A Escrava Isaura - Parte 2 de 4 - Bernardo Guimarães
- Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, - acudiu Rosa com seu sorriso maligno e zombeteiro.
- Cala a boca, menina! - bradou com voz severa a velha crioula.
- Deixa dessas falas. Coitada da Isaura. Deus te livre a você de
estar na pele daquela pobrezinha! se vocês soubessem quanto penou a
pobre da mãe dela! ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo,
Deus te perdoe. Agora com Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando
o mesmo rumo. Juliana era uma mulata bonita e sacudida; era da cor
desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita...
Rosa deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.
- Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! - continuou a
crioula velha. - O ponto foi sinhô velho gostar dela... eu já contei a
vocês o que é que aconteceu. Juliana era uma rapariga de brio, e por
isso teve de penar, até morrer. Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel,
que anda aí, e que é pai de Isaura. Isso é que era feitor bom!... todo
mundo queria ele bem, e tudo andava direito. Mas esse siô Francisco,
que ai anda agora, cruz nele!... é a pior peste que tem botado os pés
nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito de
Juliana, e trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar
ela. Mas nhonhô não esteve por isso, ficou muito zangado, e tocou o feitor
para fora.
Também Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co'ela na cova
em pouco tempo. Picou aí a pobre menina ainda de mama, e se não
fosse sinhá velha, que era uma santa mulher, Deus sabe o que seria
dela!... também, coitada!... antes Deus a tivesse levado!...
- Por quê, tia Joaquina?...
- Porque está-me parecendo, que ela vai ter a mesma sina da
mãe...
- E o que mais merece aquela impostora? - murmurou a
invejosa e malévola Rosa. - Pensa que por estar servindo na sala é
melhor do que as outras, e não faz caso de ninguém. Deu agora em
namorar os moços brancos, e como o pai diz que há de forrar ela, pensa
que e uma grande enhora. Pobre do senhor Miguel!... não tem onde cair
morto, e há de ter para forrar a filha!
- Que má língua é esta Rosa! - murmurou enfadada a velha
crioula, relanceando um olhar de repreensão sobre a mulata. - Que
mal te fez a pobre Isaura, aquela pomba sem fel, que com ser o que e,
bonita e civilizada como qualquer moça branca, não é capaz de fazer
pouco caso de ninguém?... Se você se pilhasse no lugar dela, pachola e
atrevida como és, havias de ser mil vezes pior.
Rosa mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo o
atrevimento e desgarre, que lhe era próprio, quando uma voz áspera e
atroadora, que, partindo da porta do salão, retumbou por todo ele, veio
pôr termo à conversação das fiandeiras.
- Silêncio! - bradava aquela voz. - Arre! que tagarelice!... pa-
rece que aqui só se trabalha de língua!...
Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de
fisionomia dura e repulsiva, apresenta-se à porta do salão, e
vai entrando. Era o feitor. Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto e
aperaltado, trajando uma bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de
fiar. Logo após eles entrou Isaura.
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As escravas todas levantaram-se e tomaram a bênção ao feitor.
Este mandou colocar a roda em um espaço desocupado, que infelizmente
para Isaura ficava ao pé de Rosa.
- Anda cá, rapariga; - disse o feitor voltando-se para Isaura. -
De hoje em diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuas
parceiras que te dêem tarefa para hoje. Bem vejo que te não há de
agradar muito a mudança; mas que volta se lhe há de dar?... teu senhor
assim o quer. Anda lá; olha que isto não é piano, não; é acabar depressa
com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e muito trabalhar...
Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova ocupação,
que lhe davam, Isaura foi sentar-se junto a roda, e pôs-se a prepará-la
para dar começo ao trabalho. Posto que criada na sala e empregada
quase sempre em trabalhos delicados, todavia era ela hábil em todo o
gênero de serviço doméstico: sabia fiar, tecer, lavar, engomar, e cozinhar
tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois colocar-se
com toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas
notava-se no sorriso, que lhe adejava nos lábios, certa expressão de
melancólica resignação; mas isso era o reflexo das inquietações
e angústias, que lhe oprimiam o coração, que não desgosto por se ver
degradada do posto que ocupara toda sua vida junto de suas senhoras.
Cônscia de sua condição, Isaura procurava ser humilde como qualquer
outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seu
espirito, os fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração, nem
turvavam-lhe a luz de seu natural bom senso. Não obstante porém toda
essa modéstia e humildade transiuzia-lhe, mesmo a despeito dela, no
olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade e orgulho nativo,
proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem o
querer sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção e
nobreza dos traços fisionômicos e por certa distinção nos gestos
e ademanes. Ninguém diria que era uma escrava, que trabalhava entre as
companheiras, e a tomaria antes por uma senhora moça, que, por
desenfado, fiava entre as escravas. Parecia a garça-real, alçando o
colo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares.
As outras escravas a contemplavam todas com certo interesse e
comiseração, porque de todas era querida, menos de Rosa, que lhe
tinha inveja e aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado
do motivo desta malevolência de Rosa. Não era só pura inveja; havia aí
alguma coisa de mais positivo, que convertia essa inveja em ódio mortal.
Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para quem fora fácil
conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém,
inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.
A gentil mulatinha sentiu-se cruelmente ferida em seu coração com esse
desdém, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seu senhor,
jurou descarregar todo o peso de seu rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.
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- Um raio que te parta, maldito! - Má lepra te consuma, coisa
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ruim! - Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! - Estas e
outras pragas vomitavam as escravas resmungando entre si contra o
feitor, apenas este voltou-lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado
entre os escravos; um carrasco não carrega com tantos ódios.
abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do azorrague
desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que
o paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se
contra o algoz, que a executa.
Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar-se perto de
Rosa. Esta assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de
ditérios e remoques sarcásticos e irritantes.
- Tenho bastante pena de você, Isaura. disse Rosa para dar começo
às operações.
- Deveras! - respondeu Isaura, disposta a opor às provocações
de Rosa toda a sua natural brandura e paciência. Pois por quê, Rosa?...
- Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofá
de damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa
roda? Por que te enxotaram de lá, Isaura?
- Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina
foi-se embora em companhia de seu irmão para a casa do pai dela.
Portanto nada tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui
trabalhar com vocês.
- E por que é que ela não te levou, você, que era o ai-jesus
dela?... Ah! Isaura, você cuida que me embaça, mas está muito
enganada; eu sei de tudo. Você estava ficando muito aperaltada, e
por isso veio aqui para conhecer o seu lugar
- Como és maliciosa! - replicou Isaura sorrindo tristemente, mas
sem se alterar; pensas então que eu andava muito contente e cheia de
mim por estar lá na sala no meio dos brancos?... como te enganas!... se
me não perseguires com a tua má língua, como principias a fazer, creio
que hei de ficar mais satisfeita e sossegada aqui.
- Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui,
se não acha moços para namorar?
- Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me com
essas falas?...
- Olhe a sinhá, não se zangue!... perdão, dona Isaura; eu pensei
que a senhora tinha esquecido os seus melindres lá no salão.
- Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala
ou na cozinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Também
deves-te lembrar, que se hoje te achas aqui, amanhã sabe Deus onde
estarás. Trabalhemos, que é nossa obrigação. deixemos dessas
conversas que não têm graça nenhuma.
Neste momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; eram três
para quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As
escravas suspendem seus trabalhos e levantam-se; Isaura porém
não se move, e continua a fiar.
- Então? - diz-lhe Rosa com o seu ar escarninho, - você não
ouve, Isaura? são horas; vamos ao feijão.
- Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma.
Fico adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.
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- Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa como
você não deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mande
um caldinho, um chocolate?...
- Cala essa boca, tagarela! - bradou a crioula velha, que parecia
ser a priora daquele rancho de fiandeiras. - Forte lingüinha de
víbora!... deixa a outra sossegar. Vamos, minha gente.
As escravas retiraram-se todas do salão, ficando só Isaura,
entregue ao seu trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadoras
reflexões. O fio se estendia como que maquinalmente entre seus dedos
mimosos, enquanto o pezinho nu e delicado, abandonando o tamanquinho de
marroquim, pousava sobre o pedal da roda, a que dava automático
impulso. A fronte lhe pendia para um lado como açucena esmorecida, e
as pálpebras meio cerradas eram como véus melancólicos, que
encobriam um pego insondável de tristura e desconforto. Estava
deslumbrante de beleza naquela encantadora e singela atitude.
- Ah! meu Deus! - pensava ela; nem aqui posso achar um
pouco de sossego!... em toda parte juraram martirizar-me!... Na sala, os
brancos me perseguem e armam mil intrigas e enredos para me
atormentarem. Aqui, onde entre minhas parceiras, que parecem me
querer bem, esperava ficar mais tranqüila, há uma, que por inveja, ou
seja lá pelo que for, me olha de revés e só trata de achincalhar-me.
Meu Deus! meu Deus!... já que tive a desgraça de nascer cativa, não era
melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das
negras, do que ter recebido do céu estes dotes, que só servem para
amargurar-me a existência?
Isaura não teve muito tempo para dar larga expansão às suas
angustiosas reflexões. Ouviu rumor na porta, e levantando os olhos viu
que alguém se encaminhava para ela.
- Ai! meu Deus! - murmurou consigo. - Aí temos nova
importunação! nem ao menos me deixam ficar sozinha um instante.
Quem entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que já
vimos em companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e
petulante se foi colocar defronte de Isaura.
- Boa tarde, linda Isaura. Então, como vai essa flor? - saudou o
pachola do pajem com toda a faceirice.
- Bem, respondeu secamente Isaura.
- Estás mudada?... tens razão, mas é preciso ir-se acomodando
com este novo modo de vida. Deveras que para quem estava
acostumada lá na sala, no meio de sedas e flores e águas-de-cheiro, há
de ser bem triste ficar aqui metida entre estas paredes enfumaçadas
que só tresandam a sarro de pito e morrão de candeia.
- Também tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da ocasião
para me atirar lama na cara?...
- Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário,
dói-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta
corja de negras beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só
merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco. Esse senhor
Leôncio tem mesmo um coração de fera.
- E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.
- Qual!... não acredito; não é aqui teu lugar. Mas também por
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outra banda estimo bem isso.
- Por quê?
- Porque, enfim, Isaura, a falar-te a verdade, gosto muito de você,
e aqui ao menos podemos conversar mais em liberdade...
- Deveras!... declaro-te desde já que não estou disposta a ouvir
tuas liberdades.
- Ah! é assim! - exclamou André todo enfunado com este
brusco desengano. - Então a senhora quer só ouvir as finezas dos
moços bonitos lá na sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre
pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de
melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado,
enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que mais e, -
acrescentou batendo com a mão na algibeira, - com as algibeiras
sempre a tinir. A Rosa, que também é uma rapariguinha bem bonita,
bebe os ares por mim; mas coitada!... o que é ela ao pé de você?...
Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de
fazer tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha... escuta.
E dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando-se de Isaura,
foi-lhe lançando desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem
queria falar-lhe em segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.
- Alto lá! - exclamou Isaura repelindo-o com enfado. - Está
ficando bastante adiantado e atrevido. Retire-se daqui, se não irei dizer
tudo ao senhor Leôncio.
- Oh! perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar assim.
És muito má, para quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem. Mas
deixa estar, que o tempo há de te amaciar esse coraçãozinho de pedra.
Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deus,
não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que sinhó moço saiba do
que aqui se passou; era capaz de me enforcar. O que vale, -
continuou André consigo e retirando-se, - o que vale é que neste negócio
parece-me que ele anda tão adiantado como eu.
Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação
de senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só
momento! Como não devia viver aflito e atribulado aquele coração!
Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em
roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três amantes,
Leôncio, Belchior, e André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil
lhe fora repelir as importunações e insolências dos escravos e criados;
mas que seria dela, quando viesse o senhor?!...
De feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo
feitor, entrava no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento
suspendera o seu trabalho, e com o rosto escondido entre as mãos se
embevecia em amargas reflexões, não se apercebera da presença deles.
- Onde estão as raparigas que aqui costumam trabalhar?... perguntou
Leôncio ao feitor, ao entrar no salão.
- Foram jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.
- Mas uma cá se deixou ficar... ah! é a Isaura... Ainda bem! -
refletiu consigo Leôncio, - a ocasião não pode ser mais favorável;
tentemos os últimos esforços para seduzir aquela empedernida criatura.
Logo que acabem de comer, - continuou ele dirigindo-se ao feitor, -
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leve-as para a colheita do café. Há muito que eu pretendia recomendar-lhe
isto e tenho-me esquecido. Não as quero aqui mais nem um
instante; isto é um lugar de vadiação, em que perdem o tempo sem
proveito algum, em continuas palestras. Não faltam por aí tecidos de
algodão para se comprar.
Mal o feitor se retirou, Leôncio dirigiu-se para junto de Isaura.
- Isaura! murmurou com voz meiga e comovida.
- Senhor! - respondeu a escrava erguendo-se sobressaltada; de-
pois murmurou tristemente dentro d'alma: - meu Deus! é ele!... é
chegada a hora do suplício.
Capítulo 8
Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura
em sua penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para
informarmos o leitor sobre o que ocorrera no seio daquela pequena
família, e em que pé ficaram os negócios da casa, depois que a notícia
da morte do comendador, estalando como uma bomba no meio das
intrigas domésticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no momento em
que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam
forçosamente um desenlace qualquer.
Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável
situação, pondo nas mãos de Leôncio toda a fortuna patema, e
desatando as últimas peias que ainda o tolhiam na expansão de seus
abomináveis instintos.
Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns
dias, durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e
despeitos recíprocos. Henrique, que queria absolutamente partir no dia
seguinte, cedendo enfim aos rogos e instâncias de Malvina, consentiu
em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias de nojo.
- Conforme for o procedimento de meu marido, disse-lhe ela, -
iremos juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer
a Isaura, não ficarei mais nem um momento em sua casa.
Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu
durante alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo
pesar. Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio não
deixou de sofrer certo choque, certa surpresa, que não golpe doloroso,
com a noticia do falecimento de seu pai; mas no fundo d'alma, - força
é dizê-lo, - passado o primeiro momento de abalo e consternação
chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a propósito vinha
livrá-lo dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina
e de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão, em vez de entregar-se
à dor que lhe deveria causar tão sensível golpe, Leôncio, que por
maneira nenhuma podia resignar-se a desfazer-se de Isaura, só meditava
os meios de safar-se das dificuldades, em que se achava envolvido,
e urdia planos para assegurar-se da posse da gentil cativa. As dificuldades
eram grandes, e constituíam um nó, que poderia ser cortado, mas
nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa que seu pai fizera
a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez contos de réis.
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Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas
mãos, reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também,
e nem podia contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar
livre Isaura por sua morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua
paixão e de seus sinistros intentos sobre a cativa, justamente irritada,
exigia com império a imediata alforria da mesma. Não restava ao
mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas dificuldades
senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com
semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado,
o incitava a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as
leis do decoro e da honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua
meiga e carinhosa esposa, para obter a satisfação de seus frenéticos
desejos. Resolveu pois cortar o nó, usando de sua prepotência,
e protelando indefinidamente o cumprimento de seu dever, assentou de
afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas exigências e
exprobrações de Malvina.
Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à
dor de que julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso
negócio:
- Temos tempo, Malvina, - respondeu-lhe o marido com toda a
calma. - É-me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário
da casa de meu pai. Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis e
tomar conhecimento do estado de seus negócios. Na volta e com mais
vagar trataremos de Isaura.
Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu-se de palidez
mortal; ela sentiu esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do
mais pungente dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o
sonhado castelo de suas aventuras conjugais. Ela esperava que o
marido fulminado por tão doloroso golpe naqueles dias de amarga
meditação e abatimento, retraindo-se no santuário da consciência,
reconhecesse seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e se
propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias
desculpas e fúteis evasivas do marido vieram submergi-la de chofre
no mais amargo e profundo desalento.
- Como?! - exclamou ela com um acento que exprimia a um
tempo altiva indignação e o mais entranhado desgosto. - Pois ainda
hesitas em cumprir tão sagrado dever?... se tivesses alma, Leôncio,
terias considerado Isaura como tua irmã, pois bem sabes que tua mãe a
amava e idolatrava como a uma filha querida, e que era seu mais
ardente desejo libertá-la por sua morte e deixar-lhe um legado
considerável, que lhe assegurasse o futuro. Sabes também que teu pai
havia feito promessa solene ao pai de Isaura de dar-lhe alforria pela
quantia de dez contos de réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa
exorbitante quantia. Sabes tudo isto, e ainda vens com dúvidas e demoras!...
Oh! isto é muito!... não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de
um dever de que há muito tempo já devias ter-te desempenhado.
- Mas para que semelhante pressa?... não me dirás Malvina? -
replicou Leôncio com a maior brandura e tranqüilidade. - De que
proveito pode ser agora a liberdade para Isaura? porventura não
está ela aqui bem? é maltratada?... sofre alguma privação?... não
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continua a ser considerada antes como uma filha da família, do que como
uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa por esse mundo?...
assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão solicita
se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não
devemos por ora entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro assegurar-lhe
uma posição decente, honesta e digna de sua beleza e educação,
procurando-lhe um bom marido, e isso não se arranja assim de um dia
para outro.
- Que miserável desculpa, meu amigo!... Isaura por ora não
precisa de marido para protegê-la; tem o pai, que é homem muito de bem,
e acaba de dar provas de quanto adora sua filha. Entreguemo-la ao
senhor Miguel, que ficará em muito boas mãos, e debaixo de muito boa
sombra.
- Pobre do senhor Miguel! - replicou Leôncio com sorriso
desdenhoso. - Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios,
de que dispõe, para fazer a felicidade de Isaura, principalmente agora
em que decerto empenhou os cabelos da cabeça para arranjar a alforria
da filha, se é que isso não proveio de esmolas, que lhe fizeram, como
me parece mais certo.
Por única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou.
Todavia quis ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido,
fingiu-se satisfeita e retirou-se sem dar mostras de agastamento. Não
podia, porém, prolongar por mais tempo aquela situação para ela tão
humilhante, tão cheia de ansiedade e desgosto, e no outro dia insistiu
ainda com mais força sobre o mesmo objeto. Teve em resposta as
mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava mesmo tratar desse
negócio com certa indiferença desdenhosa, como quem estava
definitivamente resolvido a fazer o que quisesse. Malvina desta vez não
pôde conter-se, e rompeu com seu marido. Este, como já friamente
havia deliberado, aparou os raios da cólera feminina no escudo de uma
imprudência cínica e galhofeira, o que levou ao último grau de
exacerbação a cólera e o despeito de Malvina.
No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que
fosse, deixava precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia
de seu irmão Henrique a caminho do Rio de Janeiro, jurando no
auge da indignação nunca mais pôr os pés naquela casa, onde era tão
vilmente ultrajada, e varrer para sempre da lembrança a imagem de seu
desleal e devasso marido. No assomo do despeito não calculava se teria
forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos juramentos,
inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nas
almas tenras e bondosas como a sua o ódio se desvanece muito mais
depressa do que o amor; e o amor, que Malvina consagrava a Leôncio, a
despeito de seus desmandos e devassidões, era muito mais forte do
que o seu ressentimento, por mais justo que este fosse.
Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos
assomos da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braços
cruzados e sem fazer a minima observação, os preparativos daquela
rápida viagem, e recostado ao alpendre, fumando indolentemente o seu
charuto, assistiu à partida de sua mulher, como se fora o mais
indiferente dos hóspedes.
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Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural e
sincera; não que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de sua
mulher; pelo contrário, era júbilo, que sentia com a realização daquela
caprichosa resolução de Malvina, que assim lhe abandonava o campo
inteiramente livre de embaraços, para prosseguir em seus nefandos
projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido pouco-caso, conseguia
disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; e
como era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, posto
que em circunstâncias menos graves, - que contra as cóleras e
caprichos femininos não há arma mais poderosa do que muito
sangue-frio e pouco-caso, Malvina não pôde descobrir no fundo daquela
afetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a alma de seu marido.
O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses
longos dias de luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?
Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do
comendador, Isaura perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento
antes Miguel fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu
que um destino implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaz
e desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava
em sua imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar-se e
preparar-se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavor
mortal apoderou-se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como
que alucinada, ora vagava à toa pelos campos, ora escondida nas mais
espessas moitas do pomar, ou nos mais sombrios recantos das alcovas,
passava horas e horas entre sustos e angústias, como a tímida lebre,
que vê pairando no céu a asa sinistra do gavião de garras sangrentas.
Quem poderia ampará-la? onde poderia encontrar proteção contra as
tirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor? Só duas pessoas
poderiam ter por ela comiseração e interesse; seu pai e Malvina. Seu
pai, obscuro e pobre feitor, não tendo ingresso em casa de Leôncio, e
só podendo comunicar-se com ela a custo e furtivamente, em pouco ou
nada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a havia tratado com tanta
bondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena escandalosa
em que colhera seu marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas,
começou a olhá-la com certa desconfiança e afastamento, terrível efeito
do ciúme, que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais cândidas
e benevolentes A senhora, com o correr dos dias, tornava-se cada
vez menos tratável e benigna para com a escrava, que antes havia
tratado com carinho e intimidade quase fraternal.
Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência
de Isaura, se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga.
Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo
a mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafava
em presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe ferviam
e transvazavam do coração.
- Sinhá está-se fiando muito naquela sonsa... - dizia-lhe a
maliciosa rapariga. - Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos;
há muito tempo que eu estou vendo essa impostora, que diante da
sinhá se faz toda simplória, andar-se derretendo diante de sinhô moço.
Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça virada.
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Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente
insinuar nos ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairar
o espírito de uma cândida e inexperiente moça como Malvina, e foram
produzindo o resultado que desejava a perversa mulatinha.
Acabrunhada com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas
tentativas para achegar-se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe
retirava a afeição e confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim de
poder manifestar sua inocência. Mas era recebida com tal frieza
e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir mergulhar-se mais
fundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.
Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre
uma salvaguarda, uma sombra protetora, que amparava Isaura contra
as importunações e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosse
o respeito, que lhe tinha o marido, ela não deixava de ser um poderoso
estorvo ao menos contra os atos de violência, que quisesse pôr em
prática para conseguir seus execrandos fins. Isaura ponderava isso tudo,
e é custoso fazer-se idéia do estado de terror e desfalecimento em que
ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando-a
inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros
caprichos daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.
De feito, Leôncio mal viu sumir-se a esposa por trás da última
colina, não podendo conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratou
logo de pôr o tempo em proveito, e pôs-se a percorrer toda a casa em
procura de Isaura. Foi enfim dar com ela no escuro recanto de uma
alcova, estendida por terra, quase exânime, banhada em pranto e
arrancando do peito soluços convulsivos.
Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu.
Contentemo-nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandos
e suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era do
interesse e dever dela render-se a seus desejos. Fez as mais esplêndidas
promessas, e os mais solenes protestos; abaixou-se até às mais humildes
súplicas, e arrastou-se vilmente aos pés da escrava, de cuja boca não
ouviu senão palavras amargas, e terríveis exprobrações; e vendo enfim
que eram infrutíferos todos esses meios, retirou-se cheio de cólera,
vomitando as mais tremendas ameaças.
Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia
mandou pô-la trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítulo
antecedente. Dali teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco,
do tronco para o pelourinho, e deste certamente para o túmulo,
se teimasse em sua resistência às ordens de seu senhor.
Capítulo 9
Leôncio impaciente e com o coração ardendo nas chamas de uma
paixão febril e delirante não podia resignar-se a adiar por mais tempo a
satisfação de seus libidinosos desejos. Vagando daqui para ali por toda a
casa como quem dava ordens para reformar o serviço doméstico, que
dai em diante ia correr todo por sua conta, não fazia mais do que espreitar
todos os movimentos de Isaura, procurando ocasião de achá-la a
sós para insistir de novo e com mais força em suas abomináveis
[Linha 1800 de 5193 - Parte 2 de 4]
pretensões. De uma janela viu as escravas fiandeiras atravessarem o
pátio para irem jantar, e notou a ausência de Isaura.
- Bom!... vai tudo às mil maravilhas, murmurou Leôncio com
satisfação; nesse momento passava-lhe pela mente a feliz lembrança de
mandar o feitor levar as outras escravas para o cafezal, ficando ele
quase a sós com Isaura no meio daqueles vastos e desertos edifícios.
Dir-me-ão que, sendo Isaura uma escrava, Leôncio, para achar-se a
sós com ela não precisava de semelhantes subterfúgios, e nada mais
tinha a fazer do que mandá-la trazer à sua presença por bem ou por
mal. Decerto ele assim podia proceder, mas não sei que prestígio tem,
mesmo em uma escrava, a beleza unida à nobreza da alma, e à
superioridade da inteligência, que impõe respeito aos entes ainda
os mais perversos e corrompidos. Por isso Leôncio, a despeito de todo o
seu cinismo e obcecação, não podia eximir-se de render no fundo
d'alma certa homenagem à beleza e virtudes daquela escrava excepcional,
e de tratá-la com mais alguma delicadeza do que às outras.
- Isaura, - disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos
apenas encetado, - fica sabendo que agora a tua sorte está inteiramente entre
as minhas mãos.
- Sempre esteve, senhor, - respondeu humildemente Isaura.
- Agora mais que nunca. Meu pai é falecido, e não ignoras que
sou eu o seu único herdeiro. Malvina por motivos, que sem dúvida terás
adivinhado, acaba de abandonar-me, e retirou-se para a casa de seu
pai. Sou eu, pois, que hoje unicamente governo nesta casa, e disponho
do teu destino. Mas também, Isaura, de tua vontade unicamente
depende a tua felicidade ou a tua perdição.
- De minha vontade!... oh! não, senhor; minha sorte depende
unicamente da vontade de meu senhor.
- E eu bem desejo - replicou Leôncio com a mais terna inflexão
de voz, - com todas as forças de minha alma, tornar-te a mais feliz das
criaturas; mas como, se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu,
só tu me poderias dar?...
- Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seu
lugar; lembre-se da senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão boa, e
que tanto lhe quer bem. É em nome dela que lhe peço, meu senhor;
deixe de abaixar seus olhos para uma pobre cativa, que em tudo está
pronta para lhe obedecer, menos nisso, que o senhor exige...
- Escuta, Isaura; és muito criança, e não sabes dar ás coisas o
devido peso. Um dia, e talvez já tarde, te arrependerás de ter rejeitado
o meu amor.,
- Nunca! - exclamou Isaura. - Eu cometeria uma traição
infame para com minha senhora, se desse ouvidos às palavras amorosas
de meu senhor.
- Escrúpulos de criança!.., escuta ainda, Isaura. Minha mãe vendo
a tua linda figura e a viveza de teu espírito, - talvez por não ter filha
alguma, - desvelou-se em dar-te uma educação, como teria dado a
uma filha querida. Ela amava-te extremosamente, e se não deu-te a
liberdade foi com o receio de perder-te; foi para conservar-te sempre
junto de si. Se ela assim procedia por amor, como posso eu largar-te de
mão, eu que te amo com outra sorte de amor muito mais ardente e
[Linha 1850 de 5193 - Parte 2 de 4]
exaltado, um amor sem limites, um amor que me levará à loucura ou
ao suicídio, se não... mas que estou a dizer!... Meu pai, - Deus lhe
perdoe, - levado por uma sórdida avareza, queria vender tua liberdade
por um punhado de ouro, como se houvesse ouro no mundo que
valesse os inestimáveis encantos, de que os céus te dotaram.
Profanação!... eu repeliria, como quem repele um insulto, todo aquele
que ousasse vir oferecer-me dinheiro pela tua liberdade. Livre és tu,
porque Deus não podia formar um ente tão perfeito para votá-lo à
escravidão. Livre és tu, porque assim o queria minha mãe, e assim o quero
eu. Mas, Isaura, o meu amor por ti é imenso; eu não posso, eu não
devo abandonar-te ao mundo. Eu morreria de dor, se me visse forçado a
largar mão da jóia inestimável, que o céu parece ter-me destinado, e
que eu há tanto tempo rodeio dos mais ardentes anelos de minha
alma...
- Perdão, senhor; eu não posso compreendé-lo; diz-me que sou
livre, e não permite que eu vá para onde quiser, e nem ao menos que
eu disponha livremente de meu coração?!
- Isaura, se o quiseres, não serás somente livre; serás a senhora,
a deusa desta casa. Tuas ordens, quaisquer que sejam, os teus menores
caprichos serão pontualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o
mais terno e o mais leal dos amantes, te cercarei de todos os cuidados e
carinhos, de todas as adorações, que sabe inspirar o mais ardente e
inextinguível amor. Malvina me abandona!... tanto melhor! em que
dependo eu dela e de seu amor, se te possuo?! Quebrem-se de uma vez
para sempre esses laços urdidos pelo interesse! esqueça-se para sempre
de mim, que eu nos braços de minha Isaura encontrarei sobeja ventura
para poder lembrar-me dela.
- O que o senhor acaba de dizer me horroriza. Como se pode
esquecer e abandonar ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa,
tão cheia de encantos e virtudes, como sinhá Malvina? Meu senhor,
perdoe-me se lhe falo com franqueza; abandonar uma mulher bonita,
fiel e virtuosa por amor de uma pobre escrava, seria a mais feia das
ingratidões.
A tão severa e esmagadora exprobração, Leôncio sentiu revoltar-se
o seu orgulho. escrava insolente! - bradou cheio de cólera. - Que
eu suporte sem irritar-me os teus desdéns e repulsas, ainda vá:
mas repreensões!... com quem pensas tu que falas?...
- Perdão! senhor!... exclamou Isaura aterrada e arrependida das
palavras que lhe tinham escapado.
- E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo... mas não,
é muito aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de
pedir aquilo que de direito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e
rebelde, que em corpo e alma me pertences, a mim só e a mais
ninguém. És propriedade minha; um vaso, que tenho entre as minhas
mãos e que posso usar dele ou despedaçá-lo a meu sabor,
- Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas, por piedade,
não queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também
tem coração, e não é dado ao senhor querer governar os seus afetos.
- Afetos!... quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?...
- Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode
[Linha 1900 de 5193 - Parte 2 de 4]
escravizá-lo, nem o próprio dono.
- Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e se não
cedes de bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas para
quê? para te possuir não vale a pena empregar esses meios extremos.
Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição;
para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo de
meus negros.
- Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai
fez morrer de desgosto e maus-tratos a minha pobre mãe; já vejo que
me é destinada a mesma sorte. Mas fique certo de que não me faltarão
nem os meios nem a coragem para ficar para sempre livre do senhor e
do mundo.
- Oh! - exclamou Leôncio com satânico sorriso, - já chegaste a
tão subido grau de exaltação e romantismo!... isto em uma escrava não
deixa de ser curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a tais
criaturas! Bem mostras que és uma escrava, que vives de tocar piano e
ler romances. Ainda bem que me preveniste; eu saberei gelar a ebulição
desse cérebro escaldado. Escrava rebelde e insensata, não terás mãos
nem pés para pôr em prática teus sinistros intentos. Olá, André, - bra-
dou ele e apitou com força no cabo do seu chicote.
- Senhor! - bradou de longe o pajem, e um instante depois estava
em presença de Leôncio.
- André, - disse-lhe este com voz seca e breve - traze-me já
aqui um tronco de pés e algemas com cadeado.
- Virgem santa! - murmurou consigo André espantado. - Para
que será tudo isto?... ah! pobre Isaura!...
- Ah! meu senhor, por piedade! - exclamou Isaura, caindo de
joelhos aos pés de Leôncio, e levantando as mãos ao céu em contorções
de angústia; pelas cinzas ainda quentes de seu pai, há poucos dias
falecido, pela alma de sua mãe, que tanto lhe queria, não martirize a
sua infeliz escrava. Acabrunhe-me de trabalhos, condene-me ao serviço
o mais grosseiro e pesado, que a tudo me sujeitarei sem murmurar; mas
o que o senhor exige de mim, não posso, não devo fazê-lo, embora
deva morrer.
- Bem me custa tratar-te assim, mas tu mesma me obrigas a este
excesso. Bem vês que me não convém por modo nenhum perder uma
escrava como tu és. Talvez ainda um dia me serás grata por ter-te
impedido de matar-te a ti mesma.
- Será o mesmo! - bradou Isaura levantando-se altiva, e com o
acento rouco e trémulo da desesperação, - não me matarei por minhas
próprias mãos, mas morrerei às mãos de um carrasco.
Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que
deposita sobre um banco, e retira-se imediatamente.
Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício
turvaram-se os olhos a Isaura, o coração se lhe enregelou de pavor, as
pernas lhe desfaleceram, caiu de joelhos e debruçando-se sobre o
tamborete, em que fiava, desatou uma torrente de lágrimas.
- Alma de minha sinhá velha! - exclamou com voz entrecortada
de soluços, - valei-me nestes apuros; valei-me lá do céu, onde estais,
como me valíeis cá na Terra.
[Linha 1950 de 5193 - Parte 2 de 4]
- Isaura, - disse Leôncio com voz áspera apontando para os
instrumentos de suplício, - eis ali o que te espera, se persistes em teu
louco emperramento. Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, e
fica-te o resto do dia para refletires. Tens de escolher entre o meu amor
e o meu ódio. Qualquer dos dois, tu bem sabes, são violentos e
poderosos. Adeus!...
Quando Isaura sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu o
rosto, e levantando ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à Rainha
dos anjos a seguinte fervorosa prece, exalada entre soluços do mais
íntimo de sua alma:
- Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!... vós
sabeis se eu sou inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei-me
neste transe aflitivo, porque neste mundo ninguém pode valer-me.
Livrai-me das garras de um algoz, que ameaça não só a minha vida,
como a minha inocência e honestidade. Iluminai-lhe o espírito e
infundi-lhe no coração brandura e misericórdia para que se compadeça
de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimas
nos olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas,
pelas chagas de vosso Divino Filho: valei-me por piedade.
Quanto Isaura era formosa naquela suplicante e angustiosa
atitude! oh! muito mais bela do que em seus momentos de serenidade e
prazer!... se a visse então, Leôncio talvez sentisse abrandar-se o férreo e
obcecado coração. Com os olhos arrasados em lágrimas, que em fio lhe
escorregavam pelas faces desbotadas, entreaberta a boca melancólica,
que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre soluços, atiradas
em desordem pelas espáduas as negras e opulentas madeixas, voltando
para o céu o busto mavioso plantado sobre um colo escultural,
ofereceria ao artista inspirado o mais belo e sublime modelo para a
efígie da Mãe Dolorosa, a quem nesse momento dirigia suas ardentes
súplicas. Os anjos do céu, que por certo naquele instante adejavam em
torno dela agitando as asas de ouro e carmim, não podiam deixar de
levar tão férvida e dolorosa prece aos pés do trono da Consoladora dos
aflitos.
Absorvida em suas mágoas Isaura não viu seu pai, que, entrando
pelo salão a passos sutis e cautelosos, encaminhava-se para ela.
- Oh! felizmente ela ali está, - murmurava o velho, - o algoz
aqui também andava! oh! pobre Isaura!... que será de ti?!...
- Meu pai por aqui!... - exclamou a infeliz ao avistar Miguel. -
Venha, venha ver a que estado reduzem sua filha.
- Que tens, filha?... que nova desgraça te sucede?
- Não está vendo, meu pai?... eis ali a sorte, que me espera, -
respondeu ela apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam
ao pé dela.
- Que monstro, meu Deus!... mas eu já esperava por tudo isto...
- É esta a liberdade que pretende dar àquela que a mãe dele
criou com tanto amor e carinho. O mais cruel e aviltante cativeiro, um
martírio continuado da alma e do corpo, eis o que resta à sua desventurada
filha... Meu pai, não posso resistir a tanto sofrimento!... restava-me
um recurso extremo; esse mesmo vai-me ser negado. Presa, algemada,
amarrada de pés e mãos!... oh!... meu pai! meu pai!... isto é horrível!...
[Linha 2000 de 5193 - Parte 2 de 4]
Meu pai, a sua faca, - acrescentou depois de ligeira pausa com voz
rouca e olhar sombrio, - preciso de sua faca.
- Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é
o teu?...
- Dê-me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão em caso
extremo; quando o infame vier lançar-me as mãos para deitar-me esses
ferros, farei saltar meu sangue ao rosto vil do algoz.
- Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu
coração já adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro,
que não serviu para alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para
arrancar-te às garras desse monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.
- Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde?
- Para longe daqui, seja para onde for; e já, minha filha, enquanto não
suspeitem coisa alguma, e não te carregam de ferros.
- Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a
minha sorte!...
- A empresa é arriscada, não posso negar-te; mas ânimo. Isaura;
é nossa única tábua de salvação; agarremo-nos a ela com fé, e
encomendemo-nos à divina providência. Os escravos estão na roça; o
feitor levou para o cafezal tuas companheiras, teu senhor saiu a
cavalo com o André; não há talvez em toda a casa senão alguma negra lá pelos
cantos da cozinha. Aproveitemos a ocasião, que parece mesmo nos vir das
mãos de Deus, no momento em que aqui estou chegando. Eu já preveni tudo.
Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada uma canoa; é quanto nos
basta. Tu sairás primeiro e irás lá ter por dentro do quintal; eu sairei por fora
alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos
em Campos, onde nos espera um navio, de que é capitão um amigo meu, e que
tem de seguir viagem para o Norte nesta madrugada. Quando romper o dia,
estaremos longe do algoz que te persegue. Vamo-nos, Isaura; talvez por
esse mundo encontremos alguma alma piedosa, que melhor do que eu te
possa proteger.
- Vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?... posso acaso ser
mais desgraçada do que já sou?...
Isaura, cosendo-se com a sombra do muro, que rodeava o pátio,
abriu o portão, que dava para o quintal, e desapareceu. Momentos depois
Miguel rodeando por fora os edifícios costeava o quintal,
e achava-se com ela à margem do rio.
A canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo
braço vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a
fazenda.
Capitulo 10
Já são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura, e
agora, leitores, enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias e
meios extremos, e desatando os cordões da bolsa, põe em atividade a
polícia e uma multidão de agentes particulares para empolgar de novo a
presa, que tão sorrateiramente lhe escapara, façamo-nos de vela para as
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províncias do Norte, onde talvez primeiro que ele deparemos com a
nossa fugitiva heroína.
Estamos no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do Sul,
coroada de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano,
que a estreita em carinhoso amplexo e a beija com amor. É uma noite
festiva: em uma das principais ruas nota-se um edifício esplendidamente
iluminado, para onde concorre grande número de cavalheiros e damas
das mais distintas e opulentas classes. É um lindo prédio onde uma
sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saraus. Alguns
estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da
velha Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os
esplendores e harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e
aos meigos olhares e angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas,
esquecerem por algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos
praxistas.
Suponhamos que também somos adeptos daquele templo de
Terpsícore, entremos por ele a dentro, e observemos o que por aí vai de
curioso e interessante. Logo na primeira sala encontramos um grupo de
elegantes mancebos, que conversam com alguma animação. Escutemo-los.
- É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife, -
dizia Álvaro, - e dar lustre a nossos saraus. Não há ainda três meses,
que chegou a esta cidade, e haverá pouco mais de um, que a conheço.
Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ela a criatura mais nobre e encantadora
que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é
uma deusa!...
- Cáspite! - exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!... São
portanto três entidades distintas, mas por fim de contas verás que não
passa de uma mulher verdadeira. Mas dize-me cá, meu Álvaro; esse
anjo, fada, deusa, mulher ou o que quer que seja, não te disse de onde
veio, de que família é, se tem fortuna, etc., etc., etc.?
- Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te
que veio do céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna
superior a todas as riquezas do mundo: uma alma pura, nobre e
inteligente, e uma beleza incomparável. Mas sempre te direi que o que
sei de positivo a respeito dela é que veio do Rio Grande do Sul em
companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são
bastantemente escassos, mas que em compensação ela é linda como
os anjos, e tem o nome de Elvira,
- Elvira! - observou o terceiro cavalheiro - bonito nome na
verdade!... mas não poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...
- Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma pequena
chácara no bairro de Santo Antônio, onde vivem modestamente,
evitando relações, e aparecendo mui raras vezes em público. Nessa
chácara, escondida entre moitas de coqueiros e arvoredos, vive ela
como a violeta entre a folhagem, ou como fada misteriosa em uma gruta
encantada.
- É célebre! - retorquiu o doutor - mas como chegaste a descobrir
essa ninfa encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa?
- Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo
por sua chácara, avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da
[Linha 2100 de 5193 - Parte 2 de 4]
frente. Surpreendeu-me sua maravilhosa beleza. Como viu que eu a
contemplava com demasiada curiosidade, esgueirou-se como uma
borboleta entre os arbustos floridos e desapareceu. Formei o firme
propósito de vê-la e de falar-lhe, custasse o que custasse. Por mais, porém,
que indagasse por toda a vizinhança, não encontrei uma só pessoa que
se relacionasse com ela e que pudesse apresentar-me. Indaguei por fim
quem era o proprietário da chácara, e fui ter com ele. Nem esse podia
dar-me informações, nem servir-me em coisa alguma. O seu inquilino
vinha todos os meses pontualmente adiantar o aluguel da chácara; eis
tudo quanto a respeito dele sabia. Todavia continuei a passar todas as
tardes por defronte do jardim, mas a pé para melhor poder
surpreendêla e admirá-la; quase sempre, porém, sem resultado. Quando
acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre às minhas vistas como da
primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava, caiu-lhe o lenço ao
levantar-se do banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar
no jardim, apanhei o lenço, e corri a entregar-lho, quando já ela punha o pé
na soleira de sua casa. Agradeceu-me com um sorriso tão encantador,
que estive em termos de cair de joelhos a seus pés; mas não mandou-me
entrar, nem fez-me oferecimento algum.
- Esse lenço, Álvaro, - atalhou um cavalheiro, - decerto ela o
deixou cair de propósito, para que pudesses vê-la de perto e falar-lhe. É
um apuro de romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.
- Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie;
tudo nela respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar
meus pés daquele lugar, onde uma força magnética me retinha, e que
parecia rescender um misterioso eflúvio de amor, de pureza e de aventura...
Álvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão
suaves recordações.
- E ficaste nisso, Alvaro! - perguntava outro cavalheiro; - o teu
romance está-nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por
ver a peripécia...
- A peripécia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei
qual será. Esgotei enfim os estratagemas possíveis para ter entrada no
santuário daquela deusa; mas foi tudo baldado. O acaso enfim veio em
meu socorro, e serviu-me melhor do que toda a minha habilidade e
diligência. Passeando eu uma tarde de carro no bairro de Santo
Antônio, pelas margens do Beberibe, passeio que se tornara para mim uma
devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo pano em
um pequeno bote.
Instantes depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia.
Apeei-me imediatamente, e tomando um escaler na praia, fui em socorro dos
dois navegantes que em vão forcejavam por safar a pequena
embarcação. Não podem fazer idéia da deliciosa surpresa que senti, ao
reconhecer nas duas pessoas do bote a minha misteriosa da chácara e
seu pai...
- Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser
dramático; a história de seus amores com a tal fada misteriosa vai
tomando visos de um poema fantástico.
- Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e
enxovalhados, convidei-os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de
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muita relutância, e dirigimo-nos para a casa deles. É escusado contarvos o
resto desde então, se bem que com algum acanhamento foi-me
franqueado o umbral da gruta misteriosa.
- E pelo que vejo, - interrogou o doutor, - amas muito essa
mulher?
- Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões
para acreditar que ela... pelo menos não me olha com indiferença.
- Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de
bordel, por alguma dessas aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e
que, sabendo que és rico, arma laços ao teu dinheiro! Esse afastamento
da sociedade, esse mistério, em que procuram tão cuidadosamente
envolver a sua vida, não abonam muito em favor deles.
- Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às
pesquisas da polícia? - observou um cavalheiro.
- Talvez moedeiros falsos, - acrescentou outro.
- Tenho má-fé, - continuou o doutor - todas as vezes que vejo
uma mulher bonita viajando em países estranhos em companhia de um
homem, que de ordinário se diz pai ou irmão dela. O pai de tua fada,
Álvaro, se é que é pai, é talvez algum cigano, ou cavalheiro de
indústria, que especula com a formosura de sua filha.
- Santo Deus!... misericórdia! - exclamou Álvaro. - Se eu
adivinhasse que veria a pessoa daquela criatura angélica apreciada
com tanta atrocidade, ou antes tão impiamente profanada, quereria
antes ser atacado de mudez, do que trazê-la à conversação. Creiam, que
são demasiado injustos para com aquela pobre moça, meus amigos. Eu a
julgaria antes uma princesa destronizada, se não soubesse que é um
anjo do céu. Mas vocês em breve vão vê-la, e eu e ela estaremos
vingados; pois estou certo que todos a uma voz a proclamarão uma
divindade. Mas o pior é que desde já posso contar com um rival em
cada um de vocês.
- Por minha parte, disse um dos cavalheiros, - pode ficar tranqüilo,
pois sempre tive horror às moças misteriosas.
- E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito
medo de fadas, - acrescentou o outro.
- E como é, perguntou o Dr. Geraldo, - que vivendo ela assim
arredada da sociedade, pôde resolver-se a deixar a sua misteriosa
solidão, para vir a este baile tão público e concorrido?...
- E quanto não me custou isso, meu amigo! - respondeu
Álvaro. - Veio quase violentada. Há muito tempo que procuro convencê-la
por todos os modos, que uma senhora jovem e formosa, como é ela,
escondendo seus encantos na solidão, comete um crime, contrário às
vistas do Criador, que formou a beleza para ser vista, admirada e
adorada; pois sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários, que
desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra. Argumentos,
instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam-se constantemente
a aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos. Vali-me por fim de um
ardil; fiz-lhes acreditar que aquele modo de viver retraído e sem contato com
a sociedade em um país, onde eram desconhecidos, já começava a dar que
falar ao público e a atrair suspeitas sobre eles, e que até a polícia começava
a olhá-los com desconfiança: mentiras, que não deixavam de ter sua plausibilidade...
[Linha 2200 de 5193 - Parte 2 de 4]
- E tanta, - interrompeu o doutor. - que talvez não andem
muito longe da verdade.
- Fiz-lhes ver, - continuou Álvaro, - que por infundadas e fúteis
que fossem tais suspeitas, era necessário arredá-las de si, e para isso
cumpria-lhes absolutamente freqüentar a sociedade. Este embuste
produziu o desejado efeito.
- Tanto pior para eles, - retorquiu o doutor; - eis aí um indício
bem mau, e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem
eles inocentes, e bem pouco se importariam com as suspeitas do
público ou da policia, e continuariam a viver como dantes.
- Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles
têm poucos meios, e por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe
duros sacrifícios às pessoas desfavorecidas da fortuna, e eles... mas
ei-los, que chegam... Vejam e convençam-se com seus próprios olhos.
Entrava nesse momento na ante-sala uma jovem e formosa dama
pelo braço de um homem de idade madura e de respeitável presença.
- Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente
ei-los aqui! - isto dizia Álvaro aos recém-chegados, separando-se de
seus amigos, e apressurando-se para cumprimentar a aqueles com toda
a amabilidade e cortesia. Depois oferecendo um braço a Elvira e outro
ao senhor Anselmo, os vai conduzindo para as salas interiores, por onde
já turbilhona a mais numerosa e brilhante sociedade. Os três interlocutores
de Álvaro, bem como muitas outras pessoas, que por ali se achavam,
puseram-se em ala para verem passar Elvira, cuja presença causava
sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavam prevenidos.
- Com efeito!... é de uma beleza deslumbrante! Que porte de rainha!...
- Que olhos de andaluza!...
- Que magníficos cabelos!
- E o colo!... que colo!... não reparaste?...
- E como se traja com tão elegante simplicidade! - assim murmuravam
entre si os três cavalheiros como impressionados por uma aparição celeste.
- E não reparaste, - acrescentou o Dr. Geraldo, - naquele
feiticeiro sinalzinho, que tem na face direita?... Álvaro tem razão; a sua fada
vai eclipsar todas as belezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem
da novidade, e esse prestígio do mistério, que a envolve. Estou ardendo
de impaciência por lhe ser apresentado; desejo admirá-la mais de espaço.
Neste tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos,
Álvaro, tendo cumprido a grata comissão de apresentador daquela nova
pérola dos salões, estava de novo entre eles.
- Meus amigos, - disse-lhes ele com ar triunfante. - convido-os
para o salão. Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de
uma vez para sempre as injuriosas apreensões, que ainda há pouco
nutriam a respeito do ente o mais belo e mais puro, que existe debaixo
do Sol, se bem que estou certo que só com a simples vista ficaram
penetrados de assombro até a medula dos ossos.
Os quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do
turbilhão das salas interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos
por um grupo de lindas e elegantes moças, que cintilantes de sedas e
pedrarias como um bando de aves-do-paraíso, passeavam conversando.
O assunto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente
[Linha 2250 de 5193 - Parte 2 de 4]
diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos
rapazes. Nenhum mal nos fará escutá-las por alguns instantes.
- Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquela moça,
que ainda há pouco entrou na sala pelo braço do senhor Álvaro?
- Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não
é desta terra.
- Decerto; que ar espantado tem ela!... parece uma matuta,
que nunca pisou em um salão de baile; não acha, D. Rosalina?
- Sem dúvida!.., e você não reparou na toilette dela?... meu
Deus!... que pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar.
Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.
- Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro
já me tinha dado notícias dela, dizendo que era um assombro de beleza.
Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.
- Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito;
tudo quanto é novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola,
que tanto o traz embasbacado?...
- Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga, e a julgar
pelas aparências não é de todo má.
- Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais
suportável.
- Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá certa
graça particular...
- Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você também
tem na face um sinalzinho semelhante; esse deveras fica-te muito bem,
e dá-te, muita graça; mas o dela, se bem reparei, é grande demais; não
parece uma mosca, mas sim um besouro, que lhe pousou na face.
- A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o
salão; é preciso vê-la mais de perto, estudá-la com mais vagar para
podermos dar com segurança a nossa opinião.
E, dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados, formando
como longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando
perder-se entre a multidão.
Capitulo 11
Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a
fortuna parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus
favores. Filho único de uma distinta e opulenta família, na idade de
vinte e cinco anos, era órfão de pai e mãe, e senhor de uma fortuna de
cerca de dois mil contos.
Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre
e simpática expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que
entretanto não eram irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito
cultivado, era dotado de entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar-se
à esfera das mais transcendentes concepções. Tendo concluído os
preparatórios, como era filósofo, que pesava gravemente as coisas,
ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento era
senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão
[Linha 2300 de 5193 - Parte 2 de 4]
qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto
pairava pelas altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum
prazer nos estudos acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no
intrincado labirinto dessa árida e enfadonha casuística do direito positivo,
seu espírito eminentemente sintético recuou enfastiado, e não teve
ânimo de prosseguir na senda encetada. Alma original, cheia de grandes
e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas questões
políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e
interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só
tinham por base erros e preconceitos os mais absurdos.
Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado
dizer que era liberal, republicano e quase socialista.
Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista
exaltado, e não o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não
pequena porção da herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los
todos. Como porém Álvaro tinha um espírito nimiamente filantrópico,
conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta
submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus
libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção
confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar
grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro.
A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles
sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se
de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência
e podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do
sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um
rico lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade
de um quaker. Todavia, como homem de imaginação viva e coração
impressionável, não deixava de amar os prazeres, o luxo, a elegância,
e sobretudo as mulheres, mas com certo platonismo delicado, certa
pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações bem formados.
Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe
devia tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos
vagos de sua poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados,
Álvaro por certo devia ser objeto de grande preocupação no mundo
elegante, e talvez o almejo secreto, que fazia palpitar o coração de mais
de uma ilustre e formosa donzela. Ele, porém, igualmente cortês e
amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia dado o mínimo
sinal de predileção.
Pode-se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível
decepção que reinou nos círculos das belas pernambucanas ao verem o
vivo interesse e solicitude de que Álvaro rodeava uma obscura e
pobre moça; a deferência com que a tratava, e os entusiásticos elogios
que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não ficaram tão
despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da formosura.
Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras
havia falado de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa
eloquência apaixonada, que a todas surpreendeu e inquietou. As moças
ardiam por ver aquele protótipo de beleza, e já de antemão choviam sobre a
desconhecida e o seu campeão mil chascos e malignos apodos. Quando, porém,
[Linha 2350 de 5193 - Parte 2 de 4]
a viram, apesar dos contrafeitos e desdenhosos sornsos que apenas lhes roçavam
a flor dos lábios, sentiram uma desagradável impressão pungir-lhes no íntimo
do coração. Peço perdão às belas, de minha rude franqueza; a vaidade é,
com bem raras exceções, companheira inseparável da beleza e onde se
acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha mais ou menos de perto,
não se faz esperar por muito tempo. A beleza da desconhecida era incontestável;
sua modéstia e timidez em nada prejudicavam a singela e nativa elegância
de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em relação ao luxo suntuoso,
que a rodeava assentava-lhe maravilhosamente, e realçava-lhe ainda mais
os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira produziu
logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer
sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para
eclipsar as outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar-lhes a
vaidade e o amor-próprio. Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de
mil olhares desdenhosos, de mil sorrisos zombeteiros, e acerados
epigramas.
Álvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com que ele e a
sua protegida, - podemos dar-lhe esse nome, - eram acolhidos naquela reunião;
mas a tímida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza
e cordialidade, achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e
cortesania, e em cada olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um
sarcasmo.
Já sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com o
seu amigo, o Dr. Geraldo.
Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado
altamente conceituado no foro do Recife. Entre as relações de
Álvaro era a que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência
de bom quilate, firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de
nobreza, davam-lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. Seu
espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto,
prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os preconceitos
e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as idéias
excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo, longe de perturbar
ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes
para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas
relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por
fim de contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que
uma quer, a outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem,
enjoadas de tanto se dizerem - amém, - ver-se-ão forçadas a recolherem-se
ao silêncio e a dormitarem uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta
amizade!... De mais, a contrariedade de tendências e opiniões são sempre de
grande utilidade entre amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras.
É assim que muitas vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo serviam
de corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.
Da boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso veio ele conhecer
D. Elvira, e como conseguiu levá-la ao sarau, a que ainda continuamos a assistir.
- Meu pai, - dizia uma jovem senhora a um homem respeitável,
em cujo braço se arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos
de observação. - Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, enquanto
está deserta. Ah! meu Deus! - continuou ela com voz abafada, depois de se terem
[Linha 2400 de 5193 - Parte 2 de 4]
sentado junto um do outro; - que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio
dos saraus dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens,
que me rodeiam, me perturbam os sentidos e causam-me vertigem. É um crime
que cometo, envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição,
meu pai; eu o conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras
adivinhassem que ao lado delas diverte-se e dança uma miserável
escrava fugida a seus senhores!... Escrava! - exclamou levantando-se - escrava!...
afigura-se-me que todos estão lendo, gravada em letras negras em minha fronte,
esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai, fujamos! esta sociedade
parece estar escarnecendo de mim; este ar me sufoca... fujamos.
Falando assim a moça, pálida e ofegante, lançava a cada frase
olhares inquietos em roda de si, e empuxava o braço de seu pai, repetindo
sempre com ansiosa sofreguidão:
- Vamo-nos, meu pai; fujamos daqui.
- Sossega teu coração, minha filha, - respondeu o velho procurando
acalmá-la. - Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem
tu és. Como poderão desconfiar que és uma escrava, se de todas essas
lindas e nobres senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas
do espirito nenhuma pode levar-te a palma?
- Tanto pior, meu pai; sou alvo de todas as atenções, e esses
olhares curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me
a cada instante estremecer; desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus
pés, e me sumisse em seu seio.
- Deixa-te dessas idéias; esse teu medo e acanhamento é que
poderiam nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de
receio. Ostenta com desembaraço todos os seus encantos e habilidades,
dança, canta, conversa, mostra-te alegre e satisfeita, que longe de te
suporem uma escrava, são capazes de pensar que és uma princesa.
Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim
como é a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este
constrangimento; não nos é possível ficar por mais tempo nesta terra, onde
começamos a despertar suspeitas.
- É verdade, meu pai!... que fatalidade!... - respondeu a moça
com uma triste oscilação de cabeça. - Assim pois estamos condenados
a vagar de pais em país, sequestrados da sociedade, vivendo no mistério, e
estremecendo a todo instante, como se o céu nos tivesse marcado
com um ferrete de maldição!... ah! esta partida há de me doer bem no
coração!... não sei que encanto me prende a este lugar. Entretanto, terei
de dizer adeus eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias de prazer e
tranqüilidade! Ah! meu Deus!... quem sabe se não teria sido melhor
morrer entre os tormentos da escravidão!...
Neste momento entrava Álvaro na ante-sala percorrendo-a com os
olhos, como quem procurava alguém.
- Onde se sumiriam? - vinha ele murmurando; - teriam tido a
triste lembrança de se irem embora?... oh! não; felizmente ei-los ali! -
exclamou alegremente, dando com os olhos nos dois personagens que
acabamos de ouvir conversar. - D. Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais;
vem esconder-se neste recanto, quando devia estar brilhando no salão,
onde todos suspiram pela sua presença. Deixe isso para as tímidas e
fanadas violetas; à rosa compete alardear em plena luz todos os seus
[Linha 2450 de 5193 - Parte 2 de 4]
encantos.
- Desculpe-me, - murmurou Isaura - uma pobre moça criada
como eu na solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplêndidas
reuniões, sente-se abafada e constrangida...
- Oh! não... há de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor,
as harmonias, os perfumes, constituem a atmosfera em que deve
brilhar a beleza, que Deus criou para ser vista e admirada. Vim buscá-la
a pedido de alguns cavalheiros, que já são admiradores de V. Ex.ª. Para
interromper a monotonia das valsas e quadrilhas, costumam aqui as senhoras
encantar-nos os ouvidos com alguma canção, ária, modinha, ou
seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, - perdoe-me a
indiscrição, filha do entusiasmo - que V. Ex.ª possui a mais linda voz, e
canta com maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi-la.
- Eu, senhor Álvaro!... eu cantar diante de uma tão luzida reunião!...
por favor, queira dispensar-me dessa nova prova. É em seu
próprio interesse que lhe digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou
certa que irei solenemente desmenti-lo. Poupe-nos a nós ambos essa
vergonha.
- São desculpas, que não posso aceitar, porque já a ouvi cantar,
e creia-me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza de que a senhora
canta admiravelmente, não seria capaz de expô-la a um fiasco. Quem
canta como V. Ex.ª não deve acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe
encarecidamente que não cante outra coisa, senão aquela maviosa
canção da escrava, que outro dia a surpreendi cantando, e afianço a V. Ex.ª
que arrebatará os ouvintes.
- Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão tristes...
- E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios de V. Ex.ª.
- Ai! triste de mim! - suspirou dentro da alma D. Elvira: -
aqueles mesmos que mais me amam, tomam-se, sem o saber, os meus
algozes!...
Elvira bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquela ocasião
era para ela o mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era mais possível relutar,
e lembrando-se do judicioso conselho de seu pai, não quis
mais ver-se rogada, e aceitando o braço que Álvaro lhe oferecia, foi por
ele conduzida ao piano, onde sentou-se com a graça e elegância de
quem se acha completamente familiarizada com o instrumento.
Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na
mais ansiosa expectação, se apinharam em volta do piano; os cavalheiros
estavam ansiosos por saberem se a voz daquela mulher correspondia à sua
extraordinária beleza; se a fada seria também uma sereia; as
moças esperavam, que ao menos naquele terreno, teriam o prazer de
ver derrotada a sua formidável êmula, e já contavam compará-la com o
pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo formado a mais
bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e
desagradável.
A conjuntura era delicada e solene; a moça achava-se na difícil
situação de uma prima-dona, que, precedida de uma grande reputação,
faz a sua estréia perante um público exigente e ilustrado. Em tomo dela
fazia-se profundo silêncio; as respirações estavam como que suspensas,
ao passo que parecia ouvir-se o palpitar de todos os corações no ofego
[Linha 2500 de 5193 - Parte 2 de 4]
da expectação. Álvaro, apesar de conhecer já a excelência da voz de
Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se inquieto e
comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou
mal; desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e
a mais tola daquela reunião, contanto que a deixassem a um canto
esquecida e sossegada. Dir-se-ia que estava debaixo do império de algum
terrível pressentimento. Mas Elvira amava a Álvaro, e grata ao delicado
empenho, com que este, cheio de solicitude e entusiasmo, se esforçava
por apresentá-la como um protótipo de beleza e de talento aos
olhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê-lo, e não desmentir a
lisonjeira opinião, que propalara a respeito dela, desejava cantar o melhor
que lhe fosse possível. Era ao triunfo de Álvaro que aspirava mais
do que ao seu próprio.
Uma vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos e
flexíveis, pousando sobre o teclado, preludiaram alguns singelos acordes, a
moça sentiu-se outra, revelando aos circunstantes maravilhados um
novo e original aspecto de sua formosura. A fisionomia, cuja expressão
habitual era toda modéstia, ingenuidade e candura, animou-se de luz
insólita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueu-se altaneiro e majestoso;
os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e serenidade; os
seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em tranqüila
noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como
oceano encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o
do cisne que se apresta a desprender os divinais gorjeios. Era o
sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe pela fronte, a
transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das
harmonias do céu. Ali sentia-se ela rainha sobre seu trono ideal; ali
era Calíope sentada sobre a tripo de sagrada, avassalando o mundo
ao som de enlevadoras e inefáveis harmonias. Das próprias inquietações
e angústias da alma soube ela tirar alento e inspiração para vencer as
dificuldades da árdua situação em que se achava empenhada. Banhou os
lábios com as lágrimas do coração, e a voz lhe rompeu do peito com
tão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras e
suaves, tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lágrima
viu-se rolar pelas faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres,
dos risos, e da frivolidade!
Elvira acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara o
canto, o salão restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e parecia
que vinha desabando ao ruído atordoador das palmas e dos vivas!
A fada de Álvaro é também uma sereia; - dizia o Dr. Geraldo
a um dos cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. - Resume tudo
em si... que timbre de voz tão puro e tão suave; julguei-me arrebatado
ao sétimo céu, ouvindo as harmonias dos coros angélicos.
- É uma consumada artista... no teatro faria esquecer a Malibran,
e conquistaria reputação européia. Álvaro tem razão; uma criatura assim
não pode ser uma mulher ordinária, e muito menos uma aventureira... A música
dando o sinal para a quadrilha, interrompe a conversação ou não nô-la deixa
ouvir.
- D. Elvira, - diz Álvaro dirigindo-se à sua protegida, que já se
achava sentada ao pé de seu pai, - lembre-se, que me fez a honra de
[Linha 2550 de 5193 - Parte 2 de 4]
conceder-me esta quadrilha.
Elvira esforçou-se por sorrir e combater o terrível abatimento, que
ao deixar o piano de novo se apoderara de seu espírito.
Tomou o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar na
quadrilha.
Capitulo 12
Agora os leitores já sabem, se é que há mais tempo não adivinharam,
que a suposta Elvira não é mais do que a escrava Isaura, assim
como Anselmo não passa do feitor Miguel, ambos os quais são já
nossos conhecidos antigos. Como também sabem que Isaura não só era
dotada de espírito superior, como também recebera a mais fina e
esmerada educação, não lhe estranharam a distinção das maneiras, a
elegância e elevação da linguagem, e outros dotes, que faziam com que
essa escrava excepcional pudesse aparecer e mesmo brilhar no meio da
mais luzida e aristocrática sociedade.
Foi a situação desesperada, em que via sua querida filha, que
inspirou a Miguel o expediente extremo de uma fuga precipitada,
exposta a mil azares e perigos. Lembrava-se ele com horror do miserando
destino de que em iguais circunstâncias fora vítima a mãe de Isaura, e
bem sabia que Leôncio, tão desalmado como o pai, e ainda mais
corrupto e libertino, era capaz de excessos e atentados ainda maiores.
Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeu que podia
utilizar-se da soma, que para esse fim tinha agenciado, empregando-a em
arrancar a pobre vitima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse.
Bem via que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seus
senhores, e proteger-lhe a fuga, além de ser um crime, era um ato desairoso
e indigno de um homem de bem; mas a escrava era uma filha
idolatrada, e uma pérola de pureza, prestes a ser poluída ou esmagada
pela mão de um senhor verdugo, e esta consideração o justificava aos olhos
da própria consciência.
Bem se lembrara o infeliz pai de dar denúncia do fato às
autoridades, implorando a proteção das leis em favor de sua filha para
que não fosse vitima das violências e sevícias de seu dissoluto e
brutal senhor. Mas todos a quem consultava respondiam-lhe a uma voz:
- Não se meta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada têm que ver
com o que se passa no interior da casa dos ricos. Não caia nessa; muito feliz
será, se somente tiver de pagar as custas, e não lhe arrumarem por
cima algum processo, com que tenha de ir dar com os costados na
cadeia. - Onde se viu o pobre ter razão contra o rico, o fraco contra o
forte?...
Miguel entretinha relações ocultas com alguns dos antigos escravos
da fazenda de Leôncio, os quais, lembrando-se ainda com saudades do
tempo de sua boa administração, conservavam-lhe o mesmo respeito e
afeição, e por meio deles tinha exata informação do que se passava na fazenda.
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A Escrava Isaura - Parte 1 de 4 - Bernardo Guimarães
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