O Cortiço - Parte 3 de 5 - Aluísio Azevedo
O Cortiço - Aluísio Azevedo
O patrão, meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da
fazenda e, como não gosto de caixeiros amigados, pode procurar
arranjo noutra parte!...
Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se
lentamente.
O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela
venda, pelo portão da esta agem, pelo frege, por todos os lados,
repartindo-se em pequenos magotes que discutiam o fato. Principiaram
os comentários, os juízos pró e contra o caixeiro; fizeram-se profecias.
Entretanto, Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de João
Romão e perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa.
- Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?
Ele não deu resposta.
- Vamos! vamos! fale! desembuche!
- Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de
cólera. - Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar:
ela é menor!
Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.
- Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!
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E despejou da venda, gritando para todos:
- Sabe? O cara de nabo diz que não casa!
Esta frase produziu o efeito de um grito de guerra entre as
lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas por uma grande
indignação.
- Como, não casa?!...
- Era só o que faltava!
- Tinha graça!
- Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha?
- Se não queria casar pra que fez mal?
- Quem não pode com o tempo não inventa modas!
- Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!
- Quem não quer ser loto não lhe vista a pele!
A mais empenhada naquela reparação era a Machona, e a mais
indignada com o fato era a Dona Isabel. A primeira correra à frente da
venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu
exemplo não tardou que em cada porta, onde era possível uma
escapula, se postassem as outras de sentinela, formando grupos de três
e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e
ameaças:
- Das Dores! toma cuidado, que o patife não espirre por ai!
- Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-no-lo pra cá!
Temos ainda algumas pequenas que lhe convêm!
- Mas onde está esse ordinário?!
- Saia o canalha!
- Está fazendo a trouxa!
- Quer escapar!
- Não deixe sair!
- Chame a polícia!
- Onde está o Alexandre?
E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro
foi ter com o Domingos.
- Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto.
Logo mais lhe direi o que deve fazer.
E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:
- Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!
- Pois então o homem que case! responderam.
- Ou dê-nos pra cá o patife!
- Fugir é que não!
- Não foge! não deixa fugir!
- Ninguém se arrede!
E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte,
ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que, se ela
insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por
um urbano.
- Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu
não posso perder tempo!
- Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.
- Venha o homem! acompanhou o coro.
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- É preciso dar-lhe uma lição!
- O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei... Está
perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão
descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!
Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras
afrouxou; João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e
disse-lhe que não arredasse pé de casa antes de noite fechada.
- No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o
prende aqui. Estamos quites.
- Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!...
- Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote
da rapariga!...
- Então eu tenho de pagar um dote?!...
- Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é
assim! Custa dinheiro! Agora, se você quiser, vá queixar-se à policia...
Está no seu direito! Eu me explicarei em juízo!...
- Com que, não recebo nada?...
- E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o
ficar às turras lá fora com esses danados! Você bem viu como estão
todos a seu respeito! E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados,
agradeça-o a mim! Foi preciso prometer dinheiro e tenho de cair com
ele, decerto! mas não é justo, nem eu admito, que saia da minha
algibeira porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguém, e
muito menos dos meus caixeiros!
- Mas...
- Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de
ficar calado; ao contrário - rua!
E afastou-se.
Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que
providências tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte "para ver
só!" O que nesse ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la
muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas.
O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só
instante. Não se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite,
Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Léonie, era
ainda esse o principal assunto das conversas.
Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à
francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro
em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de
encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à
moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte
botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha,
sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de
arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas
forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as
suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios
pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo
artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas,
os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que de todos os lados
surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre;
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Augusta, ao ver a sua pequena, a Juju, como vinha tão embonecada e
catita, ficou com os dela arrasados de água.
Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada,
levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma
fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe
chapéus escandalosos como os dela e dava-lhe jóias. Mas, naquele dia,
a grande novidade que Juju apresentava era estar de cabelos louros,
quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolução
na estalagem; a noticia correu logo de número a número, e muitos
moradores se abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta "com
cabelos de francesa".
Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o
seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços
depravados; era o que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções
do oficio. Prostituta de casa aberta, prezava todavia com admiração e
respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua
estima; cobria-a de obséquios de toda a espécie. Nos instantes que
estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a matariam de
ridículo em qualquer outro lagar, nem ela parecia a mesma, pois até os
olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferências:
assentava-se no primeiro banco, bebia água pela caneca de folha,
tomava ao colo o pequenito da comadre e, às vezes, descalçava os
sapatos para enfiar os chinelos velhos que encontrasse debaixo da
cama.
Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a
mulher não tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por
ela. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito
linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo,
malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim.
Juju, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de
casa em casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca,
como um ídolo milagroso, que todos queriam beijar.
E os elogios não cessavam:
- Rica pequena!...
- É um enlevo olhar a gente pro demoninho!
- É mesmo uma lindeza de criança!
- Uma criaturinha dos anjos!
- Uma boneca francesa!
- Uma menina Jesus!
O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a
todo momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse
por sua vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os
olhos úmidos, patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que
parecia postiço, um ar condolente e estúpido de um profundo
reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera à filha,
enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.
E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo,
Léonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e
crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente,
cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos
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e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás
tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a rir nem
levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com
a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua
sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A
das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a
mãozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E
não se fartavam de olhar para ela, de admirá-la; chegavam a
examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias,
levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de
tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida.
Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a
da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a
invejava do fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse
besta. O Albino contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o
cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta
não se iludia com a posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por
isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. "Ora! era
preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos
homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por
dentro e por fora!"
- Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma
companheira; seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito
bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear
à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos,
corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para
gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como
a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É
dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu
corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!
- E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...
- Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança
com a mãe.
E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou
que a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados,
mediante dois mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade em
que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar.
- Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.
- Que Costa?
- O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?
- Ah! sei...
E a cocote perguntou depois, abafando a voz:
- E aquilo?... Já veio afinal?...
- Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas!
Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da
Anunciação... mas não há meio!
Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que
Léonie recusou por não poder beber. "Estava em uso de remédios..."
Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os tomava.
- Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.
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E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota
de dez mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de
Carls Berg.
A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio
enternecido. A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos
circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar
buscar mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas
podiam beber juntas.
- Para que gastar tanto?... Que alma grande!
O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma
infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.
- Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber
Léonie
- Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a
comadre tem precisão de alguma... pode-se aprontar com mais pressa...
- Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir,
é verdade! também tenho poucas.
- Depois d'amanhã está tudo lá.
E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já
pelo rapaz que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria
no portão, à espera.
- É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...
- Não. É um mais alto. De cartola branca.
Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda.
Léonie ficou contrariada.
- Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou
incomodar alguém que me acompanhe!
- Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se
quiser, arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma
noite corre depressa!...
Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia
seguinte pela manhã iriam procurá-la muito cedo.
Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à
entrada que Léonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a
mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de
alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com
exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas
vezes.
- Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe,
mirando-a toda.
- Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca
ainda pura.
E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas,
estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à
Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia
só pela esquisitice, representando uma fatia de queijo com um
camundongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando
espantos e gargalhadas.
- Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua
conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse
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chegado já, eu estaria longe. - E mudando de tom, a acarinhar-lhe os
cabelos: - Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa
é muito sossegada... Já lá têm ido famílias!...
- Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.
- Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...
- Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça.
Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro
imediato, que era domingo. E a palestra durou animada até que chegou,
daí a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um
moço de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido
com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o viu
aproximar-se, disse baixinho à menina:
- Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?
Juju dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.
Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante,
acompanhada até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no
pátio, beliscou a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:
- Não lhe caia o queixo!...
O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d'ombros.
- Aquela pra cá nem pintada!
E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado
e bateu com o tamanco na canela da mulata.
- Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lagar da
pancada. Sempre há de mostrar que é galego!
X
No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa.
Lia-se no "Jornal do Comércio" que Sua Excelência fora agraciado
pelo governo português com o titulo de Barão do Freixal; e como os
seus amigos se achassem prevenidos para ir cumprimentá-lo no
domingo, o negociante dispunha-se a recebê-los condignamente.
Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, via-se nas
janelas do sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando
Leonor ou Isaura, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em
cima com um pau, os olhos fechados, a cabeça torcida para dentro por
causa da poeira que a cada pancada se levantava, como fumaça de um
tiro de peça. Chamaram-se novos criados para aqueles dias. No salão da
frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia rebuliço. Dona
Estela, de penteador de cambraia enfeitado de laços cor-de-rosa, era
lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens,
abanando-se com um grande leque; ou aparecia no patamar da escada
do fundo, preocupada em soerguer as saias contra as águas sujas da
lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira também ia e vinha, com
a sua palidez fria e úmida de menina sem sangue. Henrique, de paletó
branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a instante,
chegava à janela, para namoriscar Pombinha, que fingia não dar por
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isso, toda embebida na sua costura, à porta do número 15, numa cadeira
de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda
azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo
espaço, ela desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado.
Entretanto, a figura gorda e encanecida do novo Barão,
sobre-casacado, com o chapéu alto derreado para trás na cabeça e sem
largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava a sala de jantar,
seguia até a despensa, diligente esbaforido, indagando se já tinha vindo
isto e mais aquilo, provando dos vinhos que chegavam em garrafões,
examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda, dando
ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair, sempre
apressado, e metia-se no carro que o esperava à porta da rua.
- Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!
E viam-se chegar, quase sem intermitência, homens carregados de
gigos de champanha, caixas de Porto e Bordéus, barricas de cerveja,
cestos e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros
traziam perus e leitões, canastras d'ovos, quartos de carneiro e de
porco. E as janelas do sobrado iam-se enchendo de compoteiras de
doce ainda quente, saído do fogo, e travessões, de barro e de ferro, com
grandes peças de carne em vinha d'alhos, prontos para entrar no forno.
À porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado, que
tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem
enforcassem depois de tirar-lhe a pele.
Todavia, cá embaixo, um caso palpitante agitava a estalagem:
Domingos, o sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um
novo caixeiro o substituía ao balcão.
O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo
evadido:
- Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...
- Mas você disse que respondia por ele! repontou Marciana, que
parecia ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte e quatro horas.
- De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?...
É ter paciência!
- Pois então ande com o dote!
- Que dote? Você está bêbeda?
- Bêbeda, hein? Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu
hei de mostrar!
- Ora, não me amole!
E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se
chegara.
- Deixa estar, malvado, que Deus é quem há de punir por mim e
por minha filha! exclamou a desgraçada.
Mas o vendeiro afastou-se, indiferente às frases que uma ou outra
lavadeira imprecava contra ele. Elas, porém, já se não mostravam tão
indignadas como na véspera; uma só noite rolada por cima do
escândalo bastava para tirar-lhe o mérito de novidade.
Marciana foi com a pequena à procura do subdelegado e voltou
aborrecida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto
não aparecesse o delinqüente. Mãe e filha passaram todo esse sábado
na rua, numa roda-viva, da secretaria e das estações de polícia para o
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escritório de advogados que, um por um, lhes perguntavam de quanto
dispunham para gastar com o processo, despachando-as, sem mais
considerações, logo que se inteiravam da escassez de recursos de ambas
as partes.
Quando as duas, prostradas de cansaço, esbraseadas de calor,
tornaram à tarde para a estalagem, na hora em que os homens do
mercado, que ali moravam, recolhiam-se já com os balaios vazios ou
com o resto da fruta que não conseguiram vender na cidade, Marciana
vinha tão furiosa que, sem dar palavra à filha e com os braços moídos
de esbordoá-la, abriu toda a casa e correu a buscar água para baldear o
chão. Estava possessa.
Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto uma porcaria!
Parece que nunca se limpa o diabo desta casa! É deixá-la fechada uma
hora e morre-se de fedor! Apre! isto faz peste!
E notando que a pequena chorava:
- Agora deste para chorar, hein? mas na ocasião do relaxamento
havias de estar bem disposta!
A filha soluçou.
- Cala-te, coisa-ruim! Não ouviste?
Florinda soluçou mais forte.
- Ah! choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com
razão.
E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.
Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de
uma só carreira o pátio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.
Ninguém teve tempo de apanhá-la, e um clamor de galinheiro
assustado levantou-se entre as lavadeiras.
Marciana foi até o portão, como uma doida e, compreendendo que
a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos,
olhando para o espaço. As lágrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E
logo, sem transição, disparou da cólera, que a convulsionava desde a
manhã da véspera, para cair numa dor humilde enternecida de mãe que
perdeu o filho.
- Para onde iria ela, meu pai do céu?
- Pois você desd'ontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita.
Fugiu-lhe, é bem feito! Que diabo! ela é de carne, não é de ferro!
- Minha filha!
- É bem feito! Agora chore na cama que é lugar quente!
- Minha filha! Minha filha! Minha filha!
Ninguém quis tomar o partido da infeliz, à exceção da cabocla
velha, que foi colocar-se perto dela, fitando-a imóvel, com o seu
desvairado olhar de bruxa feiticeira.
Marciana arrancou-se da abstração plangente em que caíra, para
arvorar-se terrível defronte da venda, apostrofando com a mão no ar e a
carapinha desgrenhada:
- Este galego e que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu,
ladrão! Se não me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo
na casa.
A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas últimas palavras.
O vendeiro chegou à porta e ordenou em tom seco à Marciana que
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despejasse o número 12.
- É andar! É andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo
um urbano! Dou-lhe uma noite! amanhã pela manhã - rua!
Ah! ele esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais
de uma vez mandara Bertoleza à coisa mais imunda, apenas porque esta
lhe fizera algumas perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinha
visto assim, tão fora de si, tão cheio de repelões; nem parecia aquele
mesmo homem inalterável, sempre calmo e metódico.
E ninguém seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o
fato de ter sido o Miranda agraciado com o titulo de Barão.
Sim, senhor! aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão
miserável; aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua
camisa de riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior
que os cães, para pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia;
aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus
privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado, que nunca
jamais amara senão o dinheiro, invejava agora o Miranda, invejava-o
deveras, com dobrada amargura do que sofrera o marido de Dona
Estela, quando, por sua vez, o invejara a ele. Acompanhara-o desde que
o Miranda viera habitar o sobrado com a família; vira-o nas felizes
ocasiões da vida, cheio de importância, cercado de amigos e rodeado
de aduladores; vira-o dar festas e receber em sua casa as figuras mais
salientes da praça e da política; vira-o luzir, como um grosso pião de
ouro, girando por entre damas da melhor e mais fina sociedade
fluminense; vira-o meter-se em altas especulações comerciais e sair-se
bem; vira seu nome figurar em várias corporações de gente escolhida e
em subscrições, assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas de
caridade e festas de regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e
aclamado como homem de vistas largas e grande talento financeiro;
vira-o enfim em todas as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja.
Mas agora, estranho deslumbramento! quando o vendeiro leu no
"Jornal do Comércio" que o vizinho estava barão - Barão! - sentiu
tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se lhe
apagou dos olhos.
- Barão!
E durante todo o santo dia não pensou noutra coisa. "Barão!...
Com esta é que ele não contava!..." E, defronte da sua preocupação,
tudo se convertia em comendas e crachás; até os modestos dois vinténs
de manteiga, que media sobre um pedaço de papel de embrulho para
dar ao freguês, transformava-se, de simples mancha amarela, em
opulenta insígnia de ouro cravejada de brilhantes.
À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para
dormir, não pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto
sórdido; pelas paredes imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo,
nos tetos funebremente velados pelas teias de aranha, estrelavam
pontos luminosos que se iam transformando em grã-cruzes, em hábitos
e veneras de toda a ordem e espécie. E em volta do seu espírito, pela
primeira vez alucinado, um turbilhão de grandezas que ele mal conhecia
e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e
rendas, velado e pérolas, colos e braços de mulheres seminuas, num
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fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos cor-de-ouro. E nuvens de
caudas de vestidos e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao
som de langorosas valsas e à luz de candelabros de mil velas de todas as
cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma coroa à portinhola,
o cocheiro teso, de libré, sopeando parelhas de cavalos grandes. E
intermináveis mesas estendiam-se, serpenteando a perder de vista,
acumuladas de iguarias, numa encantadora confusão de flores, luzes,
baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque
de convivas, de taça em punho, brindando o anfitrião.
E, porque nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas
pelo ruído namorador e fátuo, ficava deslumbrado com o seu próprio
sonho. Tudo aquilo, que agora lhe deparava o delírio, até ai só lhe
passara pelos olhos ou lhe chegara aos ouvidos como o eco e reflexo de
um mundo inatingível e longínquo; um mundo habitado por seres
superiores; um paraíso de gozos excelentes e delicados, que os seus
grosseiros sentidos repeliam; um conjunto harmonioso e discreto de
sons e cores mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas pálidas,
sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não
determinava o que era pétala de rosa ou asa de borboleta, murmúrio de
brisa ou ciciar de beijos.
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar,
gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com
cebola crua e gordura podre.
Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era
todo aquele voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra,
chegando-se para o seu alcance, lentamente, acentuando-se. E as
dúbias sombras tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas
transformavam-se em falas distintas, e as linhas desenhavam-se nítidas,
e tudo se ia esclarecendo e tudo se aclarava, num reviver de natureza ao
raiar do sol. Os tênues murmúrios suspirosos desdobravam-se em
orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos
rumores indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e
cavalheiros discutiam política, artes, literatura e ciência. E uma vida
inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos seus
olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro;
uma vida de palácio, entre mobílias preciosas e objetos esplêndidos,
onde ele se via cercado de titulares milionários, e homens de farda
bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a mão
no ombro. E ali ele não era, nunca fora, o dono de um cortiço, de
tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do ouro!
o Barão das grandezas! o Barão dos milhões! Vendeiro! Qual! era o
famoso, o enorme capitalista! o proprietário sem igual! o incomparável
banqueiro, em cujos capitais se equilibrava a terra, como imenso globo
em cima de colunas feitas de moedas de ouro. E viu-se logo montado a
cavaleiras sobre o mundo, pretendendo abarcá-lo com as suas pernas
curtas; na cabeça uma coroa de rei e na mão um cetro. E logo, de todos
os cantos do quarto, começaram a jorrar cascatas de libras esterlinas, e a
seus pés principiou a formar-se um formigueiro de pigmeus em grande
movimento comercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos
e caixões marcados com as iniciais do seu nome; e telegramas
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faiscavam eletricamente em volta da sua cabeça; e paquetes de todas as
nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de
colosso, arfando e apitando sem trégua; e rápidos comboios a vapor
atravessam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com uma
cadeia de vagões.
Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte frase:
- Acorda, seu João, para ir à praia. São horas!
Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manhãs,
para ir buscar o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses.
João Romão, com medo de ser iludido, não confiava nunca aos
empregados a menor compra a dinheiro; nesse dia, porém, não se achou
com animo de deixar a cama e disse à amiga que mandasse o Manuel.
Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo
sono.
Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já.
Içaram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas,
armaram-se florões de murta à entrada e recamaram-se de folhas de
mangueira o corredor e a calçada. Dona Estela mandou soltar foguetes
e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de música, em
frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara
com a família; todo de branco, com uma gravata de rendas, brilhantes
no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janelas, ao
lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa
com o lenço; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente.
João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas
aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e
o mais acertado: - ter vivido como ele vivera até ali, curtindo
privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o
Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?... Estaria ele, João
Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do
vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de acordo! mas
teria animo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma
boa porção de contos de réis, tão penosamente acumulados, em troca
de uma tetéia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu,
tomando esposa, fazendo família; e cercando-se de amigos?... Teria
animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos
outros, quando até ali fora tão pouco condescendente para com a
própria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a
uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado
como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?...
Poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso somente da sua
vontade?... "Sem nunca ter vestido um paletó, como vestiria uma
casaca?... Com aqueles pés, deformados pelo diabo dos tamancos,
criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E suas
mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro, como
se ajeitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difícil
seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar
as damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos
e cadeiras douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer
barbaridades?..."
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E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um
desejo forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as
pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível
convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse
ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e
com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a
sua ambição e despolindo o seu ouro.
"Fora uma besta!... pensou de si próprio, amargurado: Uma
grande besta!... Pois não! por que em tempo não tratara de habituar-se
logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patrícios e
colegas de profissão?... Por que, como eles, não aprendera a dançar? e
não freqüentar sociedades carnavalescas? e não fora de vez em quando
à Rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e corridas e a passeios?... Por
que se não habituara com as roupas finas, e com o calçado justo, e com
a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéu, e com a
cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar
de privilégio para isso?... Maldita economia!"
- Teria gasto mais, é verdade!... Não estaria tão bem!... mas, ora
adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!...
Seria um homem civilizado!...
- Você deu hoje para conversar com as almas, seu João?...
perguntou-lhe Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distraído do
serviço.
- Deixe! Não me amole você também. Não estou bom hoje!
- Ó gentes! não falei por mal!... Credo!
- 'Stá bem! Basta!
E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a
implicar com tudo. Arranjou logo uma pega, à entrada da venda, com o
fiscal da rua: "Pois ele era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças
de multas?... Se o bolas do fiscal esperava comê-lo por uma perna,
como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver só
quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que ele não
gostava de cães à porta!... Era andar!" Pegou-se depois com a
Machona, por causa de um gato desta, que, a semana passada, lhe fora
ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias,
encolerizado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um
berro, saírem as crianças de seu caminho: "Que praga de piolhos! Arre,
demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam ratas!" Deu
um encontrão no velho Libório.
- Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que
diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não
presta pra nada!
Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los
brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou
os italianos, porque estes, na alegre independência do domingo, tinham
à porta da casa uma esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles
comiam tagarelando, assentados sobre a janela e a calçada.
- Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro
de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita
raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o
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olho da rua! Aqui mando eu!
Com a pobre velha Marciana, que não tratara de despejar o número
12, conforme a intimação da véspera, a sua fúria tocou ao delírio. A
infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e
maldizer-se, monologando com persistência maníaca. Não pregou olho
durante toda a noite; saíra e entrara na estalagem mais de vinte vezes,
irrequieta, ululando, como uma cadela a quem roubaram o cachorrinho.
Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam.
João Romão falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o
vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou
que esvaziassem o numero 12.
- Os tarecos fora! e já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca!
E tinha gestos inflexíveis de déspota.
Principiou o despejo.
- Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele, quando
os carregadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora
do portão! Lá fora do portão!
E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na
rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas,
resmungando. Transeuntes paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo
de curiosos. Mas ninguém entendia o que ela rosnava; era um rabujar
confuso, interminável, acompanhado de um único gesto de cabeça,
triste e automático. Ali perto, o colchão velho, já roto e destripado, os
móveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos úteis, as
louças ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem,
um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em
flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos
domingos, aparecia sempre; e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e
lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os tabuleiros de roupa
engomada, que saiam, cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que
entravam; e Marciana não se movia do seu lugar, monologando. João
Romão percorreu o número 12, escancarando as portas, a dar arres e
empurrando para fora, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que
lá ficara abandonado; e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a
sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda
relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam
ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e
faziam-lhe oferecimentos, Marciana não respondia. Quiseram obrigá-la
a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção a coisa
alguma, parecia não dar pela presença de ninguém. Chamaram-na pelo
nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem
tirar a vista de um ponto.
- Cruzes! parece que lhe deu alguma!
- A Augusta chegara-se também.
- Teria ensandecido?... perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava
para a infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada!
- Tia Marciana! dizia a mulata. Não fique assim!! Levante-se!
Meta os seus trens pra dentro! Vá lá pra casa até encontrar arrumação!...
Nada! O monólogo continuava.
- Olhe que vai chover! Não tarda a cair água! Já senti dois pingos
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na cara.
Qual!
A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente
imóvel, como um efeito de sugestão.
Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado
pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das
Dores também veio. Deram três horas da tarde. A casa do Miranda
continuava em festa animada cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a
música quase que não tomava fôlego, enfiando quadrilhas e valsas;
moças e meninas dançavam na sala da frente, com muito riso;
desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados iam e vinham, de
carreira, da sala de jantar à despensa e à cozinha, carregados de copos
em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando
à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de
passeio com a mãe em casa de Léonie.
João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e
com a Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se de que
tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira,
nomeando o próprio Jerônimo, cuja força física aliás o intimidara
sempre. "Era um relaxamento aquela porcaria de serviço! Havia três
semanas que estava com uma broca à-toa, sem atar, nem desatar; afinal
ai chegara o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma
verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora
o primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! não largava os
rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela! Não tinha jeito!"
Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em
defesa deste com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se,
assanhando todos os ânimos. Felizmente, a chuva, caindo em cheio,
veio dispersar o ajuntamento que se tornava sério. Cada um correu para
o seu buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e
vieram cá fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando,
rindo, saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que
nadavam. E lá defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a água
jorrava copiosamente, alagando o pátio.
Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva,
um caixeiro entregou-lhe um cartão de Miranda. Era um convite para lá
ir à noite tomar uma chávena de chá.
O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obséquio, primeiro
desse gênero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a
cólera com mais ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um
ultraje, uma provocação. "Por que o pulha o convidara, devendo saber
que ele decerto lá não ia?... Para que, se não para o enfrenesiar ainda
mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse à tábua com a sua
festa e com os seus títulos!"
- Não preciso dele para nada!... exclamou o vendeiro. Não
preciso, nem dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas,
dava-as eu!
No entanto, começou a imaginar como seria, no caso que estivesse
prevenido de roupa e aceitasse o convite: figurou-se bem vestido, de
pano fino, com uma boa cadeia de relógio, uma gravata com alfinete de
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brilhantes; e viu-se lá em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados,
prestando atenção a um, prestando atenção a outro, discretamente
silencioso e afável, sentindo que o citavam dos lados em voz mortiça e
respeitosa como um homem rico, cheio de independência. E adivinhava
os olhares aprobativos das pessoas sérias; os óculos curiosos das velhas
assestados sobre ele, procurando ver se estaria ali um bom arranjo para
uma das filhas de menor cotação.
Nesse dia serviu mal e porcamente aos fregueses; tratou aos
repelões a Bertoleza e, quando, já as cinco horas, deu com a Marciana,
que, uns negros por compaixão haviam arrastado para dentro da venda,
disparatou:
- Ora bolas! pra que diabo me metem em casa este estupor?!
Gosto de ver tais caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é
acoito de vagabundos!...
E, como um polícia, todo encharcado de chuva, entrasse para
beber um gole de parati, João Romão voltou-se para ele e disse-lhe:
- Camarada, esta mulher é gira! não tem domicilio, e eu não hei
de, quando fechar a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!
O soldado saiu e, daí a coisa de uma hora, Marciana era carregada
para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monólogo
de demente. Os cacaréus foram recolhidos ao depósito público por
ordem do inspetor do quarteirão. E a Bruxa era a única que parecia
deveras impressionada com tudo aquilo.
Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reapareceu,
como para despedir-se: andorinhas esgaivotaram no ar; e o cortiço
palpitou inteiro na trêfega alegria do domingo. Nas salas do barão a
festa engrossava, cada vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de
lá uma taça quebrar-se no pátio da estalagem, levantando protestos e
surriadas.
A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que
começou ainda com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais
cedo que de costume, incitado pela grande animação que havia em casa
do Miranda.
Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia
para a coisa; estava inspirada; divina! Nunca dançara com tanta graça e
tamanha lubricidade!
Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era
um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia,
enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo
gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos
sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano com
línguas finíssimas de cobra.
Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana,
ofegante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o
português segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão:
- Meu bem! se você quiser estar comigo, dou uma perna ao
demo!
O mulato não ouviu, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a
rondar disfarçadamente o rival.
O canto e a dança continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a
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das Dores. Nenen, mais uma amiga sua, que fora passar o dia com ela,
rodavam de mãos nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de
palmas cadenciadas, no acompanhamento do ritmo requebrado da
musica.
Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho à Rita,
Firmo precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabo.
Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de
derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo,
requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte
dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido.
Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual.
Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo silêncio.
Ninguém se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda,
iluminados amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens,
perfilados defronte um do outro, olhavam-se em desafio.
Jerônimo era alto, espadaúdo, construção de touro, pescoço de
Hércules, punho de quebrar um coco com um murro: era a força
tranqüila, o pulso de chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo
que o português, pernas e braços secos, agilidade de maracajá: era a
força nervosa; era o arrebatamento que tudo desbarata no sobressalto
do primeiro instante. Um, sólido e resistente; o outro, ligeiro e
destemido, mas ambos corajosos.
- Senta! Senta!
- Nada de rolo!
- Segue a dança, gritaram em volta.
Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.
O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de
cima do mulato.
- Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!... rosnou ele.
- Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu
Firmo, frente a frente; agora avançando e recuando, sempre com um
dos pés no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os braços,
como preparado para agarrá-lo.
Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com
um soco armado; o cabra, porém, deixou-se cair de costas,
rapidamente, firmando-se nas mãos o corpo suspenso, a perna direita
levantada; e o soco passou por cima, varando o espaço, enquanto o
português apanhava no ventre um pontapé inesperado.
- Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o
mulato, quando uma cabeçada o atirou no chão.
- Levanta-se, que não dou em defuntos! exclamou o Firmo, de
pé, repetindo a sua dança de todo o corpo.
O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira
o tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona
na orelha. Furioso, desferiu novo soco, mas o capoeira deu para trás um
salto de gato e o português sentiu um pontapé nos queixos.
Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Então fez-se um clamor
medonho. As mulheres quiseram meter-se de permeio, porém o cabra as
emborcava com rasteiras rápidas, cujo movimento de pernas apenas se
percebia. Um horrível sarilho se formava. João Romão fechou às
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pressas as portas da venda e trancou o portão da estalagem, correndo
depois para o lugar da briga. O Bruno, os mascates, os trabalhadores da
pedreira, e todos os outros que tentaram segurar o mulato, tinham
rolado em torno dele, formando-se uma roda limpa, no meio da qual o
terrível capoeira, fora de si, doido, reinava, saltando a um tempo para
todos os lados, sem consentir que ninguém se aproximasse. O terror
arrancava gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita
que, a certa distancia, via, de braços cruzados, aqueles dois homens a se
baterem por causa dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. A
lua escondera-se: mudara o tempo; o céu, de limpo que estava, fizera-se
cor de lousa; sentia-se um vento úmido de chuva. Piedade berrava
reclamando polícia; tinha levado um troca-queixos do marido, porque
insistia em tirá-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se de
gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.
Nisto, ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo
acabava de receber, sem esperar, uma formidável cacetada na cabeça. É
que Jerônimo havia corrido à casa e armara-se com o seu varapau
minhoto. E então o mulato, com o rosto banhado de sangue, refilando
as presas e espumando de cólera, erguera o braço direito, onde se viu
cintilar a lamina de uma navalha.
Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa,
cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por
cima dos outros. Albino perdera os sentidos; Piedade clamava,
estarrecida e em soluços, que lhe iam matar o homem; a das Dores
soltava censuras e maldições contra aquela estupidez de se destriparem
por causa de entrepernas de mulher; a Machona, armada com um ferro
de engomar, jurava abrir as fuças a quem lhe desse um segundo coice
como acabava ela de receber um nas ancas; Augusta enfiara pela porta
do fundo da estalagem, para atravessar o capinzal e ir à rua ver se
descobria o marido, que talvez estivesse de serviço no quarteirão. Por
esse lado acudiam curiosos e o pátio enchia-se de gente de fora. Dona
Isabel e Pombinha, de volta da casa de Léonie, tiveram dificuldade em
chegar ao número 15, onde, mal entraram, fecharam-se por dentro,
praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se da sorte que as
lançou naquele inferno. Entanto, no meio de uma nova roda, encintada
pelo povo, o português e o brasileiro batiam-se.
Agora a luta era regular: havia igualdade de partidos, porque o
cavouqueiro jogava o pau admiravelmente; jogava-o tão bem quanto o
outro jogava a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcançá-lo;
Jerônimo, sopesando ao meio a grossa vara na mão direita, girava-a com
tal perícia e ligeireza em torno do corpo, que parecia embastilhado por
uma teia impenetrável e sibilante. Não se lhe via a arma; só se ouvia um
zunido do ar simultaneamente cortado em todas as direções.
E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha já
recebido pauladas na testa, no pescoço, nos ombros, nos braços, no
peito, nos rins e nas pernas. O sangue inundava-o inteiro; ele rugia e
arfava, iroso e cansado, investindo ora com os pés, ora com a cabeça, e
livrando-se daqui, livrando-se dali, aos pulos e às cambalhotas.
A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores
aclamavam-no já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira
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mergulhou, num relance, até as canelas do adversário e surgiu-lhe rente
dos pés, grupado nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada.
Jerônimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os
intestinos.
- Matou! Matou! Matou! exclamaram todos com assombro.
Os apitos esfuziaram mais assanhados.
Firmo varou pelos fundos do cortiço e desapareceu no capinzal.
- Pega! Pega!
- Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos
sobre o corpo ensangüentado do marido. Rita viera também de carreira
lançar-se ao chão junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos.
- É preciso o doutor! suplicou aquela, olhando para os lados à
procura de uma alma caridosa que lhe valesse.
Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no
portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.
- Abre! Abre! reclamavam de fora.
João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo,
gritando a todos:
- Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!
- Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro.
E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.
- Agüenta! Agüenta!
Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da
mulher e da mulata.
- Agüenta! Agüenta!
De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de
lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos,
numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre
se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma
simples luta entre dois rivais, estava direito! "Jogassem lá as cristas, que
o mais homem ficaria com a mulher!" mas agora tratava-se de defender
a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou
alguma coisa querida.
- Não entra! Não entra!
E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se
repetiam ferozes.
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que
penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de
evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos,
quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma
questão de ódio velho.
E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e
sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem,
rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de
colchões e sacos de cal, formando às pressas uma barricada.
As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava,
começava a abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos
entrincheirados atrás dela. Os que entravam de fora por curiosidade
não puderam sair e viam-se metidos no surumbamba. As cercas das
[Linha 4200 de 8202 - Parte 3 de 5]
hortas voaram A Machona terrível fungara as saias e empunhava na
mão o seu ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava nada por
ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa.
Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram
tábuas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram
recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns
vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.
Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar
ninguém por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá
de dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida
e duas praças abandonavam o campo, à falta de ar.
Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos,
mas a polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade
pessoal de desforço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem
espingardas fariam fogo. O único deles que conseguiu trepar à
barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de pau que teve de ser
carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de
sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na
capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano.
- Fora os morcegos!
- Fora! Fora!
E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome
fundo de garrafa!
Os apitos estridulavam mais e mais fortes.
Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da
barricada.
- Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está
saindo fumaça!
- Fogo!
A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do
cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo
esfrega um olho!
Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que
era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários,
avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam e
penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e
para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão
atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros
cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam
dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de
vingança.
Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais
estridente e um grande pé-d'água desabou cerrado.
XI
A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou
do juízo e tentou incendiar o cortiço.
[Linha 4250 de 8202 - Parte 3 de 5]
Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela,
com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e
preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as
conseqüências foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas
outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não escaparam à
devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a
coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial aguaceiro apagar
também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos
ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. "A ir um iriam
todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer,
fez! Estava satisfeita!"
Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu
descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual
cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes
lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à
meia-noite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o
vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e carpindo,
inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma
praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia
muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos, hortas e
cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a
lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto
sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos
cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia
inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo
voltasse aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar novas
tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a
remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à
presença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em
mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam,
quer por espírito de camaradagem, quer por simples curiosidade.
Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma
romaria; algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um
magote de italianos ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo;
alguns cantavam. Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem
discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas
e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas
por onde desfilava a ruidosa farândola.
A sala da polícia encheu-se.
O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era
respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das
ameaças da autoridade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia
e todos se queixavam da polícia, exagerando as perdas recebidas na
véspera.
A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o
taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasião se
achava ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as praças
lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que
encontraram, como se aquilo lá fosse roupa de francês!
- Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!
[Linha 4300 de 8202 - Parte 3 de 5]
Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a
resistência. "Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os
morcegos, quando lhes não saia alguém pela frente! Esbodegavam até à
última, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque
estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada
que nem boi ladrão?... Tinha lá jeito? Os rolos era sempre a polícia quem
os levantava com as suas fúrias! Não se metesse ela na vida de quem
vivia sossegado no seu canto, e não seria tanto barulho!..." Como de
costume, o espírito de coletividade, que unia aquela gente em circulo
de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia. O
subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou
o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais
quente ainda que a da ida.
Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade,
que nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o
criminoso; tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia,
desceu da casa do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não
conseguiu arrancar deste o menor esclarecimento sobre o motivo da
navalhada. "Não fora nada!... Não fora de propósito!... Estavam a
brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a menor intenção de
fazer-lhe mossa!..."
Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido.
Foi ela quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao
medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam,
demorando-se um instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo
se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que
Piedade, aflita e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se.
A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma
profunda expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia
apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele
Hércules tranqüilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na
sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. "E tudo por causa dela!
só por ela!" Seu coração de mulher rendia-se cativo a semelhante
dedicação ensangüentada e dolorosa. E ele, o mísero, interrompia as
contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da
baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia gozar dos seus carinhos.
E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido,
sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor
silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava
loucamente.
Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o
por tu, ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da
sua mão feminil. E ali mesmo em presença da mulher, dele, só faltava
beijá-lo com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e
sequiosos.
Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas
velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem
de Santo Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato,
enquanto o vendeiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia, e
o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do conserto das
[Linha 4350 de 8202 - Parte 3 de 5]
tinas e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de
um carro para o hospital.
As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda
a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem
que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que
tinham roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de
banho para debaixo das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço.
Discutiu-se a campanha da véspera sem variar o assunto. Aqui era um
que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo
entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de
empáfia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade;
mais adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres
e homens, sofrera o seu prejuízo. ou a sua arranhadura, e mostravam
entre si, numa febre de indignação, os objetos partidos ou a parte do
corpo escoriada.
Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem.
A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza
atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto dela,
porem não conseguiu dormir; sentia calafrios e pontadas na cabeça.
Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa
para suar. Supunha estar com febre.
A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de
mudar-lhe a roupa, o viu pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da
madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar, fungando
no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o
caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco d'água à torneira da
cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando
fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a
borbotar grossos novelos de fumo espesso.
Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os
dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o
burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom
humor.
Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa,
sem animo de sair dos lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a
abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto.
- Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona
Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens.
- Ainda sinto o corpo mole... mas não é nada... isto passa!...
- Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te
dizia?... Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!...
- Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé!
Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o
alinho da cabeça, defronte do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia
sem forças para a menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa
melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na
limpidez cristalina de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso
pálido a entreabrir-lhe as pétalas da boca, sem lhe alegrar os lábios, que
pareciam ressequidos à mingua de beijos de amor; assim delicada
planta murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta não vai
[Linha 4400 de 8202 - Parte 3 de 5]
sacudir sobre ela as asas prenhes de fecundo e dourado pólen.
O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá
impressões de íntimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda
a sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la
junto de si, naqueles divãs fofos e traidores, entre todo aquele luxo
extravagante e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à
criada que não deixasse entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê,
e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra,
tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e
pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.
Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo; na sua parva
compreensão do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles
móveis casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe
saudosas recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciência por
melhor futuro.
Ai! assim Deus quisesse ajudá-la!...
Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um
pequeno lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de
champanha, gelo e água de Seltz, e, sem se descuidar um instante da
rapariga, tinha para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a
comida à boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo
da mesa.
Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a
tomar vinho, sentiu vontade de descansar o corpo; Léonie
franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a
velha dormia, fechou a porta pelo lado de fora, para melhor ficar em
liberdade com a pequena.
Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!
- Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e
deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!...
Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que
sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor,
cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
- Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a
para a alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda
perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por
acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um
pouco antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia
prestar-lhe atenção e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as
coxas e o colo. Depois, como que distraidamente, começou a
desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
- Não! Para quê!... Não quero despir-me...
- Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
- Estou bem assim. Não quero!
- Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que
[Linha 4450 de 8202 - Parte 3 de 5]
tens medo?... Olha! Vou dar exemplo!
E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.
A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio,
vermelha de pudor.
- Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila
trêmula.
E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz,
arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe
todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.
- Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha
estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez
fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.
- Que mal faz?... Estamos brincando...
- Não! Não! balbuciou a vitima, repelindo-a.
- Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como
entre duas colunas; e pondo em contacto com o dela todo o seu corpo
nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas
pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o
rogar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais
sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do
sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos.
Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a
carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida
de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua,
bufando e relinchando.
E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe
os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o
lóbulo dos ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se
quisesse arrancá-lo aos punhados. Até que, com um assomo mais forte,
devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos,
curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado, exânime, inerte, os
membros atirados num abandono de bêbedo, soltando de instante a
instante um soluço estrangulado.
A menina voltara a si e torcera-se logo em sentido contrário à
adversária, cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto,
envergonhada e corrida.
A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos,
procurou animá-la, ameigando-lhe a nuca e as espáduas. Mas Pombinha
parecia inconsolável, e a outra teve de erguer-se a meio e puxá-la como
uma criança para o seu colo, onde ela foi ocultando o rosto, a soluçar
baixinho.
- Não chores assim, meu amor!...
Pombinha continuou a soluçar.
- Vamos! Não quero ver-te deste modo!... Estás zangada
comigo?...
- Não volto mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzela,
desgalgando o leito para vestir-se.
- Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal
com a tua negrinha!... Anda! Não me feches a cara!...
[Linha 4500 de 8202 - Parte 3 de 5]
- Deixe-me!
- Vem cá, Pombinha!
- Não vou! Já disse!
E vestia-se com movimentos de raiva. Léonie saltara para junto
dela e pôs-se a beijar-lhe, à força. os ouvidos e o pescoço, fazendo se
muito humilde, adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava, e
obedecer-lhe como um cachorrinho, contanto que aquela tirana não se
fosse assim zangada.
- Faço tudo! tudo! mas não fiques mel comigo! Ah! se soubesse
como eu te adoro!...
- Não sei! Largue-me!...
- Espera!
- Que amolação! Oh!
- Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus!
Pombinha acabava de encasar o último botão do corpinho, e
repuxava o pescoço e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao
corpo. Mas Léonie caíra-lhe aos pés, enleando-a pelas pernas e
beijando-lhe as saias.
- Olha!... Ouve!... - Deixa-me sair!
- Não! não hás de ir zangada, ou faço aqui um escândalo dos
diabos! - E que mamãe já acordou com certeza!...
- Que acordasse!
Agora a meretriz defendia a porta da alcova.
- Oh! meu Deus! Deixe-me sair!
- Não deixo, sem fazermos as pazes...
- Que aborrecimento!
- Dá-me um beijo!
- Não dou!
- Pois então não sais!
- Eu grito!
- Pois grita! Que me importa!
- Arrede-se daí, por favor!...
- Faz as pazes...
- Não estou zangada, creia! Estou é indisposta... Não me sinto
boa!
- Mas eu faço questão do beijo!
- Pois bem! Está ai!
E beijou-a.
- Não quero assim! Foi dado de má vontade!...
Pombinha deu-lhe outro.
- Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um
instante!
Em três tempos, lavou-se ligeiramente no bidê, endireitou o
penteado defronte do espelho, num movimento rápido de dedos, e
empoou-se, perfumou-se, e enfiou camisa, anágua e penteador, tudo
com uma expedição de quem está habituada a vestir-se muitas vezes
por dia. E, pronta, correu uma vista de olhos pela menina,
desenrugou-lhe a saia, consertou-lhe melhor os cabelos e, readquirindo
o seu ar tranqüilo de mulher ajuizada, tomou-a pela cintura e levou-a
vagarosamente até à sala de jantar, para tomarem vermute com gasosa.
[Linha 4550 de 8202 - Parte 3 de 5]
O jantar foi às seis e meia. Correu frio, não tanto por parte de
Pombinha, que aliás se mostrava bem incomodada, como porque Dona
Isabel, dormindo até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se
aziada com o foie-gras. A dona da casa, todavia, não se forrou a
desvelos e fez por alegrá-las rindo e contando anedotas burlescas. Ao
café apareceu Juju, que a criada levara a passear desde logo depois do
almoço, e uma afetação de agrados levantou-se em torno da
pequerrucha. Léonie pôs-se a conversar com ela, falando como criança,
dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel "o seu papatinho novo!"
Mais tarde, no terraço, enquanto fumava um cigarro, tomou a mão
de Pombinha e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado
de pérolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi preciso a
intervenção da velha para que ela consentisse em aceitá-lo.
Às oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a
estalagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e
triste.
- Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes.
E de ambas a filha respondeu:
- Nada! Aborrecimento...
No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a
polícia, teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com
molezas de febre e dores no útero. Não arredou pé de casa, nem para
ver os destroços do conflito. A noticia do defloramento e da fuga de
Florinda, como a da loucura da velha Marciana, produziu-lhe grande
abalo nos nervos.
Na manhã imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao
pobre almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe
as dores uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve animo de pegar
na costura, e um livro que ela tentou ler, foi por várias vezes repelido.
As onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o
seu desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que,
malgrado os protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do
cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras.
Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma
aflição de conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto
sufocante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da
alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da
antevéspera; mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e
rejubilava-se, pressentindo delicias que lhe pareciam reservadas para
mais tarde, junto de um homem amado, dentro dela balbuciavam
desejos, até ai mudos e adormecidos; e mistérios desvendavam-se no
segredo do seu corpo, enchendo-a de surpresa e mergulhando-a em
fundas concentrações de êxtase. Um inefável quebranto afrouxava-lhe
a energia e distendia-lhe os músculos com uma embriaguez de flores
traiçoeiras.
Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo
em terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão.
Na doce tranqüilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir
distante a picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na
forja. E o canto dos trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso,
[Linha 4600 de 8202 - Parte 3 de 5]
acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancólico
e sentido, como um coro religioso de penitentes.
O calor tirava do capim um cheiro sensual.
A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso
entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar,
braços e pernas abertas.
Adormeceu.
Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um
cor-de-rosa, a princípio muito leve e transparente, depois mais
carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno dela uma floresta
vermelha, cor de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam
lentamente.
E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol
embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.
Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais
enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito
de uma só mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico.
Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz,
iam-se formando ondulantes camadas sangüíneas, que se agitavam,
desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de
encantos, que se achava deitada entre pétalas gigantescas, no regaço de
uma rosa interminável, em que seu corpo se atufava como em ninho de
veludo carmesim, bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno.
E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética.
Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas
mimosas formas de menina.
Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro
tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas
asas e principiou a fremir, atraído e perplexo. Mas de repente, nem que
se de improviso lhe inflamassem os desejos, precipitou-se lá de cima
agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar
luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem
permanecia com os peitos franqueados.
E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa,
sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota,
todo o seu sangue de moça.
E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções
ora fugindo rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com
as suas antenas de brasa a pele delicada e pura da menina.
Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o
colo. Mas a borboleta fugia.
Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça;
queria a todo custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um
instante, um só instante, e a fechasse num rápido abraço dentro das
suas asas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia
deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de
volúpia.
- Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa
um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas!
E a rosa, que tinha ao colo, é que parecia falar e não ela. De cada
[Linha 4650 de 8202 - Parte 3 de 5]
vez que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor
arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho
e ávido daquele contato com a luz.
- Não fujas! Não fujas! Pousa um instante!
A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor,
sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada
desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e
suspiros, tonta de gosto sob aquele eflúvio luminoso e fecundante.
Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou
sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e
cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da
puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e
quente.
A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as
doze badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre
a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro
sobre o ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava
para o mundo.
XII
Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa.
No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de
pontos vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância,
enfiando cheia de alvoroço pelo número 15. E ai, sem uma palavra,
ergueu as saias do vestido e expôs a Dona Isabel as suas fraldas
ensangüentadas.
- Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo
d'alma.
A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e
enrubescida.
As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.
- Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou
ela, caindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto
e as mãos trêmulas.
Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua
comoção, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar
também aquele sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida,
que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como
a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.
Não se pôde conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu
ela ao pátio, apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se não
fora a formal oposição da menina, teria passeado em triunfo a camisa
ensangüentada, para que todos a vissem bem e para que todos a
adorassem, entre hinos de amor, que nem a uma verônica sagrada de
um Cristo.
- Minha filha é mulher! Minha filha é mulher!
[Linha 4700 de 8202 - Parte 3 de 5]
O fato abalou o coração do cortiço, as duas receberam parabéns e
felicitações. Dona Isabel acendeu velas de cera à frente do seu oratório,
e nesse dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o
que fazia, a entrar e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que
passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo
recomendava-lhe todo o cuidado. "Que não apanhasse umidade! que
não bebesse coisas frias! que se agasalhasse o melhor possível: e, no
caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama! Qualquer
imprudência poderia ser fatal!..." O seu empenho era pôr o João da
Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe
que marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que não, que
era feio, mas a mãe arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com
urgência. Ele apareceu à tarde. A velha convidara gente para jantar;
matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e, à noite, serviu, às
nove horas, um chá com biscoitos. Nenen e a das Dores
apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita cerimônia;
conversou-se em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha
uma solicita cadeia de agrados, uma respeitosa preocupação de bons
desejos, a que ela respondia sorrindo comovida, como que exalando da
frescura da sua virgindade um vitorioso aroma de flor que desabrocha.
E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas
rugas alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manhã, enquanto varria a
casa e espanava os móveis.
Não obstante, depois do tremendo conflito que acabou em
navalhada, uma tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. Já
se não faziam as quentes noitadas de violão e dança ao relento. A Rita
andava aborrecida e concentrada, desde que Jerônimo partiu para a
Ordem; Firmo fora intimado pelo vendeiro a que lhe não pusesse,
nunca mais, os pés em casa, sob pena de ser entregue à polícia; Piedade,
que vivia a dar ais, carpindo a ausência do. marido, ainda ficou mais
consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital; encontrou-o
frio e sem uma palavra de ternura para ela, deixando até perceber a sua
impaciência para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata dos
diabos, que, no fim de contas, era a única culpada de tudo aquilo e
havia de ser a sua perdição e mais do seu homem! Quando voltou de lá
atirou-se à cama, a soluçar sem alívio, e nessa noite não pôde pregar
olho, senão já pela madrugada. Um negro desgosto comia-a por dentro,
como tubérculos de tísica, e tirava-lhe a vontade para tudo que não
fosse chorar.
Outro que também, coitado! arrastava a vida muito triste, era o
Bruno. A mulher, que a principio não lhe fizera grande falta, agora o
torturava com a sua distancia; um mês depois da separação, o
desgraçado já não podia esconder o seu sofrimento e ralava-se de
saudades. A Bruxa, a pedido dele, tirou a sorte nas cartas e disse-lhe
misteriosamente que Leocádia ainda o amava.
Só Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas sim!
nunca tinham tido uma época tão boa e tão esperançosa. Pombinha
abandonara o curso de dança; o noivo ia agora visitá-la,
invariavelmente, todas as noites; chegava sempre às sete horas e
demorava-se até às dez; davam-lhe café numa xícara especial, de
[Linha 4750 de 8202 - Parte 3 de 5]
porcelana; às vezes jogavam a bisca, e ele mandava buscar, de sua
algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e ficavam a conversar os três,
cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felicidade
comum; outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom
rapaz, acendia o seu charuto da Bahia e deixava-se cair numa
pasmaceira, a olhar para a moça, todo embebido nela. Pombinha punha
alegrias naqueles serões com as suas garrulices de pomba que prepara o
ninho. Depois do seu idílio com o sol fazia-se muito amiga da
existência, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de sair
de uma prisão e saboreia o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava
que nem uma fruta que nos provoca o apetite de morder. Dona Isabel,
ao lado deles, toscanejava do meio para o fim da visita, traçando cruzes
na boca e afugentando os bocejos com voluptuosas pitadas da sua
insigne tabaqueira.
Fixado o dia do casamento, o assunto inalterável da conversa era o
enxoval da noiva e a casinha que o Costa preparava para a lua-de-mel.
Iriam todos três morar juntos; teriam cozinheiro e uma criada que
lavasse e engomasse. O rapaz trouxera peças de linho e de algodão, e
ali, à luz amarela do velho candeeiro de querosene, enquanto a mãe
talhava camisas e lençóis, a filha cosia valentemente numa máquina que
lhe oferecera o noivo.
Uma vez, eram duas da tarde, ela pregava rendas numa fronha de
almofada, quando o Bruno, cheio de hesitações, a coçar os cabelos da
nuca, pálido e mal asseado, disse-lhe, encostando-se à ombreira da
porta:
- Ora, Nhã Pombinha... tinha-lhe um servicinho a pedir... mas
vosmecezinha anda agora tão tomada com o seu enxoval e não há de
querer dar-se a maços...
- Que queres tu, Bruno?
- N'é nada, é que precisava que vosmecezinha me fizesse uma
carta p'raquele diabo... mas já se vê que não tem cabimento... Fica pr'ao
depois!
- Uma carta para tua mulher, não é?
- Coitada! É mais doida do que ruim! Pois se a gente até dos
brutos tem pena!...
- Pois estás servido. Queres para já?
- Não vale estorvar! Continue seu servicinho! Eu volto pr'outra
vez!...
- Não! anda cá, entra! O que se tem de fazer, faz-se logo!
- Deus lhe pague! Vosmecezinha é mesmo um anjo! Não sei a
quem se chegue a gente ao depois que já lhe não tivermos cá!...
E continuou a louvar a bondade da rapariga, enquanto esta, toda
serviçal, preparava numa mesinha redonda os seus apetrechos de
escrita.
- Vamos lá, Bruno! que queres tu mandar dizer à Leocádia?
- Diga-lhe, antes de mais nada, que aquilo que quebrei dela, que
dou outro! Que ela fez mal em quebrar também o que era meu, mas que
fecho os olhos! Águas passadas não movem moinho! Que sei que ela
agora está desempregada e aos paus; que está a dever para mais de mês
na estalagem; mas que não precisa dar cabeçadas: que me mande cá o
[Linha 4800 de 8202 - Parte 3 de 5]
senhorio, que me entendo com ele. Que acho bom que ela deixe a casa
da crioula onde come, porque a mulher já se queixou e já disse, a quem
quis ouvir, que aquilo lá não era ponto de vadios e mulheres de má vida!
Que ela, se tivesse um pouco de tino, nem precisava estar às migalhas
dos outros, que eu na forja fazia para a trazer de barriga cheia e mais aos
filhos que Deus mandasse... - Principiava a tomar calor. - Que a
culpada de tudo isto é só ela e mais ninguém! tivesse um bocado de
juízo e não precisava envergonhar a cara por ai...
- Isso já está dito, Bruno!
- Pois arrame-lhe outra vez a ver se ela toma brio!
- E que mais?
- Que lhe não quero mal, nem lhe rogo pragas, mas que é bem
feito que ela amargue um pouco do pão do diabo, pra ficar sabendo que
uma mulher direita não deve olhar se não pra seu marido; e que, se ela
não fosse tão maluca...
- Já aí vai você repetir inda uma vez a mesma cantiga!...
- Mas diga-lhe sempre, tenha paciência, Nhã Pombinha!... Que
ainda estaria aqui, comigo, como dantes, sem agüentar repelões de
estranhos!...
- Adiante, Bruno!
- Diga-lhe...
E interrompeu-se.
Ora, que mais ele tinha a dizer?...
Coçou a cabeça.
- Veja, Bruno, você é quem sabe o que precisa escrever a sua
mulher...
- Diga-lhe...
Não se animava.
- Que...
- Diga-lhe... Não! não lhe diga mais nada!...
- Posso então fechar a carta?...
- Está bom... resmungou o ferreiro, decidindo-se. Vá lá!
Diga-lhe que...
- Que...
Houve um silêncio, no qual o desgraçado parecia arrancar de
dentro uma frase que, no entanto, era a única idéia que o levava a
dirigir-se à mulher. Afinal, depois de coçar mais vivamente a cabeça,
gaguejou com a voz estrangulada de soluços:
- Diga-lhe que... se ela quiser tornar pra minha companhia... que
pode vir... Eu esqueço tudo!
Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele,
levantou o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a
três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa
estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições;
que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos
trabalhadores do cortiço, sobressaltava-se agora com os desalentados
soluços do ferreiro.
Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas
suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve
olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o
[Linha 4850 de 8202 - Parte 3 de 5]
bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo,
desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em pleno
desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a
comovera tanto a revolução física Como que naquele instante o mundo
inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe
todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do
Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade
desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras,
mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e
delicada mão da fêmea.
Aquela pobre flor de cortiço, escapando à estupidez do meio em
que desabotoou, tinha de ser fatalmente vitima da própria inteligência.
À mingua de educação, seu espírito trabalhou à revelia, e atraiçoou-a,
obrigando-a a tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça
ignorante e viva a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e
sentir.
Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na
mesa e tulipou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens.
Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal
ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludibrio, ainda
vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela
lhes fizera?...
E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força e do
seu próprio valor.
Sorriu.
E no seu sorriso já havia garras.
Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até ai
jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se
agora nítidas e transparentes. Compreendeu como era que certos velhos
respeitáveis, cujas fotografias Léonie lhe mostrara no dia que passaram
juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e
submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a
própria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o
corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre
esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no
entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino;
escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua
mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a
senhora, a dona dele, ia tranqüilamente desfrutando o seu império,
endeusada e querida, prodigalizando martírios que os miseráveis
aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis
mãos que os estrangulavam.
- Ah! homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um
suspiro.
E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse
à solta, enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as rendas
naquela almofada, em que a sua cabeça teria de repousar para receber o
primeiro beijo genital.
Num só lance de vista, como quem apanha uma esfera entre as
pontas de um compasso, mediu com as antenas da sua perspicácia
[Linha 4900 de 8202 - Parte 3 de 5]
mulheril toda aquela esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por
muito tempo como larva, um belo dia acordou borboleta à luz do sol. E
sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a
comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o
Firmo e o Jerônimo atassalharem-se, como dois cães que disputam uma
cadela da rua; e viu o Miranda, li defronte, subalterno ao lado da esposa
infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres; e
viu o Domingos, que fora da venda, furtando horas ao sono, depois de
um trabalho de barro, e perdendo o seu emprego e as economias
ajuntadas com sacrifício, para ter um instante de luxúria entre as pernas
de uma desgraçadinha irresponsável e tola; e tornou a ver o Bruno a
soluçar pela mulher; e outros ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e
trabalhadores de toda a espécie, um exército de bestas sensuais, cujos
segredos ela possuía, cujas íntimas correspondências escrevera dia a
dia, cujos corações conhecia como as palmas das mãos, porque a sua
escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a salsugem e
todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas
espumantes de dor e aljofradas de lágrimas.
E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espírito rebelde de flor
mimosa e peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um
estrume forte demais para ela atrofiara, a moça pressentiu bem claro
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