sábado, 21 de outubro de 2017

Os Bruzundangas - Parte 3 de 4 - Lima Barreto


Os Bruzundangas - Parte 3 de 4 - Lima Barreto

Os Bruzundangas - Lima Barreto



À vista do seu exemplo, nenhum ministro quis ficar atrás. Todos porfiaram nos
gastos. Anos depois, os deficits aumentavam, os impostos aumentavam, os preços de todos os
gêneros aumentavam; mas a gente do país não deu pela origem da crise, tanto assim que,
quando Pancome morreu, lhe fez a maior apoteose que lá se há visto. Os heróis e o povo
da República dos Estados Unidos da Bruzundanga, são assim, caros senhores.




            XII

       A sociedade


É deveras difícil dizer qualquer cousa sobre a sociedade da Bruzundanga. É difícil
porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em geral, a gente da terra que forma a
sociedade, só figura e aparece nos lugares do tom, durante muito pouco tempo. Os nomes
mudam de trinta em trinta anos, no máximo. Não há, portanto, na sociedade do momento
tradição, cultura acumulada e gosto cultivado em um ambiente propício. São todos arrivistas e
viveram a melhor parte da vida tiranizados pela paixão de ganhar dinheiro, seja como for. Os
melhores e os mais respeitáveis são aqueles que enriqueceram pelo comércio ou pela indústria,
honestamente, se é possível admitir que se enriqueça honestamente.
Esses, porém, fatigados, embotados, não formam bem a sociedade, embora as suas
filhas e mulheres façam parte dela.
Os que formam direitamente a grande sociedade, são os médicos ricos, os advogados
afreguesados, os tabeliães, os políticos, os altos funcionários e os acumuladores de empregos
públicos.
Por mais que se esforcem, por mais que queiram, semelhantes homens, atarefados dia
e noite, nos escritórios, nas repartições, nos tribunais, nos cartórios, na indústria política, não
podem ter o repouso de espírito, o ócio mental necessário à contemplação desinteressada e à
meditação carinhosa das altas cousas. Limitam-se a pousar sobre elas um olhar ligeiro e
apressado; e a preocupação de manter os empregos e fazer render os cartórios, tirar-lhes-á o
sossego de espírito para apreciar as grandes manifestações da inteligência humana e da
natureza.
Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga com a


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palavra -- medíocre.
Vem-lhe isto não de uma incapacidade nativa, mas do contínuo tormento de cavar
dinheiro, por meio de empregos e favores governamentais, do sentimento de insegurança de
sua própria situação.
Em uma sala, se se ouve conversa das senhoras (digo senhoras), a preocupação não é
outra senão saber se fulano será ministro, para dar tal ou qual comissão ao marido ou ao filho.
Uma outra criticará tal ou qual pessoa poderosa porque não arranjou para o pai uma concessão
qualquer. É assim.
Uma tão vulgar preocupação pauta toda a vida intelectual da sociedade
bruzundanguense, de modo que, nas salas, nos salões, nas festas, o tema geral dos comensais é
a política; são as combinações de senatorias, de governanças, de províncias e quejandos.
A política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém uma
vulgar especulação de cargos e propinas.
Sendo assim, todas as manifestações de cultura dessa sociedade são inferiores. A não
ser em música, isto mesmo no que toca somente a executantes, os seus produtos intelectuais
são de uma pobreza lastimável.
Há lá salões literários e artísticos, mas de nenhum deles surgiu um Montesquieu com
o Espírito das Leis, como saiu do de Mme. du Deffand, As obras mais notáveis que lá têm
aparecido são escritas por homens que vivem arredados da sociedade bruzundanguense.
Em uma sala desse país, quando não se trata de intrigas políticas ou coisas frívolas de
todos os dias, surge logo um tédio inconcebível. Ele sepulta o pensamento, antes de matá-lo:
enterra-o vivo. Mereceria detalhes, mas só fazendo romance ou comédia.
A gente da Bruzundanga gosta de raciocinar por aforismos. Sobre todas as cousas,
eles têm etiquetadas uma coleção deles.
Se se fala em uma sala ou em outro qualquer lugar de sociedade de coisas literárias,
logo um aforista sentencia:
-- A arte deve ser impessoal. Os grandes artistas, etc.
Naturalmente, ele se lembrou de Dante, que pôs no inferno os seus inimigos e no céu
os seus amigos.
Incapaz de fazer aparecer no seu seio razoáveis manifestações intelectuais, ela é
ainda mais incapaz de apoiar as que nascem fora dela.
A pintura, que sempre foi arte dos ricos e abastados, não tem, na Bruzundanga,
senão raros amadores. Os pintores vivem à míngua e, se querem ganhar algum dinheiro, têm
que se rojar aos pés dos poderosos, para que estes lhes encomendem quadros, por conta do
governo.
Porque eles não os compram com o dinheiro seu, senão os de vagas celebridades
estrangeiras que aportam às plagas do país com grandes carregações de telas. É outro feitio da
gente imperante da Bruzundanga de só querer ser generosa com os dinheiros do Estado.
Quando aquilo foi Império, não era assim; mas, desde que passou a República, apesar da
fortuna particular ter aumentado muito, a moda da generosidade à custa do governo se
generalizou.
Se um desses engraçados Mecenas julga que deve proteger tal ou qual pessoa; que
esta precisa viajar à Europa, aperfeiçoar-se, não lhe subvenciona a viagem, não tira nem um
ceitil dos seus mil e mais contos. Sabem o que faz? Influi para que ele receba um pagamento
indevido do Tesouro ou promove uma fantástica comissão para o indivíduo.
É assim o mecenato da Bruzundanga. A falta de generosidade e a sua inquietude
pelo dia de amanhã ferem logo a quem examina a sociedade daquele país, mesmo
perfunctoriamente.
Basta ler os testamentos dos seus ricos e compará-los com os que fazem os humildes
iberos que lá enriqueceram em misteres humildes, para sentir a inferioridade moral da


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sociedade da Bruzundanga.
Nestes últimos, há mesmo um grande pensamento da hora da morte, quando fazem
legados a amigos, a parentes afastados, a criados, a instituições de caridade; mais, nos
daqueles, só se topa com o mais atroz egoísmo. Lembro-me de um ricaço de lá que, ao morrer,
fez avultados legados aos netos, filhos de sua filha, com a condição de que deviam usar o
nome dele -- cousa que, como se sabe, se não é contrária às leis, ofende os costumes. O
sobrenome tira-se do do pai, lá como aqui.
Por falar em cousas de morte, convém recordar que os cemitérios dessa gente, ou por
outra, os túmulos das pessoas da alta roda da Bruzundanga são outra manifestação da sua
pobreza mental.
São caros jazigos ou carneiros de mármore de Carrara, mas os ornatos, as estátuas,
toda a concepção deles, enfim, é de uma grande indigência artística. Raros são aqueles que
pedem a escultores que os façam. Todos os encomendam a simples marmoristas, que os
recebem, aos montes, da Itália.
As suas casas são desoladoras arquitectonicamente. Há modas para elas. Houve
tempo em que era a de compoteiras na cimalha; houve tempo das  cúpulas bizantinas;
ultimamente era de mansardas falsas. Carneiros de Panúrgio...
A sua capital, que é um dos lugares mais pitorescos do mundo, não tem nos arredores
casas de campo, risonhas e plácidas, como se vêem em outras terras.
Tudo lá é conforme a moda. Um antigo arrabalde da capital que, há quantos anos era
lugar de chácaras e casas roceiras, passou a ser bairro aristocrático; e logo os panurgianos ricos,
os que se fazem ricos ou fingem sê-lo, banalizaram o subúrbio, que ainda assim é lindo.
Um dos toques da mediocridade da sociedade da Bruzundanga é a sua incapacidade
para manter um teatro nacional.
O teatro é por excelência uma arte de sociedade, de gente rica. Ele exige vestuários
caros, jóias, carros -- tudo isso que só se pode obter com a riqueza. Pois os ricos da
Bruzundanga, não animam as tentativas que se têm feito para fazer surgir um teatro indígena,
e todas têm fracassado.
Ela se contenta com a ópera italiana ou com as representações de celebridades
estrangeiras.
Poderia ainda falar nas suas festas íntimas, nos seus casamentos, nos seus batizados,
nas suas datas familiares; mas, por hoje, basta o que vai dito, e é o bastante para mostrar de
que maneira a aristocracia da Bruzundanga é incapaz de representar o papel normal das
aristocracias: criar o gosto, afinar a civilização, suscitar e amparar grandes obras.
Se falei aqui em aristocracia, foi abusando da retórica. O meu intento é designar com
tão altissonante palavra, não uma classe estável que detenha o domínio da sociedade da
Bruzundanga, e a represente constantemente; mas os efêmeros que, por instantes, representam
esse papel naquele interessante país.
Explicado este ponto, posso ir adiante nas minhas breves "notas" sobre o país da
Bruzundanga.


           XIV

       As eleições

DENTRE as muitas superstições políticas do nosso tempo, uma das mais curiosas é
sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata de pequenas cidades, para a escolha
de autoridades verdadeiramente locais, quase municipais, como eram na antiguidade, elas
tomam um aspecto de sortilégio, de adivinhação, ao serem transplantadas para os nossos


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imensos estados modernos. Um deputado eleito por um dos nossos imensos distritos eleitorais,
com as nossas dificuldades de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai das urnas
como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase sempre não
tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas idéias políticas,
as suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública; é um puro nome
sem nada atrás ou dentro dele. O eleito, porém, depois de certos passes e benzeduras legais,
vai para a Câmara representar-lhes a vontade, os desejos e, certamente, procurar minorar-lhes
os sofrimentos, sem nada conhecer de tudo isto.
A superstição eleitoral é uma das nossas coisas modernas que mais há de fazer rir os
nossos futuros bisnetos.
Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os representantes do povo, desde o vereador
até ao Presidente da República, eram eleitos por sufrágio universal, e, lá, como aqui, de há
muito que os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho
eleitoral este elemento perturbador -- "o voto".
Julgavam os chefes e capatazes políticos que apurar os votos dos seus concidadãos
era anarquizar a instituição e provocar um trabalho infernal na apuração porquanto cada qual
votaria em um nome, visto que, em geral, os eleitores têm a tendência de votar em conhecidos
ou amigos. Cada cabeça, cada sentença; e, para obviar os inconvenientes de semelhante fato,
os mesários da Bruzundanga lavravam as atas conforme entendiam e davam votações aos
candidatos, conforme queriam.
Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições, o espetáculo
delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode imaginar.
As ruas ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de mulheres e homens
atarefados; mas para compensar tal desfalque passam constantemente por elas, carros,
automóveis, pejados de passageiros heterogêneos. O doutor-candidato vai neles com os mais
cruéis assassinos da cidade, quando ele mesmo não é um assassino; o grave chefe de secção,
interessado na eleição de F., que prometeu fazê-lo diretor; o grave chefe, o homem severo com
os vadios de sua burocracia, não trepida em andar de cabeça descoberta, com dous ou três
calaceiros conhecidíssimos.
A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à espera de uma
verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas secções, nos carros,
nos cafés, e botequins, parece que as prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos,
naquele dia.
Raro é o homem de bem que se faz eleitor, e se se alista, para atender a pedidos de
amigos, não tarda que o seu diploma sirva a outro cidadão mais prestante, que no dia do
pleito, para fins eleitorais, muda de nome e toma o do pacato burguês que se deixa ficar em
casa, e vota com eles. Isto é o que lá se chama: -- "um fósforo".
Às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de mortos, cujos diplomas
apresentam aos mesários solenes e hieráticos que nem sacerdotes de antigas religiões. Quer um,
quer outro serviço eleitoral, constituem os préstimos mais relevantes que se podem prestar aos
políticos de profissão.
Tais costumes eleitorais da Bruzundanga são fonte de muitos casos cômicos, mas,
por serem quase semelhantes aos que se passam entre nós, abstenho-me de narrá-los.
Entretanto, vou dar-lhes o depoimento de um ingênuo e inteligente eleitor, que descreve a sua
iniciação eleitoral na Bruzundanga e os característicos do exercício dos direitos políticos que a
sua Constituição outorga aos cidadãos.
Trata-se de uma das melhores relações que travei naquele país. Ao tempo em que nos
conhecemos, ele tinha ai os seus vinte e seis anos e já havia publicado algumas memórias
interessantes sobre a paleontologia da Bruzundanga.
Não sei, ao certo, se continuou com brilho a sua estréia brilhante; mas, suspeito que


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não.
A sociedade da Bruzundanga mata os seus talentos, não porque os desdenhe, mas
porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos, como enfeites de sala banal.
O meio inconsciente de que ela se serve para tal fim, é o casamento.
O rapaz começa a fazer ruído e logo todos o cercam, já os de sua camada, já os de
camada superior, se é de extração modesta.
É natural que ele encontre entre tantas damas da roda que o cerca a do seu
pensamento.
Ei-lo casado; a mulher, porém, não pode compreender sábio que não ganhe muito
dinheiro e viva modestamente. Não compreende nem Spinosa, nem Fabre. Se não se faz
católico praticamente, o rapaz, para arranjar bons empregos, faz-se charlatão, acólito de
políticos, já não medita, perde a pertinácia, para as pesquisas originais, publica compilações
rendosas e enche-se de cargos públicos e particulares. É esta a trajetória de todas as
"esperanças" intelectuais da Bruzundanga.
Penso, por isso, que o meu amigo, Halaké Ben Thoreca, como todos os seus iguais, se
banalizou com o casamento e a conseqüente cavação de empregos. Tratemos, porém, da sua
estréia eleitoral, como ele me contou. Vamos ouvi-lo:
"Pelos meus vinte e dous anos, uma manhã, li um artigo eloqüente em que se
lembrava aos bruzundanguenses a necessidade, o dever de inscrever os seus nomes no próximo
alistamento eleitoral. Li e fiquei convencido. Depois de árduos trabalhos, obtive o diploma; e,
nas vésperas da eleição, pus-me a estudar os manifestos dos candidatos ao cargo espinhoso de
deputado. Fiquei perplexo.
Julho Ben Khosta, com mais de vinte anos de prática no ofício de candidato,
prometia, caso fosse eleito, propugnar a disseminação de livros e estampas; e, hoje mesmo,
apesar de homem feito, passa horas e horas a folheá-los. A promessa de Julho Ben Khosta
demoveu-me a empenhar-lhe o meu voto. Não durou muito essa minha resolução. Na mesma
Coluna dos apelidos do jornal, a plataforma do doutor Karaban acenava-me com uma grande
esperança.
Este doutor gastava frases e juramentos, prometendo que faria decretar a aprovação
compulsória dos estudantes reprovados.
Calculem que eu tinha quatro bombas em mecânica e, por aí, poderão imaginar como
fiquei contente com semelhante candidato.
Foi tiro e queda: decidi votar no doutor Karaban. Saí bem cedo, para almoçar
qualquer cousa.
Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. E um moço muito
pobre, está quase na miséria, disse-me o amigo, cheio de família; precisa muito do subsídio.
Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito de votar no indigente
Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para a secção eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal.
Quase a tremer, no alevantado fito de influir nos destinos da Pátria consegui
atravessar por entre duas filas de homens de aspecto feroz, que me olhavam desdenhosamente.
Sentei-me, mostrei o meu título, assinei um livro, depus a cédula na urna e fiquei um
momento cismando diante da esbelteza de um longo arco abatido que, de uma única enjambée
e com uma flecha relativamente diminuta, vencia, com suave elegância, toda a largura do átrio
do palácio vice-real, onde funcionava a secção eleitoral.
Creio que me demorei indecentemente nessa admiração, porque vi as minhas cismas
interrompidas pelo grito enérgico do coronel mesário-presidente:
-- O senhor não se levanta! berrou o homem. Obedecendo, afastei-me corrido de
vergonha e atravessei de novo por entre aquelas mesmas caras ferozes que me tinham visto
passar um pouco antes, no alevantado intuito de influir nos destinos da Pátria.
Aguardei o resultado quieto, a um canto.


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Estava seriamente interessado em impedir que o pobre Kasthriotoh morresse de
fome, com a mulher, filhos, sogra, cunhadas, etc.
Estive assim cerca de duas horas, ao fim das quais alguns daqueles sujeitos horrendos
se aproximaram e, fingindo que o faziam às ocultas, começaram a examinar facas, punhais,
estoques, garruchas, revólveres, que traziam. Via perfeitamente tais armas e descobri que
mesmo para isso é que eles tal cousa faziam.
Fascinaram-me e não pude desviar o olhar. Foi a minha desgraça, Deus dos Céus!
Um deles ergueu o chapéu ao alto da cabeça e fez para mim, encarando-me com horrorosa
catadura:
-- Que está olhando?
-- Nada, não senhor; respondi eu.
-- Vá... Você está aí com parte de siri sem unha... Arreda!
E, sem saber como, vi-me envolvido em um formidável rolo e levei uma porção de
pauladas e quatro facadas.
Mandaram-me para a Santa Casa, onde meu amigo Hanthônio me foi visitar:
-- Que foi isto? perguntou-me.
-- Direitos políticos.
Depois de restabelecido, vim a saber que o Kasthriotoh não tivera um único voto e
arranjara um emprego modesto que lhe dava para fazê-lo viver e mais a família com café e pão
sem manteiga. A ata (eu a pude ver mais tarde) estava um primor de autenticidade, pois tinha
sido falsificada com toda a perfeição por um espanhol que vivia do ofício eleitoral de falsificar
atas de eleições. Eis como foi a minha estréia eleitoral."
Os meus leitores poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a Bruzundanga
nada tem que invejar da nossa cara pátria.

           XV

  Uma consulta médica

NA Bruzundanga, quando lá estive, a fama do doutor Adhil Ben Thaft não cessava
de crescer.
Não havia dia em que os jornais não dessem notícia de mais uma proeza por ele feita,
dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal dizia: "O doutor Adhil, esse maravilhoso
clínico e excelente goal-keeper acaba de receber um honroso convite do Libertad Football
Club, de São José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Ayroca Football
Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que tem esse desafio internacional e o
convite ao nosso patrício representa uma alta homenagem à ciência da nossa terra e ao football
nacional. O celebrado mestre, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade mental
anda agora norteada para a descoberta da composição da Pomada Vienense, específico muito
conhecido para a cura dos calos".
O extraordinário clínico vivia assim mais citado nos jornais que o próprio
Mandachuva e o seu nome era encontrado em todas as secções dos quotidianos. A secção
elegante do O Conservador, logo ao dia seguinte da notícia acima, editada nos sueltos do
Jornal ocupou-se do famoso médico da seguinte maneira:
"O doutor Adhil apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable.
"O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se descreve o
interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu fiquei babado de gozo."
A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em instantes de ser médico
do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse, para ser o médico da capital do país, o
lente sábio, o literato ilegível, à João de Barros, o herói do football, o obrigado papa-banquetes


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diários; o Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o dançador dos
bailes do tom, etc., etc...
O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carnaval; e havia
quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no para as proezas daquelas que os nossos
cinematógrafos são o teatro habitual.
Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e todas elas
tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam:
Estou me tratando com o doutor Adhil.
Moças pobres sacrificavam os orçamentos domésticos para irem à consulta do doutor
Adhil e muitas houve que deixavam de comprar o sapato ou o chapéu da moda para pagar o
exame perfunctório do famoso doutor. De uma eu sei que lá foi com enorme sacrifícios para
curar-se de um defluxo; e curou-se, embora o doutor Adhil não lhe tivesse receitado um
xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou copta, Mutrat Todotata.
Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medicamentos vulgares; ele
era original na botica que empregava.
O seu consultório ficava em uma rua central, ocupando todo um primeiro andar. As
ante-salas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo pela parede quadros e mapas de cousas
da arte de curar.
Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo e era de
admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória o obrigava a ser conviva de
banquetes diários, bem e fartamente regados.
Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso clínico, era
preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com antecedência, às vezes, de dias. O
preço era alto, para evitar que os viciosos do grande clínico não atrapalhassem os que
verdadeiramente necessitavam das luzes do célebre clínico...
Custava a consulta cera de cinqüenta mil-réis, na nossa moeda; mas apesar de tão alto
preço, o escritório da celebridade médica era objeto de uma verdadeira romaria e toda cidade
o tinha como uma espécie de Aparecida médica.
Cator Krat Ben, sócio principal da firma Suza & Cia, estabelecido com armazém de
secos e molhados, lá pelas bandas de um arrabalde afastado da cidade, andava sofrendo de
umas dores no estômago que não o deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido,
rico de couves e nabos, farto de toucinho e abóbora vermelha, nem mesmo saborear, a seu
contento, o caldo que tantas saudades lhe dava de sua aldeia natal.
Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não havia meio de lhe
passar de todo aquela insuportável dorzinha que não lhe permitia comer, com satisfação e
abundância, o cozido e tirava-lhe de qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e
apreciava.
Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus pertences, muito
cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora, olhava-o, namorava-o e ele namorava o
cozido sem ânimo de mastigá-lo, de devorá-lo, de enguli-lo com aquele ardor que a sua
robustez e o seu desejo exigiam.
Krat Ben Suza era solteiro e quase casto.
Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão tangido pela vida e pela
sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado todas as satisfações da vida, o amor
fecundo ou infecundo, o vestuário, os passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só
pensar nos contos de réis que lhe dariam a forra mais tarde, com toda a certeza, do seu quase
ascetismo atual, no balcão de uma venda dos subúrbios.
À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência e gastava sem
pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas batatas, no bacalhau que, depois do
cozido, era o seu prato predileto.


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Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordinariamente. Ele se
privava do amor; - mas que importava se daqui a anos,  ele pagaria para seu gozo, em dinheiro,
em jóias, em carruagens, em casamento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados,
os mais cama que houvesse aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas finas, mas
que importava, se dentro de alguns anos, ele poderia ir aos primeiros teatros daqui ou da
Europa com as mais caras que escolhesse; mas deixar de comer -- isto não! Era preciso que o
corpo estivesse sempre bem nutrido para aquela faina de quatorze ou quinze horas por dia, a
servir ao balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar os desaforos dos fregueses e a ter
cuidado com os calotes.
Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Adhil Ben Thaft tinha tido
permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes canhões do grande couraçado da
esquadra do país -- "Witopá".
Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: "Esse maravilhoso clínico é,
certamente, um exímio artilheiro..."
Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir recordar-se de
que aquele nome já por ele fora lido em qualquer parte. Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele,
não curaria daquela dorzita ali, no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda
adentro, o Sr. Hutekle, empregado na Repartição das Arapucas, funcionário público, homem
sério e pontual no pagamento.
Krat foi-lhe logo perguntando:
-- Senhor Hutekle, o senhor conhece o doutor Adhil Ben Tad?
-- Thaft, emendou o outro.
-- Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Hutekle?
-- Conheço.
-- E bom médico?
-- Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um excelente
orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros...
-- Então é um bom médico, não é meu caro senhor?
-- É. Foi quem salvou a minha mulher. Custou-me caro... Duas consultas...
-- Quanto?
-- Cinqüenta mil-réis cada uma... Some.
O merceeiro guardou a informação, mas não se resolveu imediatamente a ir consultar
o famoso taumturgo urbano. Cinqüenta mil-réis!
E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta...
Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves, rico de toucinho e
abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato, sem poder gozá-lo com o ardor e a
paixão que o seu desejo pedia. Pensou dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir
a opinião do doutor Adhil Ben Thaft sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de onde
em onde.
Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas, pôs ao colete
o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a enorme estrela de brilhante que parece ser o
distintivo dos pequenos e grandes negociantes de todas as terras, e encaminhou-se para a
estação da estrada de ferro. Ei-lo no centro da cidade.
Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do contínuo do consultório,
despedindo-se dos seus cinqüenta mil-réis com a dor de pai que leva um filho ao cemitério.
Ainda se o doutor fosse seu freguês... Mas qual! Aqueles não voltariam mais...
Sentou-se entre 'cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou encarar os
cavalheiros e teve medo das damas... Sentia bem o seu opróbrio, não de ser taverneiro, mas de
só possuir de economias duas miseráveis dezenas de contos... Se tivesse algumas
centenas -- então, sim, ele! -- ele poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna,


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de dinheiro, que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.
Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco se demoravam.
Suza, começou a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão depressa?
Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso... Mas qual!
Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como havia de pagar-lhe
mestres? Cada um enriquece como pode...
Foi, por fim, à presença do doutor. Krat gostou do homem. Tinha um olhar doce, os
cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça, umas mãos alvas, polidas.
Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:
-- Que sente o senhor?
Krat Ben Suza foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de que vinha
sofrendo, há tanto tempo, mal que aparecia e desaparecia mas que não o deixava nunca. O
doutor Adhil Ben Thaft fê-lo tirar o paletó, o colete, auscultou-o bem, examinou-o
demoradamente, tanto de pé, como deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante
recompunha a sua modesta toilette.
Suza sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua meditação.
Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda segurança:
-- O senhor não tem nada.
O humilde vendeiro ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou indignado:
-- Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenho nada! Esta é boa!
Noutra não caio eu!
E saiu furioso do consultório que merecia da cidade uma romaria semelhante à da
milagrosa Lourdes, no doce país de França.


          XVI

A organização do entusiasmo


A curiosa República de que me venho ocupando, é acusada pelos seus filósofos de
não ter costumes originais. É um erro de que participam quase todos os seus naturais -- erro
muito naturalmente explicável, pois mergulhados na sua vida, não possuem pontos de
referência para aquilatar da originalidade das usanças especiais de sua terra.
Os estrangeiros, porém, logo as percebem e contam nos seus livros. Li muitos livros
de viagem na Bruzundanga; e, em nenhum deles vi referências a um costume curioso daquele
país -- "a manifestação".
Chama-se isto ao ato de fazer ressaltar uma dada personalidade com aclamação, o
vivório de muitos outros. Esta é a grande manifestação; há também as pequenas que consistem
em banquetes, saraus, piqueniques, em honra de um dado sujeito.
Convém fazer observar que tanto uma espécie como a outra visam a publicação de
longas notícias nos jornais, de modo a fazer crer ao público que o "manifestado" é mesmo
homem de valor(às vezes o é) e merece dos poderes públicos todo o acatamento e toda a
proteção. E este o fim oculto da "manifestação", grande ou pequena.
Houve lá um rapaz que, graças aos banquetes que lhe eram oferecidos e cujas notícias
saíam em colunas pelos jornais afora, foi de segundo Tenente da Marinha a contra-almirante,
em cinco anos, sem nunca ter comandado uma falua.
Um senhor que conheci, fez-se uma celebridade em astronomia, com auxílio dos
saraus que lhe eram oferecidos pelos amigos. Ele tinha em casa um óculo de bordo, montado
sobre uma tripeça, que, por sua vez, se alcandorava em um mangrulho erguido na sua chácara;


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lia o Flammarion; e isto tudo com mais uns amigos dedicados a lhe oferecer bailes, por ocasião
das suas portentosas descobertas nos céus ignotos, levaram o governo da Bruzundanga a
nomeá-lo diretor de um dos Observatórios Astronômicos da República.
Esses casos são de pequenas homenagens levadas ao cabo por amigos cuja amizade e
vinhos generosos são bastantes para incutir-les entusiasmo, por ocasião de tais manifestações.
Mas, para as grandes, para aquelas feitas a políticos, a capitalistas, a embaixadores;
para aquelas em que se exige multidão, o entusiasmo não era fácil de obter-se assim do pé pra
mão e quando eram realizadas, além desse "defeito" apresentavam alguns outros.
Muitas vezes até os organizadores verificavam que os manifestantes não sabiam bem
o nome do grande homem a festejar. Era uma lástima! Uma vergonha!
Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava -- Viva o doutor Clarindo! -- o
outro exclamava: -- Viva o doutor Carlindo -- e um terceiro expectorava -- Viva o doutor
Arlindo! -- quando o verdadeiro nome do doutor era -- Gracindo!
Para obviar tais inconvenientes, houve alguém que teve a idéia de "canalizar, de
disciplinar" o entusiasmo do povo bruzundanguense, entusiasmo tão necessário às
manifestações que lá há constantemente, e tão indispensáveis são ao fabrico de grandes
homens que dirijam os destinos da grande e formosa República dos Estados Unidos da
Bruzundanga.
Esse alguém, esse homem de gênio, cujo nome infelizmente me escapa agora,
delineou -- a "Guarda do Entusiasmo".
Os fins a que a organização de semelhante corpo manifestante devia obedecer, foram
expostos pelo seu criador, mais ou menos, nas seguintes palavras que, se não são transcritas do
seu manifesto, podem ser tomadas como verdadeiras, pois me gabo de ter muito boa memória.
Ei-las:
"As sucessivas e continuadas festas que Bosomsy (capital da Bruzundanga) tem
dado a vários personagens nacionais e estrangeiros, nestes últimos tempos, sugerem a idéia de
se organizar um corpo de dez mil homens, convenientemente fardados, armados e
disciplinados, encarregados das aclamações, dos vivórios e todas as outras cousas que os
jornais englobam sob o título -- 'Uma Entusiástica Recepção'.
É conveniente que esse corpo tenha uma organização adequada e fique sujeito à
suprema direção de um dos nossos ministérios, por intermédio de uma Diretoria Geral de
Manifestações e Festejos, que deve ser criada oportunamente.
O nosso catita Ministério de Estrangeiros está naturalmente indicado para
superintender os destinos superiores dessa 'Guarda do Entusiasmo', e da diretoria, que fará
parte naturalmente da respectiva Secretaria de Estado.
O aproveitamento da energia entusiástica desses dez mil homens obter-se-á com uma
disciplina inteligente e uma hierarquia conveniente.
Cada soldado, pelo menos, deverá dar dois 'vivas' por minuto; os sargentos e demais
inferiores, nos intervalos dos 'vivas', baterão palmas, muitas palmas, seguidas e nervosas; os
oficiais serão encarregados de soltar foguetes e traques; o general fará, por intermédio do
corneta, os sinais da ordenança, de modo a graduar, a marcar a aclamação delirante.
Ter-se-á assim a canalização, a organização do entusiasmo, e a população de
Bosomsy mediante um pequeno imposto, ficará desembaraçada do ônus manifestante.
O fardamento não custará lá grande cousa. Roupas usadas, velhos chapéus de
funcionários sobrecarregados de família, botas acalcanhadas de empregados de advogados,
emprestarão aos soldados o aspecto mais popular possível. Os oficiais vestirão a sobrecasaca
de sarja das grandes ocasiões; o general e o seu estado-maior virão em carro descoberto.
A 'Guarda do Entusiasmo' não formará, por completo, para toda e qualquer
homenagem.
Um embaixador belíssimo terá direito à metade; um chefe de Estado feio, a toda ela.


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O Governo, como atualmente procede com as bandas de música militares, poderá
alugar fracções da 'Guarda', ou mesmo ela completa, a particulares que pretendam realizar
manifestações honestas e republicanas; e, com isto, obterá uma segura fonte de renda para o
erário nacional.
Tudo indica que nela haja algumas centenas de praças e uma ou duas dúzias de
oficiais conhecedores do entusiasmo inglês, francês, china e abexim para as manifestações a
grandes personagens abexins, chineses, franceses e ingleses.
Toda a corporação congênere deve ser proibida pelo governo, e na 'Guarda' é bom
que o comandante admita algumas dezenas de homens robustos capazes de puxar carros de
heróis ambulantes ou atrizes fascinadoras. Às vezes, temos visto o entusiasmo exigir esse
glorioso serviço...
Se no mercado comum de homens robustos não se encontrarem músculos capazes
para tão nobre atividade, é bom que sejam contratados alguns lutadores de luta romana,
mesmo porque, procurando dar às manifestações um cunho de novidade, pode haver quem
proponha levantar-se a carruagem dos 'manifestados' de sobre o vulgar chão de asfalto".
Estas palavras vinham eivadas de tanta lógica que logo convenceram os governantes
da Bruzundanga da verdade e da necessidade que encerravam; e não demorou um mês que a
"Guarda" fosse organizada, apesar de se terem apresentado como candidatos a lugares dela
quase todos os habitantes de Bosomsy.


         XVII

Ensino prático

NOTANDO os grandes estadistas da Bruzundanga que o comércio do país estava
nas mãos de estrangeiros, resolveram com todo o patriotismo retirar o monopólio da
mercancia, quer por atacado quer a varejo, das mãos de estranhos ao país.
Os economistas tinham mesmo verificado que a exportação de dinheiro que os
grandes e pequenos negociantes faziam para os seus países de origem, sobrepujava à do café;
e, longe do comércio da nação enriquecê-la, empobrecia-a mais até do que a da venda aos
estrangeiros da famosa rubiácea que constituía a sua riqueza.
Foi então que para sanar tão lastimável estado de cousas, para nacionalizar o
comércio, alguns homens de boa  vontade tomaram a iniciativa de fundar, em Bosomsy, um
alto estabelecimento de instrução comercial, nos moldes alemães e americanos, isto é,
inteiramente prático. Vou em rápidas palavras dizer-lhes como eles o projetaram e para tal,
nada mais farei do que transcrever para aqui as partes essenciais do programa que estavam
distribuindo quando saí da grande República e as conversas que com eles tive.
Era intuito dos fundadores da Academia Comercial banir do seu ensino todo o
pedantismo, todo o luxo teórico; fazê-lo prático, moderno, à yankee. De tal modo o queriam
assim que ao fim de um curso de pequena duração, o aluno pudesse, sem dificuldades e
hesitações, colocar-se à testa de uma loja e geri-la com o desembaraço e a segurança de velho
negociante com vinte anos de prática.
Além de negociantes propriamente, a Academia visava sobretudo formar magníficos
caixeiros, magnéticos, com virtudes de ímã, capazes de solicitar, de empolgar, de atrair a
freguesia.
Para a boa Compreensão dos leitores que mal conhecem certamente os usos daquele
país e os aspectos da sua capital, os exemplos locais de hábitos de comércio, que me foram
fornecidos pelos fundadores da Academia, serão por mim dados aqui com similares cariocas.
Continuemos.


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Os cursos da Academia Comercial da Bruzundanga não ficarão instalados em um
enorme edifício, grandioso e inútil para os fins a que se  destina, e sobremodo favorável à
criação de um espírito de escola, de camaradagem, indigno da luta comercial. As aulas
funcionarão em pequenas casas, situadas nas regiões da capital em que atualmente mais
florescem os gêneros de comércio que os alunos pretenderem aprender.
Conversando com um dos iniciadores, tive ocasião de receber a confidência da
metodologia própria ao estabelecimento. Lembro ainda que os exemplos são transferidos das
coisas de lá para as daqui.
Assim, em uma espécie de Rua da Alfândega de Bosomsy, entre as equivalentes de
lá às nossas do Núncio e São Jorge, será estabelecido o curso de venda ambulante de fósforos.
A aula ficará a cargo de um velho "turco" afeito ao negócio, cujas calças curtas,
denticuladas nas extremidades, beijam a fugir os canos das botinas muito grandes e deixam
ver, de quando em quando, dous bons pedaços de suas canelas felpudas.
Possuidor de voz roufenha e lenta mas penetrante e persuasiva, toda a manhã, o
venerável catedrático, no centro de jovens discípulos, marcando o ritmo com uma varinha
auxiliar, fá-los-á repetir uma, duas, mil vezes: -- "fofo barato! fofo barato! duas caixa um
tostão!"
Este curso durará seis meses, dando direito a um atestado de freqüência.
A aula de jornalismo (venda ambulante das gazetas) ia ser instalada em frente do
popularíssimo quotidiano de lá -- Bosomsy-Gazetto; e tencionavam os fundadores da
Academia realizá-lo de madrugada, admitindo um número restricto de alunos, sendo-lhe
exigida a apresentação de atestados valiosos de que sabiam tomar bondes em movimento.
Os cocheiros de bondes (ainda eram de tracção animal), os respectivos recebedores e
os baleiros eram pessoas idôneas para passar o atestado.
    A aula de "frege" cuja sede seria uma espécie de Largo da Sé de lá, ficará dividida em
duas partes: cantata da lista e encomenda de pratos à cozinha.
Os discípulos serão obrigados a repetir em coro e na toada de uso, todo um
pantagruélico e imaginário menu: "seca desfiada, caldo à portuguesa, arroz com repolho,
feijoada Camões, tripas à portuense, bifes à Itália", etc., etc...
O lente, um exemplar de homem assim como um gordo proprietário de casa de pasto
da Rua da Misericórdia, sentado a uma mesinha, coberta com uma toalha eloqüentemente
imunda, dirá subitamente a um dos alunos:
-- Traga-me um arroz e um bacalhau, "Seu" Manuel.
O discípulo correrá até ao fundo da sala e, com a voz clássica do ofício, gritará para a
fantástica cozinha:
-- Salta um "chim" e um bacalhau.
O tirocínio acadêmico durará um ano, conferindo o título de bacharel em lista
cantada e dando direito ao uso de um anel simbólico.
Afora estes, haverá o curso de barbeiro, de botequim, de compra de ferro velho, e
outros. O mais difícil, porém, há de ser o de armarinho, cujas aulas funcionarão em uma rua
principal da cidade, em uma rua como a nossa do Ouvidor, e terão lugar em grandes salas,
guarnecidas de assentos em anfiteatro, como nas grandes escolas superiores.
Alguma dama facilmente adaptável figurará como freguesa atendida, pelo professor,
que perpetrará os lânguidos olhares de uso nesse tráfico, ajudando-a na escolha das fazendas,
cortando o padrão com elegância e dizendo as frases amáveis, espirituosas e adequadas a tão
alto comércio: "em si, toda a fazenda vai bem; quem quer cassa, caça", etc., etc.
Durará dous anos este curso e conferirá, ao aluno que o terminar, o grau de doutor
em artigos de armarinho e boas maneiras.
Semanalmente, haverá duas aulas gerais, cuja freqüência será obrigatória aos alunos
de todas as aulas; a de dança e a de coisas de carnaval.


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Eis aí como, em linhas gerais, iria ser, conforme me disseram, a Academia Comercial
da Bruzundanga.


           XVIII

A religião


SEGUNDO afirmam os compêndios de geografia do país, tanto os nacionais como
os estrangeiros, a religião dominante é a católica apostólica romana; entretanto, é de admirar
que, sendo assim, a sua população, atualmente já considerável, não seja capaz de fornecer os
sacerdotes, quer regulares, quer seculares, exigidos pelas necessidades do seu culto.
Há muitas igrejas e muitos conventos de frades e monjas que, em geral, são
estrangeiros.
Não há mais que dizer sobre tão relevante assunto.

         XIX

      Q. E. D.


ANIMADO pela alta e dignificadora curiosidade de estudar o mecanismo
administrativo da República da Bruzundanga, voltei, em certa ocasião, as minhas vistas para o
exame das funções, de secretário de Ministro, cujas responsabilidades sempre me disseram ser
grandes e que, de longe, parece ser de importância transcendente. Dou aqui o resultado parcial
dos meus estudos, observando-lhe o serviço sobre-humano, e por demais intelectual, nas
passagens mais características do exercício do seu cargo.
O secretário, como verão, é um funcionário indispensável ao complexo
funcionamento do aparelho governamental da Bruzundanga. Imaginem só o seguinte caso que
prova a contento do mais exigente o que afirmo.
Um dia, ao gabinete de um tal Ministro da Bruzundanga, foi ter um industrial,
pedindo-lhe que fosse visitar a sua fábrica que estava inaugurando uma nova indústria no país.
Ficava longe, cinco léguas de Bosomsy; e, para se ir ter lá, era preciso tomar a barca
muito cedo, muito mesmo, às seis horas, ou antes, da manhã.
O ministro tinha já concordado em ir, quando, da sua mesa respeitosamente pequena,
o secretário ergueu-se e lembrou:
-- Vossa Excelência não pode apanhar o orvalho da manhã.
-- Homem, é verdade! fez o ministro.
Se não fosse a memória pronta do secretário e a sua dedicação à causa pública
quantas ocorrências graves não iriam perturbar a marcha das cousas governamentais, se o
ministro, com a imprudência que ia fazer, apanhasse um resfriado qualquer? Quantas? Um
defluxo, papéis atrasados, terremotos, pestes, inundações, etc.
Graças a Deus, porém, a gente da Bruzundanga inventou o ofício de secretário de
Ministro que é capaz, a tempo, de evitar tantas desgraças...
Continuemos a demonstração. Creio que as aranhas, tanto as daqui como as da
Bruzundanga, não têm em grande conta o cargo de Ministro de Estado. É de lastimar que
insetos de tanto talento desconheçam a importância de tão sublimado bímano; entretanto, não
está nos poderes humanos obrigá-las a respeitar o que respeitamos, senão devíamos fazê-lo, ara
que tais aracnídeos não procedessem como um deles procedeu irreverentemente com um


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ministro da Bruzundanga.
Caso foi que uma aranha comum, totalmente despida de qualquer notoriedade entre
as aranhas, completamente sem destaque entre as suas iguais, teve o desaforo de pôr-se a tecer
a sua teia no próprio teto do gabinete de um Ministro da Bruzundanga e bem por cima de sua
majestosa cadeira.
Houve, quando o trabalho ia adiantado, não sei que espécie de cataclismo, próprio ao
universo das aranhas; e, tão forte foi ele, que um bom pedaço de labor do engenhoso
articulado veio a cair em cima da sobrecasaca da poderosa autoridade da República da
Bruzundanga.
Apesar do seu imenso poder e da sua forte visão de seguro guia de povos, o grave
Ministro não deu conta do desrespeito -- involuntário, é verdade, mas desrespeito -- de que
acabava de ser objeto, por parte de uma miserável aranha, hedionda e minúscula.
Mas, não dando pelo fato, tratou de tomar o coupé para ir ao despacho coletivo,
levando tão estranha condecoração(?) nas costas, quando o secretário, chapéu na mão, todo
mesuroso, pedindo licença, tirou a prova da indignidade do bichinho das vestes do seu amo. E
ele já entrava no carro!...
Suponhamos que tal não se tivesse dado, isto é, que o ministro entrasse para o alto
sínodo cuja presidência competia ao Mandachuva, com aquele evidente atestado de
relaxamento.
Que pensaria o Supremo da Bruzundanga? Naturalmente, penso eu, que os negócios
da pasta que lhe havia confiado, mereciam-lhe o mesmo cuidado que a sua sobrecasaca.
Ah!, Os secretários de Ministro! Como são úteis!
Além desses préstimos tão relevantes de que eles não se poupam, ainda por cima são
às vezes mártires. Duvidam? Pois vou provar-lhes como é verdade.
O deputado Fur-hi-Bhundo tinha um pedido a outro Ministro da Bruzundanga. Este
por qualquer motivo não lhe pôde servir e atendeu a outro "pistolão". Sabedor da coisa,
Fur-hi-Bhundo voou que nem uma frecha para a respectiva Secretaria de Estado.
Arrebatadamente entra pelo gabinete ministerial adentro e, dando com o secretário,
pois o Ministro não estava, desanda no dedicado serventuário uma feroz descompostura em
que o chama de lacaio, de capacho, de toma-larguras, de lavador de tinteiros, etc., etc.
Entretanto, o secretário não merecia tão feroz objurgatória, pois, em geral, esses
abnegados serventuários da Bruzundanga são pessoas ternas, meigas, de bom coração,
especialmente com os filhos dos Ministros.
Em dias de festas, das festas familiares dos Ministros, é de ver como tratam os
pimpolhos ministeriais; é de ver como suportam resignadamente o peso de um nas costas, o de
um outro nos joelhos, além do incômodo de um terceiro que lhe passou um barbante na boca e
simula guiá-lo como cavalo de tílburi.
Não vão para a copa; mas -- coitados! -- aturam coisas muito piores.
Disse, no começo desta "nota", que o secretário de Ministro era indispensável ao
complexo funcionamento do aparelho governamental da Bruzundanga.
Pelos fatos que expus, estou certo de que provei esta asserção; e posso concluir com
orgulho, com aquele orgulho de um jovem estudante, quando acaba de demonstrar com
segurança um teorema de geometria e dizer, como ele ou como o velho compêndio de
Euclides, que demonstrei o que era preciso demonstrar -- quod erat demonstradum, Q.  E. D.
como abreviam os compêndios.


          XX

Uma província


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AS províncias da República da Bruzundanga, que são dezoito ou vinte, gozam, de
acordo com a Carta Constitucional daquele país, da mais ampla autonomia, até ao ponto de
serem, sob certos aspectos, quase como países independentes.
Seria enfastiar o leitor querer dar detalhes das prerrogativas que usufruem as
províncias. Com isto, faria obra de estudioso de cousas legislativas e não de viajante curioso
que quer transmitir aos seus concidadãos detalhes de costumes, que mais o feriram em terras
estranhas. Faço trabalho de touriste superficial e não de erudito que não sou.
Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por exemplar, é a
província do Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem logo não digam: vá ver Kaphet,
aquilo sim! Aquilo é a jóia da Bruzundanga.
A mim -- é bem de ver-se -- os magnatas de lá não me fizeram semelhante convite;
mas à tal província fui por minha própria iniciativa e sem os tropeços de cicerones oficiais que
me impedissem de ver e examinar tudo com a máxima liberdade.
Pela leitura, sabia que a gente rica da província se tem na conta de aristocratas, de
nobres e organizam a sua genealogia de modo que as suas casas tomem origem em certos
antropófagos, como eram os primitivos habitantes da província, dos quais todos eles querem
descender. Singular nobreza!
Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas, em lá chegando,
observei que podia levar mais longe. O traço característico da população da província do
Kaphet, da República da Bruzundanga, é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os
mais belos; eles são os mais inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores
instituições, etc., etc.
E isto de tal forma está apegado ao espírito daquela gente toda, que não há modesto
mestre-escola que não se julgue um Diderot ou um Aristóteles, e mais do que isso, pois,
deixando de parte a teoria, se julgam também capazes de exercer qualquer profissão deste
mundo; e, se se fala  em ser oficial de marinha, eles se dizem capazes de sê-lo do pé pra mão,
e assim de artilharia, de cavalaria. Imaginam-se prontos para serem astrônomos, pintores,
químicos, domadores de feras, pescadores de pérolas, remadores de canoas, niveladores, o
diabo!
Tudo isto porque a província faz questão de que conste nos panegíricos dela que o
seu ensino é uma maravilha; as suas escolas normais, cousa nunca vista; e os seus professores
sem segundos no mundo.
Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província, a opinião de que a arte,
sobretudo a de escrever, só se deve ocupar com a gente rica e chic, que os humildes, os
médios, os desgraçados, os feios, os infelizes não merecem atenção do artista e tratar deles
degrada a arte. De algum modo, tais estetas obedecem àquela regra da poética clássica,
quando exigia, para personagens da tragédia, a condição de pessoas reais e principais.
Mas, como eles não têm dessa gente lá; não têm nem Orestes, nem Ájax, nem
Ismênia, nem Antígone, os Sófocles da província se contentam com algumas gordas
fazendeiras ricas e saltitantes filhas de abastados negociantes ou com uns bacharéis
enfadonhos, quando não tratam de solertes atravessadores de café.
Um dos traços mais evidentes da vaidade deles, não está só no que acabo de contar.
Há manifestações mais ingênuas.
Quando lá estive, deu-me vontade de ir ver a pinacoteca e a gliptoteca locais. Já
havia visto as da capital da Bruzundanga. Eram modestas, possuindo um ou outro quadro ou
mármore de autor de grande celebridade. Eram modestas, mas probas e honestas.
Tinham-me dito cousas portentosas da galeria de quadros e estátuas da capital da
província do Kaphet. Fui até lá, como quem fosse para a de Munich ou para o Louvre. Adquiri


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um catálogo e logo topei com esta indicação: "La Gioconda", quadro de Leonardo da Vinci.
Fiquei admirado, assombrado com aquelas palavras do catálogo. Teria a França
vendido a célebre criação do mestre florentino? Poderia tanto o dinheiro do café? Corri à sala
indicada e dei --  sabem com quê? Com a reprodução fotográfica do célebre retrato a óleo de
Mona Lisa del Gioconda, uma reprodução da Casa Braün!
Não quis ir adiante para ver a "Ronda Noturna", de Rembrandt, um Corot, um
Watteau, nem tampouco na secção de escultura, a "Vitória de Samotrácia" e a "La Pietá", de
Miguel Ângelo.
Eles, os da província, falam muito em arte, na cultura artística daquele rincão da
Bruzundanga; mas o certo é que não lhe vi nenhuma manifestação palpável. Vão ter uma
prova.
Durante os dias em que lá estive apuravam-se as provas do concurso aberto para a
escolha das armas da capital. Vi os desenhos. Que cousas hediondas! Quanta insuficiência
artística! Não havia talvez dous desenhos, já não direi de acordo com as regras da heráldica,
mas do gosto. Eram verdadeiros rótulos de cerveja marca "barbante".
Não falo de música, porque pouco observei sobre tal arte; mas, no que toca à
arquitetura, posso dizer, com convicção, que lá não há um arquiteto de talento. Devia citar-lhes
o nome aqui; mas, ao se tratar de tal gente, podia parecer que queria arranjar dinheiro. Não
preciso.
Outra pretensão curiosa da gente daquela província da Bruzundanga é afirmar que a
sua casquilha capital é uma cidade européia. Há tantos tipos de cidades européias que tenho
vontade de perguntar se ela é do tipo Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone, do tipo
Madrid, do tipo Florença, do tipo Estocolmo -- de que tipo será afinal? Certamente do de
Paris. Ainda bem, que ela não quer ser ela mesma.
O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas; o seu pior mal
provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem dinheiro nada vale, nada pode
fazer, nada pode aspirar com independência. Não há metabolia de classes. A inteligência pobre
que se quer fazer, tem que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções
incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus protetores. A
brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.
A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crítica aos
dominantes. Espanca, encarcera, deporta sem lei hábil, atemorizando todos e impedindo que
surjam espíritos autônomos. É o arbítrio; é a velha Rússia.
E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie de República de
Veneza, com a sua nobreza de traficantes a dominá-la, mas sem sentimento das altas cousas de
espírito.
Ninguém pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a província, em cujo
proveito, de quando em quando, se fazem umas curiosas valorizações dos seus produtos. Ai
daquele que o fizer!
A mentalidade desses oligarcas é tal, que não trepidaram em fazer votar uma lei
colonial, uma verdadeira disposição de Carta Régia, para, diziam eles, aumentar o preço da
"medida" (cerca de quinze quilos) do café. O seu aparelho governativo decretou, em certa
ocasião, a proibição do plantio de mais um pé de café que fosse, da data daquela lei em diante.
A lei, ao que parece, caiu em desuso. Não era de esperar outra coisa...
Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para os brasileiros
julgarem o que é uma província modelo na República dos Estados Unidos da Bruzundanga.

           XXI



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           Pancome, as suas idéias e o amanuense


ESTE caso do amanuense e alguns outros que aqui vão ser contados na maioria,
aconteceram na alta administração da Bruzundanga, quando foi Ministro de Estrangeiros o
Visconde de Pancome.
Mas, dentre todos os seus atos, aquele que fez propriamente escola, foi a nomeação
de um amanuense para a sua secretaria; e os demais, quer quando foi ministro, quer antes, se
entrelaçam tanto com a célebre nomeação, esclarecem de tal modo o seu espírito de governo e
a sua capacidade de estadista, que tendo de narrar aquele provimento de um modesto cargo,
me vejo obrigado a relatar muitos outros casos de natureza quiçá diversa. Entro na matéria.
Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher um simples
cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria.
Em lei, o caminho estava estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se um dos
habilitados; mas Pancome nada tinha que ver com as leis, embora fosse ministro e, como tal,
encarregado de aplicá-las bem fielmente e respeitá-las cegamente.
A sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedecê-las a todo o instante.
Ninguém lhe tomava contas por isso e ele fazia do seu ministério coisa própria e sua.
Nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando dinheiro por todos
os toma-larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam panegíricos hiperbólicos.
Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzundanguenses de
origem javanesa -- cousa que equivale aqui aos nossos mulatos.
Constituíam o seu pesadelo, o seu desgosto e não julgava os indivíduos dessas duas
espécies apresentáveis aos estrangeiros, constituindo eles a vergonha da Bruzundanga, no seu
secreto entender.
Esta preocupação, nele, chegava às raias da obsessão, pois o seu espírito de herói da
Bruzundanga não se orientava, no que toca à sua atividade governamental, pelos aspectos
sociais e tradicionais do país, não se preocupava em descobrir-lhe o seu destino na civilização
por este ou aquele tênue indício a fim de com mais proveito, auxiliar a marcha de sua pátria
pelos anos em fora. Ao contrário: secretamente revoltava-se contra o determinismo de sua
história, condicionado pela sua situação geográfica, pelo seu povoamento, pelos seus climas,
pelos seus rios, pelos seus acidentes físicos, pela constituição do seu solo, etc.; e desejava
muito infantilmente fabricar, no palácio do seu ministério, uma Bruzundanga peralvilha e
casquilha, gênero boulevard, sem os javaneses, que incomodavam tanto os estrangeiros e
provocavam os remoques dos caricaturistas da República das Planícies, limítrofe, e tida como
rival da Bruzundanga.
Enfim, ele não era ministro, para felicitar os seus concidadãos, para corrigir-lhe os
defeitos em medidas adequadas para acentuar as suas qualidades, para aperfeiçoá-las, para
encaminhar melhor a evolução do país, acelerando-a como pudesse; o visconde era ministro
para evitar aos estranhos, aos touristes, contratempos e maus encontros com javaneses. Ele
chegou até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabo destes últimos...
Mas como ia dizendo, Pancome, no seu ministério, fazia tudo o que entendia; mas,
mesmo assim, não se atrevia a romper abertamente com aquela história de concursos, com os
quais desde muito andava escarmentado, devido a razão que lhes hei de contar mais tarde.
Era, afinal, uma pequena hesitação no espírito de um homem que tinha tido até ali
tão audazes atrevimentos para desrespeitar todas as leis, todos os regulamentos e todas as
praxes administrativas.
É bastante dizer que, não contente em residir no próprio edifício do Ministério sem
autorização legal, Pancome não trepidou em estabelecer na chácara do mesmo um redondel de
touradas, um campo de football, um café-concerto, para obsequiar respectivamente os


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diplomatas espanhóis, ingleses e suecos.
Como já tive ocasião de dizer, tal ministro só trabalhava para impressionar os
estrangeiros, e, apesar de não ter feito obra alguma de alcance social para a Bruzundanga, o
povo o adorava porque o julgava admirado pelos países estranhos e seus sábios.
Se alguém se lembrava de censurar esse seu desavergonhado modo e governar, logo
os jornalistas habituados a canonizações simoníacas e parlamentares que gostavam do
pot-de-vin, gritavam: que tipo mesquinho! Criticar esse patrimônio nacional que é o Visconde
de Pancome, por causa de ninharias! Ingrato!
Diante dessa desculpa de patrimônio nacional, toda a gente se calava e o país ia
engolindo as afrontas que o seu ministro fazia às suas leis e aos seus regulamentos.
De onde -- hão de perguntar -- lhe tinha vindo tal prestígio? fácil de explicar.
Ele veio, no fim, da tal história das condecorações que já lhes contei -- fato que
encheu de júbilo todo o povo daquela pátria, porque a República das Planícies que Pancome
trabalhava para sempre andar às turras com a Bruzundanga, não as tinha obtido, apesar de
disputá-las. Antes disso, porém, ele já tinha um ascendente bem forte, devido a uma grande
proeza. Pancome tinha subido ao cume do Tiaya, o modesto Himalaia da corografia da
República da Bruzundanga, dois mil e novecentos a três mil metros de altitude. Vou-lhes
contar como a cousa foi.
Um dia, estando Pancome nas proximidades dessa montanha, anunciou a todos os
quadrantes que ia escalá-la.
Os bruzundanguenses do lugar sorriram diante do projeto daquele homem gordo e
pesado. Aquilo (o monte) diziam, era muito alto e ele não teria fôlego para chegar ao cume;
havia fatalmente de rolar pelas encostas abaixo, antes de atingir o meio da jornada.
O visconde, porém, não se temorizou, subiu e dizem que foi ao pico da montanha.
A vista de semelhante proeza, os naturais do país, logo que a nova se espalhou,
exultaram, pois andavam de há muito necessitados de um herói. Não contentes da notícia da
façanha ter corrido toda a nação, telegrafaram para as cinco partes do mundo exaltando a
ousadia ainda mais.
E verdade que, antes de Pancome, muitos outros, entre os quais o Kaetano
Phulgêncio, um roceiro do local, tinham subido o Tiaya várias vezes, em aventuras de caça, e
até esse Phulgêncio serviu-lhe de guia; mas isto não foi lembrado e Pancome passou por ser o
primeiro a fazê-lo.
De tal proeza e das consequências que dela advieram, nasceu a fama do visconde, a
sua consideração de herói nacional, tanto mais que os clubes alpinos da Europa tomaram nota
do ilustre feito e, graças à diplomacia da Bruzundanga, o retrato e a biografia do portentoso
varão foram estampados nas revistas especiais de sport.
Durante um mês, os jornais da capital do interessante país que ora nos ocupa, não
deixaram um só dia de publicar telegramas do seguinte teor ou parecidos: "La Vie au Grand
Air, importante revista francesa, publica o retrato do Visconde de Pancome, o destemido herói
do Tiaya, e os seus traços biográficos".
Um outro quotidiano dizia: "Army, Navy and Sport, célebre magazine inglês,
estampando o retrato do Visconde de Pancome, essa legítima glória do nosso país, afirma que
a sua ascensão ao cume do Tiaya é sem precedentes na história do alpinismo"; e assim
transcreviam ou noticiavam referências de outras revistas alemãs, italianas, sírias, gregas,
tcheques, etc.
Recebendo esse impulso do estrangeiro, os jornais da Bruzundanga, os mais lidos e
os mais obscuros, e as revistas de toda a natureza redobraram a sua habitual gritaria em casos
tais. Enchiam-se de artigos louvando o herói que fizera a Bruzundanga conhecida na Europa,
afirmação essa em que logo o povo do país acreditou piamente; mostraram também com
períodos bem caídos, como o fato tinha um alcance excepcional e proclamaram o homem o


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primeiro de todos os bruzudanguenses.
A seguir-se aos jornais, vieram os poetas louvaminheiros com as suas odes, poemas,
sonetos, cantatas, erguendo às nuvens o visconde e a sua  extraordinária proeza. Eles sacavam
com atilamento sobre o futuro, porquanto, quando Pancome veio a ser ministro, os encheu de
propinas e fartos jantares.
É ocasião de notar aqui uma singular feição dos poetas da Bruzundanga.
Todos os vates de lá, em geral, são incapazes de comparação, de critica e impróprios
para a menor reflexão mais detida, e, com a sua mentalidade de parvenus aperuados, estão
sempre dispostos a bajular os titulares ou os apatacados burgueses, para terem o prazer de ver
mais perto as suas mulheres e filhas, pois se persuadiram que são elas feitas de outra substância
diferente daquela que forma as cozinheiras e os pequenos burgueses.
Tão tolos são eles que não se lembram que tais marqueses e mais barões da sua terra
são de origem tão humilde e tão vexatória em face do critério nobiliárquico que os próprios
portadores de tais títulos fidalgos ocultam o mais que podem a sua ascendência. Mas é preciso
voltar ao nosso Visconde de Pancome.
A custa de todas essas vociferações, o povo não permitia que ninguém lhe tocasse na
reputação e ficou convencido de que o homem era mesmo um demiurgo e consubstanciou a
sua admiração ingênua nesta fórmula simples: "é um bruzundanguense conhecido na Europa".
Porque a mania daquele povo é querer à força que o seu país e os seus homens sejam
conhecidos no estrangeiro, embora ele não possua uma atividade, de qualquer natureza, nem
mesmo um homem notável que possa atrair a curiosidade dos estranhos sobre a região e as suas
coisas.
De modo que, qualquer referência a ele ou a um natural dele, se ela é favorável e
elogiosa, logo alvorota o povo da Bruzundanga, que fica crente de que em todas as aldeias de
países afastados não se fala em outra cousa senão na sua nação.
Quando, porém, se diz lá fora que, na sua população, há milhões de javaneses e
mestiços deles (o que é verdade), imediatamente todos se aborrecem, zangam-se, lançando
tristemente o labéu de vergonha sobre os seus compatriotas de tal extração.
É uma tolice deles (aí entram também muitos javaneses), pois tanto os de origem
javanesa como os de outras raízes raciais têm dado inteligências e atividades que se equivalem.
Não há este de tal procedência que sobrepuje aquele de outra procedência, nem mesmo na
quantidade; os de uma origem não sobrelevam os de outra, isto dura há três séculos e poucos;
e, pode-se dizer, que é uma prova perfeitamente experimental, obtida no laboratório da
história. Tão bom como tão bom...
Com tal mania, não é de admirar que, de uma hora para outra, Pancome ficasse sendo
o ídolo da Bruzundanga; e o governo, para premiá-lo e satisfazer a opinião pública, apressou-se
em nomeá-lo embaixador junto ao governo de uma potência européia, e foi (lembro-me agora)
quando embaixador, que obteve as condecorações a que aludi em capítulo anterior.
E de tal forma a população do país se convenceu da imensa inteligência, das geniais
vistas do visconde, de que ele era admirado no mundo inteiro, e de que, também todos os
sábios do Universo respeitavam-no religiosamente, que ao chegar ele da estranja para assumir a
pasta do Exterior, toda ela correu em massa para a rua, quase lhe desatrelam, os mais
entusiastas, os cavalos do carro, aclamando-o freneticamente pelas ruas em que passou, como
se recebesse a cidade Júlio César vitorioso ou Descartes, caso a natureza da glória deste se
compadecesse com admirações irrefletidas.
Além daquelas medidas que citei em um dos capítulos passados, logo no início do
seu ministério, tomou o visconde estas primordiais; usar papel de linho nos ofícios, estabelecer
uma cozinha na sua secretaria e baixar uma portaria, determinando que os seus funcionários
engraxassem as botas todos os dias. Na cozinha, porém, é que estava o principal das suas
reformas, pois era o seu fraco a mesa farta, atulhada.

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