Dom Casmurro - P2de4 - Machado de Assis
Dom Casmurro - Machado de Assis
Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitou, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quisesse.
--Você?
--Eu mesmo.
--Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.
--Se embaraçar, você desembaraça depois.
--Vamos ver.
CAPÍTULO XIXI / O PENTEADO
E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhando. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e
entrei a alisá-los
com o
pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não
esquecestes que ela
era um
nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.
--Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O
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trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os
dedos roçavam
na
nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os
cabelos iam
acabando, por
mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora,
porque não
conhecia
ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos
os séculos dos
séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se
isto vos parecer
enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes
na jovem
cabeça de
uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca,
cheguei a
escrever
Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas
as potências
cristãs e
pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um
triste pedaço
de fita
enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui,
achatando ali, até que
exclamei:
--Pronto!
--Estará bom?
--Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas
para mim.
Capitu
derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira
era baixo.
Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro.
Pedi-lhe que
levantasse
a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão
a moveu.
--Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os
lábios, eu desci os
meus,
e...
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de
vertigem, sem
fala, os
olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer
nada; ainda que
quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da
parede e me
atirasse a ela
com mil palavras cálidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce. Com dezessete,
Des Grieux (e
mais
era Des Grieux) não pensava ainda na diferença dos sexos.
CAPÍTULO XXXIV / SOU HOMEM!
Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a
mãe apontou
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à
porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso
espontâneo
e claro,
que ela explicou por estas palavras alegres:
--Mamãe, olhe como este senhor cabeleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto.
Veja que
tranças!
--Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolência . Está muito bem, ninguém dirá que é de
pessoa que não
sabe
pentear.
--O que, mamãe? Isto? redargüiu Capitu, desfazendo as tranças. Ora, mamãe!
E com um enfadamento gracioso e voluntário que às vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabelos
para renovar o
penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não era nada, maluquices da
filha. Olhava
com
ternura para mim e para ela. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido à
parede, achou
talvez
que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação...
Como eu quisesse falar também para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e
elas acudiram
de
pronto, mas de atropelo, e encheram-me a boca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitu fechava-me
os lábios.
Uma
exclamação, um simples artigo, por mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E
todas as
palavras
recolheram-se ao coração, murmurando: "Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo, por menos
que as
emoções o
dominem..."
Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava
pelo silêncio.
D.
Fortunata tirou-me daquela hesitação, dizendo que minha mãe me mandara chamar para a lição de latim;
o Padre
Cabral
estava à minha espera. Era uma saída; despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe
censurava as
maneira da
filha, mas a filha não dizia nada.
Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei à sala da lição; sentei-me na cama, recordando o
penteado e o
resto.
Tinha estremeções, tinha uns esquecimentos em que perdia a consciência de mim e das cousas que me
rodeavam,
para viver
não sei onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som
de fora, vago,
próximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir somente os beiços de Capitu Sentia-os estirados,
embaixo dos meus,
igualmente esticados para os dela, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem querer, sem pensar,
saiu-me da boca
esta
palavra de orgulho:
--Sou homem!
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Supus que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri à porta da alcova. Não havia
ninguém fora.
Voltei
para dentro, e, baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o eco aos meus ouvidos. O gosto que
isto me deu
foi
enorme. Colombo não o teve maior, descobrindo a América, e perdoai a banalidade em favo; do
cabimento- com
efeito, há
em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um sol de outubro. Fiz outros achados mais
tarde; nenhum
me
deslumbrou tanto. A denúncia de José Dias alvoroçara-me, a lição do velho coqueiro também, a vista dos
nossos
nomes
aberto por ela no muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação do
beijo. Podiam
ser
mentira ou ilusão. Sendo verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue dela. As
próprias mãos
tocadas,
apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo.
--Sou homem!
Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminário, mas como se pensa em perigo que passou,
um mal abortado,
um
pesadelo extinto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da
mesma opinião.
Outra
vez senti os beiços de Capitu. Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares, mas a saudade é
isto mesmo; é o
passar
e repassar das memórias antigas Ora, de todas as daquele tempo creio que a mais doce é esta, a mais
nova, a mais
compreensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces
também, de
vária
espécie, muitas intelectuais, igualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menor que
esta.
CAPÍTULO XXXV / O PROTONOTÁRIO APOSTÓLICO
Enfim, peguei dos livros e corri à lição. Não corri precisamente; a meio caminho parei, advertindo que
devia ser muito
tarde,
e podiam ler-me no semblante alguma cousa. Tive idéia de mentir, alegar uma vertigem que me houvesse
deitado no
chão,
mas o susto que causaria a minha mãe fez-me rejeitá-la. Pensei em prometer algumas dezenas de
padre-nossos; tinha,
porém,
outra promessa em aberto e outro favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres,
conversavam
ruidosamente. Quando entrei na sala, ninguém ralhou comigo.
O Padre Cabral recebera na véspera um recado do internúncio; foi ter com ele, e soube que, por decreto
pontifício,
acabava
de ser nomeado protonotário apostólico. Esta distinção do papa dera-lhe grande contentamento e a todos
os nossos.
Tio
Cosme e prima Justina repetiam o título com admiração- era a primeira vez que ele soava i aos nossos
ouvidos,
acostumados
a cônegos, monsenhores, bispos, núncios, e internúncios; mas que era protonotário apostólico? O Padre
Cabral
explicou que
não era propriamente o cargo da cúria, mas as honras dele. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de
voltarete, e
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repetia:
--Protonotário apostólico!
E voltando-se para mim:
--Prepara-te, Bentinho, tu podes vir a ser protonotário apostólico Cabral ouvia com gosto a repetição do
título. Estava
em
pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe
dobrava a
magnificência, posto que, para ligá-lo ao nome, era demasiado comprido- esta segunda reflexão foi tio
Cosme que a
fez.
Padre Cabral acudiu que não era preciso dizê-lo todo, bastava que lhe chamassem o protonotário Cabral.
Subentendia-se
apostólico.
--Protonotário Cabral.
--Sim, tem razão; protonotário Cabral.
--Mas, Sr. protonotário, -- acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do título,--isto o obriga a ir a
Roma?
--Não, D. Justina.
--Não, são só as honras, observou minha mãe.
--Agora, não impede,--disse Cabral, que continuava a refletir, --não impede que nos casos de maior
formalidade, atos
públicos, cartas de cerimônia, etc; se empregue o título inteiro: protonotário apostólico. No uso comum,
basta
protonotário.
--Justamente, assentiram todos.
José Dias, que entrou pouco depois de mim, aplaudia a distinção, e recordou, a propósito, os primeiros
atos políticos de
Pio
IX, grandes esperanças da Itália; mas ninguém pegou do assunto; o principal da hora e do lugar era o
meu velho
mestre de
latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia cumprimentá-lo também, e este aplauso não lhe foi
menos ao
coração
que os outros. Bateu-me na bochecha paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para
uma só
hora. Um
beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-
me peralta;
mas
José Dias corrigiu a alegria:
--Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe há de ser preciso, ainda que não venha a ser padre.
Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada à terra, assim de passagem,
como para
acostumar os
ouvidos da família. Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo:
--Há de ser padre, e padre bonito.
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--Não esqueça, mana Glória, e protonotário também. Protonotário apostólico.
--O protonotário Santiago, acentuou Cabral.
Se a intenção do meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do título com o nome, não sei bem; o
que sei é que
quando
ouvi o meu nome ligado a tal título, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes
uma idéia,
uma idéia
sem língua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como daí a pouco outras idéias... Aliás essas pedem
um Capítulo
especial.
Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenação eclesiástica,
ainda que sem
grande
interesse. Ele buscava um assunto alheio para se mostrar esquecido da própria glória, mas era esta que
o deslumbrava
na
ocasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso
deles era ser
guloso,
não propriamente glutão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cozinha, se era simples,
era menos
pobre que
a dele. Assim, quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, a fim de se lhe fazer uma saúde, os olhos
com que
aceitou
seriam de protonotário, mas não eram apostólicos. E para agradar a minha mãe novamente pegou em
mim,
descrevendo o
meu futuro eclesiástico, e queria saber se ia para o seminário agora, no ano próximo, e oferecia-se a falar
ao "senhor
bispo",
tudo marchetado do "protonotário Santiago."
CAPÍTULO XXXVI / IDÉIA SEM PERNAS E IDÉIA SEM BRAÇOS
Deixe-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor
podia fazer, sem
latim,
e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu,
desfazer-lhe as
tranças,
refazê-las e concluí Ias daquela maneira particular, boca sobre boca. E isto vamos é isto... Idéia só! idéia
sem pernas!
As
outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à
casa de
Capitu.
Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço,
cosendo em paz.
Não
me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e
dissimulada. As mãos
pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse e
outra vez me
fugiram
as palavras que trazia Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a
costura, ergueu-se
e
esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não A
boca com que
respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um
pouco.
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Idéia só! idéia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos.
Não
conhecia
nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística
do Cântico um
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sentido
direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua
boca". E
pelo que
respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mão esquerda se pôs
já debaixo da
minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só
executá-la; mas
ainda que
eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria
parado. Foi ela,
entretanto, que me tirou daquela situação.
CAPÍTULO XXXVII / A ALMA E CHEIA DE MISTÉRIOS
-- Padre Cabral estava esperando há muito tempo?
--Hoje não dei lição; tive férias.
Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe também que o Padre Cabral falara da minha entrada no
seminário,
apoiando a
resolução de minha mãe, e disse dele cousas feias e duras. Capitu refletiu algum tempo, e acabou
perguntando-me se
podia ir
cumprimentar o padre, à tarde em minha casa.
--Pode, mas para quê?
--Papai naturalmente há de querer ir também, mas é melhor que ele vá à casa do padre, é mais bonito. Eu
não, que já
sou
meia moça, concluiu rindo.
O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça consigo mesma, uma vez que, desde manhã, era
mulher, como
eu era
homem. Achei-lhe graça, e, para dizer tudo, quis provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na
mão direita,
depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e trêmulo. Era a idéia com mãos. Quis puxar as de Capitu,
para obrigá-la
a vir
atrás delas, mas ainda agora a ação não respondeu à intenção. Contudo, achei-me forte e atrevido. Não
imitava
ninguém-
não vivia com rapazes, que me ensinassem anedotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrécia. Dos
romanos
apenas
sabia que falavam pela artinha do Padre Pereira e eram patrícios de Pôncio Pilatos. Não nego que o final
do penteado
da
manhã era um Brande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente
o contrário
deste.
De manhã, ela derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances diferiam; em outro ponto,
parecendo
haver
repetição, houve contraste.
Penso que ameacei puxá-la a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a
consciência
dos
meus atos; mas concluo que sim, porque ela recuou e quis tirar as mãos das minhas; depois, talvez por
não poder
recuar
mais, colocou um dos pés adiante e o outro atrás, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a
reter-lhe as
mãos
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com força. O busto afinal cansou e cedeu, mas a cabeça não quis ceder também, e caída para trás,
inutilizava todos
os meus
esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a lição do Cântico, não me acudiu
estender a mão
esquerda por baixo da cabeça dela; demais, este gesto supõe um acordo de vontades, e Capitu, que me
resistia agora,
aproveitaria o gesto para arrancar-se à outra mão e fugir-me inteiramente. Ficamos naquela luta, sem
estrépito, porque
apesar do ataque e da defesa, não perdíamos a cautela necessária para não sermos ouvidos lá de
dentro; a alma é
cheia de
mistérios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar; até que cansou; mas então foi a vez da
boca. A boca
de
Capitu iniciou um movimento inverso, relativamente à minha, indo para um lado, quando eu a buscava do
outro
oposto.
Naquele desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais...
Nisto ouvimos bater à porta e falar no corredor. Era o pai de Capitu, que voltava da repartição um pouco
mais cedo,
como
usava às vezes. "Abre, Nanata! Capitu, abre!" Aparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a
mãe deu
conosco,
mas só aparentemente verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de
D. Fortunata
foi um
aviso para que nos compuséssemos. Agora lutávamos com as mãos presas, e nada estava sequer
começado.
Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno era a mãe que abria. Eu, uma vez que
confesso tudo,
digo
aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tentá-lo, mas Capitu,
antes que o
pai
acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que
estava a recusar à
força.
Repito, a alma é cheia de mistérios.
CAPÍTULO XXXVIII / QUE SUSTO, MEU DEUS!
Quando Pádua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitu, em pé, de costas para mim, inclinada
sobre a
costura,
como a recolhê-la, perguntava em voz alta:
--Mas, Bentinho, que é protonotário apostólico?
--Ora, vivam! exclamou o pai.
-- Que susto, meu Deus!
Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, tais quais, ou dous lances de há quarenta anos, é
para mostrar que
Capitu não se dominava só em presença da mãe, o pai não lhe meteu mais medo No meio de uma
situação que me
atava a
língua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que coração não
lhe batia mais
nem
menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e
Fiquei com inveja.
Foi
logo falar ao pai, que apertou a minha mão, e quis saber por que a filha falava em protonotário apostólico.
Capitu
repetiu-lhe
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o que ouvira de mim, e opinou logo que o pai devia ir cumprimentar o padre em casa dele; ela iria à
minha. E coligindo
os
petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente:
-- Mamãe, jantar, papai chegou!
CAPÍTULO XXXIX / A VOCAÇÃO
Padre Cabral estava naquela primeira hora das honras em que as mínimas congratulações valem por
odes. Tempo
chega em
que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O
alvoroço da
primeira
hora é melhor, esse estado da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da
flora universal,
traz
sensações mais íntimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitu com infinito
prazer.
--Obrigado, Capitu, muito obrigado; estimo que você goste também. Papai está bom? E mamãe? A você
não se
pergunta-
essa cara é mesmo de quem vende saúde. E como vamos de rezas?
A todas as perguntas Capitu ia respondendo prontamente e bem trazia um vestidinho melhor e os sapatos
de sair. Não
entrou
com a familiaridade do costume, deteve-se um instante à porta da sala antes de ir beijar a mão a minha
mãe e ao
padre.
Como desse a este duas vezes em cinco minutos, o título de protonotário, José Dias para se desforrar da
concorrência,
fez
um pequeno discurso em honra "ao coração paternal e augustíssimo de Pio IX."
--Você é um grande prosa, disse tio Cosme, quando ele acabou José Dias sorriu sem vexame. Padre
Cabral confirmou
os
louvores do agregado, sem os seus superlativos; ao que este acrescentou que o Cardeal Mastai
evidentemente fora
talhado
para a tiara desde o princípio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu:
--A vocação é tudo. O estado eclesiástico é perfeitíssimo, contanto que o sacerdote venha já destinado do
berço. Não
havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um jovem pode muito bem estudar as letras humanas,
que também
são
úteis e honradas.
Padre Cabral retorquia:
--A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem pode não ter gosto à igreja e até
persegui-la, e um
dia a
voz de Deus lhe fala, e ele sai apóstolo; veja S. Paulo.
--Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é que se pode muito bem servir a Deus
sem ser padre cá
fora; pode-se ou não se pode?
--Pode-se.
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--Pois então? exclamou José Dias triunfalmente, olhando em volta de si. Sem vocação é que não há bom
padre, e em
qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos.
--Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz.
--Homem, é a melhor.
--Um moço sem gosto nenhum à vida eclesiástica pode acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus
o determine.
Não
me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina- meu padrinho, que
era coadjutor
de
Santa Rita, teimou com meu pai para que me metesse no seminário; meu pai cedeu. Pois, senhor, tomei
tal gosto aos
estudos
e à companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, suponha que não acontecia assim, e que eu
não mudava
de
vocação, o que é que acontecia? Tinha estudado no seminário algumas matérias que é bom saber, e são
sempre
melhor
ensinadas naquelas casas.
Prima Justina interveio:
--Como? Então pode-se entrar para o seminário e não sair padre?
Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim, falou da minha vocação, que era
manifesta;
os
meus brinquedos foram sempre de igreja, e eu adorava os ofícios divinos. A prova não provava; todas as
crianças do
meu
tempo eram devotas. Cabral acrescentou que o reitor de S. José, a quem contara ultimamente a promessa
de minha
mãe,
tinha o meu nascimento por milagre; ele era da mesma opinião. Capitu, cosida às saias de minha mãe,
não atendia
aos olhos
ansiosos que eu lhe mandava; também não parecia escutar a conversação sobre o seminário e suas
conseqüências, e,
aliás,
decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui à janela, esperando que ela fosse também,
e ficássemos
à
vontade, sozinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitu não me apareceu. Não deixou minha
mãe, senão
para ir
embora. Eram ave-marias, despediu-se.
--Vai com ela, Bentinho, disse minha mãe.
--Não precisa, não, D. Glória, acudiu ela rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonotário...
--Adeus, Capitu.
Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os
impulsos da
idade e
da ocasião eram atravessá-la de todo, seguir a vizinha corredor fora, descer à chácara, entrar no quintal,
dar-lhe
terceiro
beijo, e despedir-me. Não me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas, Capitu
que ia
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depressa,
estacou e fez-me sinal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ela.
--Não venha, não; amanhã falaremos.
--Mas eu queria dizer a você...
--Amanhã.
--Escuta!
--Fica!
Falava baixinho; pegou-me na mão, e pôs o dedo na mão. Uma preta, que veio de dentro acender o
lampião do
corredor,
vendo-nos naquela atitude, quase às escuras, riu de simpatia e murmurou em tom que ouvíssemos
alguma cousa que
não
entendi bem nem mal. Capitu segredou-me que a escrava desconfiara, e ia talvez contar às outras.
Novamente me
intimou
que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão.
CAPÍTULO XL / UMA ÉGUA
Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da
visita imperial;
disse-vos a desta casa de Engenho Novo, reproduzindo a de Mata-cavalos... A imaginação foi a
companheira de toda
a
minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de
engolir
campanhas e
campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento, se não foi
nele, foi noutro
autor
antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era
uma grande égua
ibera;
a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas
e impróprias
dos
meus quinze anos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquela hora foi confessar a minha mãe os
meus amores
para
lhe dizer que não tinha vocação eclesiástica. A conversa sobre vocação tornava-me agora toda inteira. e,
ao passo que
me
assustava, abria-me uma porta de saída. "Sim, é isto, pensei; vou dizer a mamãe que não tenho vocação,
e confesso o
nosso
namoro; se ela duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia. o penteado e o resto..."
CAPÍTULO XLI / A AUDIÊNCIA SECRETA
O resto fez-me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar o Doutor João da Costa, e
preparou-se logo o
voltarete do costume. Minha mãe saiu da sala, e, dando comigo, perguntou se acompanhara Capitu.
--Não, senhora, ela foi só.
E quase investindo para ela:
[Linha 2450 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Mamãe, eu queria dizer-lhe uma cousa.
--Que é?
Toda assustada, quis saber o que é que me doía, se a cabeça, se o peito, se o estômago, e apalpava-me
a testa para ver
se
tinha febre.
--Não tenho nada não, senhora.
-- Mas então que é?
-- É uma cousa, mamãe... Mas, escute, olhe, é melhor depois do chá; logo... Não é nada mau; mamãe
assusta-se por
tudo;
não é cousa de cuidado.
--Não é moléstia?
--Não, senhora.
É, isso é volta de constipação. Disfarças para não tomar suadouro, mas tu estás constipado; conhece-se
pela voz.
Tentei rir, para mostrar que não tinha nada. Nem por isso permitiu adiar a confidência, pegou em mim,
levou-me ao
quarto
dela, acenda vela, e ordenou-me que lhe dissesse tudo. Então eu perguntei-lhe, para principiar, quando é
que ia para o
seminário.
--Agora só para o ano, depois das férias.
--Vou... para ficar?
--Como ficar?
--Não volto para casa?
--Voltas aos sábados e pelas férias; é melhor. Quando te ordenares padre, vens morar comigo.
Enxuguei os olhos e o nariz. Ela afagou-me, depois quis repreender-me, mas creio que a voz lhe tremia, e
pareceu-me
que
tinha os olhos úmidos. Disse-lhe que também sentia a nossa separação. Negou que fosse separação; era
só alguma
ausência,
por causa dos estudos; só os primeiros dias. Em pouco tempo eu me acostumaria aos companheiros e
aos mestres, e
acabaria gostando de viver com eles.
--Eu só gosto de mamãe.
Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la, por fazer crer que ela era a minha única afeição;
desviava as
suspeitas
de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase
inocente e pura!
[Linha 2500 de 7623 - Parte 2 de 4]
Chega
a fazer suspeitar que a mentira é muita vez tão involuntária como a transpiração. Por outro lado, leitor
amigo, nota
que eu
queria desviar as suspeitas de cima de Capitu, quando havia chamado minha mãe justamente para
confirmá-las; mas
as
contradições são deste mundo. A verdade é que minha mãe era cândida como a primeira aurora, anterior
ao primeiro
pecado; nem por simples intuição era capaz de deduzir uma cousa de outra, isto é, não concluiria da
minha repentina
oposição que eu andasse em segredinhos com Capitu, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante
alguns instantes;
depois
replicou-me sem imposição nem autoridade, o que me veio animando à resistência. Daí o falar-lhe na
vocação que se
discutira naquela tarde, e que eu confessei não sentir em mim.
--Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ela; não te lembras que até pedias para ir ver sair os
seminaristas de S. José,
com as suas batinas? Em casa, quando José Dias te chamava Reverendíssimo, tu rias com tanto gosto!
Como é que
agora?...
Não creio, não, Bentinho. E depois... Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou repetindo
as reflexões
que
ouvira ao meu professor de latim.
Como eu buscasse contestá-la, repreendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho
submisso que
era.
Depois, ainda falou gravemente e longamente sobre a promessa que fizera; não me disse as
circunstâncias nem a
ocasião,
nem os motivos dela, cousas que só vim a saber mais tarde. Afirmou o principal, isto é, que a havia de
cumprir, em
pagamento a Deus.
--Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existência, não lhe hei de mentir nem faltar, Bentinho; são
cousas que não
se
fazem sem pecado, e Deus que é grande e poderoso, não me deixaria assirn, não, Bentinho; eu sei que
seria castigada e
bem
castigada. Ser padre é bom e santo; você conhece muitos, como o Padre Cabral, que vive tão feliz com a
irmã; um tio
meu
também foi padre, e escapou de ser bispo, dizem... Deixa de manha, Bentinho.
Creio que os olhos que lhe deitei foram tão queixosos que ela emendou logo a palavra; manha, não, não
podia ser
manha,
sabia muito bem que eu era amigo dela, e não seria capaz de fingir um sentimento que não tivesse.
Moleza é o que
queria
dizer, que me deixas de moleza, que me fizesse homem e obedecesse ao que cumpria, em benefício dela
e para bem
da
minha alma. Todas essas cousas e outras foram ditas um pouco atropeladamente, e a voz não lhe saía
clara, mas
velada e
esganada. Vi que a emoção dela era outra vez grande, mas não recuava dos seus propósitos, e
aventurei-me a
perguntar-lhe:
--E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa?
--Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus me dispensava?
--Talvez em sonho; eu sonho às vezes com anjos e santos.
[Linha 2550 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Também eu, meu filho; mas é inútil... Vamos, é tarde; vamos para a sala. Está entendido: no primeiro ou
no segundo
mês
do ano que vem, irás para o seminário. O que eu quero é que saibas bem os livros que estás estudando;
é bonito, não
só
para ti, como para o Padre Cabral. No seminário há interesse em conhecer-te, porque o Padre Cabral fala
de ti com
entusiasmo.
Caminhou para a porta, saímos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim, e quase a vi saltar-me ao colo
e dizer-me
que não
seria padre. Este era já o seu desejo íntimo, à proporção que se aproximava o tempo. Quisera um modo
de pagar a
dívida
contraída, outra moeda, que valesse tanto ou mais, e não achava nenhuma.
CAPÍTULO XLII / CAPITU REFLETINDO
No dia seguinte fui à casa vizinha, logo que pude. Capitu despedia-se de três amigas que tinham ido
visitá-la, Paula e
Sancha,
companheiras de colégio, aquela de quinze, esta de dezessete anos" primeira filha de um médico, a
segunda de um
comerciante de objetos americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me
que fora
excesso de
leitura na véspera, antes e depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia-noite, e com
lamparina...
--Se eu acendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa.
E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atá-lo, mas Capitu respondeu que
não era
preciso,
estava boa.
Ficamos sós na sala; Capitu confirmou a narração da mãe, acrescentando que passara mal por causa do
que ouvira
em minha
casa. Também eu lhe contei o que se dera comigo, a entrevista com minha mãe, as minhas súplicas, as
lágrimas dela, e
por
fim as últimas respostas decisivas: dentro de dous ou três meses iria para o seminário. Que faríamos
agora? Capitu
ouvia-me
com atenção sôfrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de
cólera, mas
conteve-se.
Há tanto tempo que isto sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente
enxugou os
olhos;
cuido que os enxugou somente. Vendo-lhe o gesto peguei-lhe na mão para animá-la, mas também eu
precisava ser
animado.
Caímos no canapé, e ficamos a olhar para o ar. Minto- ela olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi
assim...
Mas eu
creio que Capitu olhava para dentro de si mesma, enquanto que eu fitava deveras o chão, o roído das
fendas, duas
moscas
andando e um pé de cadeira lascada. Era pouco, mas distraía-me da aflição. Quando tornei a olhar para
Capitu, vi
que não
se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente. Capitu tornou cá para fora e pediu-me que
outra vez lhe
contasse
[Linha 2600 de 7623 - Parte 2 de 4]
o que se passara com minha mãe. Satisfi-la, atenuando o texto desta vez, para não amofiná-la. Não me
chames
dissimulado,
chama-me compassivo; é certo que receava perder Capitu, se lhe morressem as esperanças todas, mas
doía-me vê-la
padecer. Agora, a verdade última, a verdade das verdades, é que já me arrependia de haver falado a
minha mãe, antes
de
qualquer trabalho efetivo por parte de José Dias; examinando bem, não quisera ter ouvido um desengano
que eu
reputava
certo, ainda que demorado. Capitu refletia, refletia, refletia...
CAPÍTULO XLIII / VOCÊ TEM MEDO?
De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo.
--Medo?
--Sim, pergunto se você tem medo.
--Medo de quê?
--Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...
Não entendi. Se ela me tem dito simplesmente: "Vamos embora!" pode ser que eu obedecesse ou não;
em todo caso,
entenderia. Mas aquela pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era.
--Mas... não entendo. De apanhar?
--Sim.
--Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada?
Capitu fez um gesto de impaciência. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber
de mim, e, não
querendo interrogá-la novamente, entrei a cogitar donde me viriam pancadas, e por que, e também por
que é que seria
preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e
infecta.
Também vi
a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correção. Todas essas belas instituições sociais me
envolviam no seu
mistério, sem que os olhos de ressaca de Capitu deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as
fizeram esquecer de
todo. O erro de Capitu foi não deixá-los crescer infinitamente, antes diminuir até às dimensões normais, e
dar-lhe o
movimento do costume. Capitu tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava afligir-
me, e, com
um gesto
cheio de graça, bateu-me na cara, sorrindo, e disse:
--Medroso!
--Eu? Mas...
Não é nada, Bentinho. Pois quem é que há de dar pancada ao prender você? Desculpe que eu hoje estou
meia maluca;
quero brincar, e...
--Não, Capitu; você não está brincando; nesta ocasião, nenhum de nós tem vontade de brincar.
[Linha 2650 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Tem razão, foi só maluquice; até logo.
--Como até logo?
--Está-me voltando a dor de cabeça; vou botar uma rodela de limão nas fontes.
Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se
despedir de mim;
mas,
ainda aí nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o céu estava
coberto. Capitu
falou
novamente da nossa separação, como de um fato certo e definitivo, por mais que eu. receoso disso
mesmo, buscasse
agora
razões para animá-la. Capita, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço de taquara, narizes e
perfis. Desde
que se
metera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de papel e lápis. Como me lembrassem
os nossos
nomes
abertos por ela no muro, quis fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me
atendeu.
CAPÍTULO XLIV / O PRIMEIRO FILHO
--Dê cá, deixe escrever uma cousa.
Capitu olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, oblíquo e
dissimulado;
levantou o
olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me:
--Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; há de responder com o coração na mão.
--Que é? Diga.
--Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?
-- Eu?
Fez-me sinal que sim.
--Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso.
--Pois sim, mas eu pergunto. Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que eu vou
morrer...
--Não diga isso!
-- ...Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me,
você vem?
--Venho.
--Contra a ordem de sua mãe?
--Contra a ordem de mamãe.
[Linha 2700 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Você deixa seminário, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer?
--Não fale em morrer, Capitu!
Capitu teve um risinho descorado e incrédulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão, inclinei-me
e li:
mentiroso.
Era tão estranho tudo aquilo, que não achei resposta. Não atinava com a razão do escrito, como não
atinava com a
do
falado. Se me acudisse ali uma injúria grande ou pequena, é possível que a escrevesse também, com a
mesma
taquara, mas
não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguém nos
pudesse ouvir
ou ler.
Quem, se éramos sós? D. Fortunata chegara uma vez à porta da casa, mas entrou logo depois. A solidão
era completa.
Lembra-me que umas andorinhas passaram por cima do quintal e foram para os lados do morro de Santa
Teresa;
ninguém
mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos
passarinhos do
Pádua.
Nada mais, ou somente este fenômeno curioso, que o nome escrito por ela, não só me espiava do chão
com gesto
escarninho, mas até me pareceu que repercutia no ar. Tive então uma idéia ruim; disse-lhe que, afinal de
contas, a vida
de
padre não era má, e eu podia aceitá-la sem grande pena. Como desforço, era pueril; mas eu sentia a
secreta esperança
de
vê-la atirar-se a mim lavada em lágrimas. Capitu limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por
dizer:
--Padre é bom, não há dúvida; melhor que padre só cônego, por causa das meias roxas. O roxo é cor
muito bonita.
Pensando bem, é melhor cônego.
--Mas não se pode ser cônego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu mordendo os beiços.
--Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu não quero perder é a sua missa
nova; avise-me a
tempo
para fazer um vestido à moda saia balão e babados grandes. . . Mas talvez nesse tempo a moda seja
outra. A igreja há
de ser
grande, Carmo ou S. Francisco.
--Ou Candelária.
--Candelária também. Qualquer serve, contanto que eu ouça a missa nova. Hei de fazer um figurão. Muita
gente há de
perguntar: "Quem é aquela moça faceira que ali está com um vestido tão bonito?"--"Aquela é D. Capitolina,
uma
moça que
morou na Rua de Mata-cavalos... "
--Que morou? Você vai mudar-se?
--Quem sabe onde é que há de morar amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas tornando
logo ao
sarcasmo: E
você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima, cantando... Pater noster...
Ah! como eu sinto não ser um poeta romântico para dizer que isto era um duelo de ironias! Contaria os
meus botes e
[Linha 2750 de 7623 - Parte 2 de 4]
os dela,
a graça de um e a prontidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe final que
foi este:
--Pois sim, Capitu, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma condição.
Ao que ela respondeu:
--Vossa Reverendíssima pode falar.
--Promete uma cousa?
--Que é?
--Diga se promete.
--Não sabendo o que é, não prometo.
--A falar verdade são duas cousas, continuei eu, por haver-me acudido outra idéia.
--Duas? Diga quais são.
--A primeira é que só se há de confessar comigo, para eu lhe dar a penitência e a absolvição. A segunda é
que...
--A primeira está prometida, disse ela vendo-me hesitar, e acrescentou que esperava a segunda.
Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca: não ouviria o que ouvi, e não escreveria
aqui uma
cousa que
vai talvez achar incrédulos.
-- A segunda... sim... é que... Promete-me que seja eu o padre que case você?
--Que me case? disse ela um tanto comovida.
Logo depois fez descair os lábios, e abanou a cabeça.
--Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo, você não vai ser padre já amanhã, leva muitos anos...
Olhe, prometo
outra cousa; prometo que há de batizar o meu primeiro filho.
CAPÍTULO XLV / ABANE A CABEÇA, LEITOR
Abane a cabeça leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já
o não obrigou
a
isso antes tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra
na mesma
página,
sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não há nada mais exato. Foi assim mesmo que Capitu
falou, com
tais
palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca.
Quanto ao meu espanto, se também foi grande, veio de mistura com uma sensação esquisita.
Percorreu-me um fluido.
Aquela
[Linha 2800 de 7623 - Parte 2 de 4]
ameaça de um primeiro filho, o primeiro filho de Capitu, o casamento dela com outro, portanto, a
separação absoluta,
a
perda, a aniquilação, tudo isso produzia um tal efeito, que não achei palavra nem gesto fiquei estúpido.
Capitu sorria;
eu via o
primeiro filho brincando no chão...
CAPÍTULO XLVI / AS PAZES
As Pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha glória, e diria que as
negociações
partiram de
mim, mas não, foi ela que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou
também a
cabeça,
mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para ir
embora;
mas nem
me levantei, nem sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão súplices, que
me deixei ficar,
passei-lhe o braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos, e...
Outra vez D. Fortunata apareceu à porta da casa; não sei para que, se nem me deixou tempo de puxar o
braço;
desapareceu
logo. Podia ser um simples descargo de consciência, uma cerimônia, como as rezas de obrigação, sem
devoção, que se
dizem de tropel; a não ser que fosse para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe
dizia...
Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificamos. O
bonito é que
cada
um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia,
a dor de
cabeça, o
abatimento do espírito, e finalmente "os seus calundus." Eu, que era muito chorão por esse tempo, sentia
os olhos
molhados...
Era amor puro, era efeito dos padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação.
CAPÍTULO XLVII / "A SENHORA SAIU"
--Está bom, acabou, disse eu finalmente; mas, explique-me só uma cousa, por que é que você me
perguntou se eu
tinha
medo de apanhar?
--Não foi por nada, respondeu Capitu, depois de alguma hesitação... Para que bulir nisso?
--Diga sempre. Foi por causa do seminário?
--Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu também não creio.
A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitu não disse a verdade, força é
reconhecer que não
podia
dizê-la, e a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às visitas que "a senhora saiu",
quando a senhora
não
quer falar a ninguém. Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por
instantes a
condição das
pessoas, não contando o prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que elas
descem... A verdade não
saiu,
[Linha 2850 de 7623 - Parte 2 de 4]
ficou em casa, no coração de Capitu, cochilando o seu arrependimento. E eu não desci triste nem
zangado; achei a
criada
galante, apetecível. melhor que a ama.
As andorinhas vinham agora em sentido contrário, ou não seriam as mesmas. Nós é que éramos os
mesmos; ali
ficamos
somando as nossas ilusões, os nossos temores, começando já a somar as nossas saudades.
CAPÍTULO XLVIII / JURAMENTO DO POÇO
--Não! exclamei de repente.
--Não quê?
Tinha havido alguns minutos de silêncio, durante os quais refleti muito e acabei por uma idéia; o tom da
exclamação,
porém,
foi tão alto que espantou a minha vizinha.
--Não há de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em idade de casar, que somos crianças,
criançolas,--já ouvi
dizer
criançolas. Bem; mas dous ou três anos passam depressa. Você jura uma cousa? lura que só há de casar
comigo?
Capitu não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma terceira:
--Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não casando nunca.
--Que eu case com outra?
--Tudo pode ser. Bentinho. Você pode achar outra moça que lhe queira, apaixonar-se por ela e casar.
Quem sou eu
para
você lembrar-se de mim nessa ocasião?
--Mas eu também juro! Juro, Capitu, juro por Deus Nosso Senhor que só me casarei com você. Basta isto?
--Devia bastar, disse ela; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você jura... Mas juremos por outro modo;
juremos que
nos
havemos de casar um com outro, haja o que houver.
Compreendeis a diferença, era mais que a eleição do cônjuge, era a afirmação do matrimônio. A cabeça
da minha
amiga
sabia pensar claro e depressa. Realmente, a fórmula anterior era limitada, apenas exclusiva. Podíamos
acabar
solteirões,
como o sol e a lua, sem mentir ao juramento do poço. Esta fórmula era melhor, e tinha? a vantagem de
me fortalecer
o
coração contra a investidura eclesiástica. Juramos pela segunda fórmula, e ficamos tão felizes que todo
receio de
perigo
desapareceu. Éramos religiosos, tínhamos o céu por testemunha. Eu nem já temia o seminário.
--Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um colégio qualquer; não tomo ordens.
[Linha 2900 de 7623 - Parte 2 de 4]
Capitu temia a nossa separação, mas acabou aceitando este alvitre, que era o melhor. Não afligíamos
minha mãe, e o
tempo
correria até o ponto em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrário, qualquer resistência ao
seminário confirmaria
a
denúncia de José Dias. Esta reflexão não foi minha, mas dela.
CAPÍTULO XLIX / UMA VELA AOS SÁBADOS
Eis aqui como, após tantas canseiras, tocávamos o porto a que nos devíamos ter abrigado logo. Não nos
censures,
piloto de
má morte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo. Estávamos contentes,
entramos a falar do
futuro.
Eu prometia à minha esposa uma vida sossegada e bela, na roça ou fora da cidade. Viríamos aqui uma
vez por ano.
Se fosse
em arrabalde, seria longe, onde, ninguém nos fosse aborrecer. A casa, na minha opinião, não devia ser
grande nem
pequena,
um meio-termo; plantei-lhe flores, escolhi móveis, uma sege e um oratório. Sim, havíamos de ter um
oratório bonito,
alto, de
jacarandá, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Demorei-me mais nisto que no resto, em parte
porque
éramos
religiosos, em parte para compensar a batina que eu ia deitar às urtigas- mas ainda restava uma parte
que atribuo ao
intuito
secreto e inconsciente de captar a proteção do céu. Havíamos de acender uma vela aos sábados...
CAPÍTULO L / UM MEIO-TERMO
Meses depois fui para o seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e
na manhã,
somaria
mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma
ou outra
vez, para
compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da
sensação, não fico
longe
da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito. Realmente, por mais preparado que estivesse, padeci muito.
Minha mãe
também
padeceu, mas sofria com alma e coração; demais, o Padre Cabral achara um meio-termo, experimentar-
me a
vocação; se no
fim de dous anos, eu não revelasse vocação eclesiástica, seguiria outra carreira.
--As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Suponha que Nosso Senhor nega disposição
a seu filho, e
que o
costume do seminário não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a vontade divina é outra. A
senhora não
podia pôr
em seu filho, antes de nascido, uma vocação que Nosso Senhor lhe recusou...
Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a
relevação da dívida.
Os
olhos dela brilharam, mas a boca disse que não. José Dias, não tendo alcançado ir comigo para a Europa,
agarrou-se
ao
mais próximo, e apoiou o "alvitre do Sr. protonotário"; só lhe parecia que um ano era bastante.
[Linha 2950 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Estou certo, disse ele, piscando-me o olho, que dentro de um ano a vocação eclesiástica do nosso
Bentinho se
manifesta
clara e decisiva. Há de ser um padre de mão-cheia. Também, se não vier em um ano...
E a mim, mais tarde, em particular:
--Vá por um ano; um ano passa depressa. Se não sentir gosto nenhum, é que Deus não quer, como diz o
padre, e nesse
caso, meu amiguinho, o melhor remédio é a Europa.
Capitu deu-me igual conselho, quando minha mãe lhe anunciou a minha ida definitiva para o seminário:
--Minha filha, você vai perder o seu companheiro de criança...
Fez-lhe tão bem este tratamento de filha (era a primeira vez que minha mãe lhe dava), que nem teve
tempo de ficar
triste;
beijou-lhe a mão, e disse-lhe que já sabia disso por mim mesmo. Em particular animou-me a suportar
tudo com
paciência; no
fim de um ano as cousas estariam mudadas, e um ano andava depressa. Não foi ainda a nossa
despedida; esta fez-se
na
véspera, por um modo que pede Capítulo especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos
prendíamos
um ao
outro, ela ia prendendo minha mãe, fez-se mais assídua e terna, vivia ao pé dela, com os olhos nela.
Minha mãe era de
natural
simpático, e igualmente sensível; tanto se doía como se aprazia de qualquer cousa. Entrou a achar em
Capitu uma
porção de
graças novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias. Não consentiu em
fotografar-se,
como
a pequena lhe pedia, para lhe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e cinco anos, e,
depois de
algumas
hesitações, resolveu dar-lha. Os olhos de Capitu, quando recebeu o mimo, não se descrevem, não eram
oblíquos, nem
de
ressaca, eram direitos, claros, lúcidos. Beijou o retrato com paixão, minha mãe fez-lhe a mesma cousa a
ela. Tudo isto
me
lembra a nossa despedida.
CAPÍTULO LI / ENTRE LUZ E FUSCO
Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o
mais que pôde,
em
casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos
novamente
que
havíamos de casar um com outro, e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi
a
conjunção das
nossas bocas amorosas... Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se
pensar. fica. E
desde já
fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não juremos em vão
pelo santo
nome de
Deus. Eu não ia mentir ao seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório do céu.
Quanto ao
selo, Deus,
como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que
na daquele
[Linha 3000 de 7623 - Parte 2 de 4]
casal de
adolescentes... Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula
de S. José, a
buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a
investidura eras tu.
CAPÍTULO LII / O VELHO PÁDUA
Já agora conto também os adeuses do velho Pádua. Logo cedo veio à nossa casa. Minha mãe disse-lhe
que fosse
falar-me
ao quarto.
--Dá licença? perguntou metendo a cabeça pela porta.
Fui apertar-lhe a mão; ele abraçou-me com ternura.
--Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam muitas saudades. Todos nós
estimamos muito ao
senhor, como merece. Se lhe disserem outra cousa, não acredite. São intrigas. Também eu, quando me
casei, fui vítima
de
intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio,--
cousa que eu, por
esta
luz que me alumia, não desejo, porque são boas pessoas, excelentes pessoas, e eu sou grato às finezas
recebidas... Não,
eu
não sou como outros, certos parasitas, vindos de fora para desunião das famílias, aduladores baixos,
não- eu sou de
outra
espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia... Enfim, são os mais felizes!
"Por que falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz mal dele."
--Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, pode contar com a nossa companhia. Não
é suficiente
em
importância, mas a afeição é imensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está às suas ordens. Quero só
que me não
esqueça;
não esqueça o velho Pádua...
Suspirou e continuou:
--Não esqueça o seu velho Pádua, e, se tem algum trapinho que me deixe em lembrança, um caderno
latino, qualquer
cousa,
um botão de colete, cousa que já lhe não preste para nada. O valor é a lembrança. Tive um sobressalto.
Havia
embrulhado
em um papel um cacho dos meus cabelos, tão grandes e tão bonitos, cortados na véspera. A intenção era
levá-los a
Capitu,
ao sair; mas tive idéia de dá-lo ao pai, a filha saberia tomá-lo e guardá-lo. Peguei do embrulho e dei-lho.
--Aqui está, guarde.
--Um cachinho dos seus cabelos! exclamou Pádua abrindo e fechando o embrulho. Oh! obrigado! obrigado
por mim e
pela
minha gente! Vou dá-lo à velha, para guardá-lo, ou à pequena, que é mais cuidadosa que a mãe. Que
lindos que são!
Como
é que se corta uma beleza destas? Dê cá um abraço! outro! mais outro! adeus!
[Linha 3050 de 7623 - Parte 2 de 4]
Tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só
bilhete todas as
suas
economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número,--um número tão bonito!
CAPÍTULO LIII / A CAMINHO!
Fui para o seminário. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe apertava-me ao peito. Prima Justina
suspirava.
Talvez
chorasse mal ou nada. Há pessoas a quem as lágrimas não acodem logo nem nunca, diz-se que
padecem mais que as
outras.
Prima Justina disfarçava naturalmente os seus padecimentos íntimos, emendando os descuidos de
minha mãe,
fazendo-me
recomendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe beijei a mão em despedida, disse-me rindo:
--Anda lá, rapaz, volta-me papa!
José Dias, composto e grave, não dizia nada a princípio; tínhamos falado na véspera, no quarto dele,
onde fui ver se
era
ainda possível evitar o seminário. Já não era, mas deu-me esperanças e principalmente animou-me
muito. Antes de
um ano
estaríamos a bordo. Como eu achasse muito breve, explicou-se.
--Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlântico, vou indagar; se não for, iremos em março ou
abril.
--Posso estudar medicina aqui mesmo.
José Dias correu os dedos pelos suspensórios com um gesto de impaciência, apertou os beiços, até que
formalmente
rejeitou
o alvitre.
--Não duvidaria aprovar a idéia, disse ele, se na Escola de Medicina não ensinassem, exclusivamente, a
podridão
alopata. A
alopatia é o erro dos séculos, e vai morrer; é o assassinato, é a mentira, é a ilusão. Se lhe disserem que
pode aprender
na
Escola de Medicina aquela parte da ciência comum a todos os sistemas, é verdade; a alopatia é erro na
terapêutica.
Fisiologia, anatomia, patologia, não são alopáticas nem homeopáticas, mas é melhor aprender logo tudo
de uma vez,
por
livros e por língua de homens cultores da verdade...
Assim falara na véspera e no quarto. Agora não dizia nada, ou proferia algum aforismo sobre a religião e
a família;
lembro-me
deste: "Dividi-lo com Deus é ainda possuí-lo". Quando minha mãe me deu o último beijo: "Quadro
amantíssimo!"
suspirou
ele. Era manhã de um lindo dia. Os moleques cochichavam; as escravas tomam a bênção: "Bênção, nhô
Bentinho!
não se
esqueça de sua Joana! Sua Miquelina fica rezando por vosmecê!" Na rua José Dias insistiu nas
esperanças:
--Agüente um ano; até lá tudo estará arranjado.
[Linha 3100 de 7623 - Parte 2 de 4]
CAPÍTULO LIV / PANEGÍRICO DE SANTA MÔNICA
No Seminário... Ah! não vou contar o seminário, nem me bastaria a isso um Capítulo. Não, senhor meu
amigo; algum
dia.
sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes,
de todo o resto.
Esta
sarna de escrever, quando pega aos cinqüenta anos, não despega mais. Na mocidade é possível curar-se
um homem
dela; e,
sem ir mais longe, aqui mesmo no seminário tive um companheiro que compôs versos, à maneira dos de
Junqueira
Freire,
cujo livro de frade-poeta era recente. Ordenou-se anos depois encontrei-o no coro de S. Pedro e pedi-lhe
que me
mostrasse
os versos novos.
--Que versos? perguntou meio espantado.
--Os seus. Pois não se lembra que no seminário...
--Ah! sorriu ele.
Sorriu, e continuando a procurar num livro aberto a hora em que tinha de cantar no dia seguinte,
confessou-me que
não fizera
mais versos depois de ordenado. Foram cócegas da mocidade; coçou-se, passou, estava bom. E falou-me
em prosa de
uma
infinidade de cousas do dia. a vida cara, um sermão do padre X..., uma vigairaria mineira...
Contrário a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira. Chamava-se... Não é preciso dizer o nome;
baste o caso.
Tinha
composto um Panegírico de Santa Mônica, elogiado por algumas pessoas e então lido entre os
seminaristas. Alcançou
licença de imprimi-lo, e dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso é história velha; o que é mais moço é que
um dia. em
1882,
indo ver certo negócio em repartição de marinha, ali dei com este meu colega, feito chefe de uma seção
administrativa.
Deixara seminário, deixara letras, casara e esquecera tudo, menos o Panegírico de Santa Mônica, umas
vinte e nove
páginas,
que veio distribuindo pela vida fora. Como eu precisasse de algumas informações, fui pedir-lhas, e seria
impossível
achar
melhor nem mais pronta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso Naturalmente conversamos do
passado,
memórias
pessoais, casos de estudo, incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu
cá fora, e rimos
juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso velho seminário. Ou porque eram
dele, ou porque
éramos então moços, as recordações traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contrária
houve então,
não
apareceu agora. Ele confessou-me que perdera de vista todos os companheiros do seminário.
--Também eu, quase todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente às suas províncias, e os daqui
tomaram
vigairarias
fora.
-- Bom tempo! suspirou ele.
[Linha 3150 de 7623 - Parte 2 de 4]
E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos, perguntou-me:
--Conservou o meu Panegírico?
Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas não tinha palavra, afinal perguntei:
--Panegírico? Que panegírico?
--O meu Panegírico de Santa Mônica.
Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de alguns instantes de pesquisa mental,
respondi que
por
muito tempo o conservara, mas as mudanças, as viagens...
--Hei de levar-lhe um exemplar.
Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um velho folheto de vinte e seis
anos, encardido,
manchado do tempo, mas sem lacuna, e com uma dedicatória manuscrita e respeitosa.
--É o penúltimo exemplar, disse-me; agora só me resta um, que não posso dar a ninguém.
E como me visse folhear o opúsculo:
--Veja se lhe lembra algum pedaço, disse-me.
Vinte e seis anos de intervalo fazem morrer amizades mais estreitas e assíduas, mas era cortesia, era
quase caridade
recordar
alguma lauda; li uma delas, acentuando certas frases para lhe dar a impressão de que achavam eco em
minha
memória.
Concordou que fossem belas, mas preferia outras, e apontou-as.
--Recorda-se bem?
--Perfeitamente. Panegírico de Santa Mônica! Como isto me faz remontar os anos da minha mocidade!
Nunca me
esqueceu
o seminário, creia. Os anos passam, os acontecimentos vêm uns sobre outros, e as sensações também,
e vieram
amizades
novas que também se foram depois, como é lei da vida... Pois, meu caro colega, nada fez apagar aquele
tempo da
nossa
convivência, os padres, as lições, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? o Padre Lopes, oh! o
Padre Lopes...
Ele, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas só me disse uma palavra, e
ainda assim
depois de
algum tempo de silêncio, recolhendo os olhos e um suspiro!
--Tem agradado muito este meu Panegírico!
CAPÍTULO LV / UM SONETO
Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um vasto agradecimento, despediu-se e saiu.
Fiquei só
[Linha 3200 de 7623 - Parte 2 de 4]
com o
Panegírico, e o que as folhas dele me lembraram foi tal que merece um Capítulo ou mais. Antes, porém, e
porque
também eu
tive o meu Panegírico, contarei a história de um soneto que nunca fiz: era no tempo do seminário, e o
primeiro verso é
o que
ides ler:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!
Como e por que me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama como uma
exclamação solta,
e, ao
notar que tinha a medida de verso, pensei em compor com ele alguma cousa, um soneto. A insônia, musa
de olhos
arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cócegas pediam-me unhas, e coçava-me
com alma.
Não
escolhi logo, logo, o soneto; a princípio cuidei de outra forma, e tanto de rima como de verso solto. r afinal
ative-me ao
soneto. Era um poema breve e prestadio. Qual à idéia, o primeiro verso não era ainda uma idéia, era uma
exclamação;
a
idéia viria depois. Assim na cama, envolvido no lençol. tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que
sente o filho, e o
primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com aquele monge da Bahia pouco antes revelado, e então na
moda; eu,
seminarista,
diria em verso as minhas tristezas, como ele dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e
repetia-o em voz baixa,
aos
lençóis; francamente achava-o bonito, e ainda agora não me parece mau:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!
Quem era a flor? Capitu, naturalmente; mas podia ser a virtude, a poesia, a religião, qualquer outro
conceito a que
coubesse
a metáfora da flor, e flor do céu. Aguardei o resto, recitando sempre verso, e deitado ora sobre o lado
direito, ora sobre
o
esquerdo; afinal deixei-me estar de costas, com os olhos no tecto, mas nem assim. vinha mais nada.
Então adverti que
os
sonetos mais gabados eram os que concluíam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitas no
sentido e na
forma.
Pensei em forjar uma de tais chaves, considerando que o verso final, saindo cronologicamente dos treze
anteriores,
com
dificuldade traria a perfeição louvada; imaginei que tais chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim
foi que me
deter
minei a compor o último verso do soneto, e, depois de muito suar, saiu este:
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnífico. Sonoro, não há dúvida. E tinha
um
pensamento, a
vitória ganha à custa da própria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade, é
possível, mas
também não
era vulgar; e ainda agora não explico por que via misteriosa entrou numa cabeça de tão poucos anos.
Naquela ocasião
achei-o sublime. Recitei uma e muitas vêzes a chave de ouro, depois repeti os dous versos
seguidamente, e dispus-me a
ligá-los pelos doze centrais. A idéia agora, à vista do último verso, pareceu-me melhor não ser Capitu;
seria a justiça.
Era
[Linha 3250 de 7623 - Parte 2 de 4]
mais próprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-se-ia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha.
Também me
ocorreu
aceitar a batalha, no sentido natural, e fazer dela a luta pela pátria, por exemplo; nesse caso a flor do céu
seria a
liberdade.
Esta acepção porém, sendo o poeta um seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei
alguns minutos
em
escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal aceitei definitivamente uma idéia nova a
caridade, e recitei
os dous
versos, cada um a seu modo, um languidamente:
Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura
e o outro com grande brio:
Perde-se a vida, ganha-se a batalha!
A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me
dar um
banho de
inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram facílimos; os versos saíam
uns dos outros,
com a
idéia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a
suscitavam. Então
tornava ao
meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem
terceiro, nem
quarto;
não vinha nenhum. Tive alguns ímpetos de raiva, e mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta
e papel;
pode ser
que, escrevendo, os versos acudissem, mas...
Cansado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do último verso, com a simples transposição de duas
palavras,
assim:
Ganha-se a vida, perde-se a batalha!
O sentido vinha a ser justamente o contrário; mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso,
era uma
ironia: não
exercendo a caridade, pode-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do céu. Criei forças novas e
esperei. Não tinha
janela;
se tivesse, é possível que fosse pedir uma idéia à noite. E quem sabe se os vagalumes luzindo cá
embaixo, não seriam
para
mim como rimas das estrelas, e esta viva metáfora não me daria os versos esquivos, com os seus
consoantes e sentidos
próprios?
Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adiante escrevi algumas
páginas em prosa,
e
agora estou compondo esta narração, não achando maior dificuldade que escrever, bem ou mal. Pois,
senhores, nada
me
consola daquele soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e
os dramas, e as
demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dous versos ao primeiro
desocupado que os
quiser. Ao
domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o soneto
sai. Tudo é
[Linha 3300 de 7623 - Parte 2 de 4]
dar-lhe
uma idéia e encher o centro que falta.
CAPÍTULO LVI / UM SEMINARISTA
Tudo meia repetindo o diabo do opúsculo, com as suas letras velhas e citações latinas. Vi sair daquelas
folhas muitos
perfis
de seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos quais é cônego na Bahia, enquanto o
outro seguiu
medicina e
dizem haver descoberto um específico contra a febre amarela. Vi o Bastos, um magricela, que está de
vigário em
Meia-Ponte, se não morreu já; Luís Borges, apesar de padre, fez-se político, e acabou senador do
império... Quantas
outras
caras me fitavam das páginas frias do Panegírico! Não, não eram frias; traziam o calor da juventude
nascente, o calor
do
passado, o meu próprio calor. Queria lê-las outra vez, e lograva entender algum texto, tão recente como
no primeiro
dia.
ainda que mais breve. Era um encanto ir por ele; às vezes, inconscientemente, dobrava a folha como se
estivesse lendo
de
verdade; creio que era quando os olhos me caíam na palavra do fim da página, e a mão, acostumada a
ajudá-los,
fazia o seu
ofício...
Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Sousa Escobar era um rapaz esbelto, olhos claros,
um pouco
fugitivos,
como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele podia
acaso sentir-se
mal,
não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido as mãos não
apertavam as
outras, nem
se deixavam apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los
entre os seus, já
não
tinha nada. O mesmo digo dos pés, que lia depressa estavam aqui como lá. Esta dificuldade em pousar
foi a maior
obstáculo
que achou para tomar os costumes do seminário. O sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e
largo. Uma
cousa não
seria tão fugitiva, como o resto, a reflexão; íamos dar com ele, muita vez, olhos enfiados em si,
cogitando.
Respondia-nos
sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que recordava a lição da véspera. Quando ele
entrou na minha
intimidade pedia-me freqüentemente explicações e repetições miúdas, e tinha memória para guardá-las
todas, até as
palavras.
Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra.
Era mais velho que eu três anos, filho de um advogado de Curitiba, aparentado com um comerciante do
Rio de
Janeiro, que
servia de correspondente ao pai. Este era homem de fortes sentimentos católicos. Escobar tinha uma
irmã, que era um
anjo,
dizia ele.
--Não é só na beleza que é um anjo, mas também na bondade. Não imagina que boa criatura que ela é.
Escreve-me
muita
vez, hei de mostrar-lhe as cartas dela.
[Linha 3350 de 7623 - Parte 2 de 4]
De fato, eram simples e afetuosas, cheias de carícias e conselhos. Escobar contava-me histórias dela,
interessantes,
todas as
quais vinham a dar na bondade e no espírito daquela criatura; tais eram que me fariam capaz de acabar
casando com
ela se
não fosse Capitu. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras dele, estive quase a contar-lhe logo,
logo, a minha
história. A princípio, fui tímido, mas ele fez-se entrado na minha confiança. Aqueles modos fugitivos,
cessavam
quando ele
queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta
da rua até o
fundo
do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os
lados, muita
luz e ar
puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas ou com poucas e gradeadas, à semelhança de
conventos e
prisões.
Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos.
Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a
franqueza, mas
como
as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o
achei
dentro, cá
ficou, até que...
CAPÍTULO LVII / DE PREPARAÇÃO
Ah! Mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquelas folhas velhas do Panegírico. Elas me
trouxeram
também
sensações passadas, tais e tantas que eu não poderia dizê-las todas, sem tirar espaço ao resto. Uma
dessas, e das
primeiras
quisera contá-la aqui em latim. Não é que a matéria não ache termos honestos em nossa língua, que é
casta para os
castos,
como pode ser torpe para os torpes. Sim, leitora castíssima, como diria o meu finado José Dias podeis ler
o Capítulo
até ao
fim, sem susto nem vexame.
Já agora meto a história em outro Capítulo. Por mais composto que este me saia, há sempre no assunto
alguma cousa
menos
austera, que pede umas linhas de repouso e preparação. Sirva este de preparação. E isto é muito, leitor
meu amigo; o
coração, quando examina a possibilidade do que há de vir, as proporções dos acontecimentos e a cópia
deles, fica
robusto e
disposto, e o mal é menor mal. Também, se não fica então, não fica nunca. E aqui verás tal ou qual
esperteza minha;
porquanto, ao ler o que vais ler, é provável que o aches menos cru do que esperavas.
CAPÍTULO LVIII / O TRATADO
Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminário, vi cair na rua uma senhora. O meu
primeiro gesto,
em tal
caso, devia ser de pena ou de riso; não foi uma nem outra cousa, porquanto (e é isto que eu quisera dizer
em latim),
porquanto a senhora tinha as meias mui lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu.
Várias pessoas
acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ela ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e
enfiou pela rua
próxima.
[Linha 3400 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Este gosto de imitar as francesas da Rua do Ouvidor, dizia-me José Dias andando e comentando a
queda, é
evidentemente
um erro. As nossas moças devem andar como sempre andaram, com seu vagar e paciência, e não este
tique-tique
afrancesado...
Eu mal podia ouvi-lo. As meias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam-se diante de mim, e
andavam,
caíam,
erguiam-se e iam-se embora. Quando chegamos à esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distancia, a
nossa desastrada,
que ia
no mesmo passo, tique-tique, tique-tique...
--Parece que não se machucou, disse eu.
--Tanto melhor para ela, mas é impossível que não tenha arranhado os joelhos; aquela presteza é
manha...
Creio que foi "manha" que ele disse; eu fiquei "nos joelhos arranhados". Dali em diante, até o seminário,
não vi mulher
na rua,
a quem não desejasse uma queda, a algumas adivinhei que traziam as meias esticadas e as ligas
justas... Tal haveria
que nem
levasse meias... Mas eu as via com elas... Ou então... Também é possível...
Vou esgarçando isto com reticências para dar uma idéia das minhas idéias, que eram assim difusas e
confusas; com
certeza
não dou nada. A cabeça ia-me quente, e o andar não era seguro. No seminário, a primeira hora foi
insuportável. As
batinas
traziam ar de saias, e lembravam-me a queda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as
que eu
encontrara na
rua, mostravam-me agora de relance as ligas azuis; eram azuis. De noite, sonhei com elas. Uma multidão
de
abomináveis
criaturas veio andar à roda de mim, tique-tique... Eram belas, umas finas, outras grossas, todas ágeis
como o diabo.
Acordei,
busquei afugentá-las com esconderijos e outros métodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com
as mãos
presas
em volta de mim, faziam um vasto círculo de saias ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a
minha cabeça.
Assim fui
até madrugada. Não dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade
pura, é força
confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas orações para acompanhar no escuro uma
figura ao
longe,
tique-tique, tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para concertá-la bem, como se não
tivesse
havido
interrupção, mas certamente não unia a frase nova à antiga.
Vindo o mal pela manhã adiante, tentei vencê-lo, mas por um modo que o não perdesse de todo. Sábios
da Escritura,
adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aqueles quadros, recorri a um tratado
entre a minha
consciência e a minha imaginação. As visões feminis seriam de ora avante consideradas como simples
encarnações
dos
vícios, e por isso mesmo contempláveis, como o melhor modo de temperar o caráter e aguerri-lo para os
combates
ásperos
da vida. Não formulei isto por palavras, nem foi preciso; o contrato fez-se tacitamente, com alguma
repugnância, mas
[Linha 3450 de 7623 - Parte 2 de 4]
fez-se.
E por alguns dias, era eu mesmo que evocava as visões para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão
quando elas
mesmo de
cansadas, se iam embora.
CAPÍTULO LIX / CONVIVAS DE BOA MEMÓRIA
Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia
arrenegar de
conviva
que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter
a memória
fraca
seja exatamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.
Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por
hospedarias, sem
guardar
delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa de
família, com os
seus
eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição.
Como eu invejo
os
que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem
Juro só que
não eram
amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.
E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se
pode meter nos
livros
omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim,
é cerrar os
olhos e
evocar todas as cousas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões
profundas! Os
rios, as
montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as
suas árvores, os
seus
altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que
dormiam no
metal, e
tudo marcha com uma alma imprevista que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim
preencho as
lacunas
alheias; assim podes também preencher as minhas.
CAPÍTULO LX / QUERIDO OPÚSCULO
Assim fiz eu ao Panegírico de Santa Mônica, e fiz mais: pus-lhe não só o que faltava da santa, mas ainda
cousas que
não
eram dela. Viste o soneto, as meias, as ligas, o seminarista Escobar e vários outros. Vais agora ver o
mais que naquele
dia
me foi saindo das páginas amarelas do opúsculo.
Querido opúsculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinelas?
Entretanto, há muita
vez no
casal de chinelas um como aroma e calor de dous pés. Gastas e rotas, não deixam de lembrar que uma
pessoa as
calçava de
manhã, ao erguer da cama, ou as descalçava à noite, ao entrar ela. E se a comparação não vale, porque
as chinelas
[Linha 3500 de 7623 - Parte 2 de 4]
são ainda
uma parte da pessoa e tiveram o contacto dos pés, aqui estão outras lembranças, como a pedra da rua, a
porta da
casa, um
assobio particular, um pregão de quitanda, como aquele das cocadas que contei no cap. XVIII.
Justamente, quando
contei o
pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou fazê-lo escrever por um amigo,
mestre de música,
e
grudá-lo às pernas do Capítulo. Se depois jarretei o Capítulo, foi porque outro músico, a quem o mostrei,
me confessou
ingenuamente não achar no trecho escrito nada que lhe acordasse saudades. Para que não aconteça o
mesmo aos
outros
profissionais que porventura me lerem, melhor é poupar ao editor do livro o trabalho e a despesa da
gravura. Vês que
não
pus nada, nem ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de
seminário, encerrem
casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que
tudo é calado e
incolor.
Mas, vamos ao mais que me foi saindo das páginas amarelas.
CAPÍTULO LXI / A VACA DE HOMERO
O mais foi muito. Vi saírem os primeiros dias da separação, duros e opacos, sem embargo das palavras
de conforto
que me
deram os padres e os seminaristas, e as de minha mãe e tio Cosme, trazidas por José Dias ao
seminário.
--Todos estão saudosos, disse-me este, mas a maior saudade está naturalmente no maior dos corações;
e qual é ele?
perguntou escrevendo a resposta nos olhos.
--Mamãe, acudi eu.
José Dias apertou-me as mãos com alvoroço, e logo pintou a tristeza de minha mãe, que falava de mim
todos os dias,
quase
a todas as horas. Como a aprovasse sempre, e acrescentasse alguma palavra relativamente aos dotes
que Deus lhe
dera, o
desvanecimento de minha mãe nessas ocasiões era indescritível; e contava-me tudo isso cheio de uma
admiração
lacrimosa.
Tio Cosme também se enternecia muito.
--Ontem até se deu um caso interessante. Tendo eu dito à Excelentíssima que Deus lhe dera, não um
filho, mas um
anjo do
céu e doutor ficou tão comovido que não achou outro modo de vencer o choro senão fazendo-me um
daqueles elogios
de
galhofa que só ele sabe. Não é preciso dizer que D. Glória enxugou furtivamente uma lágrima. Ou ela não
fosse mãe!
Que
coração amantíssimo!
-- Mas, Sr. José Dias, e a minha saída daqui?
-- Isso é negócio meu. A viagem à Europa é o que é preciso, mas pode fazer-se daqui a um ou dous anos,
em 1859 ou
1860.
[Linha 3550 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Tão tarde!
--Era melhor que fosse este mesmo ano, mas demos tempo em tempo. Tenha paciência, vá estudando,
não se perde
nada
em ir sabendo já daqui alguma cousa; e, demais, ainda não acabando padre a vida do seminário é útil, e
vale sempre
entrar
no mundo ungido com os santos óleos da teologia...
Neste ponto,--lembra-me como se fosse hoje,--os olhos de José Dias fulguraram tão intensamente que me
encheram de
espanto As pálpebras caíram depois, e assim ficaram por alguns instantes, até que novamente se
ergueram, e os olhos
fixaram-se na parede do pátio, como que embebidos em alguma cousa, se não era em si mesmos, depois
despegaram-se da
parede e entraram a vagar pelo pátio todo. Podia compará-lo aqui à vaca de Homero; andava e gemia em
volta da
cria que
acabava de parir. Não lhe perguntei o que é que tinha, já por acanhamento, já porque dous lentes, um
deles de
teologia,
vinham caminhando na nossa direção. Ao passarem por nós, o agregado, que os conhecia, cortejou-os
com as
deferências
devidas, e pediu-lhes notícias minhas.
--Por ora nada se pode afiançar, disse um deles, mas parece que dará conta da mão.
--O que eu lhe dizia agora mesmo, acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe a missa nova; mas ainda que não
chegue a
ordenar-se,
no pode ter melhores estudos que os que fizer aqui. Para a viagem da existência, concluiu demorando
mais as
palavras, irá
ungido com os santos óleos da teologia...
Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as pálpebras não lhe caíram nem as pupilas fizeram os
movimentos
anteriores.
Ao contrário, todo ele era atenção e interrogação; quando muito, um sorriso claro e amigo lhe errava nos
lábios. O
lente de
teologia gostou da metáfora, e disse-lho; ele agradeceu, explicando que eram idéias que lhe escapavam
no correr da
conversação; não escrevia nem orava. Eu é que não gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a
cabeça:
--Não quero saber dos santos óleos da teologia; desejo sair daqui o mais cedo que puder, ou já...
--Já, meu anjo, não pode ser; mas pode suceder que muito antes do que imaginamos. Quem sabe se este
mesmo ano
de 58?
Tenho um plano feito, e penso já nas palavras com que hei de expô-lo a D. Glória; estou certo que ela
cederá e irá
conosco.
--Duvido que mamãe embarque.
--Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas, com ela ou sem ela, tenho por certa a nossa ida, e não haverá
esforço que eu
não
empregue, deixe estar. Paciência é que é preciso. E não faça aqui nada que dê lugar a censuras ou
queixas; muita
docilidade
e toda a aparente satisfação. Não ouviu o elogio do lente? É que você tem-se portado bem. Pois continue.
[Linha 3600 de 7623 - Parte 2 de 4]
--Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde.
--Será este ano, replicou José Dias.
--Daqui a três meses?
--Ou seis.
--Não; três meses.
--Pois sim. Tenho agora um plano, que me parece melhor que outro qualquer. É combinar a ausência de
vocação
eclesiástica
e a necessidade de mudar de ares. Você por que não tosse?
--Por que não tusso?
--Já, já, não, mas eu hei de avisar você para tossir, quando for preciso, aos poucos, uma tossezinha
seca, e algum
fastio; eu
irei preparando a Excelentíssima... Oh! tudo isto é em benefício dela. Uma vez que o filho não pode servir
a Igreja,
como
deve ser servida, o melhor modo de cumprir a vontade de Deus é dedicá-lo a outra cousa. O mundo
também é igreja
para os
bons...
Pareceu-me outra vez a vaca de Homero, como se este "mundo também é igreja para os bons", fosse
outro bezerro,
irmão
dos "santos óleos da teologia." Mas não dei tempo à ternura materna, e repliquei:
--Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, não é?
José Dias hesitou um pouco, depois explicou-se:
--Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu há meses que desconfio do seu peito. Você não
anda bom do
peito.
Em pequeno, teve umas febres e uma ronqueira... Passou tudo, mas há dias em que está mais
descorado. Não digo que
já
seria o mal, mas o mal pode vir depressa. Numa hora cai a casa. Por isso, se aquela santa senhora não
quiser ir
conosco,--ou para que vá mais depressa, acho que uma boa tosse... Se a tosse há de vir de verdade,
melhor é
apressá-la...
Deixe estar, eu aviso...
--Bem, mas em saindo daqui não há de ser para embarcar logo; saio primeiro, depois cuidaremos do
embarque; o
embarque
é que pode ficar para o ano. Não dizem que o melhor tempo é abril ou Maio? Pois seja maio. Primeiro
deixo o
seminário
daqui a dous meses...
E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta rápida, e perguntei-lhe à queima-
roupa:
--Capitu como vai?
[Linha 3650 de 7623 - Parte 2 de 4]
CAPÍTULO LXII / UMA PONTA DE IAGO
A pergunta era imprudente, na ocasião em que eu cuidava de transferir o embarque. Equivalia a confessar
que o
motivo
principal ou único da minha repulsa ao seminário era Capitu, e fazer crer Improvável a viagem.
Compreendi isto
depois que
falei; quis emendar-me, mas nem soube como, nem ele me deu tempo.
--Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da
vizinhança, que
case com
ela...
Estou que empalideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A notícia de que ela vivia alegre,
quando eu
chorava
todas as noites, produziu-me aquele efeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda
agora cuido
ouvi-lo. Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes
excessivas e
partes
diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui não é
das orelhas,
senão
da memória, chegaremos à exata verdade. A minha memória ouve ainda agora as pancadas do coração
naquele
instante.
Não esqueças que era a emoção do primeiro amor. Estive quase a perguntar a José Dias que me
explicasse a alegria de
Capitu, o que é que ela fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-me a tempo, e depois outra
idéia...
Outra idéia, não,--um sentimento cruel e desconhecido, o pulo ciúme, leitor das minhas entranhas. Tal foi
o que me
mordeu,
ao repetir comigo as palavras de José Dias: "Algum peralta da vizinhança." Em verdade, nunca pensara
em tal
desastre. Vivia
tão nela, dela e para ela, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade; nunca me
acudiu que
havia
peraltas na vizinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que
alguns olhavam
para
Capitu,--e tão senhor me sentia dela que era como se olhassem para mim, um simples dever de
admiração e de inveja.
Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o mal aparecia-me agora, não só possível mas certo.
E a alegria de
Capitu confirmava a suspeita; se ela vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os
olhos na rua,
falar-lhe-ia à janela, às ave-marias, trocariam flores e...
E... quê? Sabes o que é que trocariam mais- se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do
Capítulo e do livro,
não
acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as letras da etimologia. Mas se o achaste,
compreenderás que eu,
depois
de estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora, descer o resto dai ladeira, correr, chegar
à casa do
Pádua,
agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da
vizinhança. Não
fiz nada.
Os mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naqueles três ou quatro minutos, esta lógica de
movimentos e
pensamentos.
Eram soltos, emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma confusão, um turbilhão,
que me
cegava e
[Linha 3700 de 7623 - Parte 2 de 4]
ensurdecia. Quando tornei a mim, José Dias concluía uma frase, cujo princípio não ouvi, e o mesmo fim
era vago: "A
conta
que dará de si." Que conta e quem? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitu, e quis perguntar-lho,
mas a
vontade
morreu ao nascer, como tantas outras gerações delas. Limitei-me a inquirir do agregado quando é que iria
a casa ver
minha
mãe.
-- Estou com saudades de mamãe. Posso ir já esta semana?
--Vai sábado.
--Vai sábado.
--Sábado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe que me mande buscar sábado! Sábado! Este sábado, não? Que
me mande
buscar,
sem falta.
CAPÍTULO LXIII / METADES DE UM SONHO
Fiquei ansioso pelo sábado. Até lá os sonhos perseguiam-me, ainda acordado, e não os digo aqui para
não alongar esta
parte do livro. Um só ponho, e no menor número de palavras, ou antes porei dous, porque um nasceu de
outro, a não
ser
que ambos formem duas metades de um só. Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso
sexo, que
perturbava
assim a adolescência de um pobre seminarista. Não fosse ele, e este livro seria talvez uma simples
prática paroquial, se
eu
fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encíclica, se papa, como me recomendara tio Cosme:
"Anda lá, meu
rapaz,
volta-me papa!" Ah! por que não cumpri esse desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, todos os
destinos
estão
neste século.
Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da vizinhança, vi um destes que
conversava com a
minha amiga
ao pé da janela. Corri ao lugar, ele fugiu; avancei para Capitu, mas não estava só tinha o pai ao pé de si,
enxugando
os olhos
e mirando um triste bilhete de loteria. Não me parecendo isto claro, ia pedir a explicação, quando ele de
si mesmo a
deu; o
peralta fora levar-lhe a lista dos prêmios da loteria, e o bilhete saíra branco. Tinha o número 4004.
Disse-me que esta
simetria de algarismos era misteriosa e bela, e provavelmente a roda andara mal; era impossível que
não devesse ter a
sorte
grande. Enquanto ele falava, Capitu dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas. A maior
destas devia
ser
dada com a boca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Pádua desapareceu, como as suas esperanças
do bilhete,
Capitu
inclinou-se para fora, eu relancei os olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos, resmunguei
não sei que
palavras, e
acordei sozinho no dormitório.
[Linha 3750 de 7623 - Parte 2 de 4]
O interesse do que acabas de ler não está na matéria do sonho, mas nos esforços que fiz para ver se
dormia
novamente e
pegava nele outra vez. Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em
fechar os olhos,
apertá-los
bem, esquecer tudo para dormir, mas não dormia. Esse mesmo trabalho fez-me perder o sono até à
madrugada. Sobre
a
madrugada, consegui conciliá-lo, mas então nem peraltas, nem bilhetes de loterias, nem sortes grandes
ou
pequenas,--nada
dos nadas veio ter comigo. Não sonhei mais aquela noite, e dei mal as lições daquele dia.
CAPÍTULO LXIV / UMA IDÉIA E UM ESCRÚPULO
Relendo o Capítulo passado, acode-me uma idéia e um escrúpulo. O escrúpulo é justamente de escrever
a idéia, não a
havendo mais banal na terra, posto que daquela banalidade do sol e da lua, que o céu nos dá todos os
dias e todos os
meses.
Deixei o manuscrito, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões,
disposições e
pinturas,
é reprodução da minha antiga casa de Mata-cavalos. Outrossim, como te disse no Capítulo II, o meu fim
em imitar a
outra foi
ligar as duas pontas da vida, o que aliás na alcancei. Pois o mesmo sucedeu àquele sonho do seminário,
por mais que
tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos oficiais do homem é fechar e apertar muito os
olhos a ver se
continua
pela noite velha o sonho truncado da noite moça. Tal é a idéia banal e nova que eu não quisera pôr aqui e
só
provisoriamente
a escrevo.
Antes de concluir este Capítulo, fui à janela indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim
tão tênues que
se
esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais A noite não me respondeu
logo. Estava
deliciosamente bela, os morros palejavam de luar e o espaço morria de silêncio. Como eu insistisse,
declarou-me que os
sonhos já não pertencem à sua jurisdição Quando eles moravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ela
tinha o seu
palácio, e
donde os fazia sair com as suas caras de vária feição, dar-me-ia explicações possíveis. Mas os tempos
mudaram tudo.
Os
sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa. Estes, ainda que
quisessem imitar os
outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os
mares, são agora
objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos.
Era uma alusão às Filipinas. Pois que não amo a política, e ainda menos a política internacional, fechei a
janela e vim
acabar
este capítulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memória ou da
digestão;
basta-me
um sono quieto e apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha história e suas
pessoas.
CAPÍTULO LXV / A DISSIMULAÇÃO
Chegou Sábado, chegaram outros sábados, e eu acabei afeiçoando me à vida nova. Ia alternando a casa
e o
seminário. Os
padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No fim de
cinco semanas
estive
[Linha 3800 de 7623 - Parte 2 de 4]
quase a contar a este as minhas penas e esperanças; Capitu refreou-me.
--Escobar é muito meu amigo, Capitu!
--Mas não é meu amigo.
--Pode vir a ser; ele já me disse que há de vir cá para conhecer mamãe.
--Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não é só seu, mas também meu, e eu não
lhe dou
licença de
dizer nada a pessoa nenhuma.
Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci às suas reflexões foi, logo no primeiro
sábado, quando eu...
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Dom Casmurro - Parte 3 de 4 - Machado de Assis
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Dom Casmurro - Parte 1 de 4 - Machado de Assis
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Dom Casmurro - Parte 2 de 4 - Machado de Assis
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/09/dom-casmurro-p2de4-machado-de-assis.html
Dom Casmurro - Parte 3 de 4 - Machado de Assis
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