A PROMESSA DE FUSÃO - Tecnologia
A mesma energia que faz o Sol brilhar pode ser a força sem-fim com que sonha o homem. Para domesticá-la, os cientistas inventaram máquinas milionárias. Mas os resultados vão demorar.
Nos laboratórios do Instituto de Física Max Planck, em Garching, perto de Munique, no sul da Alemanha, sessenta cientistas americanos, japoneses, soviéticos e de outros países europeus trabalham há um ano num raro projeto sem fronteiras destinado a retirar energia limpa e barata do átomo - uma fantasia que o homem abriga desde que começou a manipulá-lo há meio século. Trata-se do desenho do International Thermonuclear Experimental Reactor (ITER), ou Reator Experimental Termonuclear Internacional, uma supermáquina cujo valor deve alcançar alguns bilhões de dólares. Não é para menos: o equipamento deve ser capaz de controlar as reações nucleares de fusão - as mesmas que mantêm acesas as estrelas - o tempo suficiente para que a energia resultante possa mover uma turbina ou fazer andar um automóvel melhor que a eletricidade ou os combustíveis fósseis de hoje.
Os cientistas do ITER devem ter tomado um susto do tamanho do seu projeto ao saber, há poucos meses, que nos Estados Unidos uma dupla de químicos chegou ao santo graal da fusão, segundo anunciaram, com uma experiência tipo fundo de quintal, ao alcance de qualquer estudante do ramo. Logo se viu, porém, que não era bem isso - ou nada disso, na pior das hipóteses. A fulgurante ascensão e queda da fusão a frio, como ficou conhecida a alegada proeza, mostra que o trabalho em curso na Alemanha, embora portentoso, é apenas um passo no complexo, caro, demorado e incerto plano de dominar a energia virtualmente ilimitada que ocorre na fusão.
Quando o projeto do ITER ficar pronto, em 1991, os países que dele participam poderão enfim começar a construir um reator de potência equivalente ao dobro da usina nuclear de Angra 1, ou 1200 megawatts. Naturalmente, o reator será apenas um protótipo para a continuação das pesquisas. Pois, até que se desenvolvam aparelhos comerciais de fusão, uma infinidade de problemas técnicos terá de ser resolvida. Até onde é possível prever essas coisas, a idéia não é utópica. No entanto, mesmo os cálculos mais otimistas jogam só para depois do ano 2050 a substituição dos atuais combustíveis pela energia de fusão, também chamada termonuclear.
O que no fim da Segunda Guerra Mundial parecia relativamente fácil de ser obtido aos cientistas excitados com o recém-conquistado domínio do átomo, com o passar do tempo demonstrou ser um desafio quase intransponível. O homem havia aprendido a produzir energia a partir da quebra ou fissão dos átomos, um processo que deu origem às bombas atômicas e às usinas nucleares para o fornecimento de eletricidade.
Nos reatores de fissão, os átomos de urânio são despedaçados, liberando grandes quantidades de energia - é a temível radioatividade. A fusão de hidrogênio, ou de suas variantes deutério e trítio, produz calor e pouquíssima radioatividade, mas exige gigantescas injeções de energia para alimentar um processo contínuo. Por isso, todas as tentativas de realizá-la em laboratório gastaram bem mais energia do que a obtida com a experiência. Ou seja, não teria sentido usar o processo na vida real.
A fusão acontece quando dois núcleos de átomos leves se juntam para formar um terceiro mais pesado, mas cuja massa é menor do que a soma dos elementos originais. A diferença corresponde à energia liberada. No Sol, por exemplo, se fundem inimagináveis 564 milhões de toneladas de hidrogênio por segundo, dando origem a 560 milhões de toneladas de hélio, numa temperatura de 20 milhões de graus e sob uma pressão 100 bilhões de vezes maior do que a pressão atmosférica. Nessa colossal fornalha, os 4 milhões de toneladas de hidrogênio que não viraram hélio viraram energia - graças à qual o homem existe e tenta reproduzir o processo. "Estamos na posição de Prometeu", compara o físico alemão Max Schluter, do Instituto Max Planck, referindo-se ao herói da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses para dá-los aos homens. "Como Prometeu, queremos imitar o fogo do Sol aqui na Terra. "
Para fazer isso, os cientistas pensaram construir uma espécie de forno com as mesmas características das estrelas. Normalmente, os núcleos dos átomos se repelem porque têm carga elétrica do mesmo sinal. Para que a fusão possa ocorrer, é preciso aproximar os núcleos a distâncias tão ínfimas, a tal ponto que as forças de atração superem as de repulsão. Descobriu-se que os candidatos naturais para esse casamento são os isótopos (ou variedades) de hidrogênio, como o deutério (com um próton e um nêutron no núcleo). Usando a força bruta, ou seja, aquecendo as partículas de matéria a milhões de graus e em altas densidades, os pesquisadores fazem com que tais isótopos se transformem numa mistura de elétrons livres e núcleos de átomos. É o plasma, nem líquido, nem sólido, nem gás: o quarto estado da matéria.
Nesse estado meio fantasmagórico, as partículas colidem umas com as outras em velocidades altíssimas até que, em razão dos choques, acabam por unir-se, produzindo núcleos mais pesados, algumas partículas soltas - e, o mais importante, grandes quantidades de energia. Assim, pode resultar da colisão hélio 3 (formado por dois prótons e um nêutron) mais um nêutron excedente; ou trítio ( um próton e dois nêutrons), mais um próton excedente. É raro, mas também pode acontecer que a fusão produza hélio 4 (dois prótons e dois nêutrons) e mais energia .
Em 1945, o físico húngaro naturalizado americano Edward Teller sugeriu que se usasse a bomba atômica recém-inventada como espoleta para desencadear a fusão nuclear, pois a força de sua explosão forneceria as temperaturas e pressões necessárias.
A idéia seria posta em prática alguns anos depois. No dia 1 de novembro de 1952, de fato, os americanos detonaram a primeira bomba de hidrogênio, a bomba H, numa ilha do oceano Pacífico. Provou-se assim que a fusão na Terra era possível, mas, para que ela tivesse outra finalidade que não acabar com a vida na Terra, teria de ser controlada.
No entanto, para a construção de qualquer reator que produzisse energia pela fusão de hidrogênio, as condições pareciam proibitivas: seria preciso investir inicialmente uma quantidade de energia seis vezes superior à temperatura do interior do Sol, para compensar a diferença de pressão. Em cada centímetro cúbico desse reator deveriam existir no mínimo 100 trilhões de partículas que, devido ao calor, estariam sob forte pressão. A energia contida nesse gás teria de se manter durante pelo menos um segundo. A única facilidade seria o combustível. Afinal, em cada metro cúbico de água do mar há 33 gramas de deutério, o primo pesado do hidrogênio. Mas qualquer material que entrasse em contato com o plasma, à temperatura de centenas de milhões de graus, acabaria derretido. Por isso se pensou usar como recipiente uma estranha gaiola magnética que impedisse o gás de se aproximar da parede metálica do reator. Na prática, isso equivaleria a "prender um pudim trêmulo com elástico", como disse certa vez o físico Edward Teller. E, de fato, no começo, as gaiolas magnéticas vazavam gás por todos os lados.
No final da década de 50 começou uma corrida pela melhor técnica de aprisionamento do plasma. As primeiras máquinas para esse fim, inventadas nos Estados Unidos, eram tubos em formato de rosquinha chamados jocosamente perhapstron (equipamento do talvez) e, pelos mais céticos, impossibletron (equipamento do impossível). Em seguida surgiu o stellarator, um tipo de reator em que o plasma é mantido num forno com a aparência de um anel, rodeado de bobinas magnéticas feitas de grossos fios condutores. Na União Soviética, os físicos Andrei Sakharov, Prêmio Nobel da Paz de 1975, e Igor Tamm (1895-1971), Prêmio Nobel de Física de 1958, aperfeiçoaram a idéia e ajudaram a criar o hoje célebre tokamak, cujo nome é formado pelas primeiras sílabas das palavras russas correspondentes à câmara toroidal de bobinas magnéticas. Para o físico Ivan da Cunha Nascimento, da Universidade de São Paulo, considerado um dos raros especialistas brasileiros em fusão, "os tokamaks são a maior esperança de se conseguir ganho de energia com a fusão".
Trata-se de um aparelho formado por tubo metálico fechado na forma de uma câmara de pneu - ou toróide, em linguagem científica. À sua volta existe um enrolamento. Percorrido por uma corrente elétrica, nele surge um poderoso campo magnético que envolve o plasma como as cascas de uma cebola. Existe também outro campo magnético vertical para colocar o plasma mais corretamente. Nos aparelhos experimentais, como o que existe na Universidade de São Paulo, conseguiu-se temperaturas de até 5 milhões de graus. O recorde mundial de temperatura obtido até agora são os 200 milhões de graus do tokamak da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Nesse aparelho de 2,5 metros de raio (oito vezes maior que o da USP), apesar dos bons resultados ainda não se conseguiu produzir energia igual à consumida na experiência. O maior e mais bem-sucedido reator de pesquisas, porém, é o JET (Joint European Torus), de Culham, Inglaterra, como o nome diz, uma operação conjunta dos países da Comunidade Econômica Européia.
O JET produz temperaturas superiores a 100 milhões de graus e também alcança a densidade necessária. Apesar de seus quase 3 metros de raio, o toróide ainda é pequeno demais para se conseguir simultaneamente as duas coisas. "Por isso pensamos num sucessor do modelo JET", explica seu diretor, o físico francês Paul-Henri Rebut. Os europeus pretendem construir outro reator - o Next European Torus (NET), se o projeto do ITER, na Alemanha, não for adiante. Mas antes têm de resolver alguns inconvenientes, Por exemplo, pode acontecer que o trítio, que é radioativo, escape sob a forma de gás. Além disso, a parede de aço do reator, submetida ao constante bombardeio de partículas, tem de ser substituída depois de alguns anos.
Diante desses problemas, não é de admirar que, de tempos em tempos, os pesquisadores sonhem com algum atalho na busca da fusão. O caso mais espalhafatoso foi o dos pesquisadores Stanley Pons e Martin Fleischmann, da Universidade de Utah, nos Estados Unidos. Em março último, eles anunciaram ter conseguido a fusão a frio, isto é, à temperatura ambiente, usando pouco mais que um bateria parecida com a dos automóveis. Antes deles, houve outras alegações semelhantes que no fim caíram no ridículo.
Em 1951, por exemplo, o presidente da Argentina, Juan Domingos Perón, proclamou orgulhosamente que o físico alemão Ronald Richter havia produzido em Buenos Aires a energia de fusão com materiais baratos. Era tudo fraude, porém. Richter foi preso e nunca mais se ouviu falar de suas experiências. Sete anos depois, o inglês Sir John Cockcroft anunciou um novo milagre: sua máquina chamada Zeta produzira uma reação que, de boa-fé, ele acreditou ser fusão nuclear. Constatado o equívoco, Cockcroft retratou-se.
As experiências com fusão nuclear mais promissoras, além das que usam o confinamento magnético, são as que se baseiam no laser, cujo raio luminoso concentra num pequeno ponto grandes quantidades de energia. É algo extremamente sofisticado. As experiências realizadas no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, da Califórnia, fazem parte das pesquisas ligadas ao criticado projeto Guerra nas Estrelas e são, por isso, secretas. Outros testes são feitos no Japão. Sabe-se que átomos de deutério e trítio solidificados são feitos no Japão. Sabe-se que átomos de deutério e trítio solidificados são aprisionados em incríveis esferas ocas de metal de milésimos de milímetro de diâmetro, confinadas numa câmara de vácuo. Em seguida, os átomos são submetidos a um fogo cruzado de 20 feixes de 100 trilhões de watts de laser durante 1 bilionésimo de segundo. Atingidas por todos os lados pelo bombardeio, as bolinhas se aquecem tanto que se comprimem até fundirem. Só que, como no caso dos tokamaks, não se conseguiu obter mais energia do que a aplicada no processo.
Outra tentativa original consiste em reduzir a temperatura em que a fusão ocorre, usando partículas atômicas chamadas múons, que se formam naturalmente pela ação dos raios cósmicos ou nos aceleradores de partículas dos laboratórios. Quando se bombardeia uma mistura de deutério e trítio com múons, eles tendem a substituir os elétrons em volta dos átomos. Mas, como são 207 vezes mais pesados, giram tão próximos do núcleo que fazem o átomo original literalmente encolher. Isso leva os núcleos a se aproximar tanto que podem se fundir. Então, os múons ficam novamente livres e o ciclo recomeça.
Esse bizarros personagens ganharam alguma notoriedade fora dos arcanos científicos quando se sugeriu que a suposta fusão a frio de Utah talvez se tivesse originado devido à presença de múons na atmosfera. Pelo menos é esta a hipótese do físico americano Stephen Jones, também de Utah, que igualmente realizou experiências na área. O problema é que, como a vida dos múons é muito breve, os pesquisadores tentam descobrir quantas reações os múons podem realizar antes de decaírem. Só então se poderá saber se o processo é econômico em termos do que entra e do que sai de energia. Os aceleradores de partículas nos Estados Unidos, União Soviética, Japão e Suíça conseguiram por enquanto um número insuficiente de reações para se obter saldo de energia positivo.
Por modestas que sejam as esperanças de chegar à fusão e por mais caras que sejam as pesquisas, a promessa de energia ilimitada é ilimitadamente sedutora. Segundo todos os cálculos, as futuras usinas de fusão nuclear poderão extrair de 1 metro cúbico de água uma quantidade de energia igual à de 2 mil barris de petróleo. E tudo isso praticamente sem radioatividade; portanto, sem o lixo atômico das usinas nucleares. Além disso, sem produzir dióxido de carbono, como os combustíveis fósseis que envenenam o clima da Terra. Soa a ficção científica, sem dúvida. Mas, com tantas maravilhas no distante horizonte, os pesquisadores de fusão não rejeitam, em princípio, nenhuma possibilidade. O século XXI verá o resultado.
A alternativa fria demolida
Desde março último a fins de maio, cientistas do mundo inteiro discutiram se houve mesmo fusão nuclear com geração de calor nas experiências realizadas em Utah, nos Estados Unidos, de um lado pelos químicos Stanley Pons e Martin Fleischmann e de outro pelo físico Steven Jones. Logo em seguida à ruidosa proclamação da proeza, uma febre de ensaios semelhantes propagou-se pelos institutos de pesquisa de muitos países, entre eles o Brasil. "Todo cientista com um pouco de sangue nas veias quis fazer também a experiência", concede o professor Iuda Goldman, do Instituto de Física da USP. Toda essa pilha de ensaios serviu para congelar o entusiasmo inicialmente provocado pela alegada fusão a frio.
Enquanto a maioria dos testes deu em nada, em alguns parece ter ocorrido geração de nêutrons, um indício de fusão, mas a quantidade de energia obtida foi tão pequena que nem sequer pôde ser medida. Diante das incertezas, centenas de cientistas de diversas áreas reuniram-se nos Estados Unidos no final de maio para uma avaliação global do assunto. Com raríssimas exceções, os pesquisadores demoliram a expectativa de que a fusão a frio pudesse ter alguma utilidade como fonte de energia. O veredicto dos especialistas foi de que as experiências de Pons e Fleischmann constituíam apenas um fenômeno esotérico.
A idéia da dupla foi muito simples. Em vez de aproximar os núcleos de deutério aumentando a temperatura e obrigando-os a colidir uns com os outros, fizeram passar uma corrente elétrica por dois condutores de platina e paládio mergulhados em água pesada (D2O). Dessa forma, o deutério de carga positiva, é atraído pelo paládio, de carga negativa. Aprisionados na estrutura cristalina do paládio, os núcleos do deutério se aproximam como se estivessem comprimidos. O resultado seria o mesmo que se consegue a altas temperaturas: a fusão de núcleos de deutério com a produção de energia. Como em nenhuma parte os cientistas conseguiram obter por esse meio a quantidade de calor mencionada por Pons e Fleischmann e estes vinham se recusando a fornecer detalhes de sua experiência -, prevaleceu a convicção de que tudo não passou de uma falsa esperança.
Progressos brasileiros.
Confinar a matéria nas condições necessárias à fusão nuclear exige experiências com equipamentos grandes e caros, daqueles que só existem em países ricos. Mas várias instituições brasileiras de pesquisa realizam estudos sobre o confinamento do plasma, ou gás ionizado, essencial ao desenvolvimento da fusão. No Instituto de Física da USP, por exemplo, funciona desde 1980 o único aparelho tokamak da América Latina. Foi inteiramente planejado e construído no país e tem poucos componentes importados. É uma máquina de pequeno porte, com raio de temperatura de cerca de 2 milhões de graus.
Já no Laboratório de Plasma de Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) começou a funcionar este ano um toróide compacto que consegue temperaturas de 5 milhões de graus, embora por um tempo menor do que com os tokamaks convencionais. Também a Universidade Federal Fluminense, em Niterói, possui uma máquina linear importada da Alemanha; o Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), enfim, construiu um aparelho de confinamento magnético do tipo toroidal, ainda em implantação, com 12 centímetros de raio e que chega a 1 milhão de graus.
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