Erros de governos passados, falhas humanas, pistas ruins, caminhões de muitas toneladas. Entenda por que as estradas brasileiras são cenários de tragédias diárias.
Existe uma guerra no asfalto. Às vezes, o maior sai amassado, mas quem perde é o menor. Perde e morre. Todo mundo sabe disso. Aqui, você vai entender um pouco melhor as razões das tragédias que acontecem diariamente nas rodovias brasileiras. São razões históricas, mecânicas e até humanas. Antes, porém, vamos aos números que comprovam o que todos sabem: no asfalto, o caminhão mata.
Um levantamento, feito especialmente para a nos pela Polícia Rodoviária Federal, revelou que os caminhões estiveram envolvidos em 60% de todas as mortes ocorridas no trecho paulista da Rodovia Fernão Dias (São Paulo - Belo Horizonte), em 1994. É uma apuração inédita em meio à falta de dados seguros a respeito do envolvimento desses bólidos pesados nas trombadas fatais. Levantar com rigor a responsabilidade dos veículos de transporte no front rodoviário é uma tarefa tão difícil quanto viajar por ele. Mas o superintendente da Polícia Rodoviária Federal em São Paulo, Joaldo Bispo de Souza, confirma a representatividade da amostra apurada para nos: "Em 60 a 70% dos acidentes registrados, há alguma responsabilidade dos caminhões", ele garante.
Só nas estradas federais brasileiras morreram, no ano passado, 6 759 pessoas. Numa delas, a Rodovia Régis Bittencourt (BR-116), entre São Paulo e Curitiba, rodam 24 000 caminhões por dia. Há horários em que os peso pesados são bem mais numerosos nas estradas do que os automóveis. Em parte é por isso que, embora representem apenas 7% da frota nacional de veículos, a sua participação nos acidentes fatais seja tão alta como a comprovada pela nos na rodovia que liga São Paulo a Belo Horizonte.
"Em 80% dos desastres com mais de um veículo há participação de caminhões", avalia o capitão Sérgio da Silva, do Comando de Policiamento Rodoviário paulista. O problema é que uma batida dessas costuma ser muito mais grave do que uma colisão entre dois carros. É claro que se pode morrer até mesmo sem bater em nada. Por exemplo, ao capotar. Mas, é bom saber: se uma carreta de 25 toneladas vai, a 100 quilômetros por hora, de encontro a um Fusca estacionado, o impacto será equivalente a 2 500 toneladas. Não importa de quem é a culpa; mais uma vez, a tragédia irá marcar o asfalto.
O fato é que ao transportarem 70% de toda a carga do país os caminhões deixam um rastro sangrento. Além do mais, são pouco econômicos. A razão de entupirem nossas estradas está em decisões de governo, tomadas há algumas décadas. Enquanto nações mais desenvolvidas priorizaram outros meios de transporte por um motivo eloqüente - entre todos, o rodoviário é o mais caro -, a opção pela rodovia firmou-se por aqui. Isso começou a acontecer com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Na década de 40, o Brasil ainda contava com 38 000 quilômetros de ferrovias. Hoje, a extensão das linhas férreas é de apenas 30 214 quilômetros.
As ferrovias encolheram e as rodovias esticaram. Os 185 000 quilômetros de estradas que o país tinha nos anos 40 cresceram para l,6 milhão de quilômetros (embora, destes, apenas 148 243 quilômetros estejam pavimentados). É por essa teia esburacada, pouco policiada e extremamente caótica que transita grande parte de toda a produção brasileira. O negócio dos transportes gira 30 bilhões de dólares por ano.
Além disso, há o fator humano. Na boléia, vão motoristas que, em sua maioria, trabalham mais de dez horas por dia, sem folga semanal. Para agüentar, 33% levam uma televisão na cabine - ou seja, dividem a atenção entre a TV, as curvas e as ultrapassagens. Pilotam naves em condições precárias, quase todas com freios e faróis desregulados, folga no volante e problemas na suspensão.
Se, descontados os fatores objetivos como buracos, sinalização falha e más condições dos veículos, ocorrer um acidente com morte por erro humano, é pouco provável que o motorista venha a responder criminalmente pelos danos. O Código Penal antiquado (foi aprovado em 1940), a morosidade da Justiça e as deficiências no registro das ocorrências trabalham a favor da impunidade. "Apenas 1% dos crimes de trânsito resultam em sentenças irrecorríveis no Brasil", conta o juiz Octávio César Valeixo, que por dez anos foi o titular da 1a. Vara de Delitos de Trânsito de Curitiba. Inconformado com a impunidade, ele não contém a ironia: "O Brasil está enfrentando a criminalidade turbinada com instrumentos legais do tempo da charrete". O país mudou, charrete quase não se encontra mais, mas os governos que se seguiram ao do presidente Washington Luís (1926-1930) mantiveram sua crença de que "governar é abrir estradas". É uma crença maldita. Com mais trens, mais barcos, mais aviões e menos jamantas, o país pouparia, todos os anos, milhares de vidas.
Máquinas Mortíferas
Os problemas de 122 caminhões vistoriados em 1993 na Rodovia Presidente Dutra:
Faróis desregulados: 69,3%
Lâmpada de lanterna queimada: 62,8%
Espelhos retrovisores com vibração: 42,3%
Problemas de suspensão: 86,2%
Folga no volante: 68,7%
Pneus com pouca pressão 68,8%
Problemas de freio: 97,5%
Pneus em mau estado: 16,7%
Fonte: Instituto Nacional de Segurança no Trânsito
Um país sobre rodas de borracha
A distribuição do transporte de carga no Brasil
e em outros países em 1992 (%)
País Hidroviário Ferroviário Rodoviário
Brasil 2 28 70
EUA 25 50 25
França 17 55 28
Canadá 35 52 13
Paraguai 49 4 47
Fonte: Ministério dos Transportes/Confederação Nacional dos Transportes
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