OS PRIMEIROS BRASILEIROS - Arqueologia
Uma grande polêmica divide os cientistas: desde quando existe gente neste lado do mundo? Há sinais de que o homem pode ter estado no Brasil há muito mais tempo do que se imaginava: 41 500 anos.
A estrada avança no meio da imensa planície árida da caatinga. Dos dois lados, uma vegetação densa e espinhosa, composta de arbustos e de árvores raquíticas, resiste ao calor de 40 graus. De vez em quando, avista-se um lagarto ou cobra à beira do caminho. Senão, uma dezena de cabras, parte de um rebanho sertanejo, que atravessa a estrada à procura de água. Quase não há gente. Nos poucos sítios que existem na região, as famílias sobrevivem graças ao roçado conquistado no solo seco e à pequena criação. No município piauiense de São Raimundo Nonato, 520 quilômetros ao sul de Teresina, o tempo parece que parou.
Foi justamente nesse lugar esquecido que a arqueóloga paulista de origem francesa Niède Guidon, professora visitante da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, encontrou vestígios do que teria sido o primeiro homem brasileiro. Há muita controvérsia sobre a presença do homem no continente . Os mais antigos traços comprovados de sua passagem foram achados no início da década de 70 nos Estados Unidos. Datam de 19 mil anos. E a teoria mais aceita sobre a origem do homem americano afirma que ele veio da Ásia há 20 ou 30 mil ano. Enquanto, por isso mesmo, uma respeitável parcela de estudiosos se recusa a aceitar a existência de vestígios com mais de 20 mil anos na América do Sul. Niède sustenta, com base nas escavações que vem fazendo em São Raimundo Nonato, que os primitivos assentamentos humanos brasileiros datam de mais do que isso: pelo menos 41.500 anos.
"Quem duvida que vá conhecer o nosso trabalho", desafia a arqueóloga, de 55 anos, amável mas decidida, cujos cabelos grisalhos talvez se expliquem pelos rigores da caatinga. Em dezoito anos de trabalho em São Raimundo Nonato, Niède criou a Fundação Museu do Homem Americano, com verbas de diversas instituições científicas do Brasil e do exterior, e levou ao sertão do Piauí paleontólogos, geólogos, botânicos; enfim, uma variedade de especialistas necessários em qualquer escavação arqueológica séria. Quem esteve ali, como Robson Bonnichsen, diretor do Centro de Estudo do Homem Primitivo, da Universidade de Maine, Estados Unidos, admite: "As descobertas de São Raimundo Nonato podem mudar toda a teoria sobre a presença do homem na América".
O trabalho de Niède Guidon e de seus colegas - cujo número pode chegar a duas dezenas na estação seca de julho-agosto - consiste basicamente em descobrir e decifrar os tesouros arqueológicos escondidos numa cadeia montanhosa a alguns quilômetros de São Raimundo Nonato. São desfiladeiros e penhascos íngremes, conhecidos apenas dos caçadores da região. Quem passa pela estrada empoeirada que corta a planície do sul do Piauí pode imaginar que aquele paredão de pedra talvez tenha sido no passado um ponto de referência seguro para o bando de nômades que vagueavam há milênios naquela região. Ali existem cerca de trezentos abrigos, muitos dos quais com restos de pintura, utensílios de pedra, sepulturas e ossos de diversos animais, alguns até no nível do solo. Decifrar os enigmas contidos nesses abrigos é uma aventura digna dos filmes de Indiana Jones.
A própria Niède já passou por uma experiência que por pouco não lhe custou a vida. Há dois anos, ela desceu por meio de cordas numa gruta calcária sem nenhuma proteção. No meio do percurso foi atacada por um enxame de abelhas africanas que tinham sua colméia numa das saliências da rocha. Ao ser içada, estava coberta de picadas. Desde o episódio, uma engenhoca móvel com uma câmera de vídeo comandada a distância e insensível a picadas passou a abrir caminho para os arqueólogos. Mesmo assim, eles agora usam máscaras e roupas protetoras, apesar do calor. Entre os abrigos da região, o mais famoso é sem dúvida o Boqueirão da Pedra Furada. Trata-se de uma plataforma escavada pela erosão na parede de pedra, a cerca de 20 metros abaixo da superfície. Durante milênios, supõem os pesquisadores, os caçadores que passavam pela região devem ter escolhido sempre o mesmo ponto do esconderijo para fazer fogo.
De fato, restos de fogueiras - pedaços carbonizados das mais diversas formas e tamanhos - se sobrepõem em 8 metros de sucessivas camadas geológicas com datações que começam em 5 mil anos, vão a 17 mil, 32 mil e finalmente 41.500 anos - as mais antigas do continente, segundo essa contagem. O método usado na datação baseia-se nas medições do decaimento radioativo do elemento carbono-14 que toda matéria orgânica perde, num ritmo constante e conhecido, assim que começa a se decompor.
Por não ser matéria orgânica, não foi possível datar as lascas de pedras encontradas junto às fogueiras e que poderiam ter sido instrumentos feitos pelo homem em data incerta e não sabida. O problema todo é que não há certeza alguma sobre a origem de tais fogueiras. Tanto elas podem ter sido acesas pela mão humana como podem ter sido causadas por raios ou ainda por combustão espontânea. Se a equipe de Niède Guidon conseguir achar ali algum resto de osso humano igualmente antigo, a polêmica estará virtualmente encerrada. Isso não aconteceu em sete anos de pesquisa local. Mas a falta de tal prova não parece afetar a arqueóloga. "Se o homem pré-histórico brasileiro enterrava seus mortos, nós vamos acabar encontrando", confia.
Os antropólogos não sabem o que os brasileiros pré-históricos faziam com seus mortos antes de 11 mil anos atrás. Mas, em 1979, uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais encontrou sepulturas de 9 a 11 mil anos de idade em Santana do Riacho, ao norte de Belo Horizonte. Pertenciam ao povo de Lagoa Santa, um grupo de caçadores de animais de pequeno porte, cujos vestígios foram descobertos pela primeira vez no século passado pelo naturalista e paleontólogo dinamarquês Peter Lund (1801-1880). As mais antigas sepulturas humanas datam de 60 mil anos e foram encontradas em Shanidar, no Iraque.
O que mais chama a atenção na maioria dos abrigos são os painéis em tons de vermelho, preto, branco e cinza pintados pelos ancestrais brasileiros de 10 a 20 mil anos (lascas com tinta vermelha foram encontradas na camada arqueológica correspondente a 17 mil anos). Os homens e animais desenhados nas rochas estão muitas vezes reunidos, formando cenas variadas. Ao lado de veados, tatus, emas, lagartos e onças vêem-se imagens de dança, execuções, caça e relações sexuais. O material usado na fabricação das tintas ainda é um mistério. Suspeita-se que o vermelho tenha sido retirado do óxido de ferro encontrado numa pedra que na região recebe o nome de tauá.
Para resgatar essas imagens do passado, muitas vezes pintadas em lugares inacessíveis, os arqueólogos fotografam e copiam as cenas em plástico transparente com pincel atômico. "É impressionante", declara Niède. "As mais antigas provam que a arte na América remonta quase à mesma época da arte na Europa." Ela se refere às espetaculares pinturas e gravações em pedra deixadas pelos europeus há 17 mil anos em cavernas na França e Espanha, como as de Lascaux e Altamira, que representam cavalos, renas, bisões e ursos. Segundo Niède, enquanto seus primos europeus pintavam gigantescas imagens nas cavernas, o homem primitivo brasileiro exercitava sua arte em escala mais modesta, mas de maneira igualmente surpreendente, nas grutas do Piauí.
Quem teria sido esse brasileiro? "Provavelmente, membro de uma tribo de caçadores nômades que se espalhou por uma área bem grande do território", responde Niède. "Pinturas parecidas foram encontradas em várias regiões do Nordeste e na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso", explica. Os antepassados desse brasileiro vieram da Ásia a pé pelo estreito de Bering, que separa a Sibéria do Alasca, na ponta noroeste da América. Essa travessia só foi possível em época de glaciação, quando a Terra esfriou e boa parte dos continentes ficou coberta por um manto gelado. Os estudiosos da evolução do clima da Terra dizem que o homem teve três oportunidades para fazer a travessia durante a última glaciação: há 70 mil, 30 mil e 13 mil anos. Nessa ocasião formou-se uma ponte ligando a Ásia à América. Depois disso, a comunicação só foi possível por mar.
Seja como for, a origem do homem americano está nas estepes asiáticas. Isso é fácil de perceber pela semelhança racial das populações do continente; do estreito de Bering, no noroeste, à Terra do Fogo, no extremo sul, tudo o que se sabe dos primitivos habitantes do continente parece confirmar sua origem asiática. Eles descendem dos caçadores e coletores nômades que chegaram a América como parte do processo de migração que já estava ocorrendo no Velho Mundo e que começou na África, passando pela Europa, Ásia e Austrália. Os recém-chegados viviam em pequenos bandos, provavelmente compostos de famílias aparentadas. Sabiam lascar pedras e fazer pontas de projéteis.
Existem dezenas de possíveis testemunhos de sua passagem pelo continente. Os mais antigos são os polêmicos restos de fogueiras de São Raimundo Nonato no Piauí. Em Monte Verde, no Chile, foram encontrados sinais que sugerem presença humana há 33 mil anos. Em Old Crow, no Alasca, há vestígios datados em 27 mil anos. Em Tlapecoya, no México, acredita-se que o homem teria estado ali há 22 mil ou 24 mil anos. O único de todos esses sítios arqueológicos cuja autenticidade é aceita sem discussão pelos cientistas fica em Meadowcroft, no Estado americano da Pensilvânia, e tem 19 mil anos. Ali foram encontrados quatrocentos instrumentos de pedra lascada, ossos de várias espécies-animais, restos de fogueira e uma espécie de balaio feito de casca de árvore. Há datações mais antigas em Meadowcroft, mas ainda precisam ser comprovadas.
Antes do encontro de vestígios da antiga presença do homem no atual território brasileiro, supunha-se que o roteiro dos primitivos habitantes da América do Sul passava primeiro pelo oeste da cordilheira dos Andes, descia à Patagônia e depois subia até o Amazonas via sul, leste, centro e nordeste do continente. Mas a arqueologia no Brasil deu um salto nos últimos anos. Pesquisadores encontraram traços de ocupação humana com mais de 10 mil anos em Mato Grosso, 20 mil anos no Planalto Central e 8 mil anos na Serra dos Carajás. Isso sem falar no caso da arqueóloga Maria Beltrão, que datou seus achados na Bahia em 300 mil anos - um exagero de antiguidade rejeitado até pelos entusiasmados defensores da teoria de que havia gente por aqui há mais tempo do que a antropologia convencional aceita.
Agora se acredita que, ao atravessar a faixa que separa a América do Norte da América do Sul, os homens primitivos seguiram três rumos diferentes.
Com base no exame do pólen fossilizado de espécies vegetais, os estudiosos da Pré-história descrevem um Brasil irreconhecível aos olhos atuais: eles calculam que o clima na região amazônica era mais seco e a vegetação igual à dos cerrados que hoje existem no Centro-Oeste. O Nordeste também devia ser diferente, com um clima bem melhor: por toda a região foram encontrados ossos de animais de grande porte que não poderiam sobreviver na caatinga - preguiças-gigantes de 3 metros de altura, capivaras, emas, tigres dente-de-sabre e bichos vagamente aparentados aos atuais camelos e lhamas. Atraídos por essa fauna é que os caçadores nômades teriam se abrigado em lugares como as tocas do Piauí.
Essa situação perdurou até o fim das glaciações que ocorreram no hemisfério norte há cerca de 10 mil anos. A partir de então, o clima foi mudando em todo o continente. As florestas substituíram os campos e as regiões antes úmidas se converteram em semidesertos. Na mesma época, os desenhos dos abrigos do Piauí começaram a mudar. Os pesquisadores supõem que um povo de técnica artística bem mais pobre substituiu os pioneiros habitantes da região. Não se sabe que fim levaram os primeiros piauienses. Podem ter sido dizimados por outros bandos humanos. Podem ter partido em busca de ares melhores. De todo modo, 5 mil anos antes da chegada dos portugueses, outros homens também deixaram suas marcas nos abrigos. Os últimos a chegar foram provavelmente os índios denominados pimenteiras, totalmente dizimados pelos colonizadores.
Como, a rigor, as pesquisas arqueológicas estão apenas começando, novas descobertas podem mudar essa história, da mesma forma que as descobertas de Niède Guidon no Piauí puseram em xeque as teses clássicas sobre a origem do homem no continente. Para os arqueólogos brasileiros, tudo isso significa um incentivo às escavações. O prêmio: encontrar restos de ossos humanos com datações de 30 a 40 mil anos acima de qualquer suspeita.
De onde vem o carvão do Piauí.
Há dez anos, desde que começou a divulgar as datações mais antigas de seus achados no Piauí, a arqueóloga Niède Guidon está em conflito com uma ala de estudiosos da Pré-história do continente. Liderados pela antropóloga americana Betty Meggers, de 66 anos, esses pesquisadores dizem não haver provas da existência do homem na América há mais de 20 mil anos. Coordenadora de pesquisas internacionais do respeitado Instituto Smithsonian de Washington, Betty Meggers ajudou a formar toda uma geração de arqueólogos brasileiros. Ela esteve pela primeira vez no país em 1948 e sua tese de doutoramento trata da cerâmica dos povos primitivos da ilha de Marajó.
Betty contesta com veemência as afirmações de Niède. "Não se pode datar o carvão (dos restos de fogueiras) e atribuir sua idade a uma população pré-histórica, pois esses vestígios talvez tenham resultado de um incêndio espontâneo", disse a SUPERINTERESSANTE em Washington. "Além disso, se o material estiver contaminado, não importa a qualidade do laboratório que faça a datação, o resultado será sempre enganoso. Segundo seu colega do Smithsonian, Dennis Joe Stanford, "Meggers não pretende ser radical, mas apenas chamar a atenção para os problemas que podem interferir no esforço honesto de determinar a idade de um acampamento do homem primitivo".
Baús de ossos.
Se os primeiros homens chegaram à América há dezenas de milhares de anos, onde estão as ossadas que ajudariam a comprovar sua aventura? Na arqueologia americana o que não falta são ossos humanos. Só o Instituto Smithsonian de Washington possui 30 mil crânios primitivos. No Piauí foram encontrados dois esqueletos de 8 e 10 mil anos. Na zona arqueológica de Lagoa Santa, Minas Gerais, foram encontrados quinhentos esqueletos, muitos deles no século passado pelo paleontólogo dinamarquês Peter Lund. Como era comum na época, Lund descartou os ossos e ficou com os crânios, hoje espalhados por museus brasileiros e europeus. O problema é que esses vestígios do homem pré-histórico não foram datados como manda o figurino. .
O método de datação pela radioatividade do carbono-14 consiste em determinar o número de anos decorridos desde a decomposição da amostra até o período atual. A amostra é queimada num forno sob uma corrente de oxigênio que transforma o carbono em gás carbônico, purificado e estocado durante cerca de um mês, para que os gases radioativos recolhidos sejam eliminados e contados. Poucos laboratórios estão habilitados a esse tipo de contagem; entre eles o do Instituto Gif-sur-Yvette, na França, e Beta Analytic, em Miami, nos Estados Unidos, onde foram feitas as análises do Piauí. Se houver qualquer contaminação por impurezas ou poluições recentes, a datação pode ser alterada.
O método do carbono-14 nasceu em 1946, mas passou a ser amplamente utilizado só na década de 60, muito tempo depois que os ossos dos primitivos americanos passaram de mão em mão. Assim, embora haja muitos candidatos ao posto de Primeiro Americano, nenhum apresenta currículos convincentes. Existe o Homem de Marmes, descoberto perto de Washington (na verdade, restos de pelo menos cinco indivíduos); o Homem de Midland, no Texas (na verdade uma mulher); a Criança Taber (um bebê encontrado perto de Alberta, no Canadá); o Homem de Tepexpan, achado no México.
Uma coleção de esqueletos encontrados na Califórnia dá uma idéia da confusão que cerca o assunto. Um desses esqueletos, o Homem de Yuha, foi datado com quatro idades diferentes, entre 10 mil e 23.600 anos. Outros dois foram datados em 1975 com 48 mil e 70 mil anos de idade. Uma década mais tarde, esses esqueletos rejuvenesceram: passaram a ter 11 mil e 8.300 anos.
Um autêntico sapiens sapiens.
Se o homem viveu efetivamente há 40 mil anos no que hoje é o Piauí, era membro da família do Homo sapiens sapiens, que existiu há 92 mil anos, segundo descobertas mais recentes em Ratzeh, Israel. Ele corresponde ao que os cientistas chamam de homem anatomicamente moderno. Esse homem vivia em bandos nômades de caçadores-coletores, entre os quais já se esboçava uma certa divisão de trabalho. Aos homens estava reservada a caça dos grandes mamíferos: veados, renas, mamutes e bisões. Suspeita-se que eles chegaram a domesticar cavalos. Em rios ou no litoral, costumavam pescar com arpão. Às mulheres cabia a colheita de frutas e a coleta de mariscos, além da criação das crianças.
O homem primitivo podia viver em cavernas, mas estava mais acostumado a construir tendas de pele, fáceis de transportar, quando ele se deslocava a fim de acompanhar a migração da caça. Vestia-se também de peles e sabia usar o fogo para aquecer-se e cozinhar. Enterrava os mortos com os joelhos dobrados, às vezes coberto com seus colares e adornos feitos de conchas e dentes de animais. Fabricava numerosos instrumentos de lâmina de pedra e pontas de ossos, arpões, além de ferramentas destinadas a raspar e esquartejar animais, abrir buracos nas peles, fazer incisões em ossos.
Até hoje não se sabe o que impulsionou esse homem a desenhar enormes animais nas cavernas européias - a mais antigas datam de 30 mil anos. Mas não foi somente nas cavernas, cujo maior exemplo está em Lascaux, na França, que ele deixou sua arte. Durante todo o período paleolítico superior, compreendido desde o aparecimento do Homo sapiens sapiens até o início da agricultura, há 10 mil anos, o homem primitivo deixou sua marca em adornos, esculturas de pedra, barro e ossos de chifres de antílopes. As imagens humanas eram poucas e rudimentares. As mais conhecidas são as chamadas Vênus, estatuetas com nádegas e seios exagerados, que supostamente representam a fertilidade ou a deusa-mãe.
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