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Os médicos desmontam a aparelhagem da audição humana e descobrem técnicas para consertar seus defeitos
A equipe de cirurgiões otorrinos do Hospital das Clínicas, em São Paulo, se considera preparada para o grande desafio-em breve, ela deve implantar em dez pacientes já selecionados, totalmente surdos, um aparelho desenvolvido no Brasil, capaz de devolver-lhes a audição. "Entraremos na sala de cirurgia ainda este ano", promete o otorrino Ricardo Bento coordenador do audacioso projeto. Ao apresentá-lo, o médico paulista, de 37 anos, se exalta, agita-se na cadeira, acelera o ritmo da fala. Ele não abafa o entusiasmo, diga-se, justificado, pois os brasileiros são a quarta equipe no mundo a tentar reverter a surdez profunda, nome sugerido pelo seu ponto de origem, o ouvido interno. Ali, fica a chamada cóclea, a espiral com cerca de 35 milímetros de comprimento, em que as vibrações sonoras se transformam em impulsos para o cérebro. Sem essa conversão, reina o silêncio.
Com delicadíssimos instrumentos, os cirurgiões otorrinos consertam a maioria dos danos à audição. Eles podem, até mesmo, reconstituir um tímpano perfurado, em uma refinada plástica, usando um outro tecido do próprio paciente. Mas, até há poucos meses, as proezas cirúrgicas tinham um limite bem definido: iam, no máximo, até o ouvido médio, a porção entre o tímpano e a janela oval, onde começa o ouvido interno . A Medicina nada podia fazer por aqueles cuja causa da surdez, congênita ou não, se situava no território mais adiante, o da cóclea. Nesses casos, os aparelhos convencionais de surdez não adiantam: "Eles são amplificadores", explica Bento. "E a cóclea danificada nunca reage, por maior que seja a intensidade do som."A idéia de se criar um substituto para a cóclea surgiu na mesma época e local do sonho de conquistar a Lua. No ano em que o foguete Apollo 7 iria orbitar a Terra, 1968, o otorrino americano William House trabalhava para a NASA, a agência espacial dos Estados Unidos. Era praxe manter um otorrino por perto, sempre que se lançava um foguete tripulado: a ausência da gravidade podia provocar distúrbios de ouvido nos astronautas e, quando isso acontecia, o médico dava consulta à distância. A voz dos pacientes, porém, tinha de ser decodificada-era, afinal a época da guerra fria. Os sinais de rádio eram transformados em sinais elétricos, indecifráveis para os russos que tentassem interceptar a conversa. Na base da NASA, um equipamento interpretava os impulsos elétricos, para torná-los novamente ondas de rádio. O otorrino percebeu que aquele sistema era uma imitação da cóclea, o decodificador do ouvido. A partir daí, House criou o protótipo do aparelho de implante coclear, seguido por cientistas da Austrália e da França. Até hoje, no entanto, apenas o modelo australiano foi aprovado, no ano passado, pela rigorosa FDA (sigla de Food and Drugs Administration), o órgão do governo americano encarregado, entre outras coisas, de controlar os equipamentos medicinais. No Brasil, a estimativa dos médicos de existirem 300 000 candidatos ao implante é modesta, pois esse número baseia-se em estudos sobre a população americana, cujas mulheres são vacinadas contra rubéola. "Aqui, só essa doença em grávidas, ao atacar o ouvido do feto, representa 18% dos brasileiros com surdez profunda", compara Bento. Essas pessoas completamente surdas, por sua vez, seriam apenas cerca de um décimo dos casos de distúrbios auditivos, que aparecem sempre que há danos na aparelhagem do ouvido. "Os problemas até agravam, quando a pessoa usa aparelhos de surdez mal adaptados, porque não passaram por um médico", adverte Ricardo Bento.Os sons, da mais agradável melodia ao mais estridente ruído, são vibrações de corpos que, deslocando-se de maneira alternada provocam ondas acústicas ao seu redor, isto é, variações na pressão do ar, percebidas pelo ouvido. Este, curiosamente, deve ter tido sua origem há cerca de 500 milhões de anos, em animais incapazes de ouvir qualquer ruído, os celerenterados aquáticos, como as medusas. Pois. Acredita-se, a função primitiva do ouvido não era captar sons, e sim manter o equilíbrio do corpo-algo tão importante quanto a própria audição. Há cerca de 200 milhões de anos, cenas espécies de peixes, que tinham recursos semelhantes para equilibrar-se, desenvolveram bolsas natatórias-bexigas de ar, para ajudar o corpo a flutuar, sensíveis a ponto de contrair ou expandir de acordo com as pequenas variações na pressão da água, provocadas por uma onda sonora. Essa dança das bolsas natatórias acabava agitando os fluídos dentro daqueles órgãos de equilíbrio conectados com o cérebro-a audição, enfim, podia acontecer.
O ouvido mudou bastante, ao longo da evolução. Os seres humanos, por exemplo, perderam a mobilidade da sua parte visível, o pavilhão auditivo, que todos conhecem por orelha. Nas outras espécies, essa estrutura cartilaginosa é capaz de se mover na direção do som. Ao alcançarem a orelha, as ondas sonoras perde 2,5 centímetros no meato, grande túnel central do ouvido externo. Ali as glândulas sudoríparas da pele passaram por alterações drásticas, a ponto de praticamente abandonarem a produção do suor, para fabricarem uma cera amarga em seu lugar. Há uma boa razão para a troca: o sabor amargo espanta os insetos que ousam se aproximar dessa entrada exclusiva para o som. No final desse corredor, as ondas sonoras batem em uma finíssima membrana, com apenas três camadas de células, tão sensível que o choque de uma única molécula de hidrogênio é capaz de fazê-la tremer. Trata-se do tímpano.
Para trabalhar direito, no entanto, o tímpano precisa que a pressão do ar seja idêntica em seus dois lados. Isso é regulado por um canal, a trompa de Eustáquio, que liga o ouvido médio à faringe. Normalmente, a comunicação com a faringe permanece fechada, a não ser em situações especiais-por exemplo, quando a pessoa espirra, boceja ou deglute. Aliás, é por isso que alguns passageiros de avião carregam goma de mascar na valise. Pois, durante o vôo, a pressão externa pode repentinamente ficar muito menor que a do ouvido médio. Mascar alguma coisa, então, força a trompa de Eustáquio a se abrir. Quando isso não acontece, o passageiro desembarca com a sensação de ouvido tapado.
Encostado no tímpano, encontra-se o cabo de um ossículo chamado martelo. A proximidade dos dois faz o martelo vibrar ao embalo do tímpano, mesmo quando esse se desloca apenas 1 milionésimo de milímetro; assim, a ponta do martelo começa a batucar no osso vizinho, a bigorna. O movimento desta, por sua vez, contagia um terceiro e último osso -por sinal, o menor do organismo, do tamanho da ponta de uma caneta-, cuja aparência revela por que é chamado estribo. Essas estruturas tão frágeis assim como todas as outras do ouvido, ficam incrustadas no osso temporal, que o otorrino coreano Sung Ho Joo exibe na palma da mão, na sala do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: "Quando operamos um ouvido, estamos sempre desviando de alguma coisa. Porque, dentro do osso temporal passa a artéria carótida que irriga o cérebro, assim como a veia que traz de volta o sangue sem oxigênio. Mas, pior, o osso é atravessado pelo nervo facial: qualquer esbarrão ali pode causar paralisia".
Quando a familia Ho Joo saiu da Coréia para Brasil em 1966, para que o filho mais velho escapasse do alistamento militar-e da guerra contra o Vietnã-, o caçula Sung, então com 10 anos, já sonhava em fazer Medicina, mas nem cogitava se especializar em ouvido, nariz e garganta. A Otorrinolaringologia ganhou sua preferência, depois de terminar a faculdade, quando um colega chamou sua atenção para a difícil tarefa de interferir no osso temporal. O médico, hoje, depois de estágios nos Estados Unidos e no Japão, orgulha-se de sua escolha. "O primeiro transplante realizado no Brasil foi justamente o de tímpano", ressalta. Os cirurgiões continuam realizando transplantes como aquele pioneiro, feito em 1962. Aliás, costuma-se transplantar também os três ossinhos do ouvido médio, que podem enrijecer-se graças ao abuso de certos medicamentos ou mesmo fraturar por causa de sons intensos, como o de um estouro.Hoje, os otorrinos têm também novas soluções: nos Estados Unidos, por exemplo, começam a ser implantados ossinhos artificiais, feitos de teflon. No caso do tímpano, opta-se pela plástica de reconstituição, sempre que a perfuração é pequena. Essa película rompe-se com certa facilidade-até mesmo por causa de um beijo estalado na orelha. Embora o escape de ar pelo furo faça a pessoa não ouvir direito, na maioria das vezes ela nem desconfia do dano, pois, como qualquer pele, o tímpano cicatriza sozinho.
A entrada do ouvido interno, a janela oval, é fechada pela própria base do pequeno estribo. Na verdade, a saída do ouvido médio é 25 vezes menor do que a entrada pelo tímpano. Esse afunilamento concentra as ondas sonoras -pois o que ocorrerá, então, poderá ser comparado ao efeito de uma pedra batendo em um lago, isto é, apenas 0,01% do som será absorvido pela água. Afinal, a cóclea é recheada de líquido. Sua estrutura é tão sensível que o cérebro mantém mecanismos para protegê-la. Quando o volume do som é estrondoso, o sistema nervoso ordena a contração de músculos ligados aos ossos do ouvido médio, e, com isso, suavizam-se as vibrações."A estratégia, porém, não é eficiente para sons muito agudos ou repentinos", esclarece Sung Ho Joo.Volume ou intensidade corresponde à amplitude das ondas sonoras, cuja unidade de medida é o decibel. "Essa unidade é um logaritmo, ou seja, a diferença entre 50 dB e 100 dB é muito maior do que o dobro", nota Ho Joo. De fato, isso corresponde ao barulho de um restaurante tranqüilo e o som de uma britadeira, respectivamente. Para a cóclea, no entanto, tão importante quanto a intensidade é a freqüência de um som, isto é, a quantidade de vezes que a onda acústica agita as moléculas do meio, durante o seu percurso-e isso é medido em hertz. Entre 20 e 200 hertz, o som é percebido como grave e, entre 7 000 e 20 000 hertz, como agudo. Mas, na verdade, o ouvido humano é um especialista em captar os tons medianos, entre 200 e 7 000 hertz, como o da voz. Essas freqüências precisam de menos volume para serem percebidas.
Se a cóclea fosse esticada, a linha resultante seria uma espécie de piano com cerca de 12 000 teclas-as células ciliadas, que funcionam como filtros, quebrando a onda sonora complexa em diversas freqüências. Pois, no ponto de partida da cóclea, os cílios agitam-se com sons agudos; à medida que se avança para a outra extremidade, as células são sensíveis a sons cada vez mais graves. O movimento da membrana basilar, em que essas células se apóiam, estimula os terminais dos nervos auditivos logo embaixo.
Desse modo, para o sistema nervoso, as diferenças de tonalidades em uma escala musical, por exemplo, são uma questão topográfica: embora o impulso elétrico de uma nota dó seja idêntico ao impulso elétrico das notas ré, mi, fá, esses estímulos partem de pontos diversos no nervo auditivo. Existem, no entanto, pessoas com a audição muito mais aguçada do que a maioria da população-e os otorrinos ainda não entendem por que isso acontece. Pode estar no cérebro o segredo do que os músicos chamam ouvido absoluto, conceito aplicável àqueles com memória fabulosa para freqüências de sons.Julio Medaglia, um dos mais renomados maestros brasileiros, lembra-se de uma prima, que abandonou o estudo do piano na infância: "Ela é capaz de ouvir uma serra elétrica e afirmar se aquilo é um si bemol ou não. Mas isso não parece ser tão importante para um músico. Arturo Toscanini não tinha ouvido absoluto", argumenta Medaglia, referindo-se ao genial maestro italiano, que morreu em 1957, em Nova York, nos Estados Unidos. O irônico é que, às vezes, ter um ouvido absoluto até atrapalha. "No coro de uma capela é comum o efeito proposital de baixar um pouco o tom no final da música. Um ouvido absoluto, no meio dos cantores, fica angustiado -e desafina em relação ao resto", exemplifica Medaglia.Mas isso nem se compara aos apuros da surdez. "O surdo costuma sentar-se encostado na parede, de frente para a porta. com medo de que alguém se aproxime sem que ele perceba". observa o otorrino Ricardo Bento. Ninguém com audição normal ou parcial consegue imaginar, o que seja o silêncio- mesmo se entrar numa câmara acústica, com zero decibel, ouvirá ainda os sons do próprio organismo, como as batidas do coração. Além disso, a audição nunca desliga. Mesmo no mais profundo dos sonos, ela permanece em alerta. Só que, nesse estado, o sistema nervoso aciona uma espécie de filtro, que seleciona informações importantes. Torna consciente, por exemplo, o toque do despertador-e, então, o ouvido acorda para qualquer som.
Para saber mais:
Silêncio: som demais
(SUPER número 1, ano 3)
O fim do mais absoluto silêncio
Há três anos, com a proposta de se criar um aparelho para substituir a cóclea do ouvido, o otorrino Ricardo Bento desceu até o subsolo do Instituto do Coração, sem São Paulo- ali, cientistas se reúnem em um dos mais avançados laboratórios de Bio-engenharia do mundo. "Ficamos motivados por ser um projeto difícil do ponto de vista da Engenharia", conta o médico e engenheiro Adolfo Leirner, que dirige o laboratório. "Mas, sobretudo, o aparelho terá resultados visíveis no horizonte." O engenheiro eletrônico Miltom Oshiro conta que os primeiros implantados usarão um aparelho não-portátil. "De acordo com seus relatos, ajustaremos a versão final do aparelho, que será carregado na cintura como um bip."Uma equipe de fonoaudiólogos ensinará os implantados a ouvir com o equipamento. De fato, não será a mesma coisa do que contar com a engenhosa maquinaria do ouvido interno normal. As 12 000 células ciliadas da cóclea, afinal, separam uma enorme gama de freqüências sonoras; o aparelho de implante, por sua vez, possui um banco de filtros capaz de separar apenas dezesseis freqüências do som, captado por um microfone. O toque de um telefone soará como um "zzzz"-os implantados, claro, serão treinados para reconhecer esse ruído. Mas o aparelho permite à informação sonora chegar a seu destino: o cérebro."Do banco de filtros, as ondas sonoras vão para um microcomputador, que seleciona aquelas com intensidade superior a 55 dB", descreve Oshiro. Então, o som é transmitido em ondas de rádio por uma antena, grudada atrás da orelha, graças a uma ímã. Sob a pele, está outro ímã, com uma antena para captar essas ondas. Um eletrodo, no lugar da cóclea, finalmente transforma o som em sinais elétricos para o nervo auditivo. Assim, é possível ouvir, ainda que as vozes sempre pareçam anasaladas, como a de um robô.
Os canais do equilíbrio
Manter-se em pé, subir ou descer escadas sem cair, caminhar firme, e não cambaleante como um bêbado -o homem só consegue ficar equilibrado graças aos chamados canais semicirculares do vestíbulo, uma câmara pequenina no labirinto. "O sistema vestibular é notoriamente o principal responsável pelo equilíbrio do corpo humano", explica o otorrino Sung Ho Joo. Em cada labirinto, encontram-se três canais dispostos em planos diferentes, preenchidos por um líquido que chacoalha conforme as rotações da cabeça. O vai-vém do liquido, por sua vez, movimenta os cílios no revestimento dos canais. "Esses cílios funcionam como interruptores: para um lado, disparam um estímulo nervoso e, para outro, inibem o sinal elétrico", descreve Sung. "No ouvido direito, porém, a direção inibidora dos movimentos ciliares é oposta àquela do ouvido esquerdo. Ou seja, é como se, enquanto um dos ouvidos diz liga, o outro dissesse desliga."Constantemente, o cérebro soma e interpreta os sinais dos seis canais semicirculares. Quando não consegue fazer isso direito, a vida se transformar em uma corda bamba-basta mexer o corpo, para sentir a ameaça do tombo, acompanhada de tonturas, o sintoma clássico da labirintite, como é conhecido o problema. "A labirintite tem causas diversas e seus efeitos podem ser percebidos em qualquer situação, não apenas quando a pessoa está em lugares altos", esclarece Sung. "Felizmente, a maioria dos casos tem tratamento."
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