NAVALHA NA CARNE - Automutilação
Línguas partidas ao meio, testas enfeitadas com chifres, corpos suspensos por fios de aço enganchados na própria pele. Esses são só alguns exemplos do que uns definem como movimento, outros como um desvio: body modification, ou bod-mod para os íntimos. O termo em inglês engloba um grande número de procedimentos cirúrgicos voluntários que deixam marcas no corpo - a maior parte delas, irreversíveis e dolorosas.
Os motivos que levam pessoas - grande parte delas com vidas e rotinas tão comuns quanto a sua - a transformar sua aparência são bastante diversificados. O que todas têm em comum é a certeza de que são donas de seus corpos e, por isso mesmo, podem fazer o que quiser com eles. Mas o que isso nos diz sobre a sociedade em que vivemos? Será que nossos padrões de beleza estão mudando?
Influências
Se levarmos ao pé da letra, a modificação do corpo humano começou no dia em que o primeiro homem se depilou ou na noite em que a primeira mulher passou maquiagem. São ações simples, mas que intervêm no projeto original. Mas, deixando o pé da letra em paz, nossa história começa com as grandes navegações, quando os europeus passam a ter contato com tatuagens da Oceania, escarificações da África, enfeites perfurantes e rituais de suspensão da Ásia e da América. Essas tradições milenares vieram dar nas praias da Europa e, até o meio do século 20, eram coisa de marinheiro, prostituta e outros freqüentadores das zonas portuárias. Nos anos 1960, o clima de "bicho grilo" e a valorização da cultura oriental teve como reflexo a maior aceitação das tatuagens. No final dos anos 1970, punks ingleses e gurus californianos (Fakir Musafar foi e ainda é o maior deles) introduziram as perfurações no repertório. Nos anos 1980, os yuppies decretaram tudo um nojo e só no início dos anos 1990 o movimento começou a ganhar corpo novamente.
Mas, a essa altura, algo muito maior do que um renascimento da tatuagem e dos piercings estava acontecendo. "A body art começou a ser empregada por pessoas que não se consideravam parte da turma dos tatuados e de maneiras que teriam causado consternação mesmo entre os fanáticos por tatuagem", escreveu a socióloga americana Victoria Pitts, no livro In The Flesh - The Cultural Politics of Body Modification ("Na carne - As políticas culturais da modificação corporal", sem tradução em português). Segundo ela, nessa época, coincidiram a explosão de estilos e performances, a ascensão de estúdios especializados e o surgimento de revistas, websites, exposições e livros celebrando e debatendo essas práticas. Tudo isso, segundo Pitts, acabou culminando no surgimento de um movimento, a body modification.
Sexo, fé e chips
Dentro do movimento, Pitts destaca três tendências principais: gays e lésbicas, que usam suas modificações para sublinhar sua opção sexual; "modernos primitivos", que desejam alcançar transcendência espiritual por meio de provações físicas; e "ciberpunks", que buscam romper fronteiras tecnológicas usando o próprio corpo.
A tribo dos "modernos primitivos" se inspira em rituais e costumes de civilizações arcaicas. Para eles, tatuagens, cicatrizes, perfurações e suspensões (veja o glossário na página ao lado) são uma maneira de entrar em contato com o divino. No livro Pagan Fleshworks - The Alchemy of Body Modification ("Trabalhos pagãos - a alquimia da modificação corporal", sem tradução em português), a psicóloga americana Maureen Mercury explica que, para esse grupo, a transformação estética deve ser acompanhada de transformação psíquica. Mais do que uma escolha, esses rituais seriam uma necessidade. "A vida em uma sociedade dessacralizada requer medidas drásticas para restaurar nosso balanço com o cosmos", escreveu.
Já os ciberpunks batem de frente com esses ideais. Ele formam o grupo empenhado em realizar os sonhos (e pesadelos) que a ficção científica elabora desde os anos 1960. Eles implantam chips que conectam o sistema nervoso à internet, instalam câmeras que filmam o interior do corpo e substituem osso e carne por metal e plástico. Ou seja, buscam confundir as fronteiras entre homem e máquina.
Outra beleza?
Fora desses três grupos, sobra uma motivação bem mais simples para encarar agulhas, ferros quentes e tesouras: grande parte das pessoas que integram o movimento da body modification quer se sentir mais bonita. No site canadense bmezine.com (Body Modification E-zine), modificados de todo o mundo trocam experiências e imagens. Os participantes contam a história de cada alteração e os planos para investidas futuras. Há um clima explícito de exibicionismo.
Línguas bipartidas são sexy, escarificações dão inveja e implantes bem-feitos despertam admiração. Exatamente da mesma forma que piercings no umbigo fazem sucesso entre adolescentes, tatuagens em forma de estrela viraram fetiche na era pós-Gisele Bündchen e peitos de silicone são cada vez mais comuns entre homens e mulheres. "Os bod-mods não são diferentes de mulheres exageradamente vaidosas, que procuram cirurgiões famosos. Tem quem pague uma fortuna para ser atendido pelos modificadores top de linha quando eles vêm ao Brasil. Nos dois casos, é um sinal de status", diz a artista plástica Priscilla Davanzo, que faz mestrado sobre o assunto na USP.
Há, no entanto, uma diferença fundamental entre quem encara uma cirurgia para conseguir o corpo perfeito e os integrantes do movimento bod-mod. No primeiro grupo, estão pessoas dispostas a se inserir nos padrões impostos pela sociedade. No segundo, pessoas dispostas a desafiá-los. E é essa diferença que faz emergir diversas críticas aos adeptos da body modification.
Para muitos psicólogos, as práticas dolorosas e pouco convencionais são formas de agressão física, de automutilação, que refletem uma insatisfação da pessoa com ela mesma. "O que fazemos na superfície quase sempre tem uma relação profunda com o que está por dentro", disse a psicóloga inglesa Corinee Sweet ao jornal londrino The Guardian em um artigo sobre modificação corporal.
Mas nem todo mundo concorda com essa visão. "Essas críticas refletem uma noção do corpo como algo fixo e imutável", escreveu Victoria em In The Flesh. "Como as práticas de modificação vão de encontro às normas de beleza ocidentais, que idealizam peles macias e imaculadas, elas são vistas como mutilações." No livro A Lei do Mais Belo, a psiquiatra americana Nancy Etcoff defende a tese de que o que leva alguém a passar por essas modificações é, ironicamente, uma alta dose de auto-estima. É como se elas estivessem dizendo que não precisam se preocupar com o padrão imposto, um aviso de que são tão seguras quanto à sua aparência que continuam atraentes mesmo depois de passar pelas transformações. "Tatuagens e escarificações são dolorosas de ser feitas e carregam riscos de infecção. Como guerreiros que exibem orgulhosos as cicatrizes das batalhas, os modificados estão mostrando que enfrentaram e superaram um desafio físico", escreveu.
Cara do futuro
Mas aonde isso tudo vai parar? Será que as body modifications serão um dia tão normais quanto tatuagens e piercings? É certo que nossa sociedade tende a se tornar mais liberal com o tempo. Em apenas um século, homens e mulheres subverteram os padrões de cabelos curtos e compridos, por exemplo. "A gente é a ponta do iceberg", diz Filipe Julio, do site www.neoarte.net, um dos principais de bod-mod do Brasil, com meio milhão de visitas desde 2002. "Somos a primeira geração que viveu isso e nossos filhos já vão crescer com outra visão."
Mas há quem duvide de que mudanças tão radicais possam ser aceitas de forma generalizada. Mesmo porque, como ressalta Victoria, "o radicalismo dos modificadores é moldado pelas forças sociais a que eles buscam se opor". Assim, é possível que, à medida que se tornem aceitáveis, as transformações evoluam entre os adeptos do movimento.
De uma forma ou de outra, o que parece irrevogável é a possibilidade de transformarmos nossos corpos. "Independentemente de estar dentro ou fora dos padrões, a idéia de modificar está presente na nossa história. E isso se acelera no sistema capitalista, em que as coisas perdem a validade com muita rapidez. É preciso criar novos modelos", diz Priscilla Davanzo. Seja em clínicas de cirurgia plástica ou em estúdios especializados, a galeria de novas possibilidades não pára de crescer.
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