segunda-feira, 31 de março de 2014

A Revolta da Vacina - História do Brasil

A REVOLTA DA VACINA - História do Brasil


Oswaldo Cruz queria livrar o Rio de Janeiro da varíola. Mas na primeira campanha de vacinação, há 90 anos, a cidade virou um campo de batalha.



Entre os dias 10 e 18 de novembro de 1904, a cidade do Rio de Janeiro viveu o que a imprensa chamou de "a mais terrível das revoltas populares da República". O cenário era desolador: bondes tombados, trilhos arrancados, calçamentos destruídos - tudo feito por uma massa de 3 000 revoltosos. A causa foi a lei que tornava obrigatória a vacina contra a varíola. E o personagem principal, o jovem médico sanitarista Oswaldo Cruz.
A oposição política, ao sentir a insatisfação popular, tratou de canalizá-la para um plano arquitetado tempos antes: a derrubada do presidente da República Rodrigues Alves. Mas os próprios insufladores da revolta perderam a liderança dos rebeldes e o movimento tomou rumos próprios. Em meio a todo o conflito, com saldo de 30 mortos, 110 feridos, cerca de 1 000 detidos e centenas de deportados, aconteceu um golpe de Estado, cujo objetivo era restaurar as bases militares dos primeiros anos da República. 
A revolta foi sufocada e a cidade, remodelada, como queria Rodrigues Alves. Poucos anos depois, o Rio de Janeiro perderia o título de "túmulo dos estrangeiros". Hoje, a varíola está extinta no mundo todo. E a Organização Mundial da Saúde, da ONU, discute a destruição dos últimos exemplares do vírus da doença, ainda mantidos em laboratórios dos Estados Unidos e da Rússia.
Rodrigues Alves assumiu a presidência da República em 1902, no Rio de Janeiro, sob um clima de desconfiança e com um programa de governo que consistia basicamente de dois pontos: modernizar o porto e remodelar a cidade. Isso exigia atacar o maior mal da capital: doenças como peste bubônica, febre amarela e varíola. 
A futura "Cidade Maravilhosa" era, então, pestilenta. A situação era tão crítica que, durante o verão, os diplomatas estrangeiros se refugiavam em Petrópolis, para se livrar do contágio. Em 1895, ao atracar no Rio, o contratorpedeiro italiano Lombardia perdeu 234 de seus 337 tripulantes por febre amarela.
 Segundo a oligarquia paulista do café, de quem Rodrigues Alves era representante, além de vergonha nacional, as condições sanitárias do Rio impediam a chegada de investimentos, maquinaria e mão-de-obra estrangeira. 
O projeto sanitário deveria ser executado a qualquer preço. Rodrigues Alves nomeia, então, dois assistentes, com poderes quase ditatoriais: o engenheiro Pereira Passos, como prefeito, e o médico sanitarista Oswaldo Cruz, como chefe da Diretoria de Saúde Pública. Cruz assume o cargo em março de 1903: "Dêem-me liberdade de ação e eu exterminarei a febre amarela dentro de três anos". O sanitarista cumpriu o prometido.
Em nove meses, a reforma urbana derruba cerca de 600 edifícios e casas, para abrir a avenida Central (hoje, Rio Branco). A ação, conhecida como "bota-abaixo", obriga parte da população mais pobre a se mudar para os morros e a periferia.
A campanha de Oswaldo Cruz contra a peste bubônica correu bem. Mas o método de combate à febre amarela, que invadiu os lares, interditou, despejou e internou à força, não foi bem sucedida. Batizadas pela imprensa de "Código de Torturas", as medidas desagradaram também alguns positivistas, que reclamavam da quebra dos direitos individuais. Eles sequer acreditavam que as doenças fossem provocadas por micróbios.
1.Jacobinos e florianistas.1, que já articulavam um golpe contra o presidente Rodrigues Alves, perceberam que poderiam canalizar a insatisfação popular em favor de sua causa: a derrubada do governo, acusado de privilegiar os fazendeiros e cafeicultores paulistas.
Dia 31 de outubro, o governo consegue aprovar a lei da vacinação. Preparado pelo próprio Oswaldo Cruz - que tinha pouquíssima sensibilidade política -, o projeto de regulamentação sai cheio de medidas autoritárias. O texto vaza para um jornal. No dia seguinte à sua publicação, começam as agitações no centro da cidade. 
Financiados pelos monarquistas - que apostavam na desordem como um meio de voltar à cena política -, jacobinos e florianistas usam os jornais para passar à população suas idéias conspiradoras, por artigos e charges. Armam um golpe de Estado, a ser desencadeado durante o desfile militar de 15 de novembro. Era uma tentativa de retornar aos militares o papel que desempenharam no início da República. Mas, com a cidade em clima de terror, a parada militar foi cancelada. Lauro Sodré e outros golpistas conseguem, então, tirar da Escola Militar cerca de 300 cadetes que marcham, armados, para o palácio do Catete.
O confronto com as tropas governamentais resulta em baixas dos dois lados, sem vencedores. O governo reforça a guarda do palácio. No dia seguinte, os cadetes se rendem, depois que a Marinha bombardeara a Escola Militar, na madrugada anterior. No dia 16, o governo revoga a obrigatoriedade da vacina, mas continuam os conflitos isolados, nos bairros da Gamboa e da Saúde. Dia 20, a rebelião está esmagada e a tentativa de golpe, frustrada. Começa na cidade a operação "limpeza", com cerca de 1 000 detidos e 460 deportados.
Mesmo com a revogação da obrigatoriedade da vacina, permanece válida a exigência do atestado de vacinação para trabalho, viagem, casamento, alistamento militar, matrícula em escolas públicas, hospedagem em hotéis. 
Em 1904, cerca de 3 500 pessoas morreram de varíola. Dois anos depois, esse número caía para nove. Em 1908, uma nova epidemia eleva os óbitos para cerca de 6 550 casos, mas, em 1910, é registrada uma única vítima. A cidade estava enfim reformada e livre do nome de "túmulo dos estrangeiros".
Cerca de quinze tipos de moléstia faziam vítimas no Rio do início do século. As principais, que já atingiam proporções epidêmicas, eram a peste bubônica, a febre amarela e a varíola. Mas havia também sarampo, tuberculose, escarlatina, difteria, coqueluche, tifo, lepra, entre outras.
Para combater a peste bubônica, Oswaldo Cruz formou um esquadrão especial, de 50 homens vacinados, que percorriam a cidade espalhando raticida e mandando recolher o lixo. Criou o cargo de "comprador de ratos", funcionário que recolhia os ratos mortos, pagando 300 réis por animal. Já se sabia que eram as pulgas desses animais as transmissoras da doença. 
Em 1881, o médico cubano Carlos Finlay havia identificado o mosquito Stegomyia fasciata como o transmissor da febre amarela. Cruz, então, criou as chamadas "brigadas mata-mosquitos", que invadiam as casas para desinfecção com gases de piretro e enxofre. No primeiro semestre de 1904, foram feitas cerca de 110 000 visitas domiciliares e interditados 626 edifícios e casas. A população contaminada era internada em hospitais. 
Mesmo sob insatisfação popular, a campanha deu bons resultados. As mortes, que em 1902 chegavam a cerca de 1 000, baixaram para 48. Cinco anos depois, em 1909, não era registrada, na cidade do Rio de Janeiro, mais nenhuma vítima da febre amarela.
Apesar de todos os incidentes, foi com a mesma firmeza que Oswaldo Cruz bancou a campanha contra a varíola. Na noite de 14 para 15 de novembro, enviou a mulher e os filhos para a casa do amigo Sales Guerra e seguiu, ele mesmo, para a casa do cientista Carlos Chagas, que mais tarde descobriria a causa do mal de Chagas.
Em 1907, de volta de uma exposição na Alemanha, onde fora premiado por sua obra de combate às doenças, Cruz sente os primeiros sintomas da sífilis. Envelheceu rapidamente: aos 30 anos, tinha já cabelos brancos. A sífilis causou-lhe insuficiência renal. Mais tarde, surgiram problemas psíquicos. Os delírios se intensificaram e conta-se que muitas vezes foi visto à noite, vagando solitariamente pelas dependên-cias do Instituto Manguinhos, que ele próprio ajudara a projetar, em 1903, e que receberia o nome de Instituto Oswaldo Cruz, em 1908. 
Em 1916, foi nomeado prefeito de Petrópolis. A cidade, envolvida em disputas políticas, não recebe bem a nomeação. Oswaldo Cruz morreu, em 11 de fevereiro de 1917, com uma passeata de protesto em frente à sua casa. 

O mês de novembro de 1904 pôs fogo no Rio de Janeiro

Dia 9
O jornal carioca A Notícia publica o projeto de regulamentação da lei de vacinação obrigatória. Os termos são considerados autoritários e começa a indignação popular. No dia 10, o povo se aglomera no largo de São Francisco. "Morra a polícia. Abaixo a vacina", gritam os oradores. A multidão desce a rua do Ouvidor e, na praça Tiradentes, encontra policiais. Ao final, quinze presos. 

Dia 11
A Liga Contra a Vacina Obrigatória marca um comício no largo de São Francisco. Seus líderes não comparecem. Mas, exaltada, a multidão recebe a polícia com pedras, paus e pedaços de ferro da construção da avenida Central (hoje, Rio Branco). À noite, cerca de 3 000 pessoas marcham contra o Palácio do Catete, sede do governo, já cercado por tropas. Na volta, pela Lapa, há novos confrontos. Tiros. Morre o primeiro popular.

Dia 12
Nos três dias seguintes, a cidade se transforma num campo de batalha, com barricadas em diversos pontos. Bondes e postes são depredados. Trilhos e calçamentos, arrancados. Delegacias, repartições públicas e casas de armas, invadidas. A polícia é expulsa de bairros pobres, como a Saúde. Tropas do Exército de São Paulo e Minas Gerais são requisitadas. A Marinha entra no conflito.

Dia 14
Golpe de Estado contra o presidente Rodrigues Alves. Líderes políticos conseguem sublevar a Escola Militar, na praia Vermelha, de onde saem 300 cadetes armados, rumo ao Catete. Golpistas e tropas legalistas se enfrentam. O governo reforça a segurança do palácio. O presidente se recusa a se refugiar num navio da Marinha. O encouraçado Deodoro bombardeia a Escola Militar. Os rebelados se rendem. Fracassa o golpe.

Dia 16
O governo suspende a obrigatoriedade da vacina, retraindo a revolta. A resistência fica isolada a poucos locais, entre eles, a Saúde, "último reduto dos anarquistas". No dia 18, acontece o último conflito, na pedreira do Catete. Saldo: 110 feridos, 30 mortos e 945 pessoas presas, das quais 461 são deportadas - inclusive sete estrangeiros, segundo o chefe de polícia. A cidade volta à normalidade. 


Breve história da extinção da varíola no mundo

1904
A vacina era fabricada com o vírus da varíola bovina. A primeira vacina tinha sido desenvolvida em 1797, pelo médico inglês Edward Jenner (1749-1823). Com o tempo, o método foi aperfeiçoado. No final do século XIX, já se produzia a vacina desidratada, a partir do vírus da varíola bovina. Foi este o método trazido da França por Oswaldo Cruz. A aplicação era feita no braço, por meio de arranhões com lancetas.

1967
A Organização Mundial da Saúde (OMS), da ONU, iniciou a campanha de erradicação da varíola. A vacina era produzida, então, a partir de tecidos de bezerro contendo o vírus ativo, e a aplicação, feita por pistola. Em 1973, a varíola é considerada extinta na América do Sul. Em 1976, o último ataque à doença, na Somália e na Etiópia, mobilizou 3 milhões de vacinadores. O último caso foi o de uma jornalista inglesa, que se contaminou em laboratório e morreu da doença, em 1978. 

1980
Em 8 de maio, a OMS dá a varíola como completamente erradicada da Terra. Alguns países foram autorizados a conservar o vírus em laboratório, entre eles Estados Unidos, África do Sul, a extinta União Soviética, Grã-Bretanha, Holanda e China. Os três últimos desistiram. A África do Sul destruiu suas amostras em 1984.Em meados deste ano, foi realizada uma reunião para definir o que fazer com as amostras americanas e russas.

1994
Em 9 de setembro, o Comitê de Especialistas da OMS aprovou a recomendação de destruir os últimos vírus e encaminhou-a à Assembléia Mundial de Saúde, que acontece em maio de 1995. O Brasil foi representado no Comitê pelo pesquisador Hermann Schatzmayr, da Fundação Oswaldo Cruz. Tudo indica que os últimos exemplares terão seu fim em 30 de junho de 1995. Mas seu código genético será preservado. 


O sanitarista

Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu em São Luis do Paraitinga, São Paulo, em 5 de agosto de 1872. Precoce, ingressou na faculdade de medicina aos 15 anos. Em 1892, com 20 anos, obteve o doutorado pela Faculdade Nacional de Medicina, do Rio de Janeiro. Exerceu a clínica médica por pouco tempo e, com o apoio do sogro, seguiu para Paris, em 1896, para um estágio no Instituto Pasteur. Faleceu em Petrópolis, em 11 de fevereiro de 1917.  


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