quarta-feira, 11 de junho de 2025

A socióloga francesa que se infiltrou nas casas dos ultrarricos para expor como funciona a servidão moderna

A socióloga francesa que se infiltrou nas casas dos ultrarricos para expor como funciona a servidão moderna


Alizée Delpierre frequentou os luxuosos salões das residências dos multimilionários franceses para investigar a complexa relação de codependência que eles mantêm com seus criados.

O que acontece entre os ricos e seus empregados a portas fechadas?

Essa é uma pergunta que há séculos seduz escritores e cineastas. A socióloga francesa Alizée Delpierre decidiu abordá-la de forma científica.

Ela queria entender os sofisticados sistemas de servidão que as pessoas mais ricas do mundo constroem dentro de suas casas para satisfazer suas necessidades e seus desejos excêntricos.

Alizée percorreu apartamentos luxuosos no centro de Paris e belas mansões na Riviera Francesa.

Ouviu uma mulher dizer à sua empregada: "Me pergunto se algum dia ela vai entender que eu quero dois cubos de gelo, não três."



Alizée Delpierre, autora de Servir a los ricos — Foto: Editora Península


Uma governanta contou que seu patrão tomava café da manhã com dois ovos e meio. Ela soube de casas onde a distância entre os talheres na mesa deve ser medida em milímetros.

E foi além: tornou-se ela mesma babá e assistente de cozinha meio período para uma mulher da aristocracia parisiense. Chegou até a morar por alguns meses com a família na China como au pair (cuidadora de crianças).

O resultado de anos de pesquisa sobre o tema é o livro Servir a los Ricos (Servir aos Ricos, sem edição em português), recentemente publicado em espanhol, no qual ela mergulha nas relações de codependência que ocorrem nas luxuosas salas das residências francesas — mas que, com algumas variações, também se repetem em outras partes do mundo.

Ao penetrar profundamente na intimidade dos ricos, a socióloga revela como o trabalho doméstico se relaciona com questões do mundo globalizado, como imigração e desigualdade.

E levanta perguntas sobre dinheiro e poder que são relevantes para pessoas de todas as classes sociais.

Delpierre é pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. A seguir, uma versão editada de sua conversa com a BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.


BBC News Mundo - Seu livro gerou muito interesse porque parte da sua pesquisa consistiu em se infiltrar na casa de milionários. O que essa metodologia permitiu a você?


Alizée Delpierre - Bom, me infiltrar não foi a única coisa que fiz.

Primeiro, fiz muitas entrevistas com pessoas ricas e com empregados e empregadas. E, com essas entrevistas, consegui muitas informações sobre a relação entre patrões e empregados.

Mas eu também queria estudar a relação entre os próprios empregados, e, para isso, as entrevistas não estavam servindo.

Ao me tornar uma empregada nas casas dos ricos, pude ver que entre os empregados existem hierarquias, relações de amizade, de amor, mas também de competição.

São pessoas que podem ganhar muito servindo aos ricos, mas que precisam mostrar aos patrões que trabalham muito bem, que são dóceis, que obedecem a todas as ordens, etc. Às vezes, isso gera uma competição.


BBC News Mundo - No livro, você descreve a relação entre patrões e empregados como uma "exploração dourada". A que você se refere com isso?


Delpierre - "Exploração dourada" é um oximoro [união de palavras de sentido apostos] que me ajuda a explicar que os empregados estão em uma situação de exploração porque trabalham de forma ilimitada, mas, ao mesmo tempo em que trabalham muito, também ganham muito.

Eu mesma vi como, apesar de eu ser uma empregada apenas meio período, os patrões me pediam para trabalhar muito mais do que havíamos combinado.

Então, os empregados que trabalham todos os dias nas casas dos ricos, que dormem lá — porque essa é uma condição para trabalhar para os ricos —, trabalham o dia inteiro e também à noite.

Por exemplo, as mulheres que cuidam das crianças quase não dormem. Elas precisam dormir nas camas ou nos quartos das crianças, então não dormem bem à noite. E durante o dia têm que cozinhar para as crianças, sair com elas, etc.

É um tipo de exploração, porque não têm tempo para fazer outra coisa além de trabalhar.

A parte "dourada" é que ganham muito: 3 mil, 4 mil, 5 mil, até 12 mil euros [entre R$ 19 mil e R$ 76 mil - o salário mínimo mensal na França é de 1,8 mil euros, ou R$ 11,4 mil].

Se compararmos esses empregados com o restante da população que trabalha, eles fazem parte dos ricos.

Também recebem muitos presentes muito caros: celular, roupas, comida, etc.

Fiquei muito surpresa nas casas dos ricos ao ver que os presentes para os empregados podiam ser roupas da Chanel, uma bolsa de uma marca que eu nem conhecia porque é só para os ultrarricos, etc.

Então, esses empregados têm muito dinheiro, ganham presentes caríssimos, podem comer a comida dos ricos, dormem em casas muito grandes e belas. Têm muitas condições materiais que são muito boas.

A exploração dourada é um sistema que funciona assim: quanto mais dinheiro e presentes os ricos dão aos seus empregados, mais legitimados se sentem para exigir que eles trabalhem ainda mais.

Cria-se, então, uma espécie de dívida. Os empregados sentem que precisam trabalhar para compensar tudo o que receberam — o salário alto, os presentes, os privilégios.


BBC Mundo - É evidente que, nesse tipo de trabalho, o profissional se mistura com o pessoal. Que efeito isso tem? Como você descreveria essa relação emocional entre ricos e empregados?


Delpierre - Quando você mora com uma pessoa — seja quem for —, inevitavelmente acaba criando uma relação que não é apenas de trabalho.

Há emoções, afeto, até amor: amor pelos patrões, amor pelas crianças dos patrões. É uma relação quase familiar.

Dizer que os empregados "fazem parte da família" não pode ser entendido apenas como uma retórica hipócrita. As emoções são reais.

E, justamente por isso — porque são considerados parte da família — os patrões se sentem no direito de pedir mais do que pediriam a qualquer outro tipo de trabalhador.

A sociologia que estuda as relações dentro da família já mostrou que é justamente nesse espaço que surgem formas muito marcadas de dominação e até de violência.

Isso acontece porque não há ninguém de fora observando o que se passa na intimidade do lar.

Como os empregados são tratados como parte da família, os ricos se sentem à vontade para usá-los como quiserem. Mas, ao mesmo tempo, também se preocupam com eles — com a saúde deles e de seus familiares, por exemplo.

Encontrei muitos empregados que viviam nas casas dos patrões com seus próprios filhos, e os ricos pagavam a escola, a comida, o médico etc.

É uma relação ambivalente.


BBC Mundo - Há, então, uma proximidade inegável, mas no livro você também descreve que há uma certa distância. Como os ricos marcam essa distância com seus empregados?


Delpierre - De muitas maneiras.

Uma delas é espacial. Nas casas dos ricos, os empregados não podem circular por todas as áreas. Não podem usar a piscina, não podem ir para as partes da casa onde os ricos se reúnem com seus amigos. Não têm liberdade de circulação.

Nas casas maiores que vi, há corredores diferentes para os empregados e para os patrões, para que os patrões não vejam os empregados o tempo todo.

Outra forma de os patrões imporem distância é mudando os nomes dos empregados. Se o seu nome é Juan, podem te chamar de Joseph, por exemplo.

E há uma racialização nessa mudança de nome. Quando os empregados são estrangeiros — o que é o caso de muitos atualmente — os patrões trocam seus nomes por um nome francês. Isso é uma violência simbólica, como diria Pierre Bourdieu.

Há patrões que sempre colocam o mesmo nome para todos os seus empregados. Por exemplo, a babá se chama sempre Maria. Se chega uma nova babá, também será chamada Maria.

É uma maneira de demonstrar a superioridade do rico sobre as outras pessoas, que são despersonalizadas.


BBC Mundo - É impossível ignorar o fato de que a grande maioria das pessoas que se dedicam a esse trabalho são mulheres, algumas delas negras ou latinas. Qual é o papel dessas identidades? Como gênero e raça entram em cena no trabalho doméstico?


Delpierre - Raça e gênero são centrais na forma como se estrutura o mercado de trabalho doméstico.

É um mercado em que você não se vende com um currículo. Não são exigidos diplomas — e nem existem, nesse contexto.

Os patrões precisam identificar outras qualidades para escolher os "melhores" empregados, e o que acaba acontecendo é que essas habilidades são essencializadas.

Por exemplo, apenas mulheres podem cuidar de crianças, porque se acredita que elas têm uma tendência natural para isso. Já os motoristas são sempre homens, por causa do preconceito de que eles sabem dirigir melhor. Não encontrei nenhum homem trabalhando como babá nas casas dos ricos.

No mercado do trabalho doméstico, muitos estereótipos raciais também estão em jogo.

Por exemplo, na França se diz que as mulheres negras são carinhosas. E então os patrões preferem mulheres negras para cuidar de crianças pequenas. Aí há uma representação profundamente racista e colonial da mulher africana como alguém destinada a ter muitos filhos e ser uma mãe.

Mesmo os brancos também são racializados. Os ricos preferem ter homens ou mulheres brancas no topo da hierarquia doméstica. Os mordomos, por exemplo, costumam ser de países europeus.

É claro que esses preconceitos não são exclusivos do mercado de trabalho doméstico, mas, nesse setor, o gênero e a raça são os critérios primários na hora de escolher os empregados.


BBC Mundo - O cinema e a literatura muitas vezes retrataram a relação entre os ricos e seus empregados. Você mesma menciona no livro Parasita, o famoso filme coreano de 2019. Nele, como em muitas outras histórias, os ricos são mostrados como ameaçados pela própria criadagem. Você encontrou algo assim na sua pesquisa? Os ricos têm medo de seus empregados?


Delpierre - É interessante, porque nesses filmes sempre se mostra empregados que se vingam de toda a dominação que sofreram por parte dos patrões.

Mas a realidade é diferente. Eu não encontrei nenhum empregado que tenha matado seus patrões (risos). Sim, encontrei alguns casos de empregados que roubaram, mas isso é muito raro.

Na maioria das vezes, os ricos não têm realmente medo dos empregados, porque sabem que detêm todo o poder. Sabem que, sem o dinheiro deles, os empregados não são nada. Sem suas casas, os empregados não têm onde dormir.

Se um empregado decidisse recorrer à Justiça, os ricos sairiam ganhando, porque seus amigos são advogados, têm muito capital social. Sabem que são intocáveis. Sabem que nada pode acontecer com eles. Nos poucos casos que encontrei na Justiça em que um empregado processou seu patrão, quem ganhou foi o patrão.

Então, não, eles não têm medo dos empregados. A única coisa de que têm medo é que eles vão embora, que encontrem outra casa para trabalhar. Por isso, no livro eu abordo o tema dos sonhos dos patrões.

Alguns me contaram: "Essa noite eu sonhei que minha babá ia embora e eu não sabia o que fazer com meus filhos." Essas pessoas têm empregados todos os dias. Não sabem cozinhar.

Uma mulher me disse que não sabia levar os filhos para a escola, não sabia que rua pegar, etc. Então, o grande medo dela era que a babá dissesse "vou trabalhar em outra casa" ou "vou me atrasar".


BBC Mundo - No livro você também aborda o debate recente sobre o vocabulário usado para falar do trabalho doméstico e o que é considerado politicamente correto. Em espanhol, por exemplo, tenta-se hoje falar em "trabalhadores domésticos", e não em "serviçais" ou "criados". Como isso é tratado nas casas dos ricos? E você, tem alguma posição sobre isso?


Delpierre - Em francês, os ricos geralmente falam em domestiques ou bonnes (criadas).

Domestiques vem da palavra latina domus, que significa casa. E isso é importante. Eu penso que é necessário colocar o destaque na palavra "casa". A particularidade dessas relações é que acontecem dentro da casa. É um espaço de trabalho muito especial. Atípico. É o espaço da família, do segredo, da intimidade etc., e é por isso que as relações se dão da forma como se dão.

Parece-me inadequado usar termos institucionais, como "trabalho doméstico", porque eles escondem a dominação. Claro, não sou contra a luta dos trabalhadores que defendem que isso seja reconhecido como trabalho.

Mas não é chamando de "trabalhadores domésticos" que as condições de trabalho melhoram nem que a relação com os patrões muda.

A realidade das condições de trabalho dos empregados hoje é praticamente a mesma que existia ao longo da história.

Como socióloga, eu decidi manter apenas a palavra domestiques e não usar o termo "trabalhadores domésticos", justamente para indicar a continuidade histórica entre a domesticidade de hoje e a de antigamente.

Se usamos "trabalho doméstico", estamos marcando uma ruptura em relação ao serviço doméstico da velha Europa. E a minha postura como cientista é que, embora algumas coisas tenham mudado, a domesticidade continua sendo a mesma.

Milhões e milhões de mulheres no mundo, sobretudo pobres e migrantes, são empregadas. E cada vez mais pessoas estão contratando gente para trabalhar em suas casas por hora, como au pair, etc.

Aí surge uma pergunta importante para todos — não apenas para os ultrarricos:

O que fazemos com o trabalho doméstico? Devemos fazê-lo nós mesmos? Devemos pagar alguém para fazer? Devemos pedir aos nossos familiares que nos ajudem de graça?

Essa é uma pergunta muito universal.




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