segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A Sociedade Anônima dos Cupins

A SOCIEDADE ANÔNIMA DOS CUPINS



Eles se comunicam boca a boca, repartem tarefas, dividem-se em grupos e resolvem complicados problemas de ventilação e drenagem para construir suas casas enormes.

Um cupim sozinho não é nada criativo. Vai e vem ao acaso sem parar, carregando um grãozinho de terra, quando muito. Mas se juntarmos um grupo deles, pequeno que seja tudo muda. Alguns vão se deter num ponto qualquer, demonstrar interesse pelo local. Ali depositam seu grãozinho de terra. O montinho atrai a atenção dos outros - e pronto todos entram numa atividade febril, cumprindo tarefas diferentes e bem determinadas. Trabalham em sociedade.
O cupim conta com um sistema ganglionar simples que reage a alguns estímulos de forma pouco perceptível e, às vezes, incoerente. Mas a reunião de um grupo deles faz aparecer uma espécie de atmosfera psíquica, uma vontade coletiva geradora de ações que exigem um certo grau de discernimento. Uma colônia de cupins, com vários milhões de indivíduos, consegue construir habitações sofisticadas, que exigem a solução de vários problemas complicados.
Muitos estudiosos perderam tempo procurando o centro de comando do cupinzeiro, tal como os fisiologistas do passado que dissecavam cadáveres para descobrir a alma das pessoas. É provável que a alma do cupinzeiro esteja encoberta pela trofalaxia, um fenômeno tão estranho quanto a palavra que lhe dá nome.
Ela significa que um inseto social, como é o cupim, participa de um sistema de alimentação coletiva, que se distribui de indivíduo a indivíduo por contatos boca a boca. Mas a trofalaxia não significa apenas alimento. Ela também proporciona uma forma de comunicação, com a transmissão de mensagens químicas, gota a gota. No exato momento em que as mandíbulas de dois cupins se tocam, uma minúscula gotinha se desprende da boca de um deles e passa para a do outro. Uma fração de segundo e o recado já está passado.
Até agora só foi possível decifrar algumas das dezenas, quem sabe centenas, de mensagens que uma gotinha dessas pode conter. Uma das que foram decifradas se parece muito com o que se convencionou chamar hormônio social. Cada indivíduo da colônia está rotulado por um hormônio, específico da categoria social a que pertence. Um cupim soldado carrega seu extrato próprio, da mesma forma que o operário ou as formas sexuadas, que garantem a reprodução da espécie.
A sociedade dos cupins evolui mais ou menos como as células embrionárias durante o processo de crescimento de um organismo. Ao se diferenciarem, elas se agrupam em tecidos diversos, que irão desempenhar diferentes funções nos vários órgãos. O hormônio social do cupinzeiro, ao chegar à boca de um recém-nascido, provoca um estímulo químico em suas células, induzindo-as a construir o tipo de indivíduo de que a colônia necessita naquele momento. É a característica dos cupins de se alimentarem constante e reciprocamente que garante o perfeito funcionamento desse sistema.
É ele que assegura a permanente circulação dos hormônios sociais entre todos os membros da colônia, pelo contato boca a boca. Na composição desse hormônio social entram parcelas ínfimas do hormônio individual de cada casta. Quando o cupinzeiro dispõe de número ótimo de soldados, estes circulam distribuindo boca a boca o hormônio social com a sua secreção particular, que vai agir sobre os recém-nascidos de forma inibidora: a secreção de soldado indica que eles não devem tornar-se soldados, pois há um número suficiente destes na sociedade. Quando, pelo contrário, não há soldados bastantes, menos recém-nascidos recebem essa secreção, e assim estão livres para se tornarem soldados, e não operários, de que o organismo estará bem suprido nesse momento. Tanto assim que eles terão recebido nos contatos boca a boca a dose de secreção inibidora que evita que eles se encaminhem para essa "profissão".
Se fosse apenas isso, já seria uma fantástica maneira de manter o equilíbrio social entre as diversas categorias de cupins. Mas o mecanismo é ainda mais sofisticado: garante, por exemplo, maior produção de operários quando a colônia necessita, também, aumentar a produção de alimentos. Aliás, o movimento exploratório de uma legião de operários à procura de alimentos é típico de um organismo que lança tentáculos ao redor de si mesmo. Nesse caso, os tentáculos são muito mais precisos que o tatear aleatório de uma ameba, por exemplo.
Quando transportam o alimento aos diversos setores da colônia, os cupins operários desempenham um papel parecido com o dos glóbulos vermelhos do sangue, que percorrem todo o organismo nutrindo as células. Certas tarefas dos cupins soldados também têm semelhanças com as do sangue, quando bloqueia a ação de agentes agressores do organismo. Uma torrente de soldados é despejada na circulação do cupinzeiro assim que o alarma hormonal denuncia algum tipo de ameaça em qualquer setor da colônia: por exemplo, quando um animal estranho tenta invadir a casa de todos eles.
Nessa situação, os soldados entopem com seus corpos todas as vias de acesso ao local da agressão. Estancam a circulação na área afetada, morrem aglutinados e dão tempo para que, mais atrás, os operários construam crostas protetoras que isolem o intruso e cicatrizem as feridas que tornaram o superorganismo vulnerável.
A trofalaxia é responsável por essa harmonia de ações, mas não pode ser utilizada para explicar alguns fatos que ocorrem no cupinzeiro. Por exemplo, o momento das revoadas de acasalamento, conhecidas vulgarmente como aleluias. Elas proporcionam o encontro de machos e fêmeas oriundos de colônias diferentes, o que é muito importante para o fortalecimento genético das futuras colônias. As revoadas são muito perigosas para os insetos, pois sua aglomeração num único local, ao ar livre, atrai os animais predadores. O morticínio é sempre muito superior ao número de casais que conseguem se unir.
As aleluias são, portanto, um momento crítico para todos os superorganismos que irão trocar material genético entre si. Os minutos são preciosos, justificando o fato de que todos eles lancem ao ar suas formas sexuadas exatamente no mesmo momento. E esse momento é cuidadosamente preparado. É o hormônio social que prepara os indivíduos férteis para abandonarem a colônia. Para isso, predispõe todo o superorganismo a esse acontecimento, deixando-o agitado como se fosse um animal no cio.
As formas aladas, prontas para o acasalamento, são enviadas a compartimentos subterrâneos. O canal de acesso ao exterior permanece obstruído por centenas de operários, o que faz com que as formas sexuadas se comprimam aos milhares nas câmaras de espera, como se provocassem o inchaço das glândulas sexuais do superorganismo. O sinal para deflagrar simultaneamente a revoada de todas as colônias talvez seja uma simples chuva de verão. Não se sabe ao certo. Mas há um momento em que todas as formas sexuadas serão acometidas por um frenesi. Produzirão intensa vibração com as asas, provocando calor. O superorganismo fica então febril. O canal para o exterior é desobstruído e os casais se precipitarão para fora. Como se fossem o sêmen oriundo da ejaculação do cupinzeiro, eles flutuarão por breves momentos, como uma gigantesca e efêmera nuvem de insetos.
O conceito de superorganismo foi formulado pelo entomologista americano W.M. Wheeler. Ele acreditou estar abrindo uma perspectiva incrível para a Biologia ao sugerir que cupinzeiros, colméias e formigueiros fossem estudados como simples indivíduos, em face dos mecanismos de seleção natural. Afinal, a autonomia característica do ser vivo, que resolve sozinho seus problemas de alimentação, reprodução e defesa, é expressada de forma diferente entre os insetos sociais. Ela é substituída pela ação das castas coletoras de alimentos, reprodutoras e defensoras. Nenhum indivíduo atua decisivamente como representante da colônia na luta pela sobrevivência.
Nenhum membro pode representar isoladamente um modelo ou padrão responsável pela evolução ou pela sobrevivência da colônia. Esse padrão está contido nos genes transportados pelas formas sexuadas e só se materializa após a fecundação e a conseqüente formação de uma nova colônia. Visto desta maneira, o conceito de superorganismo parece coerente. Mas não se deve esquecer que o sucesso dos atuais superorganismos repousa sobre um sem-número de vitórias e fracassos, ocorridos há milhões de anos, quando insetos primitivos, machos e fêmeas, se dispuseram a viver em conjunto.
Os atuais superorganismos indicam que alguns deles obtiveram grandes vantagens quando passaram a contar com um prole assexuada para garantir a sobrevivência da espécie. Então fica claro que o superorganismo é a expressão maior de uma espécie de inseto. Mais precisamente, talvez, de uma fêmea fecundada, pois a partir dela, e até que aconteça a próxima revoada para acasalamento, todos os genes que irão perpetuar a espécie estarão sob os cuidados desse dedicado e laborioso superorganismo.
A questão permanece, e é a mais atual para os cientistas e pesquisadores que se ocupam com a vida desses insetos. Afinal, que são eles, exatamente, os cupins, as vespas, abelhas, formigas, todos os insetos chamados sociais porque vivem em vastos aglomerados onde as funções são cuidadosamente divididas por castas?
Sem dúvida, é fascinante encarar uma formiga como uma célula de um organismo. Célula errante, que anda, comandada a distância pela ação de um hormônio social, ligada a uma legião de outras formigas exatamente iguais a ela. A tese de Wheeler fez grande sucesso, sobretudo entre os estudiosos da Sociobiologia, um novíssimo ramo da Biologia que pretende explicar o comportamento social dos animais a partir de fundamentos genéticos. Contudo, mesmo eles não utilizam o conceito do superorganismo em suas pesquisas, pois nada ajudaria na solução dos problemas de genética, comportamento e fisiologia com que se defrontam os pesquisadores que trabalham com os insetos sociais.

Os cupins, as vespas e as formigas.

Apenas duas ordens de insetos formam superorganismos: os Hymenoptera (formigas, vespas e abelhas) e os Isoptera (cupins). Se estão assim isolados na classificação, é sinal que os cupins diferem dos outros insetos sociais como um gafanhoto de uma borboleta. O estudo sistemático de insetos fossilizados levou os cientistas a uma notável descoberta: cupins e baratas foram estreitamente aparentados há uns trezentos milhões de anos. Mas as causas que levaram as baratinhas pré-históricas a se organizarem socialmente permanecem desconhecidas até hoje.
Com exceção dos cupins e das formigas - exclusivamente sociais, as vespas e abelhas apresentam diversas espécies solitárias e outras semi-solitárias, operando em variados níveis de organização. Para os cientistas, são modelos para estudo de como teriam sido os degraus vencidos ao longo da evolução da espécie, até que chegassem ao estágio atual. Nesse particular, são as vespas que oferecem a maior variedade de estilos de vida.
As espécies solitárias são caçadoras de insetos ou de aranhas, em geral. Cada espécie de vespa caçadora captura um único tipo de vítima, mas o destino desta é sempre o mesmo: paralisada pela ferroada, será mantida viva para ser devorada pela cria da vespa.
Algumas caçadoras de aranhas apenas cavam um buraco no solo, enterram o animal e depositam um ovo sobre ele. Outras preparam cuidadosas construções de barro, onde guardam uma ou mais vítimas. Em todos esses casos, as vespas abandonam os ninhos antes mesmo do nascimento das larvas, o que significa que as gerações sucessivas nem chegam a entrar em contato. Esse hábito só começa a se modificar com certas vespas cujas fêmeas escavam túneis ramificados, onde guardam animais paralisados em todos os terminais. Elas acompanham o crescimento das larvas e providenciam diariamente mais comida, de acordo com as necessidades.
Alguns estudiosos admitem a hipótese de que no passado a proximidade em que se encontravam algumas colônias de vespas semelhantes tenha feito surgir um comportamento comunitário entre elas. Terrenos encharcados ou secos em demasia podem tê-las levado a compartilhar uma nesga de espaço para os seus túneis. E assim algumas se impuseram sobre as demais, criando uma certa hierarquia. Essas rainhas arcaicas teriam, dessa forma, dado o primeiro passo em direção à construção dos grandes organismos sociais, nos quais uma crescente divisão do trabalho entre todas as castas e o estilo de cooperação entre elas desenvolvido culminaram finalmente na formação de verdadeiros superorganismos.


.
.
.
C=84977
.
.
.

Rei Sol - Astronomia

REI SOL - Astronomia



Durante milênios o homem adorou o Sol. Nos últimos 500 anos, começou a conhecê-lo. Dele, a Terra recebe algo como a energia de 10 bilhões de Itaipus. E isso é apenas uma ínfima parcela da luz e calor que emite. Sem ele nenhuma forma de vida existe.

Em apenas 1 segundo, o volume de vapor que se forma sobre os rios e plantas da floresta amazônica equivale a quase 200 mil toneladas. Isso é mais do que o próprio rio Amazonas despeja no mar em qualquer momento: 160 mil toneladas por segundo. Lado a lado, essas duas grandes correntes de água criam imponente sistema de circulação tão essencial à sobrevivência da maior floresta do mundo quanto as artérias para o corpo humano. Há cerca de 200 milhões de anos - idade aproximada da própria mata -, o sistema vem funcionando com incrível regularidade e eficiência. Mas o espetáculo dessas forças perde todo o brilho e grandeza quando comparado com a sua fonte de energia - o Sol.
Vista da superfície do astro-rei, a Terra é um irrisório grão de areia girando à remota distância de 150 milhões de quilômetros. Mesmo assim, a ínfima parcela de luz e calor que efetivamente alcança o planeta - em vez de perder-se em outras direções no espaço vazio - é suficiente para dar vida e movimento aos oceanos, ventos, florestas, a cada um e a todos os organismos. Essa energia, que os antigos atribuíam aos deuses, pode hoje ser calculada com precisão. Equivale à eletricidade que seria gerada por 10 bilhões de hidrelétricas do porte de Itaipu. Não admira que o homem primitivo das mais diversas latitudes - e o já nem tão primitivo assim - tenha adorado o Sol sobre todas as coisas, num culto feito de reverência e temor, a ponto de incluir sacrifícios humanos.
Dos 2 milhões de anos que já dura a saga do homem na Terra, apenas nos últimos quinhentos começou-se a conhecer algo sobre a estrela que dá vida ao planeta. E só muitíssimo recentemente - depois da Segunda Guerra Mundial - os astrônomos passaram a ter uma idéia mais precisa do que acontece por trás de sua face de fogo. Mas, desde então, as descobertas não cessaram de se acumular rapidamente, à medida que os instrumentos de observação foram-se tornando cada vez mais sofisticados. Os projetos modernos são espetaculares, a começar pela esperta nave-robô norte-americana Starprobe (Investigador de Estrela) que em missão suicida mergulhará diretamente sobre as labaredas solares, transmitindo informações até ser consumida.
Essa nave deveria voar já este ano, mas seu lançamento foi adiado por causa dos cortes impostos ao programa espacial dos Estados Unidos. Assim, enquanto não sai a primeira viagem ao Sol, outras expedições ganham impulso. Uma delas é o vôo da nave européia Ulysses, que deverá estar pronta para partir em 1990. Menos audaciosa que a Starprobe, ela pretende apenas ficar em órbita solar. Mas a rota é importante: a nave passará sobre o que se poderia chamar de lado oculto do Sol - os seus pólos, sempre em posição impossível de ser observados da Terra. Depois de Ulysses, subirá a Soho, também européia, cujo destino será estacionar a uma distância fixa e segura do Sol, o suficiente para observar e analisar o seu comportamento.
É uma missão de respeito: afinal, qualquer irregularidade no funcionamento dessa imensa usina energética pode ter conseqüências imprevisíveis sobre toda a vida na Terra. É por prover a vida que o Sol é para nós o mais importante astro do céu, embora seja apenas uma das dezenas de bilhões de estrelas que giram conjuntamente nesse grande redemoinho que é a Via Láctea. A galáxia em que o Sol nasceu e vive é um disco de estrelas que levará inimagináveis 200 bilhões de anos - bem mais de dez vezes a idade do Universo - para dar uma volta completa sobre si mesmo. A galáxia contém astros maiores e menores: o Sol fica numa posição de classe média - tanto em tamanho como em brilho ou peso. Mas está muito próximo: sua luz, que é a coisa mais rápida do Universo, leva apenas oito minutos para chegar à Terra. Ao passo que a estrela mais próxima, Alfa da constelação de Centauro, está a quatro anos de viagem, mesmo à velocidade da luz. O centro da galáxia, em igual pique, fica a 30 mil anos de distância.
A nave espacial Soho, portanto, será uma repórter em posição privilegiada. Ficará atenta especialmente às ondas gigantes que agitam a superfície solar. É um meio indireto mas engenhoso de saber o que está se passando nas regiões interiores do Sol. Ao contrário dos planetas ou da Lua, as estrelas não são corpos sólidos. Por isso, mesmo que a nave Starprobe levasse um imaginário astronauta invulnerável ao fogo, este jamais poderia pisar na superfície do Sol - a exemplo do que os americanos fizeram na Lua em 1969.
A matéria do Sol é o plasma, uma espécie de gás. Mas o plasma não é neutro, como os gases que se conhecem: suas partículas são fragmentos de átomos ou moléculas e possuem temperaturas altíssimas. No interior do Sol, o plasma atinge quase 20 milhões de graus, um valor que na superfície brilhante cai para 5 mil graus. Logo acima da superfície, porém, o plasma se torna muito rarefeito e sofre a ação de poderosas forças magnéticas. Sua temperatura, então, é mais alta que na superfície, brilhante, alcançando até 2 milhões de graus.
A nave européia Soho também fará medições constantes do chamado vento solar, uma leve corrente de plasma que está constantemente se desgarrando do Sol para espalhar-se pelo espaço. O efeito mais célebre do vento solar são as caudas dos cometas, criadas quando estes se aquecem nas proximidades da estrela. A brisa eletrificada, nesse caso, desagrega o núcleo do cometa e empurra para longe do Sol uma grande quantidade de pó e gás liberados dessa forma.
Todos esses fenômenos, embora fascinantes, são meros espirros do gigante, cuja força real arde profundamente em seu núcleo. É verdade que a superfície, é às vezes sacudida por explosões violentas, gerando erupções de plasma que se estendem por até 200 mil quilômetros no espaço - trinta vezes o diâmetro da Terra. Mas essas línguas de fogo são relativamente tênues, apesar de compridas. No corpo do Sol, em vez disso, caberiam com alguma folga 1 milhão de planetas como o nosso. Esse volume tem um raio de 1,5 milhão de quilômetros - 250 vezes maior que o raio da Terra.
Já o núcleo solar é uma esfera de raio dez vezes menor que o da própria estrela, mas com uma densidade extremamente alta. Ele suporta todo o peso das camadas externas. Assim, é mais compacto que o ferro. Mas continua sendo um gás porque compensa o esmagamento com sua elevada temperatura: o calor, procurando expandir-se, contém a gravidade da massa acima do núcleo. Esse é o fantástico jogo de forças que mantém as estrelas por assim dizer de pé e em funcionamento, numa luta perene entre o seu próprio peso e o calor central.
Em 1926, o astrônomo inglês Arthur Eddington fez uma ousada sugestão sobre a origem desse calor: ele só podia ser gerado por um reator nuclear. A comunidade científica se escandalizou porque então se conhecia muito pouco sobre as reações atômicas. Algumas décadas mais tarde, porém, viu-se que a teoria estava certa. O plasma no núcleo do Sol sofre transformações semelhantes às que ocorrem na explosão de uma bomba de hidrogênio e, também como neste caso, passa a emitir radiação principalmente sob a forma de luz e calor.
Essa radiação não é visível, pois ainda tem de atravessar as camadas externas, um percurso longe de ser curto. Estima-se que um raio de luz leve milhões de anos chocando-se com as partículas de plasma até emergir na superfície brilhante. A maior parte do trajeto, no caso do calor, é feita em forma de radiação, como ocorre com a luz. Mas um pouco abaixo da superfície o calor faz com que o plasma entre em ebulição, à maneira da água levada ao fogo. Como os turbilhões de matéria nessa região envolvem gás eletrificado, acabam criando potentes campos de força magnética. Esta, por sua vez, gera as oscilações e erupções extraordinárias que os astrônomos podem observar.
Na Antiguidade, os homens se assustavam terrivelmente quando o Sol se apagava. Sem saber que estavam apenas diante de um eclipse - um dos raros momentos em que a sombra da Lua se projeta sobre a Terra -, imaginavam que o seu deus estava em apuros. Os sábios egípcios do tempo dos faraós, por exemplo, ensinavam que nesses momentos o Sol estava sendo devorado por uma porca gigante, um espírito maligno da mitologia da época. Que os antigos pudessem pensar assim não surpreende. O curioso é que as crendices do passado persistem em algum lugar do presente.
Assim, em 1983, quando ocorreu o mais longo eclipse desta década, uma lenda semelhante à dos egípcios voltou a assombrar os indonésios, que tiveram o privilégio de ver a ocultação do Sol em pleno dia. Durante cinco minutos, a Lua, muito mais próxima da Terra, passou à frente do astro-rei. Sua esfera de fogo, então, transformou-se em um lindo disco negro, visível apenas porque à sua volta permaneceu um fino halo de chamas - a corona. De acordo com os indonésios, o Sol tinha acabado de ser devorado pelo monstro mítico Kala Rau.
Muito do interesse da ciência pelos eclipses vem do fato de que eles expõem com mais nitidez o véu flamejante da corona. Os cientistas esperam aprender mais sobre os plasmas para um dia fabricar uma imitação do reator central do Sol. A razão é que, embora na corona não ocorram reações nucleares, ela é um bom exemplo natural de como o plasma se comporta sob a ação de forças magnéticas. Pois é exatamente por meio de grandes ímãs que os físicos tentam espremer os plasmas na Terra: desse modo, podem simular a enorme pressão gravitacional que age no interior do Sol.
"De certa forma estamos usando o Sol como um laboratório", gaba-se o astrônomo norte-americano Ray Smartt, membro de uma equipe de trinta pesquisadores especialmente encarregados de elucidar os segredos da corona. Ele espelha o empenho existente nos tempos atuais em aprender mais sobre o Sol. Num misto de fascinação e espírito prático, o objetivo desses pesquisadores é abrir caminho para o futuro, quando o espaço se tornar cada vez mais importante para o progresso aqui na Terra.

A ciência toma Sol.

Cinco séculos antes de Cristo, o grego Anaxágoras disse que o Sol era uma esfera de ferro incandescente. Ninguém lhe deu ouvidos. O homem só começou a entender o Sol mais de 2 mil anos depois. Em 1610, o italiano Galileu Galilei anunciou ter visto ao telescópio estranhas manchas negras na superfície solar. Hoje se sabe que as manchas são áreas da superfície do Sol onde a temperatura é menor por ação das forças magnéticas ali concentradas. Mas já no século XVII a descoberta de Galileu bastou para acabar com o mito de que o Sol era perfeito e imutável.
Em 1834, o matemático alemão Carl Gauss (1777-1835) teve a brilhante idéia de usar uma bússola para saber se o Sol tinha força magnética como a Terra. Nos anos seguintes, de fato, verificou-se que não só ela existia ali como se tornava mais forte quando o Sol ficava mais carregado com as manchas que tanto intrigaram Galileu. Outra inovação foi trazida pelo astrônomo inglês John Herschel (1792-1871). Em 1839, usando apenas um prato com água, ele mediu pela primeira vez a potência térmica do Sol. Estimou que a temperatura de uma lâmina de água de cerca de 2 centímetros de espessura subia, exposta ao Sol, 1 grau centígrado por minuto - uma indicação bastante boa de quantidade de energia emitida pelo Sol.
Mas o grande salto da ciência solar já tinha sido dado em 1814 com a invenção do espectroscópio, aparelho capaz de decompor a luz como um prisma. Cada substância, ao ser queimada, tem uma espécie de assinatura luminosa. O arco-íris produzido pelo espectroscópio decifra essa assinatura na forma de uma determinada combinação de cores. Assim começou a ser conhecida a composição química do Sol. Aprendeu-se que ele contém os mesmos elementos existentes na Terra, mas em proporções às vezes muito diferentes. Por exemplo, o hélio é 20 por cento do Sol; na Terra, é menos de 1 por cento.
O espectroscópio, ao permitir que se analisasse o interior dos átomos, ajudou a abrir caminho para a grande revolução da Física neste século. Na década de 30 ficou claro que a energia do Sol era fruto de colossais reações atômicas. Foi a primeira vez que se desconfiou de que nem o Sol nem qualquer outra estrela são eternos. E o ciclo de vida do astro-rei, determinado pela quantidade de combustível nuclear disponível, pôde, enfim, ser calculado.


Morre uma estrela: é o fim do mundo.

As estrelas empregam um sistema curioso para gerar energia: constroem átomos pesados a partir de átomos mais leves. A luz e o calor que emitem é um simples resíduo do esforço empregado na construção. Todos os elementos conhecidos, tais como o ferro, o oxigênio, o ouro ou o urânio, nasceram dessa forma: assados nas fornalhas estelares. Até o aparecimento das estrelas, há cerca de 15 bilhões de anos, praticamente toda a matéria existente estava na forma de hidrogênio - o avô de todos os outros átomos.
Cerca de 1 milhão de anos depois do seu nascimento, algo de novo aconteceu. As massas de hidrogênio, agrupadas pela atração gravitacional, começaram a criar estrelas e galáxias. Os átomos que ficaram presos nos núcleos estelares, sob forte pressão, fundiram-se sempre aos pares. E não se tratou de uma simples soma: os novos "tijolos" de matéria, contendo dois átomos soldados entre si, formavam um novo elemento, o hélio. O Sol provavelmente nasceu dos restos de outra estrela, que por sua vez também pode ter nascido assim.
Trata-se portanto de um astro de segunda ou terceira geração. Essa hipótese decorre de um fato simples: o Sol contém átomos muito pesados, como o urânio, que se constituem apenas quando uma estrela morre. Nesse caso o "reator" estelar, tendo usado todos os átomos leves que possuía, já não gera o calor e a luz que serviam para conter sua própria gravidade. Assim, o velho astro desmorona sobre si mesmo. A pressão interna momentaneamente se eleva a níveis fantásticos e mesmo os átomos mais pesados podem se formar. Mas esse é também o seu canto do cisne, pois a produção de energia é tão alta que destroça a estrela numa explosão. Os seus gases, lançados ao espaço, serão as sementes de uma nova estrela.
O mesmo destino aguarda o Sol. Mas sua morte não será tão espetacular porque ele contém relativamente pouca matéria. Dentro de 5 bilhões de anos, ao esgotar-se o seu combustível, haverá um excesso fatal de produção energética. A explosão resultante será lenta. O Sol apenas inchará como um balão, engolindo gradualmente os planetas mais próximos. O primeiro a ser devorado será Mercúrio, seu vizinho. Depois será a vez de Vênus e em seguida esta Terra. De amarelo, como hoje, o Sol passará para laranja, depois para vermelho. Sua superfície brilhante, enormemente expandida, terá uma temperatura mais baixa, mas emissão total de calor será maior.
Portanto, antes de desaparecer dentro do já então rarefeito gigante vermelho, a Terra será assada em fogo brando. Em questão de duzentos anos, por exemplo, a temperatura média do planeta vai no mínimo dobrar - e não há forma concebível de vida capaz de resistir a tamanha subversão. As calotas polares, derretendo, encherão os oceanos. Boa parte dos continentes ficará submersa e não haverá refúgio possível contra o calor infernal que se espalhará por toda a parte.
"Uma vasta Amazônia, quente e úmida, se estenderá pelo planeta", imagina o físico canadense Hubert Reeves. "Mais tarde, intermináveis incêndios consumirão tudo o que há de orgânico." Reeves imagina que seja possível dobrar o tempo de vida útil do Sol, despejando nele um arsenal de bombas de hidrogênio, de modo a puxar combustível novo das camadas externas para o centro, onde se dão as reações nucleares. Mas talvez nunca venha a existir tecnologia suficiente para fazer essas bombas explodiram, não na superfície, mas dentro do astro, como seria necessário. Enfim, depois de alguns milhares de anos, a própria Terra se fundirá. Baforadas tórridas encerrarão o espetáculo, consumindo e espalhando pelo espaço a matéria do Sol e de todos os planetas, mesmo os mais distantes, como Netuno e Plutão.
No centro do sistema solar, então, restará apenas o antigo núcleo do Sol - uma "anã branca", no dizer dos astrônomos. Quase cem vezes menor do que a estrela Sol que lhe deu origem, desprovida de combustível, ela queimará os seus restos, lentamente, como o carvão que sobra de uma fogueira. Ao cabo de mais meio bilhão de anos, a anã se tornará negra e gelada e não voltará a brilhar. Em vez disso, a matéria que a rodeava no passado terá formado uma nova estrela, em outro lugar.

A Ciência do chute com efeito - Futebol

A CIÊNCIA DO CHUTE COM EFEITO - Futebol



Na história do futebol, alguns jogadores ficaram famosos por seus tiros enviesados, que surpreendem os goleiros ao mudar subitamente de rumo. Mas essa invejável habilidade tem explicação científica.

A bola, chutada quase da intermediária, subiu demais, passando por cima da barreira formada a uma distância de 10 metros. Se continuasse nessa trajetória, iria fatalmente para fora do campo. De repente, porém, a bola fez uma curva no ar e pareceu perder força, surpreendendo o goleiro, que nem sequer teve tempo de corrigir seus cálculos e saltar antes que ela caísse suavemente dentro de suas redes. O gol, aos 27 minutos do segundo tempo no jogo com o Peru, classificou o Brasil para a disputa da Copa do Mundo de 1958, na Suécia. O resto da história todo mundo conhece: Brasil, campeão mundial de futebol revelando ao mundo um meia-esquerda apelidado Pelé.
Mas o gol que levou o Brasil à Suécia nasceu dos pés de um meia-direita. O goleiro peruano foi traído pela folha-seca - a grande especialidade de Valdir Pereira dos Santos, do Botafogo do Rio de Janeiro, conhecido como Didi. É provável que ele não soubesse disso, mas dois fenômenos aerodinâmicos são responsáveis por aquele e dezenas de outros gols parecidos que marcou: a força ascensional, a mesma que.ajuda os aviões a voar, e o chamado efeito Magnus, de onde se originou a expressão tiro com efeito, para designar os chutes enviesados que fazem o desespero dos goleiros.
Atuando sobre um avião em vôo, a força ascensional se manifesta quando o ar que passa ao redor do aparelho alcança uma velocidade maior na parte superior das asas. Isso acontece justamente por causa da forma especial do perfil das asas nos aviões. Segundo uma lei formulada pelo físico e matemático suíço Daniel Bernouilli, no século XVIII, a pressão sobre um gás ou uma superfície será menor quanto maior a velocidade do fluido. Por isso, a pressão na parte superior da asa é menor que na parte inferior. Essa diferença de pressão gera uma força que fornece ao avião seu empuxo aerodinâmico. A força ascensional aerodinâmica pode aparecer também aliada ao efeito Magnus no vôo de uma bola - quando, além de subir, ela gira ao redor de seu próprio eixo. Os jogadores de futebol costumam dizer então que a bola está "envenenada".
Ao girar sobre seu próprio eixo, a superfície da bola sofre o atrito do ar. Isso influi na velocidade com que o ar passa ao seu redor: na parte superior da bola, o ar é mais rápido; na inferior, mais lento. Devido a essa diferença de velocidade - assim como no caso das asas do avião -, ocorre uma diferença de pressão entre a parte de cima e a de baixo; em conseqüência, chutada embaixo, a bola sobe, numa trajetória também determinada pela força de gravidade e a resistência do ar.
Já a intensidade do efeito Magnus e sua influência na trajetória da bola dependem de vários fatores. A superfície áspera da bola e a grande velocidade do giro sobre o próprio eixo, em relação à velocidade de vôo, aumentam o efeito. Já a influência na trajetória aparece principalmente nas bolas mais leves. O efeito Magnus foi observado pela primeira vez em 1852 pelo físico alemão Gustav Magnus - daí o nome -, a pedido da Comissão de Provas da Real Artilharia Prussiana. Pouco a pouco, essas observações começaram a ser aplicadas em vários campos da ciência.
Mas não apenas os cientistas recorreram às descobertas de Gustav Magnus. Desde muito cedo, na história moderna do futebol, também os jogadores aprenderam na prática a chutar com efeito. Os princípios são simples: se a bola é chutada na parte de cima, tende a sofrer uma queda mais acentuada; se o chute é aplicado na parte de baixo, a bola volta para trás - um recurso muito usado na jogada conhecida como "bicicleta", que o atacante brasileiro Leônidas da Silva celebrizou, na década de 30.
Bater na bola lateralmente faz com que, em função do giro sobre seu próprio eixo - para a direita ou para a esquerda -, ela se desvie da trajetória normal. Chutando corretamente a bola - na parte de cima ou de baixo, na lateral direita ou esquerda - é possível fazê-la descrever curvas numa trajetória aparentemente imprevisível. Os jogadores mais habilidosos até conseguem marcar gols em cobrança de escanteio, quando a bola parte da mesma linha onde estão fincadas as traves. E o gol olímpico, assim chamado por ter sido obtido pela primeira vez pela Seleção do Uruguai nos Jogos Olímpicos de 1924.
No Brasil, quem não se lembra das cobranças de falta de Nelinho, no Cruzeiro de Belo Horizonte ou na seleção, há seis anos? "Ele foi o mais impressionante cobrador de faltas que já conheci", lembra o cronista esportivo Vital Bataglia. "Alguns, como Pepe, do Santos, ou Miranda, do Corinthians, até chutavam mais forte; outros, como Ailton Lira, do Santos, e Mário Sérgio, do Grêmio de Porto Alegre e depois do São Paulo, eram virtuoses do efeito. Mas nenhum deles, como Nelinho, combinava perfeitamente as duas coisas a ponto de dar a impressão de que a bola mudava de rumo três vezes no ar."
Para contrabalançar a vantagem que os chutes de Nelinho davam ao time do Cruzeiro, seu arquiinimigo no futebol mineiro, o Atlético, contava com o ponta-esquerda Éder, também ele um artista na cobrança de faltas, com seus chutes fortes e cheios de efeito. Éder, Nelinho e o flamenguista Zico substituíram, na Seleção Brasileira, outros especialistas na arte de envenenar a bola: Gérson e Rivelino, estrelas da seleção que conquistou o tricampeonato mundial em 1970.
A maior dificuldade nesse tipo de chute está em bater na bola com força suficiente para obter uma mudança significativa em sua rota normal. Uma bola oficial de futebol tem um peso relativamente alto - entre 453 e 534 gramas - e não é fácil fazê-la descrever uma curva no ar.
Quem já chutou uma bola de praia sabe como ela descreve as mais estranhas curvas. Isso acontece porque, sendo muito leve, lhe é muito difícil vencer a resistência do ar. Ao ter o movimento de rotação sobre seu próprio eixo interrompido pelo ar, ela muda bruscamente de direção. Alguns jogadores têm um domínio tão grande dos chutes de efeito que não o utilizam apenas na cobrança de faltas, mas também para lançamentos de longa distância aos companheiros.
O mestre de todos eles, Didi, aprendeu a arte com outro gênio em bolas envenenadas: Jair Rosa Pinto, Mestre Jajá, como era chamado, não chegava a impressionar os adversários. Mas de seus pés pequenos, calçados com chuteiras número 37, saíam bolas que ele colocava onde desejava, depois de fazê-las descrever graciosas curvas no ar. Observando Jair Rosa Pinto, Didi desenvolveu sua folha-seca.
Embora teoricamente não tenha segredo para os profissionais do futebol - que o chamam de "três dedos", pela forma com que o pé bate na bola -, o chute de Didi ainda não foi imitado. Elegante, boêmio e sem paciência para as longas sessões de treinamentos físicos - "no futebol, quem deve correr é a bola, não o jogador", dizia -, Didi batia na bola com impulso suficiente para fazê-la chegar até perto do gol adversário, para então perder força, descrever uma curva e cair suavemente, como uma folha seca levada pelo vento.

Ensinamentos do mestre.

Em seu livro, Jogando com Pelé, ele ensina como enviesar um tiro: "Usa-se o dorso interno ou externo do pé para os chutes de curva. A fim de obrigar a bola a fazer uma curva para a esquerda, chuta-se com o dorso interno do pé, visando não o meio, mas o lado direito da bola, no caso de o chute ser feito com o pé direito. Com o esquerdo, a ação é ao contrário. Se você quiser chutar em curva para a direita - com o pé direito -, utilize o dorso externo do pé e a área de impacto é o lado esquerdo da bola. Os lados interno e externo do pé são usados nos chutes próximos à meta, quando o goleiro adversário sai do gol em direção ao atacante.
O goleiro sempre oferece um canto da meta, tentando obrigar-nos a chutar naquele canto, como ele queria. É por isso que, quando próximos da meta, devemos colocar a bola, observando bem a posição do goleiro. Sabe por quê? É muito mais fácil o goleiro defender um chutão do que um chute fraco, mas bem colocado. No chutão, a bola sai violentamente, mas não modifica muito a sua rota, e o chute com menos força, mas colocado, pode modificar o rumo pela maneira como a gente bate na bola. Com a parte interna do pé, é possível colocá-la muito bem, porque a área de contato é maior, portanto a precisão do chute também é maior"

Prova de Fogo - Vestibular

PROVA DE FOGO - Vestibular



Toda virada de ano é tempo de guerra para muitas centenas de milhares de jovens brasileiros. O alvo é um lugar na faculdade, e o campo de batalha, o temido vestibular - motivo de mudança de hábitos, de tensão e angústia que as pressões familiares apenas conseguem agravar.

Dezembro e janeiro são meses de vestibular. Este ano, algo como 1,9 milhão de jovens estão na briga pelas cerca de 440 mil vagas existentes nas faculdades brasileiras. O exame vestibular é a culminação de meses de esforço, angústia e rotinas alteradas - um processo massacrante, desgastante, sofrido, na opinião quase unânime de educadores, psicólogos e estudantes. Mas como selecionar entre tantos candidatos os mais bem preparados, se as vagas são necessariamente menores?
A relação este ano é de aproximadamente quatro candidatos para cada vaga. Há um decênio a proporção era menor. Em 1976, por exemplo, apenas 2,47 candidatos disputavam uma vaga. Quatro por um é a média nacional. Nos cursos mais concorridos, como Medicina, os números são mais ásperos. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro a proporção é de 21 candidatos para cada vaga, e na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas nada menos que oitenta jovens competem por uma única vaga.
Supõe-se que os vencedores dessa guerra sejam os melhores - mas nem sempre é assim. Vera Guimarães, psicóloga do Curso Objetivo de São Paulo, observa: "Existem alunos preparados que não entram na primeira vez, às vezes nem na segunda, ou porque tiveram um ´branco´ na hora ou porque no fundo estão indecisos sobre a carreira a seguir". É sabido que a influência que a família busca exercer nessa escolha mexe bastante com as emoções dos jovens - não raro de forma negativa.
O caso de Judite Jeng, 20 anos, é um bom exemplo: "Meus pais queriam que eu fizesse Medicina e não admitiam de jeito nenhum que eu estudasse Jornalismo, como pretendia", ela relata. "Então, no terceiro colegial, optei por Computação, porque não era nem Medicina nem Jornalismo. Apesar de me considerar bem preparada, não consegui entrar. Enquanto isso, minha irmã mais nova passou direto do colegial para a faculdade de Medicina, e minha situação ficou muito incômoda."
Judite conta que o período em que ficou esperando pelos resultados foi o de maior agonia. "Eu nem dormia mais à espera de novas listas. Pensava em como encarar a família; parecia que eu era a pessoa mais burra do mundo", diz ela. Reprovada, resolveu fazer o que queria de fato: Jornalismo. Passou um ano fazendo cursinho, mas nem assim entrou na Universidade de São Paulo. "Doeu muito", lembra Judite, agora aluna de uma faculdade particular.
Na escolha da carreira, a opinião dos pais sempre pesa. Célia Horie Putini, 17 anos, que estuda em média oito horas por dia para entrar em Medicina, conta que os pais tentam tranqüilizá-la, dizendo que se não entrar não tem importância, pois a carreira que escolheu é difícil. "Mesmo assim", diz ela, "acho que eles têm 90 por cento de expectativa de que eu passe." No entanto, as expectativas não são exclusividade familiar e dos próprios estudantes. Célia observa que "a cobrança começa na escola: quando se é boa aluna, os professores vivem dizendo que vamos entrar. Todo mundo fica esperando por isso".
É comum os pais prometerem recompensas aos filhos pelo esforço de passar nos exames. A jovem E.G., 19 anos, que também pretende entrar na faculdade de Medicina e prefere não se identificar, conta que o pai lhe prometeu um carro. Mas isso, para ela, não representa um estímulo, e sim uma cobrança. "Estou estudando porque quero fazer Medicina, não para ganhar um carro", diz. Além de complicações de ordem psicológica, o vestibular também obriga o jovem a mudar de hábitos em função das horas de estudo redobradas. Paula Negreiros Abbud, 18 anos, candidata a uma vaga no curso de Arquitetura, começou no segundo semestre a fazer cursinho juntamente com o terceiro colegial. Nessa época, ela já havia deixado o curso de jazz, que lhe exigia tempo, e passou a fazer apenas ginástica.
Mas até isso ela teve de abandonar. Por achar que o cursinho não estava ajudando muito, decidiu com uma amiga estudar para valer, todos os dias, menos nos fins de semana, invariavelmente das 14 às 20 horas. "O vestibular é a pior coisa que já passei na vida", resume Paula. "Se você se deixar levar pela neura do vestibular, vai acabar se perdendo dentro de si mesma." Ricardo Lombardi, 17 anos, deixou de praticar esportes, ouvir discos com calma e até mesmo ler um livro durante uma tarde inteira, por causa do vestibular de Direito.
Ele assiste às aulas praticamente o dia inteiro: de manhã no colégio, à tarde no cursinho. "À noite, quando chego em casa", diz, "dou uma olhada na matéria do cursinho e estudo mesmo para as provas do colégio." Em sua opinião, não é tão difícil entrar na faculdade de Direito. Mas, se não conseguir este ano, "a vida não vai acabar". Uma coisa é certa: sejam quais forem as carreiras escolhidas - menos ou mais concorridas -, os nervos dos candidatos passam por uma dura prova. Ricardo reconhece: "Qualquer coisa me irrita". Paula Abbud concorda: "A gente fica confusa e se zanga com muita facilidade". Para Célia Putini, "a responsabilidade é muito grande e por isso a gente renuncia até aos amigos; no vestibular você está decidindo a sua vida", acha ela.
Invenção chinesa, os exames surgiram por volta do século X, quando imperadores da dinastia Sung idealizaram um sistema para selecionar futuros funcionários, sem os costumeiros apadrinhamentos. Pela primeira vez, o candidato era submetido a rigorosas provas, com critérios de correção igualmente severos para evitar qualquer tipo de fraude. Foram precisos oito séculos e uma revolução - a francesa - para que o sistema de seleção por mérito chegasse à Europa. No Brasil, os exames para selecionar candidatos às faculdades surgiram em 1911. Ao longo dos anos, esses concursos, como eram chamados, foram se modificando.
A professora Irene de Arruda Cardoso, que leciona Sociologia da Educação na Universidade de São Paulo, recorda que "até os anos 60 cada curso elaborava seu próprio vestibular". Além das provas dissertativas, havia também um exame oral. "Eram formas melhores de avaliação", acredita Irene. Na década de 70, os vestibulares foram unificados - ou seja, passaram a ser elaborados por um único órgão criado para isso. Pretendia-se, assim, evitar que um candidato disputasse mais de uma vaga no mesmo ano. Recentemente, algumas universidades, como a Estadual de Campinas e a Federal do Rio de Janeiro, decidiram elaborar seus próprios vestibulares, abandonando o sistema unificado.
Há vinte anos dirigindo vestibulares, o professor Carlos Alberto Serpa de Oliveira, presidente da Fundação Cesgranrio - que realiza os vestibulares unificados do Rio de Janeiro -, se declara contra qualquer tipo de vestibular, dissertativo ou por testes de múltipla escolha: "Os exames são feitos nas piores condições psicológicas, em três, quatro dias, com um vastíssimo programa que pretende avaliar onze anos de estudo como forma de predizer o sucesso na universidade".
Por isso, há dois anos Serpa vem propondo uma alternativa, que de início seria aplicada em caráter experimental. Durante os três anos do segundo grau, os alunos seriam submetidos a provas semestrais, que cobririam o programa dado naquele período. Ao final do curso, todos teriam então uma nota média e em seguida fariam testes de aptidão - verbal, numérica e abstrata -, que não dependeriam de conhecimentos adquiridos na escola. Eles teriam peso pelo menos igual ao da média obtida nas avaliações semestrais. E o problema da proporção entre candidatos e vagas? Serpa lembra, a propósito, que praticamente em nenhum país do mundo a universidade está aberta para todos.
De fato, ninguém escapa ao vestibular. Nos Estados Unidos, por exemplo, a seleção se faz por meio das notas obtidas no colegial, mais um teste de aptidão e outro de conhecimentos. Já os jovens alemães são avaliados pelo abitur, como é chamado ali o rigoroso exame. Se não passarem no primeiro vestibular, no segundo só poderão concorrer à metade das vagas. Se derem o azar de não passar de novo, nunca mais poderão disputar uma vaga na universidade. No extremo oposto está a Argentina, onde o governo do presidente Raul Alfonsín acabou com os vestibulares tradicionais. Assim, qualquer estudante que tenha concluído o segundo grau pode entrar no chamado ciclo comum básico da universidade. É aí que a seleção se realiza de fato, pois nele todas as provas são eliminatórias.
Por sua vez, os jovens franceses interessados em entrar nas procuradíssimas Grandes Écoles enfrentam provas severas. Quem preferir a Université, que oferece todo o tipo de formação, deverá ter concluído o baccalaurèat, o exame final dos estudos secundários. Nesse sistema, os que se inscrevem primeiro conseguem candidatar-se às melhores faculdades. Mas, na verdade, a maioria das escolas mais procuradas na França faz seleção disfarçada, escolhendo os estudantes que apresentarem os melhores currículos escolares.
No Brasil, um sistema de avaliação como esse não seria possível, observa Waltemir Miguel Loureiro, diretor pedagógico do Colégio Palmares, em São Paulo, "porque existem diferenças muito grandes de programas ministrados nas escolas de segundo grau, tanto nas particulares quanto nas públicas". Assim, o jeito é enfrentar a fera. Para tentar amenizar as tensões e angústias que cercam o vestibular, um grupo de psicólogas criou em 1986, em São Paulo, um programa muito especial: o SOS vestibulando.
"São moças e rapazes que nos procuram, principalmente em novembro e dezembro, com uma ansiedade generalizada que se manifesta em sintomas físicos como insônia, gastrite, falta de apetite, taquicardia e pânico, vontade de largar tudo", descreve Maria Cristina de Carvalho, uma das coordenadoras da clínica. O programa é uma terapia à base de sessões de psicodrama e não precisa necessariamente ter continuidade. Maria Cristina explica que o jovem enfrenta o dilema de ter de conciliar seu desejo de auto-realização com as realidades do mercado de trabalho e a busca de uma boa situação financeira.
Mas em meio a tantos conflitos também existem exceções. Fábio Silveira, 17 anos, candidato a uma vaga na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, não tem dúvidas quanto ao que quer: "Se eu conseguir entrar este ano, melhor. Se não, depois eu tento novamente". Em sua opinião, "as pessoas não deveriam enfrentar um vestibular no fim do colegial, se ainda não têm certeza do que querem realmente". Afinal, diz ele, "é difícil decidir aos 17 anos o que você quer fazer pelo resto da vida".

"A gente tem medo".

Fã de Tom Jobim, Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Chico Buarque, o paulista Nilo de Medina Coeli Neto, 17 anos, preparou-se o ano inteiro para disputar uma das concorridas vagas do curso de Administração da Fundação Getúlio Vargas, ou uma das não menos procuradas vagas do curso de Economia da Universidade de São Paulo. Por isso, abandonou as aulas de violão de que tanto gostava e o vôlei na praia nos fins de semana. Como ele diz, "acho que não consigo me dedicar a nada que não seja o vestibular".
Aluno do terceiro ano colegial, Nilo acorda às 6h30 todas as manhãs, toma um café reforçado e chega ao colégio às 7h20. Duas vezes por semana, tem aulas à tarde também. Outras duas tardes são ocupadas com aulas de inglês. Nesses dias, almoça no colégio. Com tantas aulas e por freqüentar uma escola considerada "puxada", Nilo resolveu não fazer cursinho. A escolha da carreira não foi fácil, mas de uma coisa ele tinha certeza: não queria Exatas (Engenharia, Física, por exemplo) nem Biológicas (Medicina, Odontologia, entre outras). Ouviu então o pai e o avô, que o aconselharam a escolher algo de que gostasse e que tivesse ao mesmo tempo uma aplicação prática.
Assim, optou por Administração curso pelo qual afirma ter bastante interesse: "Pretendo um dia ter meu próprio negócio". Nilo garante que os pais nunca o pressionaram para que estudasse isso ou aquilo: o pai só reclamava quando tirava notas "vermelhas". Nilo não difere muito de outros vestibulandos nas reações à tensão que cerca o vestibular: "A gente tem medo de não entrar, de perder o ano, de ter que fazer tudo de novo".

O sentido da vida - O olfato

O SENTIDO DA VIDA - O olfato



Um simples aspirar e basta - qualquer cheiro é suficiente para despertar fome, provocar atração ou repulsa, trazer de volta cenas do passado. Cheirar é se emocionar sempre. Mas na maioria das vezes isso é tão sutil que não se dá importância e se acaba torcendo o nariz para o olfato - o mais primitivo e intrigante dos sentidos, e com certeza o menos conhecido pela ciência. Poucos percebem que, num mundo onde quase tudo tem odor, é esse sentido que decifra as mensagens químicas - das quais freqüentemente depende a própria sobrevivência - passadas pelos animais, vegetais, minerais e objetos manufaturados.
Além disso, é graças ao olfato, um aliado do paladar, que se sentem as diferenças de sabores, o que faz toda a diferença quando se está resfriado.
Para a maioria das espécies animais, o olfato é uma questão de vida ou morte. As gazelas são um exemplo: ao sentir o cheiro do leão ou de outro carnívoro feroz, saem correndo antes do ataque. Já entre os ratos, o olfato exerce um papel mais sofisticado: se uma rata é fecundada por um membro de sua própria família, aborta imediatamente ao sentir o odor de um rato estranho, com o qual se acasalará logo em seguida - como se tivesse consciência de que a mistura dos genes garante uma prole mais saudável.
Apesar de tudo, a função do olfato foi perdendo importância no decorrer da evolução das espécies. Os primeiros seres, que viviam nas profundezas dos oceanos, certamente só possuíam esse sentido, com o qual localizavam a comida, descobriam os parentes e evitavam os inimigos. O cérebro tinha apenas centros olfativos, que interpretavam os odores, e centros motores, que controlavam os movimentos. Quanto mais as espécies foram evoluindo, diminuía o tamanho da área cerebral especializada no olfato, chamada rinencéfalo, que cedeu espaço para outras estruturas especializadas. No homem, por exemplo, uma área do rinencéfalo foi ocupada pelo uncus, a parte do cérebro que controla as reações motoras do organismo diante das emoções, como tremer de medo.
No final das contas, o nariz do homem acabou perdendo para qualquer focinho de animal. No ser humano, as células olfativas cobrem uma área de 10 centímetros quadrados do nariz; já no cachorro, essas células ocupam 25 centímetros quadrados; e no tubarão, 60. Enquanto o homem, para perceber o cheiro do ácido acético - presente no vinagre - precisa de 500 milhões de moléculas dessa substância por metro cúbico de ar, o cão pode sentir o mesmo cheiro com apenas 200 mil moléculas.
Esse número de moléculas pode parecer imenso, mas é um nada perto da quantidade de substâncias odoríferas que as coisas exalam a todo instante. Uma pessoa produz cerca de meio litro de suor por dia; desse volume, apenas uma fração mínima passa pela sola do sapato. Mesmo assim, a cada passo deixa-se no chão cerca de 250 mil moléculas de ácido butírico, um dos componentes do suor. Com apenas um milésimo dessa quantidade, um cão poderia sentir seu cheiro - eis por que ele consegue farejar um rastro, mesmo quando a pessoa já passou há algum tempo e muitas das moléculas de seu suor se evaporaram.
Para que algo tenha cheiro é necessário que seja volátil, ou seja, que solte moléculas gasosas. E, no caso, justiça se faça ao nariz humano: apesar de menos equipado, entre todos os mamíferos, sua capacidade é maior do que se imagina. Segundo o otorrino Paulo Augusto de Lima Pontes, professor da Escola Paulista de Medicina, basta que apenas dez moléculas alcancem a câmara olfativa do nariz para que determinado odor seja sentido. "Todo o processo", ele explica, "não leva mais que um décimo de segundo." Tamanha rapidez não significa que tudo seja simples. A olfação é tão complexa que só no século passado foram formuladas cerca de quarenta teorias diferentes a respeito de seu funcionamento. No século passado, também se acreditava que existiam aromas básicos, que formariam todos os odores conhecidos, da mesma maneira como as cores primárias compõem as demais cores. Se fosse assim, as moléculas de uma rosa dentro da câmara olfativa acionariam células receptoras especializadas em aromas florais. Mas como o dono do nariz saberia a diferença entre o perfume da rosa e o do jasmim? Hoje em dia, os cientistas pensam que um determinado odor seria reconhecido no cérebro pela combinação dos tipos de receptores que estimulariam, e pela quantidade e intensidade desses estímulos. A variedade de odores que um nariz pode reconhecer é colossal. "Cada pessoa", diz o professor Pontes, "tem aproximadamente 25 milhões de receptores olfativos e todos eles podem ser diferentes entre si."
Todo esse equipamento está pronto para entrar em ação assim que se nasce - enquanto os demais sentidos só vão funcionar perfeitamente depois de alguns dias de vida. Observando o comportamento dos bebês, os cientistas concluíram que a partir da primeira semana eles já reconhecem o odor da mãe. Todas as pessoas, por sinal, têm um cheiro próprio, uma espécie de combinação final de todas as substâncias odoríferas liberadas através da pele. Não se sabe ainda se o cheiro de cada um é de fato uma marca registrada tão particular como uma impressão digital. É provável que sim.
Os adultos também reconhecem o odor de outras pessoas. Cientistas italianos descobriram que um dos primeiros sinais do final de um romance é quando um dos parceiros passa a não suportar o cheiro do outro - um cheiro, aliás, sutil, embaçado por perfumes e desodorantes, e que portanto necessita de muita intimidade para ser captado pelo nariz humano. Nos animais a relação olfato-sexo é absoluta. É pelo cheiro que os machos da quase totalidade das espécies ficam sabendo que uma fêmea está no cio. Nesse sistema de informação, as mariposas parecem imbatíveis: um macho pode sentir o cheiro de uma fêmea a 2 quilômetros de distância.
Se os seres humanos não precisam se cheirar uns aos outros para reconhecer quem é homem e quem é mulher, certamente precisam do olfato para experimentar a atração sexual, embora isso não seja consciente. Sexo sem cheiro também dá prazer, mas nem tanto, descobriram recentemente cientistas norte-americanos. Numa pesquisa, eles verificaram que uma de cada quatro pessoas com anosmia - perda total de olfato - tem problemas de desempenho sexual.
Não se sabe quantos brasileiros sofrem de perda parcial ou total do olfato, mas quando o problema ocorre quem mais reclama são as donas de casa. Elas percebem que não têm mais olfato quando deixam o feijão ou o café queimar. As donas de casa, ao menos, reclamam da falta de capacidade de sentir odores. Mas muitas pessoas que perdem o olfato não sabem que o perderam. "Quem vai aos consultórios porque perdeu o olfato", conta o alergista Fábio Morato Castro, de São Paulo, "geralmente reclama de que não sente mais o gosto da comida."
A perda de olfato, além de estar associada à depressão, pode levar à desnutrição. É lógico. O nariz é o grande responsável pelo apetite: qualquer pessoa, sem perceber, cheira melhor quanto mais perto da hora de comer, o que faz com que sinta o aroma da comida de longe. Quando isso acontece, o cérebro manda o estômago produzir sucos gástricos. As glândulas salivares, então, entram em ação: fica-se literalmente com água na boca.
Metade do sabor é cheiro. As papilas gustativas da língua, que sentem o gosto das coisas, identificam apenas quatro sabores básicos: amargo, azedo, doce e salgado. A diferença entre um pudim de leite e um copo de vinho, por exemplo, é dada pelo cheiro de cada um. Afinal, uma pessoa cheira o ar quando aspira e quando expira. Quando se expira, o fluxo de ar, que passa pela garganta, capta moléculas odoríferas do alimento que está sendo mastigado. Essas moléculas alcançam assim a câmara olfativa; o cérebro, então, soma as informações das papilas gustativas com as do olfato e o resultado é o paladar. Por isso, quando se está gripado e a câmara olfativa fica cheia de muco, impedindo que as moléculas entrem em contato com os receptores, não se sente direito o gosto das coisas.
O odor é tão importante para o sabor que as indústrias de alimentos investem milhões nos chamados aromatizantes artificiais. Hoje já existem mais de dez mil aromatizantes - cada um o resultado da combinação de duzentas a trezentas moléculas de substâncias diferentes. O aroma artificial de morango, que existe desde a década de 60, consumiu exatamente vinte anos de pesquisas. Algumas vezes os aromatizantes artificiais são muito mais caros que os naturais. O aroma artificial de baunilha é cerca de duzentas vezes mais caro que a baunilha natural. Apesar disso, a indústria prefere o aromatizante porque tem o odor dez vezes mais forte, garantindo um sabor muito mais acentuado de baunilha.
Todos conhecem a chatice de não sentir o sabor e o cheiro das coisas, quando se fica resfriado. Mas, quando a causa é uma alergia, a recuperação pode levar anos. "A cura, de certa forma, é fácil", diz o doutor Fábio Castro. "Na maioria dos casos basta afastar a causa da alergia. Se for impossível o afastamento - por exemplo, se for alergia à grama, não podemos proibir a pessoa de passar na frente de praças -, recorremos a antialérgicos." A cura depende de se descobrir a causa da alergia - o que às vezes leva tempo.
O nariz, afinal, é vítima de muitas alergias - algumas causadas por fatores que o atacam diretamente. "Muitas vezes", explica o alergista Laércio José Zuppi, "os próprios medicamentos para gripes e rinites irritam a mucosa olfativa, levando a uma perda temporária do olfato. A poluição, cada vez maior nas grandes cidades também ajuda a enfraquecer o olfato. Em certos casos, os danos à mucosa são irreversíveis: mesmo recuperado da alergia, o paciente não volta a sentir bem os odores.
Conservantes de alimentos podem causar alergias a longo prazo, que por sua vez podem causar a anosmia. Os medicamentos, porém, encabeçam os fatores que provocam esse tipo de problema, em especial os remédios para hipertensos, os diuréticos e o ácido acetilsalicílico, o mais popular analgésico.
Mas a maior causa de perda de olfato são os acidentes. Calcula-se que uma entre cada quinze pessoas com traumatismo craniano passa a viver num mundo inodoro. No caminho dos nervos que levam a mensagem olfativa ao cérebro, existe uma lâmina cheia de furinhos, o osso etnóide, que pela fragilidade e localização - abaixo do crânio - está sujeita a rachar em acidentes. "Se apenas um lado da lâmina é danificado, muitas vezes a pessoa nem sente que perdeu o olfato, porque um único lado sadio da cavidade nasal basta para que se tenha a sensação de cheiro", explica o neurologista Luiz Celso Vilanova, da Escola Paulista de Medicina. Outros problemas neurológicos, como tumores, podem causar a perda da sensação de odor. Mas nesses casos os sintomas são tão graves, como fortes dores de cabeça, que a pessoa nem sequer percebe que não sente mais cheiros.
Pesquisas norte-americanas sugerem que a capacidade de cheirar se desgasta com o tempo, mesmo quando o indivíduo é são: um quarto das pessoas entre 65 e 75 anos tem dificuldade em identificar odores; com mais de oitenta anos, quase cem por cento têm o mesmo problema. Em qualquer idade, as mulheres têm melhor olfato que os homens - com exceção das grávidas. No começo da gestação, a hipófise pode inchar o suficiente para comprimir os nervos do olfato que passam pelo crânio. "Em conseqüência", conta o ginecologista Nicolau Caivano, "muitas gestantes ou deixam de sentir cheiros ou passam a sentir cheiros que nem existem". Daí com certeza vem a lenda de que as grávidas têm olfato mais apurado.
Uma das funções mais importantes e mais conhecidas do olfato é estimular a memória. Pessoas com problemas olfativos às vezes não conseguem evocar situações com facilidade. A ciência não sabe explicar essa relação. Supõe-se que, para reconhecer qualquer coisa, o cérebro puxe de seu arquivo um fato do passado. De outro modo, apenas registraria odores, sem saber exatamente do que são. Assim, diante de uma flor, talvez a mente produza associações com momentos do passado - uma brincadeira de criança num jardim ou um passeio com a namorada num parque. Pois, se não bastasse tudo o mais, o olfato é também, misteriosamente, o mais nostálgico dos sentidos.

Como fazemos para cheirar bem.

Os odores são sentidos na chamada área olfativa da cavidade nasal. Trata-se de uma câmara situada num lugar pouco acessível, na parte mais alta e funda do nariz, longe do fluxo do ar que respiramos. Existe um motivo para isso: se as células olfativas, que são muito sensíveis, ficassem demasiado expostas ao ar, acabariam danificadas pela poeira e o sobe-desce da temperatura.
Por causa dessa localização, ocorre um fenômeno estranho: quando se respira normalmente não se sente cheiro algum. Mas, quando um odor qualquer existe no ar numa concentração relativamente alta, algumas poucas moléculas odoríferas podem alcançar a câmara. Diante dessa sensação ainda imprecisa, o cérebro ordena uma segunda aspiração mais forte - para provocar o que os cientistas chamam turbilhão de ar dentro do nariz, capaz de carregar as moléculas para a câmara olfativa. Tudo isso acontece num relance e sem que a pessoa se dê conta.
Na câmara, as moléculas são atraídas para a mucosa amarela formada pelas células olfativas, também chamadas de receptores. No lado externo, um receptor possui cílios microscópicos cobertos por uma fina camada de muco, no lado interno, ele se prolonga sob a forma de um nervo. Durante muito tempo, acreditou-se que os aromas eram reconhecidos graças a reações químicas entre as moléculas odoríferas e o muco. Tais reações seriam sentidas pelos cílios dos receptores, que as transformariam em estímulos nervosos.
"Hoje se sabe que o processo não é químico, mas físico", explica o professor Paulo Pontes. "Os receptores avaliam o peso e os prótons liberados pelas moléculas odoríferas e, a partir disso, engatilham um certo estímulo." O muco, por sua vez, serve para proteger os receptores, e também para diluir e expulsar da câmara olfativa as moléculas do odor.
Os impulsos dos receptores são ondas elétricas que percorrem os nervos até o bulbo olfativo, uma estrutura logo abaixo da parte frontal do cérebro. O bulbo mantém uma espécie de linha direta com o sistema nervoso central: nele se dará a sinapse ou conexão com o cérebro. Até aí, tudo bem. Mas a ciência ainda fareja explicações para a questão de como o cérebro identifica um odor.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Um código ao alcance de todos - A linguagem visual.

UM CÓDIGO AO ALCANCE DE TODOS - A linguagem visual.



A linguagem visual pode ser encontrada por toda parte - aeroportos, rodovias, fábricas. De compreensão imediata para pessoas de idiomas diversos, ela já faz parte da moderna paisagem urbana.

A placa com o desenho de um avião indica o caminho para o aeroporto; com um prato entre uma faca e um garfo alerta que há um restaurante logo ali; o cartaz com um cigarro aceso, cortado por uma faixa vermelha, lembra que não é permitido fumar; o contorno de um homem ou mulher sobre uma porta informa que ali é um banheiro - masculino ou feminino; flechas apontam as mãos do trânsito; silhuetas humanas imitando determinados movimentos simbolizam atividades esportivas; degraus avisam que há uma escada por perto; e a clássica caveira sobre duas tíbias cruzadas adverte: perigo à vista.
Estes são exemplos de glifos, palavra grega que significa inscrição. Se comparados a seus ancestrais - os aristocráticos hieroglifos egípcios -, os modernos até que são sinais muito corriqueiros.
Enquanto os egípcios usavam os hieroglifos apenas para adornar monumentos, templos e túmulos, os atuais glifos podem ser encontrados por toda parte. A tal ponto estão incorporados à paisagem urbana, em lugares públicos, mas também em fábricas e escritórios que chegam a ser uma imagem de modernidade.
Hieroglifos, em grego, significa inscrições sagradas. Mas os glifos atuais são apenas utilitários. Eles foram se espalhando à medida que a revolução nos transportes e comunicações produziu o turismo internacional de massa, pondo a circular pelo mundo milhões de pessoas pouco familiarizadas com a língua dos países visitados. Daí a necessidade de uma linguagem que pudesse ser compreendida por qualquer um, principalmente em lugares grandes, movimentados e complexos, como os aeroportos, onde a informação rápida e precisa é fundamental não apenas para os viajantes como também para o funcionamento do próprio sistema.
Aliás, essa é mais uma diferença entre os atuais e antigos glifos. Enquanto os sinais dos egípcios eram de propósito indecifráveis para os mortais comuns, os atuais só têm sentido se forem facilmente identificáveis pelo maior número possível de pessoas de todas as condições. No meio de tantas diferenças, há pelo menos uma semelhança. Cada qual à sua maneira, os dois tipos de glifos são bonitos. Os atuais, como resultado de muitas pesquisas dos especialistas em arquitetura, comunicação visual, arte gráfica e design. Os antigos, como resultado de uma valorização cultural comparável às tradicionais formas de arte, como a pintura ou a escultura.
Os glifos modernos começaram a aparecer aos poucos, nos primeiros anos do século. A iniciativa coube aos clubes automobilísticos da Europa e dos Estados Unidos. Preocupados com a sorte dos calhambeques e de seus arrojados, mas por definição inexperientes, motoristas, que irrompiam por cidades, vilarejos e estradas instalaram as primeiras e toscas placas de trânsito.
Como é fácil imaginar nesses tempos pioneiros, as placas às vezes vinham mais para confundir do que para explicar. Tanto que, em 1909, um congresso em Paris tentou pôr ordem nos sinais. Desde então, o código internacional de trânsito incorporou dezenas de glifos, uniformizando cada vez mais os tamanhos, símbolos e cores. Por isso, quando os motoristas ignoram suas mensagens, como acontece com tanta freqüência no Brasil, não é por não compreendê-las.
Como ocorre com qualquer linguagem, os glifos também evoluíram, ficando mais padronizados. Por exemplo, os pormenores dos desenhos foram reduzidos ao mínimo indispensável. As linhas ficaram mais uniformes, com o objetivo de atrair a atenção e permitir o entendimento instantâneo da informação contida na placa; os limites foram suavizados com curvas. Em sua maioria, os glifos passaram a apresentar figuras sólidas e escuras sobre um fundo claro. As cores tornaram-se convencionais: amarelo, para destacar; vermelho, quando indica proibição. Aliás, ao exprimir uma proibição, os glifos sempre têm uma faixa em diagonal, do canto superior esquerdo para o inferior direito.
Apesar da padronização, nem sempre os glifos são os mesmos em toda parte. Na maioria dos países, o sinal proibido estacionar é a letra P cortada por uma faixa vermelha, e no Brasil a letra cortada é o E. Isto porque nem todos entendem que a letra P é a inicial da palavra parking (estacionamento) em inglês. Enquanto o código internacional vigorou entre nós, muita gente levou multa sem saber o motivo.
Justamente para evitar confusões como essa, os criadores de glifos foram abandonando sempre que possível o uso de letras ou palavras, substituindo-as por imagens.
As vantagens, ao menos teoricamente, são evidentes - diminuem os mal-entendidos e amplia-se o número de pessoas capazes de perceber do que se trata. Nesse sentido, a placa onde se vê o desenho de um homem com uma pá cheia de terra informa mais depressa que há uma obra naquele local do que a velha tabuleta com o aviso Cuidado - homens trabalhando, que evidentemente é grego para quem não domina o idioma no qual está escrito. Por isso, pode-se dizer com segurança que a placa onde a mensagem é apresentada por meio de uma figura passa seu recado melhor do que se contiver um símbolo com uma letra. Em países onde os analfabetos têm direito de voto, as cédulas eleitorais identificam os partidos por seus emblemas - e não por suas siglas.
É o que acontece na Índia, por exemplo. Já no Brasil, o eleitor, mesmo analfabeto, precisa saber distinguir o nome e o número dos candidatos a governador, prefeito, vereador, deputado e senador.
É claro que a criação de um glifo deve levar em conta o tipo de gente que irá vê-lo. Do contrário, a emenda pode ficar pior que o soneto. A cápsula com a substância radioativa césio-137, que causou a tragédia de Goiânia em outubro último, provavelmente trazia impresso o desenho obrigatório indicativo de material radiativo adotado pela Agência Internacional de Energia Atômica. Talvez uma advertência mais eficaz fosse a caveira com os ossos cruzados, que todo mundo sabe que representa perigo.
Além disso, os especialistas observam que os glifos precisam acompanhar as mudanças tecnológicas para não se desatualizar. Assim, a corneta cruzada por uma faixa em diagonal que indica proibição de buzinar não significaria mais nada para os automobilistas da nova geração. O mesmo se aplicaria a objetos de uso cotidiano cuja forma tende a mudar, como o telefone, onde o disco em muitos países já foi totalmente substituído por teclas.
Os fãs dos glifos sonham com o dia em que esses sinais se tornarão a base de um novo esperanto, a língua universal. A antropóloga norte-americana Margaret Mead (1901-1978) já dizia em 1964 que os sinais visuais deveriam "falar todas as línguas, existir sob todos os céus e ter uma significação clara e inequívoca para todos os povos do mundo". O professor Décio Pignatari, da Universidade de São Paulo, acredita que isso ainda vai ocorrer. Para ele, a tendência é o estabelecimento de uma linguagem glífica internacional, "que todo mundo aceite por convenção". Por sua vez, os idioletos - expressões próprias de um indivíduo - poderiam, com o tempo, generalizar-se e acabar incorporados aos glifos internacionais.



.
.
.
C=84020
.
.
.

A imagem do amor - O Beijo

A IMAGEM DO AMOR - O Beijo.



Um dos atos humanos mais corriqueiros, o beijo pode ser sinal de paixão, afeto, respeito e amizade. Pode ser ainda uma demonstração de humildade ou de euforia. Mas nem sempre existiu como hoje, nem é praticado por todos os povos. E muda conforme os costumes.

Existem beijos libidinosos como os dados no colo e nas partes pudendas, ou o beijo cinematográfico, em que as mucosas labiais se unem numa expressão insofismável de sensualidade.
Embora pareça trecho de um manual de carícias, esse texto é da portaria de um juiz de Sorocaba, a 90 quilômetros de São Paulo, que em fevereiro de 1981 decidiu proibir o beijo na cidade. A repercussão foi imensa. Houve um ato de protesto chamado a noite do beijo, que apesar do nome acabou na maior pancadaria. Na época, chegou a se falar em sérios castigos para os manifestantes, caso algum juiz decidisse que beijar era praticar "ato obsceno em local público e aberto", de que trata o Código Penal. No fim, prevaleceu o bom senso e ninguém foi processado por exprimir seu carinho com beijos - uma demonstração de afeto que a história e a arte registram há milênios.
No mecanismo da sensualidade, o beijo é um capítulo muito especial, por estar ligado ao próprio desenvolvimento das pessoas. Beijar, explica o antropólogo inglês Desmond Morris, autor de vários livros sobre comportamento humano, entre eles O macaco nu, "tem sua origem na relação mãe - filho". Nos tempos primitivos, depois de sugar o peito, a criança recebia alimentação sólida devidamente mastigada pela mãe e passada à boca, à maneira de certos animais e pássaros. O costume ainda sobrevive em algumas tribos de várias partes do mundo. Da mesma forma como sugar o seio, esse contato tornou-se definitivamente ligado ao conforto e à segurança infantil. Acontece que beijar, como sugar, persiste na vida adulta "como um gesto de conforto fortemente associado a relações amorosas", escreve Desmond Morris.
O homem, portanto, aprende a beijar desde que vem ao mundo - e foram muitos os psiquiatras e psicanalistas, a começar por Sigmund Freud, que se preocuparam em interpretar como evoluiu esse movimento originalmente voltado à nutrição e à sobrevivência para o desfrute de um prazer. Beijamos também por costume, educação, respeito ou também por mera formalidade. E as características do beijo variam segundo o que se quer expressar com ele. Uma das primeiras representações do beijo de que se tem conhecimento são as esculturas e murais do templo de Khajuraho, na Índia, que datam do ano 2500 a.C. No século IV da era cristã publica-se na Índia o Kama Sutra, considerado o mais completo tratado sexual do Oriente, atribuído ao sábio Vatsyayana.
Um capítulo inteiro da obra é dedicado ao beijo, onde se ensina, entre outras coisas, que "não há duração fixa ou ordem entre o abraço e o beijo, o aperto e as marcas feitas com as unhas e os dedos", pois "o amor não cuida do tempo ou da ordem". Apesar disso, o Kama Sutra adverte para que sejam respeitados "os costumes de um país" - com o que até o severíssimo juiz de Sorocaba em 1981 concordaria. Segundo o manual indiano, o beijo pode ser moderado, contraído, pressionado ou suave. Pode ser direto, inclinado, voltado ou apertado. Existe até o beijo "despistante", que deve ser dado pelo homem, quando ele estiver ocupado.
O conselho que encerra o capítulo sobre o beijo no Kama Sutra exalta a reciprocidade: "Seja o que for que um amante faça ao outro, este deve retribuir; isto é, se a mulher o beijar, deve beijá-la; se ela lhe bater, cumpre igualmente bater-lhe". Na Grécia antiga, o beijo funcionava como um elemento diferenciador das hierarquias: os subordinados beijavam os superiores no peito, nas mãos ou nos joelhos, de acordo com o nível que possuíam. Os mendigos tinham unicamente o direito de beijar os pés dos senhores, e aos escravos só se permitia beijar a terra. Ou seja, quanto mais baixo o lugar do indivíduo na sociedade, mais ele devia inclinar-se para prestar a homenagem.
No século V a.C., o historiador Heródoto chegou a descrever os vários tipos de beijos e seu significado entre os persas e os árabes. Os persas se cumprimentavam com beijos que, como na Grécia, variavam de acordo com o nível social das pessoas. Relata Heródoto: "Quando pertencem ao mesmo nível social, as pessoas beijam-se na boca. O beijo no rosto é usado se existe uma pequena diferença entre elas".
Os preconceitos contra o beijo são igualmente antigos. No início da era cristã, outro historiador grego, Plutarco, que deixou uma imensa obra sobre os costumes na Grécia e em Roma, conta que Catão, o Censor (234 a.C.-149 a.C.), cessou o mandato do senador Pretorius Mamillus, porque foi visto beijando a mulher em público. Mas em particular os romanos nada tinham contra o beijo. O latim até registra três palavras para defini-lo:, osculum é o beijo amistoso, nas faces; basium, o beijo apaixonado na boca; e suavium, o beijo amoroso com ternura.
O beijo nas faces vem da época em que os humanos dependiam muito mais do olfato para sobreviver. Os homens cheiravam uns aos outros para saber se pertenciam a uma tribo estranha e eventualmente inimiga. Supõe-se que cada grupo devia possuir um odor característico, o cheiro do grupo. O beijo no rosto, portanto, não nasceu como expressão de carinho ou prazer, mas como meio de defesa. Talvez por isso os povos acostumados a habitar um ambiente hostil ou forçados a viver em pé de guerra virtualmente desconhecem o costume de beijar por afeto. Um provérbio sudanês adverte: "Jamais beijes quem seja capaz de te devorar".
Os esquimós, muito prudentes, resolveram o problema encostando as pontas dos narizes, enquanto mantêm os olhos abertos, vigiando a situação. Da mesma forma, o mongol apóia o nariz no rosto de seu par, conservando um cômodo ângulo de visão. Existem povos que nunca se beijam, como certas etnias africanas e os antigos japoneses. Certa vez, numa exibição de arte em Tóquio, a escultura de Rodin, O beijo, foi colocada atrás de um biombo. Diante da queixa de um visitante, o chefe de policia explicou: "O beijo é um detestável hábito europeu que nós, aqui, desejamos que não se cultive de maneira alguma".
Já os africanos, ao abster-se, estão tentando proteger sua alma, alegoricamente identificada no alento ou respiração. A boca e o aleitamento são a representação da vida e, para alguns povos, da alma também. O primeiro grito do recém-nascido é seu primeiro sintoma de vida. Assim também o homem abandona o mundo, dando o último suspiro. E Deus soprou a vida em Adão - assim como nos contos de fada o príncipe devolve a vida à Bela Adormecida e a Branca de Neve, vítimas de um enfeitiçamento. Mas o beijo também pode significar a morte. Segundo as regras da Máfia, quando algum membro do grupo trai seus pares, um parente é encarregado de lhe dar um beijo ritual na boca, indicando a vítima cuja execução foi aprovada pelo chefão.
Na França de Luis XIV, o Rei Sol (1638-1715), foi instituído o uso do beija-mão, que no começo obrigava os homens a inclinar-se para beijar as mãos das damas. Na verdade, muitos altos funcionários e nobres da corte nunca aprovaram o costume: achavam humilhante fazer uma reverência diante de pessoas que lhes poderiam ser socialmente inferiores. Assim, eles inventaram uma regra que não iria romper totalmente com o protocolo - aproximavam a mão das senhoras até a boca e a apertavam uma ou mais vezes, operação que não os impedia de continuar retos e com sua vaidade ilesa.
Esse gesto, em nossos dias, perdeu seu significado quase por completo, em parte como resultado da diminuição na desigualdade de tratamento entre os sexos. Continua a ser usado apenas em altas esferas sociais, como um formalismo destinado a mulheres muito importantes. Os únicos beijos que permanecem, na boca ou nas faces, são os que indicam igualdade, que se dão sem que seja preciso que uma das pessoas se abaixe. Assim se beijam os amigos, os companheiros de luta, os políticos, os esportistas, os casais e também os membros de uma mesma família.
Imortalizado nas artes como uma celebração mágica e romântica, foi com o cinema que o beijo tomou conta do mundo. Em 1896, numa pequena sala de projeções de Los Angeles, nos Estados Unidos, diante do olhar estupefato de 73 espectadores, os artistas May Irwin e John Rice beijaram-se durante quatro longos segundos. Foi um beijo explosivo, filmado em primeiro plano. Todas as associações femininas de defesa da moral e dos bons costumes dos Estados Unidos incitaram então o boicote ao filme; a imprensa também censurou o que chamou de moral de taverna. Mas Hollywood insistiu - e em 1926 chegou às telas o filme Don Juan, onde o ator John Barrymore dá 191 beijos em diversas atrizes, um recorde ainda não superado no cinema.
Mas, durante muito tempo, Hollywood foi obrigada a dosar cuidadosamente as manifestações de afeto, por causa do código Hayes, um rígido conjunto de normas sobre o que mostrar e o que esconder nas cenas de paixão. Não podendo exibir tomadas de corpos ardentes, os cineastas aprenderam a usar o beijo como metáfora. As imagens seguintes ao encontro de bocas eram as ondas do mar se desmanchando na areia ou batendo contra rochedos, uma lareira crepitando ou ainda o vôo de uma ave. E todo mundo entendia que o beijo era o começo e não The End.

Anatomia de um beijo.

Por mais sedutor e apaixonado que um beijo possa ser, sempre existe quem o reduza a uma simples troca de bactérias. Ou a um ato que pode encurtar a vida. É o caso da dra. Martine Mourier, da Faculdade de Bobigny, na França, que dedicou as duzentas páginas de sua tese de doutoramento em Medicina aos efeitos do beijo. Num beijo bem carinhoso, pesquisou a dra. Mourier, entram em ação dezessete músculos. Mais paixão exige mais do corpo: 29 músculos; ao mesmo tempo, a pressão que o rosto de uma pessoa exerce sobre a outra chega a 12 quilos. É nessa hora que trocam de boca pelo menos 250 bactérias.
Além da circulação bacteriana, o beijo representa uma troca de 9 miligramas de água; 18 miligramas de substancial orgânicas; 7 decigramas de albumina; 711 miligramas de materiais gordurosos; e 45 miligramas de sais minerais, segundo a minuciosa médica francesa. Pesquisas norte-americanas informam também que os batimentos cardíacos passam dos normais setenta para 150 por minuto. Daí, ela conclui que um beijo muito entusiasmado pode encurtar a vida em três minutos.
Manuais de profilaxia, de seu lado, ensinam que várias doenças podem ser transmitidas pelo beijo, entre elas resfriado, caxumba, gripe, hepatite, herpes simples, tuberculose, mononucleose e sífilis. Em certas condições, pode-se contrair AIDS pela saliva. Em contrapartida, o beijo da mãe no bebê é uma das formas que a natureza tem de inocular vacinas naturais na criança. A mãe transmite ao recém-nascido seus próprios germes de forma diluída, desencadeando reações de defesa no organismo infantil. Os números, as pesquisas e as teses, porém, são apenas parte da realidade. Uma vida emocional sadia não prescinde dos gestos de afeto e das emoções do amor. O ser humano, afinal, necessita do beijo para seu equilíbrio - o que influi poderosamente sobre a saúde.

Esse homem chamado Jesus.

ESSE HOMEM CHAMADO JESUS.



O que se conhece de Jesus é praticamente apenas o que contam os evangelhos. Mas novas interpretações dos textos bíblicos permitem entender com muito mais riqueza sua figura histórica e o conteúdo de sua ação no tempo em que viveu. Tudo o que é humano está nele presente: alegria e ira, bondade e dureza.

Quem foi afinal Jesus? A resposta é difícil - principalmente porque os únicos relatos sobre sua vida são os evangelhos, escritos e reescritos décadas depois de sua morte. A Igreja aceita como válidos apenas quatro desses textos, os chamados evangelhos canônicos, atribuídos pela tradição a Mateus, Marcos, Lucas e João. Outros evangelhos, denominados apócrifos, apresentam narrativas que, às vezes, se chocam fortemente com a dos canônicos. Refletem concepções religiosas e políticas que se desenvolveram nos primeiros séculos do cristianismo e chegaram a ser acusadas de heresia. Estudos bíblicos contemporâneos vêm submetendo tanto os textos canônicos quanto os apócrifos a uma cuidadosa releitura crítica.
Para começar, Jesus nasceu antes de Cristo. Um erro cometido séculos depois no cálculo do calendário é responsável por esse paradoxo. O fato histórico usado como referência para a datação do nascimento é o primeiro recenseamento da população da Palestina, ordenado pelas autoridades romanas com o objetivo de regularizar a cobrança de impostos. Lucas diz em seu evangelho que Jesus nasceu na época do censo. Estudos mais recentes situam esse acontecimento entre os anos 8 e 6 a.C.
Maria e José, os pais de Jesus, teriam se deslocado de Nazaré, na Galiléia, onde viviam, para Belém, na Judéia - cidade de origem de José e onde ele deveria se alistar para o censo. Mas a definição de Belém como a cidade natal de Jesus também é motivo de polêmica entre os estudiosos. Belém era a cidade de Davi, que reinou em Israel por volta do ano 1000 a.C. Na época em que Jesus nasceu, os judeus esperavam por um líder, que os livrasse do jugo romano e restabelecesse a realeza.
Segundo profecias do Antigo Testamento, esse libertador - o messias, que significa o "ungido", como os antigos reis de Israel - seria descendente de Davi. Para os evangelhos, especialmente o de Mateus, Jesus é o messias esperado: por isso seu nascimento ocorre em Belém; por isso também ele é saudado pela aparição de uma estrela, símbolo de Davi.
Conforme o relato de Mateus, Jesus descende de Davi por meio de José. O autor procura conciliar essa origem com a virgindade de Maria, referida no mesmo texto. O que se quer mostrar, evidentemente, é que o nascimento de Jesus ocorre a partir de uma intervenção direta de Deus. É uma idéia que aparece com freqüência no pensamento antigo. Não só heróis mitológicos, mas também grandes personagens históricos têm seu nascimento associado a uma divindade. Os faraós do Egito eram considerados filhos de Amon-Ra, o deus Sol. E a mãe de Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), estava convencida e convenceu o filho de que ele era descendente de Zeus, o deus supremo da mitologia grega.
Para a Igreja Católica, Maria permaneceu virgem mesmo depois do nascimento de Jesus. A expressão irmãos e irmãs, empregada por Mateus e Marcos, designaria parentes mais distantes de Jesus, como seus primos. Essa opinião é contestada pelos protestantes, que acreditam que os irmãos que aparecem nos evangelhos eram irmãos mesmo. Eles são citados pelos nomes: Tiago, José, Simão e Judas. Tiago, conhecido como Tiago, o Maior, fez parte do círculo dos discípulos mais íntimos; após a morte de Jesus e a saída do apóstolo Pedro de Jerusalém, assumiria a chefia da Igreja.
A ação de Jesus transcorreu principalmente entre os pobres e marginalizados de seu tempo. A fértil região da Galiléia, onde presumivelmente passou a maior parte de sua vida, abrigava uma população miserável, vista até com desconfiança pelos judeus conservadores, pela presença em seu interior de elementos pagãos originários da Síria. Como lembra o estudioso Paulo Lockmann, bispo da Igreja Metodista no Rio de Janeiro, quando Jesus disse "bem-aventurados os pobres em espírito", era dessa população rústica que ele falava.
A própria família de Jesus, porém, puramente judaica, como se pode verificar pelos nomes de seus membros, não era assim tão pobre. Como carpinteiro, José era um artesão pequeno proprietário. Num meio em que os ofícios passavam de pai para filho e eram patrimônio de família, é quase certo que Jesus tenha herdado e exercido a carpintaria.
A lacuna de quase trinta anos na narrativa dos evangelhos - do nascimento de Jesus ao início de sua pregação - deu margem a todo tipo de fantasia. Autores imaginosos fizeram-no viajar a lugares tão longínquos quanto a Índia e o Tibete, em busca dos fundamentos de sua doutrina. Para o estudioso católico Euclides Balancin, do corpo de tradutores para o português da Bíblia de Jerusalém, essas suposições não têm nenhum fundamento. "É muito improvável que Jesus tenha se afastado da Palestina", diz. "O único ensinamento religioso com que ele teve contato era aquele acessível a qualquer judeu da época - as Escrituras. O aspecto revolucionário de sua ação é que ele procurou levar as idéias do Antigo Testamento à prática."
A espetacular descoberta das ruínas e dos manuscritos da comunidade dos essênios, ocorrida em 1947 na localidade de Qumran, às margens do mar Morto, no atual território de Israel, alimentou durante bom tempo a suposição de que Jesus pudesse ter pertencido a essa irmandade religiosa. Mas a crítica mais recente vem desmentindo também essa hipótese.
A comunidade dos essênios era formada principalmente por sacerdotes que haviam rompido com o alto clero de Jerusalém, constituído por grandes proprietários de terras que aceitavam a dominação romana. Abandonando a Cidade Santa, os sacerdotes dissidentes se fixaram nas grutas da região desértica à margem do mar Morto, onde os bens eram divididos entre todos, cada um devia trabalhar com as próprias mãos e o comércio era proibido.
Esses judeus puritanos esperavam a chegada iminente do messias, que viria organizar a guerra santa para eliminar os ímpios e estabelecer o reino eterno dos justos. Os que aspiravam pertencer à comunidade deviam passar por um complexo e prolongado período de iniciação, que incluía o batismo com água. O significado simbólico desse rito era o da morte e ressurreição do indivíduo: ao ser mergulhado na piscina batismal, este morria e renascia para uma nova vida.
É provável que a ideologia dos essênios tenha influenciado o pensamento e a prática de Jesus, assim como da comunidade cristã primitiva. Mas as diferenças também são muito grandes. Como ressalta o padre Ivo Storniolo, coordenador da tradução da Bíblia de Jerusalém, enquanto os essênios se afastavam do mundo injusto e corrompido para viver um ideal de pureza à espera do messias, Jesus mergulhava nesse mundo para transformá-lo.
Além disso, a comunidade dos essênios era rigidamente organizada e hierarquizada, ao passo que a prática de Jesus era informal. "As expressões pregação ou ministério de Jesus podem induzir a um erro de avaliação", comenta Storniolo. "É preciso ter claro que Jesus não era um sacerdote. Raramente pregava nas sinagogas. Seus ensinamentos e sua ação se davam no meio do povo, nos locais de moradia e de trabalho."
De seu lado, o protestante Paulo Lockmann acrescenta: "Nunca um essênio se sentaria à mesa de um publicano (cobrador de impostos) ou pecador como Jesus fez. Ele foi além disso e afirmou que os publicanos e as prostitutas estão vos precedendo no Reino de Deus, querendo mostrar que, quanto mais um homem é pecador, mais ele está em revolta contra o mundo em que vive e mais aberto à transformação".
Próximo dos essênios, sem dúvida, estava João, o Batista. Ele era um asceta rigoroso, que pregava no deserto próximo à comunidade de Qumran, batizava com a água e anunciava a vinda do messias. O tipo de relacionamento que pode ter havido entre Jesus e João Batista intriga os estudiosos. Como Jesus, João tinha um círculo de discípulos, dois dos quais, atendendo à sua indicação, teriam se passado para o grupo de Jesus, integrando o conjunto dos doze apóstolos. Um desses discípulos era André, irmão de Pedro.
Para João, Jesus era o messias esperado. Nele, João via a intervenção iminente de Deus na história. Mas, depois de ser preso pelas autoridades e como Jesus não desse início à guerra santa, João enviou dois discípulos para interrogá-lo se ele era realmente "aquele que há de vir ou devemos esperar outro". Se a resposta indireta de Jesus, citada por Lucas, convenceu João não se sabe. Sabe-se que não convenceu uma parte de seus seguidores. Estes, após a execução do líder, passaram a acreditar que João era o messias e fora traído por Jesus. A partir daí fundaram uma religião, o mandeísmo de que há tênues vestígios ainda, no Irã e na Turquia.
Batizado por João, Jesus meditou e jejuou por quarenta dias no deserto. Essa passagem tem um claro significado. Não só na biografia de fundadores de religiões, como Buda ou Maomé, mas também na trajetória de homens comuns entre os povos primitivos, a preparação para a etapa mais importante da vida é precedida por um período de solidão junto à natureza, quando a pessoa se confronta consigo mesma. O demônio que tentou Jesus durante esse período pode ser interpretado como seu demônio interior - o lado sombrio que todo homem tem dentro de si.
Segundo Mateus, quando Jesus teve fome, o diabo lhe disse: "Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães". Depois, levando-o ao alto do templo de Jerusalém, o desafiou: "Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão pelas mãos..." Finalmente, conduzindo-o a um monte muito alto, "mostrou-lhe todos os reinos do mundo com seu esplendor e disse-lhe: Tudo isso te darei, se, prostrado, me adorares". Para Ivo Storniolo, "as tentações no deserto são um resumo das tentações que Jesus sofreu ao longo da vida. Três tentações que a sociedade propõe: riqueza, prestígio e poder. Sociologicamente, há nos evangelhos uma crítica à sociedade baseada nesses valores, por serem privilégio de uma minoria".
Mesmo a estruturação dos ensinamentos de Jesus nos grandes sermões que aparecem nos evangelhos canônicos é posterior à sua morte e se deu pela reunião, em discursos extensos, de frases ditas em ocasiões e contextos diversos. O núcleo de sua mensagem está no Sermão da Montanha, de conteúdo marcadamente social.
Nesse aspecto, a versão do Evangelho de Lucas é ainda mais vigorosa que a de Mateus: "Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-venturados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem. Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque no céu será grande a vossa recompensa; pois do mesmo modo seus pais tratavam os profetas..."
O ponto culminante da trajetória de Jesus, para o qual convergem as narrativas evangélicas, foi sua estada em Jerusalém, onde se confrontou diretamente com o centro do poder, foi preso, condenado e crucificado. Sua entrada na cidade foi triunfal, sendo recebido pela multidão que estendia as vestes sobre o caminho para que ele passasse e o saudava como o messias libertador. Suas palavras e ações, entretanto, logo deixaram claro que ele não vinha liderar uma rebelião militar contra o domínio romano, mas propor uma transformação de outro tipo na estrutura da sociedade e na mentalidade dos homens.
Um de seus primeiros gestos, cheio de significado e conseqüências, foi expulsar os comerciantes do Templo. Este não era apenas o núcleo religioso do país, mas também uma importante unidade econômica, envolvida na cobrança de impostos e num intenso comércio, que visava tanto atender às necessidades dos numerosos peregrinos como manter o sistema de vendas de animais, ofertados pelos fiéis em sacrifício. Essa economia do templo era uma das bases do poder da elite sacerdotal, que Jesus afrontava diretamente com seu ato.
Por outro lado, as palavras de Jesus se voltam contra o que ele considerava uma religião minuciosa e formalista, que se afastava do conteúdo profundo e da mensagem social das Escrituras: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos, que coais o mosquito e tragais o camelo!"
O famoso episódio em que Jesus é interrogado pelos fariseus e partidários da dinastia de Herodes sobre se se devia ou não pagar tributos a Roma é explicitamente descrito, em Mateus, Marcos e Lucas, como uma trama visando arrancar dele alguma declaração que pudesse incriminá-lo perante as autoridades romanas. A resposta de Jesus - "Devolvei o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus" - certamente decepcionou os que esperavam dele a liderança de uma insurreição nacionalista. Quando, de acordo com o costume de se libertar um prisioneiro durante a festa da Páscoa, o procurador romano Pôncio Pilatos consultou o povo se devia anistiar Jesus ou Barrabás, acusado de morte, os evangelhos dizem que a cúpula sacerdotal procurou tirar partido dessa decepção, incitando a multidão a escolher Barrabás.
Os modernos estudos críticos dos evangelhos vêm permitindo tratar da dimensão existencial de Jesus, antes encarada como tabu. Como mostra Leonardo Boff, em seu livro Jesus Cristo libertador, tudo que é autenticamente humano aparece em Jesus: alegria e ira, bondade e dureza, tristeza e tentação. No entanto, suposições como a de um eventual relacionamento amoroso com Maria Madalena não encontram nenhum apoio nos textos evangélicos.
A própria Maria Madalena, aliás, já foi erroneamente confundida com a "pecadora", mencionada por Lucas, que teria lavado, enxugado com os cabelos, beijado e perfumado os pés de Jesus na casa de um fariseu. Não há evidência de que sejam a mesma pessoa. O que se diz de Maria Madalena em diversas passagens é que dela Jesus expulsou "sete demônios", que estava presente entre as mulheres que acompanharam Jesus ao monte Calvário, onde foi executado, e que Jesus lhe apareceu e falou depois da ressurreição.
Um dos pontos mais delicados na tentativa de reconstituir a dimensão histórica de Jesus são os milagres a ele atribuídos. É preciso ter claro que a separação que se faz hoje entre natural e sobrenatural praticamente não existia naqueles tempos. Os evangelhos dão numerosos testemunhos das curas operadas por Jesus. Em meio a um povo miserável e inculto, Jesus vai libertando as pessoas de seus males: a cegueira, a mudez, a surdez, a paralisia, a loucura.
Padre Storniolo sublinha o caráter alegórico de muitos relatos de milagres. Seria o caso, por exemplo, de Jesus caminhando sobre as águas: "O mar no Antigo Testamento era o símbolo das nações que podiam invadir a Palestina e dominar o povo. Os discípulos na barca agitada pelas ondas simbolizam a comunidade cristã primitiva com medo de se afogar no mar da História. Jesus vem então caminhando sobre as águas, como prova de que, pela fé, aquela comunidade podia ser vitoriosa. Pedro também caminha, até o instante em que duvida. Nesse momento divide suas energias, perde seu poder e começa a afundar, sendo salvo por Jesus".
Um dos milagres de Jesus, citado com mais detalhes por Lucas, é o da cura da mulher que sofria de hemorragia ininterrupta. Aproximando-se por trás de Jesus, que caminhava entre o povo, ela tocou a extremidade de sua veste. Jesus perguntou então: "Quem me tocou?" Como todos negassem, Pedro disse: "Mestre, a multidão te comprime e te esmaga". Mas Jesus insistiu: "Alguém me tocou; eu senti uma força que saía de mim". Então a mulher se apresentou e Jesus lhe disse: "Minha filha, tua fé te curou; vai em paz". O que chama a atenção, no caso, é Jesus ter sentido "uma força que saía" dele - algo que, em linguagem moderna, talvez pudesse ser chamado poderes paranormais.

Política e religião no tempo de Jesus

A ansiosa espera pelo messias libertador reflete a opressão a que o povo judeu estava submetido, sob o domínio romano. Depois da morte de Herodes I (73 a.C.-4 a.C.), rei vassalo de Roma que não gozava de legitimidade junto à população, a Palestina foi dividida entre três de seus filhos: Arquelau, Filipe e Herodes Antipas. A Galiléia, onde Jesus vivia, coube ao último, responsável pela decapitação de João Batista.
Arquelau, rei da Judéia e Samaria, foi substituído pelo procurador romano Pôncio Pilatos, sob cujo mandato Jesus Cristo foi crucificado. Mas o sumo sacerdote do templo de Jerusalém, Caifás, tinha grande influência no governo. Apoiava-se no Sinédrio, conselho de 71 membros formado por altos sacerdotes, anciãos das famílias judias mais ilustres e doutores da Lei.
Vários grupos moviam-se na cena política. No alto da pirâmide social estavam os saduceus - a elite sacerdotal e os grandes proprietários de terras. Eram judeus conservadores que se alinham ao texto da Lei, tal como aparece nas Escrituras, e colaboravam com o dominador romano.
Logo abaixo, vinham os fariseus - elementos do baixo clero, pequenos comerciantes e artesãos. Eram hostis à presença romana, mas sua oposição era apenas passiva. Em todas as questões da vida cotidiana, cumpriam zelosamente a Lei e as tradições orais acumuladas ao longo dos séculos. Em confronto com o templo de Jerusalém, o centro de sua expressão eram as sinagogas, presentes nos menores lugarejos.
Saído dos fariseus, o grupo dos zelotas era formado por camponeses e outros membros das camadas mais pobres, esmagadas pelos impostos. Muito religiosos, eram nacionalistas radicais. Queriam expulsar pelas armas os romanos e instituir um Estado onde Deus fosse o único rei, representado pelo messias, descendente de Davi. Considerado agitador e assassino pela tradição cristã, Barrabás foi um líder zelota.
Entre os apóstolos de Jesus, dois devem ter sido zelotas: Simão e Judas Iscariotes. Também Pedro parece ter simpatizado com eles. O nome Iscariotes pode significar que Judas fosse da cidade de Kariot, foco da ação zelota, ou viria da expressão aramaica Ish Kariot, que quer dizer "o homem que leva o punhal". Sua traição a Jesus pode ser interpretada como um ato resultante de divergência política: enquanto a ação dos zelotas se voltava contra o dominador estrangeiro, a pregação de Jesus visava a própria estrutura social da Palestina.