Livro traz imagens assustadoras e poéticas de dissecação no século XX
Fotografia de estudo de cadáveres virou moda nos anos 1910 e 1920.
Estudantes usavam imagens até para cartões postais ou de visita.
O conjunto de objetos familiares ameaçados pela tecnologia digital inclui o velho (livros, quadros) e o novo (CDs). Há também o corpo humano, que conta como ambos. Não os corpos que nós usamos, mas aqueles que permitimos serem usados por profissionais da medicina durante seus estudos, para que se familiarizem com o terreno. Dissecar um cadáver tem feito parte da educação médica há milênios. Todavia, o cadáver que entra na sala de anatomia com a bênção tanto do último dono quanto do Estado é, na verdade, um fenômeno bastante novo.
Fotos de dissecação eram populares nos anos 1910 e 1920 (Foto: Cushing/Whitney Medical Library, Yale University/NYT)
Há apenas um século, escolas de medicina americanas conseguiam parte de seu material de ensino nos abrigos de pobres locais e pagavam ladrões de túmulos para obter o resto. Foi somente com um ato federal de 1968 que um sistema nacional de doações voluntárias trouxe uniformidade ao processo. Hoje, a mesma tecnologia que nos permite examinar corpos vivos em todas as dimensões pode evitar nossa necessidade pelos mortos. Alguns cursos de anatomia trocam a dissecação real por sua contraparte virtual – limpa e inodora, com foco muito nítido e zoom infinito.
Alguns dizem que a anatomia virtual nunca poderá substituir a inspiradora realidade. Outros afirmam que é um grande avanço frente à malcheirosa, engordurada e inconveniente carne. Os dois argumentos serão incensados por “Dissection” (Dissecção), uma extraordinária coleção de fotografias capaz de fazer até os sangrentos laboratórios de hoje parecerem enfadonhos.
A fotografia decolou em popularidade após a Guerra Civil Americana e, em 1900, o lançamento da câmera Brownie pela Eastman Kodak criou exércitos de fotógrafos amadores. Uma onda de fotografar a aula de anatomia varreu as escolas de medicina americanas, enquanto os estudantes se empenhavam em recriar em preto e branco as cenas icônicas da dissecção de Rembrandt e outros grandes mestres: médicos acadêmicos posando em volta do cadáver indiferente, bisturis nas mãos, gravidade nos rostos.
Alguns grupos de estudantes posavam para fotógrafos profissionais. Outros tiravam suas próprias fotos. As cópias eram expostas em paredes de salas de estar, enviadas como cartões postais e até mesmo usadas como cartões de visitas. Por volta de 1920 o entusiasmo havia diminuído, e após a Segunda Guerra tudo havia praticamente terminado.
Sobreviventes
Porém, centenas dessas fotografias permanecem. John Harley Warner, presidente do programa de História da Medicina de Yale, e James M. Edmonson, curador de um museu de memórias médicas na Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, reuniram mais de cem imagens para o que, sob outras circunstâncias, seria considerado um livro de mesa de centro. Transformou-se num grande volume brilhante, arrebatador e imensamente decorativo – caso carne retalhada e ossos sejam sua ideia de decoração.
Entretanto, por mais macabros que possam ser os cadáveres dessas fotos – eles variam de corpos puros e intocados a pilhas irreconhecíveis de restos mortais catados do chão – seu valor de abalo diminui a cada página virada. Por outro lado, a atenção atraída pelos grupos de jovens estudantes, posando conscienciosamente ao redor da mesa de dissecção, nunca se esvai.
Eles compareceram a escolas de todo o país, das prestigiosas Harvard e Johns Hopkins às pequenas e efêmeras instituições no Meio-Oeste. Apenas alguns rostos femininos aparecem nos grupos de homens brancos: em uma fotografia, um rabisco à mão identifica uma pequena menina como “esposa”. Algumas fotos mostram somente mulheres ou somente negros, de escolas segregadas. Os assim-chamados serventes, que preparavam os corpos e restos mortais, eram quase todos homens negros que encaravam impassivelmente a câmera um pouco afastados dos estudantes.
Até bem depois da virada do século XX, todos eles vestiam roupas casuais. Alguns poucos vestiam pequenos aventais para evitar respingos indesejados, mas a luva descartável de látex estava bem longe no futuro: quase todos trabalhavam com as mãos nuas. Esse fato sozinho é o bastante para causar arrepios na espinha da medicina do século XXI: nós podemos cumprimentar o paciente com a mão e tocar sua pele, mas a sensação tátil de músculos, cérebros e vísceras, vivos ou não, é algo que não mais conhecemos. O complexo processo de imaginar isso é somente o começo da profunda expansão mental provocadas por essas fotos.
Muitas mostram a medicina em seu pior lado, arrogante e insensível. Alguns estudantes colocavam o cadáver como se fosse um dos rapazes – chapéu na cabeça, boca formando um sorriso, punho de esqueleto agarrando um leque de cartas de baralho. Numa foto de 1905, um estudante careca totalmente vestido aparece deitado sobre a mesa de dissecção. Enquanto isso, seis cadáveres esfolados estão escorados em posição de pé à sua volta, supostamente se preparando para cortar. O fotógrafo teve o trabalho de adquirir os direitos autorais dessa foto, intitulada “O sonho de um estudante”.
Mas o outro lado da medicina também é visível aqui. Para uma imagem assombrada de tudo que o livro aspirou a ser, pouco poderia ultrapassar uma de suas últimas fotografias, tirada em 1950 numa faculdade não identificada. Quatro jovens estão agrupados ao redor da ponta de uma mesa, olhando para baixo em direção ao rosto de seu cadáver eviscerado. O fotógrafo criou a ilusão de que o corpo descansa, ao estilo Pietá, em seus colos; a luz ilumina seus cabelos. Esqueça as grandes quantidades de prosa elevada que foram gastas sobre a arte e a ciência da medicina ao longo dos séculos: apenas uma olhada nesta foto, e você compreende o significado de tudo.
PUBLICADOS BRASIL NO ORKUT
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