MENTIRAS DA MEMÓRIA SINCERA - Neurociência
Só nos Estados Unidos, são 3000 casos nos tribunais baseados no depoimento de gente que garante ter recuperado lembranças traumáticas. São acusações de estupros e abusos sexuais. Bom para a Justiça? Nem tanto. Muitas dessas recordações podem ser memórias imaginárias. E o acusador nem sabe que está mentindo.
Nos Estados Unidos, há em pendência na Justiça pelo menos 3000 processos ativados pela suposta recordação de lembranças reprimidas na infância. Claro que a recordação dos traumas é útil para o esclarecimento de uma série de crimes. Mas pode ser uma armadilha. À ciência cabe o papel importante de definir, nesses casos, o que é uma lembrança reprimida verdadeira, que acabou sendo recuperada, e o que é memória falsa implantada. Sim, porque às vezes um cidadão pode se "lembrar" com detalhes de um fato que nunca aconteceu. Aí o sujeito vai lá, diz a verdade (ele está sendo absolutamente fiel à sua memória) mas, sem saber, está contando uma mentira (a memória dele é que não é nem um pouco fiel à realidade).
Nunca se falou tanto de falsas memórias como agora nos Estados Unidos. Em maio do ano passado, na Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, dezenas de neurologistas, psiquiatras e biólogos se reuniram para discutir o problema de quem tem recordações mentirosas. As conclusões estão longe de ser definitivas. O conhecimento científico atual ainda não consegue determinar quando uma lembrança é falsa ou verdadeira. É necessário mais empenho para desvendar como o processo da memória funciona.
É bem verdade que já se sabe alguma coisa sobre os mecanismos de memorização. Sabe-se, assim, que, ao se guardar alguma coisa na memória, as células do cérebro mudam de comportamento. Podem enfraquecer, ou reforçar, os contatos que mantinham com outras células - chamados sinapses.
Com isso, surgem dois tipos de memória: a de curto prazo e a de longo prazo. A primeira é o tipo que se usa para guardar um número telefônico apenas para discá-lo - em seguida, ele pode ser esquecido. Essa memória não altera a estrutura das sinapses. Já a memória de longo prazo, duradoura, provoca mudanças, aumentando a eficiência da transmissão de sinais entre as células cerebrais.
Além disso, em cada um dos dois tipos, a memória se subdivide em duas formas: a implícita e a explícita. A implícita lida com o conhecimento inconsciente, com as habilidades motoras e de percepção. Por exemplo: um adulto só sai andando pelo mundo porque um dia, quando ainda era um bebê, aprendeu a caminhar e guardou esse conhecimento na memória implícita - ele não tem consciência de que está se recordando desse aprendizado a cada um de seus passos. A memória implícita ou inconsciente é trabalhada em diversas áreas cerebrais, em especial numa delas, conhecida como amídala.
Já a memória explícita é processada numa região chamada hipocampo e depois vai para o córtex, a superfície cerebral que funciona como sede da consciência. Esse outro tipo de memória tem a ver com o conhecimento consciente de informações, pessoas, lugares - o que você aprende na escola é guardado como memória explícita.
Na prática, porém, as coisas não são tão fáceis de ser rotuladas, pois as diversas partes do cérebro comunicam-se entre si. A amídala e o hipocampo podem mandar mensagens um para o outro. Um exemplo: alguém se fere num acidente de carro em que a buzina dispara. Mais tarde, esse indivíduo pode vir a ter uma reação emocional sempre que ouvir aquele som. A lembrança do acidente é clara, porque foi guardada na memória explícita (no hipocampo). Mas, quem sabe, não exista a consciência de que a buzina estava tocando quando tudo aconteceu e que esse é o motivo do medo ou do susto, toda vez que escuta o seu barulho. Porque esse detalhe da buzina disparada ficou na memória implícita (na amídala). "A memória sempre registra cada detalhe de uma cena qualquer", explica a psicóloga paulista Elisabete D. R. Pimentel. "Mas só temos lembranças conscientes de parte deles." E o risco surge quando uma memória falsa é confundida com algo que foi recuperado do inconsciente.
Uma das razões pelas quais certas pessoas não se lembram de experiências traumáticas da infância é que a região cerebral do hipocampo, ligada à consciência, leva tempo para amadurecer e formar memórias acessíveis. A amídala amadurece mais cedo e armazena memórias implícitas (inconscientes) desses eventos.
"Os elementos registrados nessa memória inconsciente, traumáticos ou não, irão se expressar nas funções psíquicas e comportamentais do indivíduo", diz a psicóloga Elisabete Pimentel. Para a Psicanálise, algumas lembranças, em especial as dolorosas, podem ser mantidas no incons-ciente por representarem uma ameaça. "É um mecanismo de autopreservação", explica Elisabete. "Pois, se não há um preparo para se ter consciência das informações reprimidas, a vivência delas é como um pesadelo insuportável."
O médico vienense Sigmund Freud (1856-1936) foi o primeiro a se interessar pela "paisagem nublada das memórias reprimidas", como dizia. Também foi pioneiro em descrever que o inconsciente pode embaralhar lembranças reprimidas e lembranças falsas, as fantasias, como mostra o filme de John Huston, Freud Além da Alma.
Freud concordava que no momento em que a pessoa está "pronta", essas memórias podem vir à tona, até de maneira espontânea. Foi o que aconteceu com o americano Frank Fitzpatrick, um corretor de seguros de 38 anos, que recordou ter sido molestado sexualmente pelo padre James Porter, trinta anos antes. A lembrança veio numa noite mal dormida, em que o som da respiração do próprio Fitzpatrick o fez reviver o arfejante sacerdote. O episódio do passado acabou sendo comprovado por depoimentos.
Em outro caso, a americana Eileen Franklin se lembrou que seu pai estuprou e assassinou uma amiga dela, vinte anos antes. A recordação veio quando sua sobrinha gesticulou como sua colega, ao tentar se defender dos golpes. Evidências materiais provaram que a lembrança era verdadeira e, em 1990, George Franklin, pai de Eillen, se tornou a primeira pessoa nos Estados Unidos condenada por uma acusação baseada em memória recuperada. O problema todo é que, às vezes, uma provável memória recuperada não passa de uma fantasia.
O que acontece no cérebro quando as lembranças são reprimidas? Segundo um trabalho da neurologista Michela Gallagher, da Universidade da Carolina do Norte, em situações de pavor, o organismo despeja substâncias similares ao ópio na amídala cerebral. Chamadas opiáceos endógenos, elas enfraqueceriam o processo de memorização, aparentemente para reduzir o medo e a dor. A lembrança fica, então, atenuada na amídala e, com isso, diminui também a sua transmissão para o hipocampo - ou seja, para a consciência.
Mas o acontecimento aterrorizante, que não chega a se transformar em memória explícita, pode permanecer como memória implícita associada a alguma sensação física ou a gestos que, mais tarde, quando experimentas de novo, desencadeiam a recuperação das lembranças (veja ilustração acima). Eis por quê memórias reprimidas podem se tornar nítidas de uma hora para outra.
Às vezes, porém, a situação "recordada" com nitidez impressionante não passa de uma memória implantada - fenômeno para o qual os cientistas começam a encontrar explicações. Em maio do ano passado, Gary Ramona obteve a primeira condenação de psicólogos, nos Estados Unidos, acusados de implantar memó-rias. Os terapêutas tiveram de pagar 500 000 dólares a Ramona, por terem induzido sua filha, Holly, a "lembrar" de supostos abusos sexuais praticados por ele, seu pai, quando ela era criança. Ramona provou que os incidentes alegados nunca ocorreram.
Segundo o pesquisador Stephen Kosslyn, da Universidade Harvard, a mesma área cerebral que percebe uma imagem captada pelo olho e a armazena na forma de memória também se encarrega daquilo que imaginamos - como o rosto de uma pessoa que ainda não conhecemos, mas que foi descrito por alguém. Trata-se da chamada região temporal mediana. Talvez, especula Kosslyn, o fato de visões reais e visões imaginárias serem guardadas no mesmo canto cerebral possa provocar confusões. Então, se perderia a noção daquilo que verdadeiramente foi visto e o que foi imaginado (veja ilustração acima). Alguns estudos recentes mostram que é possível implantar memórias com assustadora facilidade. Especialmente em crianças. Experiências com meninos em idade pré-escolar mostram que eles tendem a relatar como fatos verdadeiros histórias que lhe foram sugeridas por seus entrevistadores. A repetição de perguntas sobre eventos irreais leva as crianças a acreditarem que tudo é real.
Elizabeth Loftus, da Universidade de Washington, implantou memórias em adultos normais, entre 18 e 63 anos de idade. Quando a mentira era sugerida por pais e amigos próximos desses voluntários, o enxerto de memórias foi mais rápido. É ainda mais fácil implantar memórias quando a pessoa está sob o efeito de hipnose ou de drogas como o sódio amital e o sódio pentotal, conhecidos por soros da verdade. Embora essas substâncias sejam desaconselhadas pela Associação Médica Americana, muitos psicólogos ainda as empregam nas sessões de análises.
O perigo é óbvio. As vidas de pessoas respeitáveis podem ser destruídas. O cardeal de Chicago, Joseph Bernadin, passou três meses sob suspeição no início do ano passado. Um homem de 34 anos disse ter sido violentado por Bernadin, 17 anos antes. Depois, o mesmo homem retirou a acusação, afirmando que tinha se enganado. Achar que os processos baseados em memória sempre envolvam esse tipo de engano é um erro. Corre-se o risco de não levar em conta as memórias reprimidas, permitindo que crimes fiquem impunes. O próprio cardeal Bernadin alertou para essa possibilidade, depois de ter se livrado do problema.
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