QUESTÕES DE GOSTO - Comportamento
A terceira e última reportagem com base nos resultados da pesquisa sobre os hábitos alimentares dos brasileiros, promovida por nos, examina de perto, entre outros temas, o paladar da população: o prato mais apreciado do cardápio cotidiano, a comida dos sonhos de cada qual e a mais apetitosa refeição completa.
Dinheiro, sempre o dinheiro. O fator econômico parece ser a única barreira capaz de se interpor entre o brasileiro e o seu prato, pelo menos no caso da absoluta maioria dos habitantes das grandes cidades. Para eles, impedimentos ou limitações de outra natureza, como os relacionados à saúde ou a crenças religiosas, por exemplo, mal se manifestam. De fato, os números finais do inquérito sobre os hábitos alimentares da população, encomendado por nos à empresa Feedback Serviços de Pesquisa, de São Paulo, revelam que apenas 15% dos entrevistados sujeitam-se a algum tipo de dieta ou restrição ao comer.
Das 1200 pessoas ouvidas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém, não mais de 88 - entre elas, 62 mulheres - cumpriam ordens médicas de não ingerir determinadas substâncias (sal, gorduras). Três em cada quatro entrevistados jamais estiveram "de regime" e somente sete em cem tinham intenções nesse sentido. Eram mulheres também dois em três cidadãos que à época da pesquisa não comiam tudo o que gostariam, por motivos de controle de peso. Está-se falando, de qualquer forma, de uma minoria da ordem de 5% da amostra (chegando a 13% no grupo mais rico).Talvez devessem juntar-se a eles outros brasileiros - ou melhor, brasileiras. Pois mais de um quarto dos homens e praticamente a metade das mulheres informaram estar acima do peso. Esse predomínio feminino, que elas decerto jamais quiseram conquistar, mas deve ser uma das tais realidades da vida, tanto que aparece igualmente pelo mundo afora, já havia sido constatado pela Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN), realizada pelo governo federal em 1989. Segundo o estudo, cerca de um terço da população adulta pesa mais do que devia e um sexto, menos.
O fato é que, apesar de ter virado moda em certos ambientes, a idéia de praticar regularmente esportes ou ginástica está longe de apetecer à maioria da população: sete em dez entrevistados disseram que nunca ou raramente se exercitam. O restante, capaz de superar a preguiça física ao menos uma vez por semana, forma um time caracteristicamente jovem (45% no segmento de até 19 anos), de classe média para cima (47% dos que recebem mais de vinte salários mínimos) e masculino (41% ). Uma parcela das mulheres poderia ao menos alegar que já se movimenta bastante de sol a sol, ao desincumbir-se dos chamados afazeres domésticos, para ainda ter de suar a camiseta em academias esportivas.Com efeito, 90% das donas de casa ouvidas na pesquisa têm vida ativa, às vezes até demais - contra 66% no conjunto da amostra. O terço que se enquadra na tão difamada categoria dos sedentários, além de incluir mais homens do que mulheres, compõe-se principalmente, como seria de esperar, de profissionais de nível superior, na faixa mais alta de rendimentos. Compreende também, em proporção, mais adolescentes do que membros de qualquer outro grupo de idade: esses, com toda probabilidade estudantes, pelo menos tendem a compensar o sedentarismo compulsório malhando numa parte do tempo livre.Volte-se à mesa, porém, e para um tema decididamente mais saboroso. Este brasileiro, que liga tão pouco para ginásticas e regimes, o que será que realmente gosta de comer? Para descobrir o ponto certo da resposta, a pesquisa desdobrou a pergunta em três. Primeiro, pediu-se aos entrevistados que informassem qual o seu prato predileto, entre os alimentos que fazem parte do cardápio habitual. Depois, pediu-se que identificassem o seu prato ideal - aquele que, caro ou barato, consumido normalmente ou não, de preparo fácil ou difícil, disponível ou raro, mais Ihes dá água na boca. Por último, pediu-se que escolhessem, entre quatro refeições completas descritas no questionário, a que mais Ihes fala ao paladar, também independente de qualquer outra consideração.Na questão do prato predileto, nota-se de saída uma alta concentração de respostas em volta de um punhado de alternativas apenas. Isso, na verdade, confirma algumas características do padrão nacional de alimentação já reveladas pelo exame de outros resultados da pesquisa: 1) o brasileiro das grandes cidades tende a montar a sua dieta a partir de um rol relativamente restrito de possibilidades; 2) a localização geográfïca pesa nessas escolhas menos do que se imagina, fazendo com que a cesta básica do país seja bastante homogênea; 3) a renda tampouco é um fator decisivo na discriminação do gosto entre as pessoas.Pratos cuja personagem central é a carne são os preferidos da maioria absoluta no conjunto das capitais investigadas. Mesmo em São Paulo, onde a porcentagem de carnívoros é proporcionalmente menor, eles são quase a metade do total. E chegam perto de dois terços em Porto Alegre, o que dispensa comentários. A carne, quando aparece, faz a alegria da mesa do pobre - outra realidade que não deve surpreender. Esse foi, em proporção, o alimento mais citado como predileto no segmento de renda mais rasa, de dois a cinco salários mínimos por mês, ficando com dez pontos percentuais acima da média dos demais grupos de renda. Tipicamente, o carnívoro pertence ao sexo masculino e tem entre 40 e 49 anos - uma boa idade para vigiar o colesterol.A carne que o brasileiro mais aprecia na vida real nada tem de exótico. Trata-se singelamente do bom e velho (no sentido figurado, espera-se) bife. Simples, grelhado, a cavalo, ou à milanesa, ou ainda rolê, é a preferência de um quinto dos entrevistados e de quase um quarto entre os mais pobres e os adolescentes. Entre os gaúchos quase um terço. Só os pernambucanos mantêm distância do bife, preferido por magros 6% dos moradores do Recife, menos do que os que se deliciam com carnes cozidas ou assadas, frangos e galinhas e - finalmente, um regionalismo em cena - carne-de-sol.Puxadas principalmente pelos paulistas, pelas mulheres e pelo pessoal na casa dos 20 anos, as massas (leia-se, macarronada) ganharam a medalha de prata na competição das preferências entre os alimentos normalmente consumidos. Foram citadas no total por uma em cada quatro pessoas. É possível que, se a escolha se restringisse às comidas de restaurantes, a pasta destronaria a carne. Afinal, segundo um levantamento junto a 1 200 estabelecimentos de todo o país, feito pelo Guia Quatro Rodas em 1989, cinco dos dez pratos mais comuns nos cardápios são espaguetes, raviólis e pizzas. (Na presente pesquisa, a massa não perde por esperar.) Consumidos por uma minoria, peixes e frutos do mar são os preferidos de pouquíssimos brasileiros também - apenas 6%. Ali onde o consumo é mais freqüente. Maior igualmente é a preferência: em Belém, saudáveis 21% declararam-se fisgados por pirarucus, tucunarés e assemelhados de rio e mar.Das bebidas a que está acostumado, o brasileiro dá aos refrigerantes duas vezes mais preferência do que aos sucos de frutas e cervejas e quatro vezes mais do que aos vinhos. Sem surpresa, o refrigerante derrama-se absoluto sobre a população mais jovem: para seis em dez adolescentes (uma vez e meia acima da média geral) é a maneira predileta de matar a sede. É ainda por excelência a bebida dos cariocas, mas faz pouca espuma entre os pernambucanos. Cercados por uma profusão de graviolas e ciriguelas, cajus e cajás, umbus e mangabas, os habitantes do Recife preferem os sucos às colas e sodas na proporção de 39% a 25% - um resultado que fará a alegria dos naturalistas e que não se repete nem mesmo em Belém, com todos os seus cupuaçus e açaís.Em nenhuma capital a cerveja tem tantos adeptos como em Porto Alegre, onde só perde para os refrigerantes como bebida predileta. Vinho? Que a turma de Bento Gonçalves não leve a mal, mas é a opção primeira de apenas 10% dos entrevistados gaúchos, mencionada por eles menos do que pelos paulistas, cariocas e até paraenses. Do mesmo modo que a cerveja aparece como a bebida clássica do homem em geral, o vinho inebria especialmente os mais ricos (e os paulistas). É um gosto adquirido: de 3% de votos entre os jovens, transborda para o quíntuplo disso entre os que já tiveram quatro décadas de vida para aprender.O mundo da fantasia, onde por definição tudo é permitido e de onde em tese saem as respostas a perguntas do tipo "qual o seu prato ideal?", tem mais matizes do que o mundo de verdade onde é preparado o prato predileto de cada um. A imaginação comparece à sala de refeições com uma respeitável carta de diferenças entre os entrevistados. Idade, sexo, renda e, agora sim, geografia orientam as respostas. Em comparação com o quesito anterior, aumenta consideravelmente também o número de opções mencionadas: nada menos de quinze pratos tiveram no mínimo 3% de indicações.Mas não se pense que, solicitado a devanear com comida, o brasileiro se entregue a um festim mental de extravagâncias digno de um gourmet de caricatura: iguarias de nobilérrima reputação, como caviar e salmão, faisão e perdiz, trufas e endívias, definitivamente não freqüentam o imaginário alimentar do país - nem nas fatias de renda robusta. "Às vezes, mais difícil que enriquecer é acostumar-se aos queijos e vinhos da nova vida social", escreveu anos atrás o economista Cláudio de Moura e Castro, um pesquisador de veia irônica que entende de alimentação e de Brasil. Com efeito, mesmo quando pode nutrir-se de fantasia, o paladar nacional tem um quê de feijão com arroz. O prato dos sonhos sai do mesmo forno que o da realidade, talvez porque os homens desejem em primeiro lugar aquilo que conhecem. Senão, como explicar que a lasanha - robusta, vistosa, porém irremediavelmente trivial - tenha sido o prato ideal mais citado? Camadas de folhas de massa cozida, intercaladas com fatias de presunto e muçarela, polvilhadas com queijo ralado e carne moída e levadas ao forno para gratinar - eis a rústica confecção que uma amostra representativa da população urbana do país considera o supra-sumo da comida (e, talvez por isso mesmo, faz dela um dos costumeiros atrativos na mesa dominical, como já se viu).Registre-se, desde logo, que se tratou de uma votação dispersa, tanto que a lasanha vencedora não arrebatou mais de 12% do total de menções. Mas o vice-campeão, com 9%, tampouco poderia ser mais corriqueiro - o bife, não por acaso o mesmo bife contemplado com o troféu "prato predileto". Ou seja, para algo como um em dez cidadãos, a comida ideal é simplesmente a de que mais gosta entre aquelas que já fazem parte da rotina alimentar. A presença em terceiro lugar do mais distinto camarão (empatado com a feijoada, aliás) não briga com a tendência geral: o crustáceo peneídeo só chegou a essa posição por ter sido o mais citado pelos entrevistados de Belém, onde não faz figura de acepipe do outro mundo. Graças a esse mesmo tempero da familiaridade, a lagosta abocanhou no Recife duas vezes mais votos (8% ) do que na média nacional.Das seis capitais pesquisadas, a lasanha saiu consagrada em Porto Alegre, São Paulo e Recife, terminou vice em Belo Horizonte e pegou bronze no Rio e em Belém. Quem mais gosta dessa criação dos cuochi da região italiana de Bolonha, dos idos de 1750, segundo o crítico gastronômico Sílvio Lancelotti,, que aportou por aqui no começo do século, são, pela ordem, os adolescentes, as mulheres e os mais pobres. Por que será? Insondáveis são os mistérios do paladar, mas parte da resposta talvez esteja no fato de tratar-se de um alimento apetitoso, fácil de comer e que dá aquela sensação de saciedade. Já o honesto bife de todas as latitudes é o prato ideal dos mineiros, dos cariocas, dos homens, dos quarentões e, em segundo lugar, dos mais pobres. No grupo de até cinco salários mínimos, por sinal, os três pratos mais cotados concentram além de um terço dos votos, mais do que em qualquer outra faixa de renda. Os números parecem ensinar que - mesmo no reino do ideal - quando os rendimentos são parcos, estreito é o leque de escolhas.A feijoada, que a tradição autorizaria supor fosse para muita gente a delícia das delícias, só conquistou um lugar no pódio dos alimentos mais desejados graças à gula dos paulistas: em São Paulo, os que se declararam vidrados na borbulhante mistura de feijão-preto e enxundiosas carnes de segunda superaram os cultores do austero bife. Como se sabe, o nome pelo qual o sabático prato afro-brasileiro é mais conhecido é feijoada carioca. Seria o caso de perguntar por quê. No Rio, nada além de quatro entrevistados em cem a consideram comida ideal: seu cartaz não se compara nem ao da peninsular macarronada nem ao de outra alienígena iguaria que desfrutou dias de glória por aqui nos anos 50 - o guisado de origem russa chamado stroganoff, que nos cardápios virou strogonoff e no Aurélio, estrogonofe.Confirmando os dados sobre a qualidade das diferenças entre os sexos no consumo de alimentos, invariavelmente mais homens do que mulheres escolheram como seu prato ideal "comidas fortes": carnes (bifes, assados, churrascos) e feijoada. O contrário acontece quando o ideal está nas massas, no camarão e no stroganoff. Na vertente da idade, resultado curioso é a concentração do eleitorado da feijoada no grupo dos mais velhos. Na população de 50 anos para cima, eles são em termos absolutos duas vezes mais numerosos do que na média das outras faixas - e 26 vezes mais do que entre os adolescentes. Visto que a turma da terceira idade não se destacou na minoria que em outra passagem da pesquisa informara comer feijoada regularmente, tudo indica que se está diante de um rematado caso de nostalgia.Para fechar o círculo das preferências alimentares da população, os entrevistados foram convidados a escolher, levando em conta exclusivamente a satisfação do paladar, uma de quatro refeições inteiras (prato, sobremesa e bebida) inventadas pela pesquisa. Ao mesmo tempo, E organizou uma espécie de júri informal especializado, ao ouvir um total de vinte nutricionistas, nas mesmas capitais onde se realizou o inquérito, para que avaliassem esses cardápios do ponto de vista científico e em seguida fizessem suas escolhas pessoais pelo puro critério do gosto.A primeira refeição - arroz, feijão, bife, salada, goiabada com queijo e limonada - reflete aproximadamente o padrão alimentar brasileiro do dia-a-dia. "É ótima, sem defeitos. Come-se todo dia e não enjoa nunca. Se for a preferida da maioria, é prova de que a voz do povo é a voz de Deus", entusiasmou-se a gaúcha Rosa Maria de Souza, da Escola de Nutrição do Instituto Porto Alegre. "Se todo brasileiro pudesse fazer essa refeição todos os dias seria ótimo", aplaudiu Sônia Bittencourt, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, no Rio de Janeiro. "Equilibrada do ponto de vista qualitativo, mas energética demais para pessoas sedentárias. Eu trocaria o doce por uma fruta", ressalvou Marlene Trigo, da Faculdade de Saúde Pública da USP.A segunda refeição - macarronada ao molho de tomate com almôndegas, torta de nozes e cerveja - inspira-se no cardápio dominical da maioria. "Calórica demais para entrar na rotina alimentar das pessoas", vetou Eliete Salomon Tudisco, da Escola Paulista de Medicina. "Muito carboidrato e pouca proteína", criticou Ana Lúcia da Conceição Pinto, da empresa Master Food, do Rio de Janeiro. "Muito carboidrato e nenhuma fibra", apontou em Belo Horizonte a pesquisadora Patrícia Maia, formada pela Universidade Federal de Ouro Preto. "Falta uma saladinha, uma fruta...", encaixou Ivete Ciconet Dorneles, nutricionista do Grêmio de Futebol Porto-alegrense.A terceira - filé de peixe grelhado com batata cozida e creme de espinafre, mamão e suco de laranja - reproduz com pequenas variações o menu light, seguido supostamente por aqueles que têm um olho nos números da balança e outro nas últimas sobre os males do colesterol. "Muito boa, com a vantagem de que no Norte peixe custa menos do que carne. Mas podia vir com arroz-feijão", analisou Walter da Silva João, diretor do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará, em Belém. "Seria uma maravilha, se em vez de creme de espinafre tivesse apenas espinafre batidinho", receitou no Rio Haydée Serrão Lanzillotti, da Universidade Federal Fluminense. "O espinafre poderia ser substituído pelo jerimum", preferiu Sônia Lucena de Souza Andrade, presidente do Conselho Estadual de Nutrição de Pernambuco, chamando a abóbora pelo nome indígena usado no Nordeste.A última colação, enfim - cheeseburguer duplo-salada com fritas, sorvete com calda de chocolate e farofa doce, refrigerante -, é uma paródia do fast food que todo jovem conhece. Quase todos os nutricionistas ficaram horrorizados. "Pode pôr no lixo", fuzilou Adyles Mezzomo, presidente do Conselho Regional de Nutricionistas do Rio Grande do Sul. "Abominável", acusou Ihani Beatriz Torquato, da empresa Nata, em Belo Horizonte. "Engorda, faz mal à saúde e não alimenta", arrasou Silvia Franciscato Cozzolino, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. "Nem no McDonald´s se vê uma mistura dessas", comparou Sandra Albuquerque, da Universidade Federal de Pernambuco. "Vixi", resumiu a carioca Sônia Bittencourt, da Fiocruz.O corpo de nutricionistas premiou a refeição à base de peixe com dez sufrágios, só um a mais do que os concedidos ao arroz-feijão-bife. É aquilo que as pesquisas eleitorais chamariam empate técnico. Todos os paulistas preferiram o peixe. Todos os cariocas, menos um, escolheram o bife. Ninguém quis a macarronada. Auxiliadora Menezes de Souza, do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Pará, ficou, sozinha. com o cheeseburguer e companhia. Sua declaração de voto: "É uma refeição cheia de coisas deliciosas. Me daria mais prazer". E os mortais comuns? Os nutricionistas aparentemente podem suspirar aliviados. Três entrevistados em quatro optaram por um dos dois cardápios abençoados pelo saber científico: pediram peixe 39%; arroz-feijão, 37%. A maioria da minoria (14% ) cravou macarrão e somente 9% foram para o cheese-salada. Devidamente debulhados os números, fica-se sabendo quem é quem em cada partido. A confraria dos apreciadores do filé de peixe grelhado e seus elegantes pertences acolhe tipicamente os mais instruídos, os mais ricos, os quarentões, os moradores de Belém do Pará e as mulheres. Nehuma surpresa, portanto. Pode ser, no entanto, que uma parcela desse eleitorado tenha votado menos por gosto do que por julgar a alternativa "certa". Afinal, o peixe não faz parte do cardápio cotidiano na quase totalidade dos lares pesquisadas (embora em 38% dos casos seja consumido ao menos uma vez por semana).No território dos fatos previsíveis, não admira que os adeptos do bife com feijão e arroz se localizem principalmente na ponta pobre e menos instruída da amostra (sobretudo entre os pernambucanos e cariocas). É um contingente de perfil similar ao dos que gostam mais de macarrão, caracterizado pela baixa renda e escolaridade mínima ou nenhuma (nesse caso, com ligeiro predomínio de gaúchos). E a patota do burguer não podia ser outra: reúne quase um terço dos entrevistados jovens. Nutricionistas e adolescentes, pelo visto, estão precisando almoçar juntos um dia desses para ter uma conversa franca sobre comida. Os pais talvez devessem aparecer também. Pois, como lembra a nutricionista carioca Elizabeth Luiza de Souza, "as mães, sem tempo ou vontade de ir para a cozinha, levam os filhos às lanchonetes, imaginando que estão Ihes proporcionando uma alimentação equilibrada". Agradecemos aos especialistas ouvidos na fase de preparação da pesquisa: o professor José Eduardo Dutra de Oliveira, da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto; a professora Maria Antonia Martins Galeazzi, diretora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alirnentação da Unicamp; a socióloga Anna Maria Medeiros Peliano, do Ipea, e a nutricionista Flora Spolidoro, de São Paulo. A responsabilidade pelo questionário e pela análise dos resultados é exclusiva da revista.
A FOME VISTA DE PERTO
O que falta no prato do povo e o mal que isso acarreta: os feios resultados de duas grandes pesquisasSeparados por quinze anos, dois levantamentos nacionais guardam a mais opulenta coleção de informações a respeito dos hábitos alimentares e do estado nutricional da população. Foram sondagens apropriadas ao porte do problema, de tal forma que tudo o que se vem dizendo a sério sobre alimentação no país não é senão um diálogo com seus resultados. Eles acendem um holofote impiedoso sobre a panela do brasileiro. Provam que o seu tamanho, assim como o que acontece quando ela é menor que o desejável são realidades inseparáveis da renda dos cidadãos.Entre agosto de 1974 e agosto do ano seguinte, 55 000 famílias de todo o país tiveram um pedaço importante de sua intimidade devassado pelo IBGE. Instalados durante uma semana em cada casa e treinados para cercar por todos os lados os gastos das famílias com comida, os pesquisadores chegaram a pesar os produtos consumidos. Graças a tamanha bisbilhotice, o Endef (Estudo Nacional da Despesa Familiar), como se chamou essa pesquisa pioneira de 12 milhões de dólares pôde conhecer a quantidade de alimentos, calorias e proteínas ingeridos todo dia pela população.Muito depois, entre julho e setembro de 1989, 62 000 brasileiros foram eles próprios pesados e medidos pela PNSN (Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição). Concebida pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde, com apoio técnico do IPEA, a investigação partiu da premissa de que centímetros e quilos revelam, melhor do que qualquer outra informação singular, se um povo 6. come direito. 6. A relação altura/idade, em especial, é tida como "o indicador-síntese das condições de vida de uma nação", porque identifica a 4. desnutrição. 4 crônica.A principal descoberta do Endef foi que dois em cada três brasileiros não chegavam a consumir as 2 248 calorias diárias que se convencionou internacionalmente considerar necessárias para o desempenho normal das atividades de um adulto sadio. O consumo médio contabilizado pelo estudo foi de 2 132 calorias. Em 64% dos casos, a carência que os nutricionistas denominam débito calórico oscilava entre 200 e 400 calorias. Nada que um bom almoço todo dia não resolvesse: 100 gramas de feijão com arroz contêm 390 calorias. Em 1975 havia pelo menos 13 milhões de brasileiros desnutridos, mais do que uma São Paulo inteira, em números de hoje. Em compensação, essa ficção estatística chamada brasileiro médio estava bem-servida de proteínas, consumindo 64 gramas por dia, 11 a mais do que o padrão recomendado. Outro estudo do IBGE, em onze regiões metropolitanas, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), de 1988, cujos resultados começaram a ser divulgados em junho último, revela que, em média, o brasileiro consome 1,03 quilo de comida por dia, incluídos 193 gramas de laticínios e 84 de carnes e pescados. Na média, o brasileiro gasta um quarto do que ganha para comer. Os mais pobres gastam 44%. Os mais ricos, 17%.Já os números produzidos pelas fitas métricas do PNSN somam um relato de boas e más notícias. A grande má notícia é que, por falta de alimentação adequada, principalmente nos primeiros meses de vida, um brasileiro (ou brasileira) de 25 anos é 7 centímetros menor do que um americano (ou americana) da mesma idade. Se for homem, sua estatura equivalerá à de um americano de 15 anos; se for mulher, à de uma americana de 12 ou 13. (A relação altura/idade na população dos Estados Unidos é o termo de comparação adotado no mundo inteiro.) A boa notícia é que o brasileiro ficou menos baixinho. Em todas as idades, até o limite de 18 anos, o brasileiro de hoje é mais alto que o de 1975. O ganho maior ocorreu entre os meninos de 1 ano: 2,6 centímetros.Isso à primeira vista provaria que o brasileiro passou a comer melhor. Os especialistas, no entanto, preferem explicar o avanço como o resultado de uma série de mudanças, ocorridas nos anos 80, que influem direta ou indiretamente na química do organismo. Na esfera pública, a melhoria do sistema de saúde e a expansão dos serviços de saneamento. Na vida particular, a forte queda das taxas de fecundidade, que fez aumentar a renda familiar por pessoa. A rigor. ninguém tornou a se instalar nos lares do país para pesar o seu pão de cada dia e responder se os centímetros adicionais adquiridos pela população procedem de pratos mais bem servidos. O único indício não é muito otimista. Trata-se de uma pesquisa de orçamentos realizada entre 1982 e 1983 pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos de São Paulo) junto a 773 famílias paulistanas. A investigação confirmou o achado do Endef de que faltam calorias, e não proteínas, nas mesas nacionais. E capturou situações de desnutrição em todas as classes de renda: metade das famílias no grupo mais pobre (meio salário mínimo per capita) e um décimo no grupo menos pobre (três ou mais salários mínimos per capita) estavam inadequadamente alimentados. Os números do Dieese e do Endef autorizam concluir que a raiz da desnutrição não está numa suposta diversidade de hábitos alimentares, mas nas quantidades consumidas, ou seja, no poder de compra de cada família, pois ricos e pobres de todas as regiões tendem a recorrer, ainda que em proporções diversas, a um mesmo conjunto básico de alimentos.Dieese e Endef chamam a atenção para uma perversidade do modelo brasileiro de (des)nutrição: supõe-se que as pessoas que ingerem menos calorias do que precisam - notadamente, os nordestinos - acabam transformando parte das proteínas de sua dieta em combustível a ser queimado no dia-a-dia. Ruim para o bolso, pior para a saúde. De um lado, porque proteínas custam mais do que calorias. De outro, porque o organismo corre o risco de se privar da matéria-prima que regenera as células e protege os tecidos. Além disso, quando se diz que uma população, em média, consome as proteínas de que necessita, se diz também que uma parte dela nem isso consegue, faltando-lhe portanto calorias e proteínas.Essa é a realidade por trás dos números geralmente mal-encarados do PNSN sobre a altura, o peso e a idade dos brasileiros. Como o de que na faixa de até 5 anos de idade, a julgar pelos quilos que Ihes faltam, quase um terço (31%) das crianças são desnutridas. No Nordeste, duas em cinco crianças apresentam algum grau de desnutrição aguda. Por outro lado, 16% dos brasileiros adultos têm baixo peso (menos de 58 quilos para
70m de estatura). Também aqui, no entanto, o país melhorou. Entre 1975 e 1989, o total de desnutridos na população até 5 anos diminuiu de 7,9 milhões para 5 milhões. Só que diminuiu menos onde deveria diminuir mais - no Nordeste.Mesmo um exame superficial dos dados do PNSN permite enxergar algo para o qual o Endef já alertava quinze anos antes: o fator renda. As crianças com desnutrição crônica se concentram nas famílias cuja renda mensal é inferior a dois salários mínimos. Em todas as idades, o déficit de altura aumenta à medida que cai a renda familiar - e é sempre maior no meio rural. E, se 20% dos jovens adultos brasileiros são tecnicamente nanicos (pelo seu grau de afastamento da estatura média dos americanos), na população que recebe até 0,25 salário mínimo o nanismo atinge 37% do total. Nanismo, advertem os cientistas, é muito mais do que uma problema de aparência. É a prova de que a plena manifestação do potencial genético de um grupo humano foi bloqueada. O culpado é aquilo que os estudiosos designam como agravo ambiental e que qualquer brasileiro pode identificar numa palavra: fome.
Últimos pratos cheios de números
Principais resultados da pesquisa (parte 3)
Estão com peso certo 48%
Estão acima do peso 39%
Estão abaixo do peso 13%
Praticam esporte ou ginástica:
raramente ou nunca 71%
uma ou duas vezes por semana 15%
três ou mais vezes por semana 14%
Nunca fizeram regime 73%
Já fizeram 11%
Estão fazendo 10%
Vão fazer 7%
Têm restrições alimentares:
nenhuma 85%
de ordem médica 7%
de controle de peso 5%
de ordem filosófica 2%
de ordem religiosa 1%
Seu prato predileto é:
carne 52%
massa 24%
peixe 6%
arroz-feijão 4%
salada 4%
feijoada 3%
Seu prato ideal é:
lasanha 12%
bife 9%
feijoada 7%
camarão 7%
stroganoff 6%
Sua refeição predileta é:
filé de peixe, batata, espinafre, mamão 39%
arroz, feijão, bife, salada, doce, queijo 37%
macarrão, almôndegas, torta 14%
x-salada, fritas, sorvete 9%
Sua bebida predileta é:
refrigerante 40%
suco 21%.
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