diário constituía
jornada estafante e muitos senhores estabeleciam que os negros
deviam prover o próprio sustento, através do cultivo, fora das horas de
trabalho - no que seria o período de descanso - das lavouras para a
subsistência. Com isto, não havia repouso suficiente para a reposição
de forças. Tudo acontecia sob os olhos atentos dos prepostos dos
senhores, vigilantes a qualquer sinal de rebeldia.
A grande maioria dos negros se situava entre a oposição aberta à
escravidão e a submissão conformada.
Pouco a pouco, os africanos passavam a ter conhecidas as
características de seu comportamento frente à escravidão. Os
escravistas puderam formar conceitos quanto à natureza de cada tipo;
muitos jamais aceitaram a dominação.
Quando esgotavam as possibilidades de barganhas e concessões
partia-se para a ruptura ? o confronto direto.
As fugas eram rotineiras e havia aqueles que se prestavam ao
papel de tentar recapturá-los, de preferência com vida, para retornarem
[Linha 750 de 3846 - Parte 1 de 3]
ao cativeiro; se fosse preciso, mortos - para servirem como exemplo e
desencorajar novas tentativas. O aprisionamento dos fugitivos competia
aos capitães-do-mato, que contavam com auxiliares e a colaboração
oficial da Justiça colonial.
O ambiente das senzalas era o que restava aos negros para tentar
a preservação das suas dimensões humanas, até que surgisse a
oportunidade propícia à fuga. Sob o disfarce de cantigas e danças
sobreviviam suas crenças e ritos, como a mais inocente forma de
diversão.
Gravuras e desenhos feitos pelos primeiros estudiosos que
visitaram as terras americanas, registraram cenas da vida na sociedade
colonial, onde se encontra impressa a força das manifestações da
cultura africana.
Ao som dos atabaques permanecia vivo o culto aos orixás e outras
danças das quais se perdeu a memória, mas de onde nasceria o jogo da
Capoeira: os movimentos de corpo dos africanos - gestos ancestrais
preservados em suas danças - serviram com base para a elaboração de
uma luta coletiva; afinal, os meneios de corpo, o jeito solto e ágil,
servem perfeitamente tanto ao fascínio da dança quanto à magia da
luta.
Sabe-se que os negros eram insuperáveis na luta corpo a corpo,
também numa conseqüência direta do vigor físico comprovado no
estafante trabalho muscular que exigia alta carga de força. Habituados
aos rigores da vida na África, as tarefas que antes se constituíam em
atividade necessária na terra natal eram instituídas como trabalho
forçado no Brasil. A aparente submissão era o modo dos cativos de
costumes e culturas diferentes ganharem o tempo necessário para criar
- ou simplesmente aproveitar - a oportunidade de fuga, dificultada pelo
fato de sequer possuírem uma língua comum.
A expressão corporal nos ensina há milênios uma linguagem que
permite a comunicação sem palavras, estabelecendo a fraternidade nos
gestos comuns: a dança revela os sentimentos e evidencia idéias, na
plástica e harmonia dos movimentos. Pois disto se serviram os negros:
protestando e se insurgindo, individual ou coletivamente, expressando
a linguagem do corpo na revolta, na insubordinação às regras do jogo
do sistema colonial: formando quilombos, promovendo fugas, e
assassinando senhores; mas sua luta passou especialmente pela
afirmação de sua cultura.
As fugas dos escravos se tornaram cada vez mais organizadas. É
fácil imaginar o negro desarmado, porém exímio no manejo do corpo, a
desfechar o golpe certeiro, no momento oportuno - para em seguida
ganhar a liberdade. Livre, o terreno de pouco mato era adequado à
manutenção da liberdade, permitindo o enfrentamento dos
perseguidores. A vegetação rasteira, denominada em língua tupy
caá-puera iria dar nome aos guerreiros e à sua luta: Capoeira.
A Capoeira é um bom exemplo de como os negros agiam com
malícia dissimulando sua verdadeira intenção ao enfrentar os senhores
e seus agentes. Para disfarçá-la, a ginga ? que fazia dela ao mesmo
tempo uma luta e uma dança!
Cada negro recapturado trazia em si a certeza da liberdade. Tudo
[Linha 800 de 3846 - Parte 1 de 3]
apenas uma questão de tentar sempre. Na próxima tentativa... E as
fugas se sucediam.
Nas matas, os negros que conquistavam a liberdade formavam
quilombos, onde viviam segundo regras próprias. Estas comunidades
foram numerosas desde meados do século XVI, havendo-as em todas as
capitanias e principalmente na região de Pernambuco e Alagoas. Aí
houve uma verdadeira nação, conhecida como Palmares, que enfrentou
bravamente os escravocratas.
A destruição de Palmares aconteceu depois de cerca de sessenta
anos de luta, por forças comandadas pelo paulista Domingos Jorge
Velho e o pernambucano Bernardo Vieira de Melo. Mas este fato não
significou derrota total. Cresceu daí a consciência da própria força no
povo negro e a certeza de que poderia encontrar a liberdade, nas terras
para onde veio trazido como escravo.
Palmares ficou como ponto de referência de uma gente espalhada
por todas as partes deste país, simbolizando uma luta secular de
libertação de um povo que se identifica não somente pela pigmentação
da pele, mas pela mesma herança cultural. A luta do povo de Palmares
está viva como ponto de partida para chegarmos a uma sociedade livre.
Desde a época da campanha dos escravistas contra o Quilombo
de Palmares ficou o registro da luta heróica em defesa da autonomia
cultural.
A existência da Capoeira resulta da longa luta por
reconhecimento cultural travada ao longo dos quatro séculos de
cativeiro. E o termo capoeira, nome dos guerreiros das capoeiras e de
sua estranha forma de luta, que tornava homens desarmados capazes
de enfrentar e vencer vários adversários, corporifica ainda hoje nos
jovens praticantes do século XXI. Assim é que a luta dos africanos e
seus descendentes afro-brasileiros subsiste no jogo da Capoeira.
A respeito das origens remotas da Capoeira é interessante
transcrever Albano de Neves e Souza, que escreveu de Luanda, Angola,
a Luis da Câmara Cascudo, afirmando: "Entre os Mucope do sul de
Angola, há uma dança da zebra N'Golo, que ocorre durante a Efundula,
festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de ser
muficuemas, meninas, e passam à condição de mulheres, aptas ao
casamento e à procriação. O rapaz vencedor do N'Golo tem o direito de
escolher esposa entre as novas iniciadas e sem pagar o dote
esponsalício. O N'Golo é a Capoeira."
Em seguida, Albano de Neves e Souza passa a expor sua teoria a
respeito da evolução do N'Golo no Brasil: "Os escravos das tribos do sul
que foram através do entreposto de Benguela levaram a tradição de luta
de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal foi-se
transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir
e a impor-se num meio hostil". Neves de Souza acrescenta algumas
informações e conclui pela origem africana da Capoeira: "Os piores
bandidos de Benguela em geral são muxilengues, que na cidade usam
os passos do N'Golo como arma. (...) Outra das razões que me levam a
atribuir a origem da Capoeira ao N'Golo é que no Brasil é costume os
malandros tocarem um instrumento aí chamado de Berimbau e que
nós chamamos hungu ou m'bolumbumba, conforme os lugares, e que é
[Linha 850 de 3846 - Parte 1 de 3]
tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até
a Swazilândia, na costa oriental da África."
Estes relatos ilustram hipóteses quanto às origens da Capoeira.
Note-se que essas danças são conhecidas no Brasil apenas através da
literatura sobre o assunto. A história da Capoeira aguarda pesquisa
minuciosa em terras africanas com o objetivo de constatar nessas
danças os possíveis elementos formadores da Capoeira. Danças com
características de luta já foram identificadas em Cuba, Martinica, na
Venezuela e em outras localidades das Américas, mas discute-se se
teriam origens comuns à Capoeira. Concretamente, temos a luta dos
negros, elaborada a partir de gestos e movimentos próprios dos
africanos, cuja fonte primária é a terra de onde vieram os guerreiros : a
África. De lá veio o elemento matriz no processo que culminou no jogo
da Capoeira - o negro! - e os movimentos corporais da capoeira atual
são fragmentos atualizados da memória negra afro-brasileira. Recriando
a cultura africana nessa terra, os negros não ficaram passivos diante de
sua nova condição. Desterrados e escravizados, combateram o poder
escravista com uma rica produção cultural, conquistando espaços e
recriando sua autonomia e identidade étnica em solo brasileiro. E
acabou brasileira esse jogo-luta, como testemunhou Charles
Ribeyrolles, um francês que aproveitou o tempo vivido em nossa terra -
exilado por Napoleão III - para retratar os costumes da nação que se
formava: "No sábado à noite, finda a última tarefa da semana, e nos dias
santificados, que trazem folga e descanso, concedem-se aos escravos
uma ou duas horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se,
agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira, espécie de
dança pírrica, de evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor
do congo."
A ORIGEM DO TERMO CAPOEIRA
É de aceitação geral a hipótese do jogo de agilidade corporal ter
sido o instrumento utilizado pelos escravos fugitivos na defesa contra
seus perseguidores, representados pela figura do capitão-do-mato. E
era no mato que se travava a luta decisiva. Pois foi desse tipo de mato -
a capoeira - onde os negros buscavam refúgio e ofereciam resistência
aos perseguidores, que surgiu também a polêmica que por longo tempo
consumiu em debates intermináveis inúmeros intelectuais.
Uma das teorias quanto à origem da expressão capoeira
estabelece a língua tupy como aquela de onde procederia a
vernaculização: caá-puêra (caá = mato; puêra = que já foi) resultaria nos
brasileirismos capuíra, capoêra e capoeira. Outros estudiosos afirmam
que a acepção capoeira designa um tipo especial de cesto, usado no
transporte de galinhas, que eram conduzidas por escravos aos
mercados. A esses escravos teria se estendido o emprego da
denominação primeiramente aplicada às gaiolas. Segundo os
defensores dessa hipótese, enquanto aguardavam a chegada dos
comerciantes, os escravos se divertiam na prática do brinquedo que
também seria abrangido pelo nome capoeira. Fora da discussão da
origem do termo - assunto para filólogos, como Plínio Ayrosa e Antenor
[Linha 900 de 3846 - Parte 1 de 3]
Nascentes - temos concretamente o 'jogo da capoeira' com definição
única e universal. Resta ainda a palavra capoeiragem, empregada
para nomear a prática desse jogo e utilizada no Código Penal de 1890
pelos juristas da época, que puniam a prática do jogo, classificando-o
como atividade criminosa.
ZUMBI: O MESTRE DA RESISTÊNCIA
"Zumbi, comandante-guerreiro/Ogum-iê, ferreiro mor,
capitão/Da capitania da minha cabeça/Mandai alforria pro
meu coração"
Gilberto Gil & Walid Salomão,
Zumbi, a felicidade guerreira
Na língua dos negros, 'quilombo' significava povoação, capital,
união; no Brasil, teve por significado local de refúgio. Os quilombos
eram divididos em aldeias de nome mocambo. Seus integrantes eram
chamados quilombolas, calhambolas, mocambeiros.
Zumbi nasceu no quilombo de Palmares por volta de 1655.
Décadas antes do seu nascimento este quilombo havia sido fundado por
um grupo de escravos fugidos de um engenho no sul de Pernambuco.
Localizado bem no alto de uma serra, onde estão hoje situadas partes
dos Estados de Alagoas e Pernambuco, de lá era possível a visão
privilegiada das imediações.
Herói do povo afro-brasileiro, coube a Zumbi liderar a gente do
quilombo num momento decisivo da luta contra os escravistas,
empenhados em sufocar a semente da liberdade que teimava por
crescer no solo brasileiro.
A história daquele que seria o Zumbi começa quando um grupo
de expedicionários liderados por um comandante chamado Brás da
Rocha ataca Palmares, no ano de 1655, levando um recém-nascido,
entre os adultos capturados. A criança foi entregue ao chefe da coluna
atacante, que por sua vez resolveu fazer um presente ao padre Melo,
cura de Porto Calvo. O religioso decidiu chamá-lo Francisco. O garoto
aprendeu a língua latina, o português e dando mostras da inteligência.
A grande batalha do chefe guerreiro Zumbi, zelando dia e noite
pela segurança do seu povo e lutando para que não fosse extinto o ideal
de se formarem comunidades onde conviviam negros, índios e brancos,
começou ao completar quinze anos, em 1670. Nesse ano Francisco
fugiu do padre Melo e voltou para Palmares. Livre desde que nasceu,
deixou para trás uma vida muito diferente daquela que iria levar.
Quando Francisco voltou a Palmares, o quilombo havia se
transformado numa fortaleza. Segundo estudos recentes, dez mil
pessoas, aproximadamente, viviam no local Eram negros fugidos,
mulheres capturadas, além de índios e brancos que se escondiam da
justiça colonial portuguesa. Plantava-se de tudo para o sustento da
população quilombola: feijão, milho, mandioca, cana-de-açúcar, batata.
E muitos desses artigos eram comercializados clandestinamente com as
cidades vizinhas, pobres em gêneros alimentícios porque se dedicavam
[Linha 950 de 3846 - Parte 1 de 3]
a uma única cultura: o plantio da cana-de-açúcar, base da economia de
exportação predominante nessa época.
O quilombo de Palmares era uma pequena África onde os negros
procuravam resgatar suas raízes, inclusive abandonando os nomes
recebidos dos escravistas e trocando por outros de origem africana. À
frente desse povoado estava Ganga Zumba e nas pequenas aldeias
lideravam chefes locais.
Ao retornar a Palmares, Francisco, com seus quinze anos, passou
a ser Zumbi. Vale lembrar que o Deus principal de Camarões e do
Congo é chamado Nzambi; em Angola denominavam Zambi o que
morreu; e no Caribe, Zumbis são mortos-vivos, criaturas que mesmo no
além jamais descansam.
Em Palmares foi livremente constituída sua família - pai, irmãos,
tias e tios. O principal dentre seus parentes: Ganga Zumba. Pouco
depois de retornar ao quilombo, Zumbi já era chefe de um desses
mocambos e defendia a região com imensa habilidade.
Palmares sofreu diversas investidas durante quase cem anos.
Quando os holandeses invadiram o Brasil, por volta de 1624, esses
ataques diminuíram muito: os colonos lusitanos estavam mais
preocupados em defender o território das ameaças externas. Foi nessa
época que o Quilombo mais se desenvolveu. Entretanto, após a
expulsão holandesa em 1654, uma verdadeira campanha contra
Palmares se fez surgir. Dezessete expedições organizadas por vilas
próximas, bem como pelo próprio governo de Pernambuco,
embrenharam-se pela mata para derrubar os palmarinos.
Em 1677, um tal Fernão Carrilho, exímio caçador de negros
entrou em ação. Marchando contra Palmares com seus combatentes,
Carrilho conseguiu derrubar alguns chefes de mocambos e matar vários
quilombolas. Neste ataque, Ganga Zumba foi ferido, mas ainda assim
conseguiu fugir. Em decorrência disso, foi levado a aceitar um tratado
de paz proposto pelo governador de Pernambuco em que se prometia
liberdade apenas aos nascidos no Quilombo.
Aos 23 anos, Zumbi rejeitou a paz dos escravistas, paz que
garantia sua liberdade - pois nascera em Palmares. Desmoralizado por
aceitar a proposta, Ganga Zumba viu-se diante de uma operação dos
quilombolas organizados para depô-lo, sob a liderança de Zumbi, que
nesse contexto tornou-se o líder maior do quilombo. Ganga Zumba
desistiu de tudo, partiu para Cacaú, ao sul de Pernambuco, onde viria a
morrer envenenado pouco tempo depois. Acredita-se que tenha sido
morto por enviados de Zumbi.
Zumbi assumiu o posto de chefe maior e reorganizou toda a
estrutura de Palmares. Preparou seus homens para os combates que
estavam por vir. Durante esse período, o governador de Pernambuco e a
própria Coroa procuraram negociar, garantindo vida ao líder e a seus
familiares, caso aceitasse a rendição. Zumbi preferiu lutar a entregar
seu povo: sua dignidade não tinha preço.
Os senhores de engenho não aceitavam as perdas de escravos,
mercadorias muito valiosas; o governo colonial não suportava mais
tanta derrota. Foi quando surgiu a idéia de contratar os bandeirantes
paulistas, conhecidos por serem grandes desbravadores e verdadeiros
[Linha 1000 de 3846 - Parte 1 de 3]
assassinos.
Na guerra contra Zumbi e o povo de Palmares o sistema escravista
pretendia varrer da memória coletiva até a lembrança da existência de
possibilidades reais das populações oprimidas construírem uma
alternativa à estrutura social baseada na exploração do trabalho
forçado. O combatente que representava os civilizados escravagistas:
Domingos Jorge Velho.
Sobre este paulista, encarregado de destruir Palmares, escreveu
em 1697 um seu contemporâneo, o Bispo de Pernambuco: "Este
homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado... tendo sido
sua vida, desde que teve razão - se é que teve, de sorte a perdeu tanto
que entendo não a achará com facilidade - até o presente, andar pelos
matos à caça dos índios, e de índias, estas para o exercício das suas
torpezas e aqueles para o granjeio de seus interesses."
Após uma primeira derrota, Domingos Jorge Velho iria travar a
batalha definitiva no ano de 1694. Antes de completar 25 anos de vida,
Zumbi se recusou a desistir de lutar pela liberdade sem adjetivos,
concessões ou condições: combateria até o fim.
Apesar de toda a violência e da selvageria dos prepostos do
sistema colonial, não foi possível derrotar o símbolo do heroísmo do
povo brasileiro. Após muitos anos de luta os escravistas não
conseguiram submeter a alma dos resistentes. Cada guerreiro morto
em defesa do direito à liberdade é um exemplo de que só existimos na
plenitude quando somos livres. E morrer nessa luta significa dar a vida
pela própria vida.
Símbolo da resistência à dominação, Zumbi dos Palmares é
referência legada tanto às gerações africanas trazidas ao Brasil quanto
aos seus descendentes afro-brasileiros. Mestre na luta pela liberdade,
seu vulto se confunde com o caminho para a consciência do povo
brasileiro.
"Minha espada espalha o sol da guerra
Rompe mato, varre céus e terra
a felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Do maracatu, do maculelê e do moleque bamba
Minha espada espalha o sol da guerra
Meu quilombo incandescendo a serra
Taliqual o leque, o sapateado do mestre-escola de samba
Tombo da ladeira, rabo de arraia, fogo de liamba..."
Acompanhado de um grupo considerável de combatentes
fortemente armados, Domingos Jorge Velho se lançou em direção à
Cerca Real do Macaco, onde se encontravam Zumbi e todo o seu
exército. Grande foi sua surpresa ao encontrar o esquema de defesa
montado pelos quilombolas. Muros gigantescos de pedra e madeira
formavam três fileiras, seguidas logo após por buracos camuflados com
estacas pontiagudas em seu interior. Em seguida, uma outra muralha
mais comprida, contava com guaritas que abrigavam atiradores.
Amedrontado, Jorge Velho mandou buscar canhões de Recife e
construiu, paralelamente à muralha de Zumbi, uma outra muralha. O
ataque foi fatal. O grande chefe dos quilombolas foi apanhado de
surpresa pelo descuido de um sentinela. Muitos morreram combatendo
[Linha 1050 de 3846 - Parte 1 de 3]
ou se suicidaram; outros tentaram fugir pelo lado esquerdo da Cerca
Real, onde havia enorme precipício. Zumbi foi um dos que conseguiu
sobreviver à matança, mas Palmares foi inteiramente destruída.
Zumbi comandou seus guerreiros e venceu inúmeras batalhas
empregando com talento as técnicas da guerra de guerrilhas. No
combate em posição fixa encontrou o fracasso. Perdeu o domínio da
Serra da Barriga, onde se estabeleceram - entre disputas e conflitos
pessoais - os vencedores: bandeirantes, militares e "homens de bem" de
Pernambuco e Alagoas. Só restava uma alternativa: retornar à
estratégia da guerra do mato. Eram cerca de mil homens. Os guerreiros
foram divididos em dois bandos e foi confiada a chefia de um dos
grupos a um companheiro chamado Antônio Soares, que sofreu uma
emboscada. Soares foi preso e enviado sob forte escolta para Recife.
Nesse trajeto a escolta se encontrou com uma bandeira, chefiada
por André Furtado. Soares foi seqüestrado e por longo tempo sofreu
violentas torturas aplicadas por seus captores: queriam que revelasse
onde era o esconderijo de Zumbi. Como não obtinha êxito, Furtado
mudou de tática: garantia sua vida e liberdade se cooperasse. Deu
certo. Soares era da confiança de Zumbi. Foram em sua procura, e
quando Zumbi se preparava para abraçar o companheiro, foi
surpreendido: Soares cravou-lhe uma faca na barriga.
Nos olhos de Zumbi deve ter surgido então um outro brilho: de
tristeza e desencanto. Dos seis guerreiros que o acompanhavam, a
fuzilaria que saía do mato ao redor derrubou cinco, de imediato. Ferido
e sozinho, lutou até o último momento: matou um dos atacantes e feriu
outros. Amanhecia o dia 20 de novembro de 1695.
Zumbi foi esfaqueado, baleado e mutilado, tendo seu pênis
decepado e enfiado em sua boca. Era um homem magro, pequeno e
coxo; muito diferente da imagem construída a seu respeito. Seu corpo
foi reconhecido pelo padre Antônio Melo, o mesmo que batizara o
pequenino Francisco. Segundo o padre, algumas vezes Zumbi desceu a
Porto Calvo para visitar seu antigo tutor e numa dessas visitas o
guerreiro já estava com a perna afetada por um ferimento sofrido em
combate.
A violência contra Zumbi não parou aí: sua cabeça foi cortada,
mergulhada em sal e mandada para Recife, com a finalidade de ser
vista pelo povo que o considerava imortal. Mas isso de nada disso foi
suficiente para impedir que renascesse num mito: sua coragem, sua
força se tornaram eternas para os que continuaram resistindo contra a
escravidão. Assim é que nos muitos quilombos que se formaram pelo
Brasil nos séculos seguintes e para os que hoje relembram a sua
história de luta, Zumbi permanece vivo na lição de resistência.
De forma exemplar, Zumbi encarna os horrores do escravismo.
Zumbi permanece vivo na lição de resistência e é - para sempre! - um
cadáver insepulto, um morto vivo. Sua lembrança sobreviverá aos
tempos que nos obrigam a sonhar, à historiografia oficial que insiste em
ignorar sua real importância. Permanecerá como símbolo das
atrocidades infindáveis do poder ilimitado, arbitrário, prepotente.
Ficará, acima de tudo, como exemplo a todos que resistem à opressão e
lutam por liberdade e justiça.
[Linha 1100 de 3846 - Parte 1 de 3]
"Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motim
Em cada intervalo de guerra sem fim
Eu canto, eu canto, eu canto assim
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira...
II
CAPOEIRA & CAPOEIRAS
"Meu chapéu de lado/tamanco arrastando
lenço no pescoço/ navalha no bolso,
eu passo gingando/ provoco desafio,
eu tenho orgulho de ser vadio.
Sei que eles falam desse meu proceder,
eu vejo quem trabalha andar no miserê.
Eu sou vadio porque tive inclinação.
Quando era criança, tirava samba-canção."
Wilson Batista, Lenço no Pescoço.
HISTÓRIAS DA CAPOEIRA
"Vou contar uma história/do tempo da escravidão/ vou
contar com muita dor/muita dor no coração"
Fornecendo elementos para a história do Brasil, jogo da Capoeira
se fez presente em todos os períodos, desde a colônia. Inúmeros
memorialistas e cronistas de costumes fixaram a imagem de capoeiras
célebres e suas peripécias, sendo possível flagrar a construção da
identidade brasileira através do acompanhamento da história da
capoeira.
Acredita-se que a existência da Capoeira remonte às senzalas,
às fugas dos negros e aos quilombos brasileiros da época colonial: os
escravos fugitivos, pare se defenderem, fazendo do próprio corpo uma
arma. As origens da Capoeira estão nesse ambiente, onde os negros
relembravam suas velhas danças e rituais da África. A maioria dos
golpes assemelha-se às defesas e ataques de animais: a marrada do
touro, o coice do cavalo, a fisgada do rabo de arraia. Ou então guardam
relação com instrumentos de trabalho cuja ação é semelhante aos
movimentos do corpo dos capoeiras: o martelo batendo, a foice roçando
o mato.
Não há indicações seguras de que a Capoeira, conforme a
conhecemos no Brasil ainda hoje, tenha se desenvolvido em qualquer
outra parte do mundo. Não existem pesquisas históricas a respeito da
capoeira nos séculos XVI a XVIII. Não é possível, portanto,
reconstruirmos o processo que levou ao deslocamento da capoeira do
campo à cidade. Esse processo deve ter ocorrido por volta do começo do
século XIX, considerando que datam desse período as primeiras
referências históricas (até agora conhecidas) referentes aos capoeiras
urbanos.
[Linha 1150 de 3846 - Parte 1 de 3]
No século XIX, os três principais centros históricos da capoeira
eram as cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Destacava-se a
Capoeira carioca em virtude da presença maciça e organizada das
maltas de capoeiras, as quais distribuíam-se por todas as freguesias da
Corte.
À época do Brasil colonial, a presença da Capoeira já se
encontrava de tal forma sedimentada na sociedade que os capoeiras
passaram a formar uma classe. Premidos pelas circunstâncias, faziam
usos variados da habilidade que a arte lhes conferia. Com o emprego de
diversos instrumentos de ataque e defesa, passaram a prestar serviços
aos membros das classes dominantes, que deles se serviam para a
execução de crimes que garantiam a continuidade no poder.
As descrições do século passado revelam o emprego da mandinga
como estratégia eficiente de luta dos capoeiras.
O pintor Rugendas (1835), retratou a Capoeira na gravura
intitulada Jogar capoeira ou dança da guerra. Nela dois negros gingam
ao som de um atabaque - tocado por um negro sentado - diante de uma
assistência composta por nove negros (dentre os quais três mulheres).
O cronista refere-se ao que vê como uma "dança da guerra" ou um
"folguedo guerreiro", onde há "campeões" e "adversários" e como uma
"briga" na qual as "facas" acabam com a "brincadeira".
Discorrendo sobre os "usos e costumes dos negros", após
mencionar uma "espécie de dança militar" Rugendas faz a seguinte
descrição: "(...) um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a
'capoeira': dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando
dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se
o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas,
lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes,
acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz
com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas
entrem em jogo ensangüentando-a".
O cronista Luiz Edmundo fez interessante registro do capoeira
dessa época, em 'O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis', retratando
o "Capoeira Carioca": "De volta, pelo caminho que vai à vala,
penetramos a rua dos Ourives, das de maior concorrência na cidade.
'À porta do estanco de tabaco está um homem diante de um frade
nédio e rubicundo. Mostra um vasto capote de mil dobras, onde a sua
figura escanifrada mergulha e desaparece deixando ver apenas, de fora,
além de dois canelos finos, de ave pernalta, uma vasta, uma hirsuta
cabeleira, onde naufraga em ondas tumultuosas alto feltro espanhol.
'Fala forte. Gargalha. Cheira a aguardente e discute. É o capoeira.
'Sem ter do negro a compleição atlética ou sequer o ar rijo e sadio
do reinol é, no entanto, um ser que toda a gente teme e o próprio
quadrilheiro da justiça, por cautela, o respeita.
'Encarna o espírito da aventura, da malandragem e da fraude; é
sereno e arrojado e na hora da refrega ou da contenda, antes de pensar
na chupa ou na navalha, sempre ao manto cosida, vale-se de sua
esplêndida destreza, com ela confundindo e vencendo os mais armados
e fortes contendores.
'Nessa hora o homem franzino e leve transfigura-se. Atira longe o
[Linha 1200 de 3846 - Parte 1 de 3]
seu feltro chamorro, seu manto de saragoça e aos saltos, como um
símio, como um gato, corre, recua, avança e rodopia, ágil, astuto, cauto
e decidido. Nesse manejo inopinado e célere, a criatura é um ser que
não se toca, ou não se pega, um fluido, o imponderável, pensamento,
relâmpago. Surge e desaparece.
'Mostra-se de novo e logo se tresmalha. Toda sua força reside
nessa destreza elástica que assombra e diante da qual o tardo europeu
vacila atônito, o africano se trasteja.
'Embora na hora da luta traga ele entre a dentuça podre o ferro
da hora extrema, é da cabeça, braço, mão e perna ou pé que se vale
para abater o êmulo minaz.
'Com a cabeça em meio aos pulos em que anda, atira a cabeçada
sobre o ventre daquele com quem luta e o derruba. Com a perna lança
a trave, o calço. A mão joga a tapona e com o pé a rasteira, o pião e
ainda o rabo de arraia.
'Tudo isso numa coreografia de gestos que confunde. Luta com
dois, com três, e até quatro ou cinco. E os vence a todos. Quando os
quadrilheiros chegam com suas armas e os seus gritos de justiça, sobre
o campo de luta nem traço mais se vê do capoeira feroz que se fez
nuvem, fumaça e desapareceu.
'Na hora da paz ama a música, a doçura sensual do brejeiro
lundu, dança a fôfa, a chocaina e a sarambeque pelos lugares onde haja
vinho, jogo, fumo e mulatas. Freqüenta os pátios das tabernas, os
antros da maruja para os lados do Arsenal. Usa e abusa da moral da
ralé, moral oblíqua, reclamando pelourinho, degredo e às vezes, forca.
'Tem sempre por amigo do peito um falsário, por companheiro de
enxerga um matador profissional e por comparsa, na hora da taberna,
um ladrão. No fundo, ele é mau porque vive onde há o comércio do vício
e do crime. Socialmente, é um cisto, como poderia ser uma flor. Não lhe
faltam, a par dos instintos maus, gestos amáveis e enternecedores. É
cavalheiresco para com as mulheres. Defende os fracos. Tem alma de
Dom Quixote. E com muita religião. Muitíssima. Pode faltar-lhe ao sair
de casa o aço vingador, a ferramenta de matar, até a própria coragem,
mas não esquece do escapulário sobre o peito e traz na boca, sempre, o
nome de Maria ou de Jesus.
'Por vezes, quando a sombra da madrugada ainda é um grande
capuz sobre a cidade, está ele de joelhos, compassivo e piedoso,
batendo no peito, beijando humildemente o chão, em prece, diante de
um nicho iluminado, numa esquina qualquer. Está rezando pela alma
do que sumiu do mundo, do que matou.
'É de crer que, como sentimento, o capoeira é realmente um tipo
encantador..."
Durante a primeira metade do século XIX, a Capoeira parece ter
se configurado como uma experiência essencialmente escrava.
Entretanto, a partir dos anos 1850, altera-se a composição étnica e
social de seus praticantes, com a incorporação de libertos e livres,
muitos dos quais brancos. Dentre esses últimos havia alguns membros
da elite e também inúmeros estrangeiros, predominantemente
portugueses. Tal ampliação introduz mudanças na prática da capoeira
como a disseminação do uso da navalha, característico dos fadistas
[Linha 1250 de 3846 - Parte 1 de 3]
lusitanos.
Durante o segundo reinado, algumas maltas de capoeira tiveram
intensa atuação política, inclusive atuando junto aos partidos da época.
A aproximação com a política monárquica lhes acarretará uma
implacável perseguição por parte dos republicanos sendo que estes, ao
assumirem o poder, incluirão a prática da capoeira como um crime
previsto pelo Código Penal de 1890.
Já em 1872 levantavam-se as primeiras vozes pedindo a
criminalização da capoeira. Reconhecendo os esforços da polícia para
reprimir a "audácia" dos capoeiras, "terror da população pacífica", o
chefe de polícia do Rio de Janeiro reclama, em seu relato anual, da
dificuldade de se reprimir a capoeira posto que esta "não é um crime de
acordo com o Código Criminal" (Holloway,1989:669).
Seis anos depois, novamente se fala sobre o assunto, porém
observa-se uma diferença qualitativa na razão da perseguição aos
capoeiras. Se, até aqui, os capoeiras são perseguidos, principalmente,
porque oferecem algum tipo de ameaça física aos "pacíficos cidadãos",
seja quando "cometem ferimentos" ou ``provocam desordens", agora o
argumento primordial é outro. Referindo-se à capoeira como uma
"doença moral" que prolifera na "grande e civilizada cidade", o chefe de
policia da Corte ressalta a necessidade de se formalizar a criminalização
da capoeira, sugerindo a deportação dos estrangeiros e o envio dos
brasileiros para colônias penais (op. cit. 1989:669).
Nesse período muda o motivo central da argumentação policial: o
discurso da repressão passa a coadunar-se com os pressupostos
evolucionistas vigentes àquela época. Esses conceitos, pautados numa
abordagem biológica do social, pressupunham a inferioridade racial do
negro. Assim, o temor do "contágio moral" da "barbárie negra" orientava
a ação das autoridades.
No entanto, a Capoeira, ao mesmo tempo em que sofre uma
intensificação da perseguição policial, começará também a ser descrita
por alguns literatos cariocas, não apenas pelo que "tem de mau e
bárbaro" mas também como uma "excellente gymnastica", a ser adotada
(Continue a leitura na parte 2 clicando no link abaixo)
A Arte da Capoeira - Parte 2 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-2-de-3-camille.html
A Arte da Capoeira - Parte 1 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-1-de-3-camille.html
A Arte da Capoeira - Parte 2 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-2-de-3-camille.html
A Arte da Capoeira - Parte 3 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-3-de-3-camille.html
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A Arte da Capoeira - Parte 2 de 3 - Camille Adorno
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A Arte da Capoeira - Parte 3 de 3 - Camille Adorno
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