Casa de Pensão - Parte 4 de 5 - Aluísio Azevedo
que eu lhe tome o amante da irmã!
- Insolente! Bradou o Coqueiro, avançando um passo.
- Não te tenho medo, ordinário! Retrucou Lúcia empinando o peito contra ele. - Sairei
daqui se bem quiser! Não te devo nada, entendes tu?! Nada!
- Ah! Não deve porque ele pagou!
- E que tem você com isso?! Que tem você com o dinheiro dos outros?! Ou, quem sabe
se a donzela da irmã passou-lhe procuração!...
Seja lá pelo que for! Eu é que não a quero aqui, nem mais um instante. É fazer a trouxa e
- rua!
- Também não preciso ficar nesse bordel! Exclamou ela, e rabanou com direção ao
segundo andar.
- Que diz você, sua aquela?! Assistiu Mme. Brizard, cortando-lhe o caminho.
- É isso mesmo! Respondeu Lúcia, escarrando no chão com desdém. E as duas mulheres
ficaram alguns segundos a olhar em silêncio uma para a outra, de mãos nas cadeiras.
Coqueiro e Dr. Tavares meteram-se entre elas.
Lúcia subiu ao n.º 8, aprontou as malas num abrir e fechar de olhos, em seguida vestiu-se
para sair, e já de chapéu, a sombrinha na mão, o indispensável enfiado no braço, correu ao
quarto de Amâncio.
- Sabes? Bradou logo ao entrar, empurrando a porta com fúria. - Aquela bêbada e o
marido acabam de me enxotar daqui por tua causa! Têm medo que eu te coma! Não posso ficar
nem mais um instante! Desejo que me emprestes o Sabino!
- O Sabino estava às ordens, mas para onde se atirava ela com tanta precipitação?
- Não sabia! Havia, porém , de encontrar um canto, onde se metesse! Havia de descobrir
um buraco, ainda que fosse no cemitério!
E Lúcia levantou os punhos até às fontes como para se esmurrar, mas cobriu o rosto com
as mãos e abriu num pranto muito nervoso. Era a reação que chegava.
Amâncio saltou da cama e correu para ela. Desembaraçou-a do chapéu, da bolsa e da
sombrinha e puxou-a depois sobre si.
- Não te consumas...disse - não te mortifiques desse modo.
- Sou uma desgraçada! respondeu a mulher, assoando as lágrimas . - Nada se cumpre
do que eu desejo! Nada! O melhor é dar cabo desta vida miserável!
E soluçava com o rosto escondido no peito do rapaz.
Na febre daquele choro agitado, os seus movimentos transformavam-se em carícias.
Amâncio sentia-lhe as lágrimas quentes e o contacto carnal dos lábios, que elas ensopavam. Os
desejos assanhavam-se-lhe de novo pelo corpo, como insetos que voltam com o calor.
- E tornava a cobiça-la com os mesmos ardores primitivos.
Não me queria separar de ti...queixou-se ela, afinal, virgulando as sua frases com soluços
suspirados. - Em ti havia firmado todas as minhas esperanças de ventura, todos os sonhos de
minha vida! Amava agora a existência, só porque alguma coisa me fazia acreditar que ainda um
dia seríamos felizes!
- E porque não havemos de ser?...perguntou Amâncio condolentemente.
- Ora!...prosseguiu ela, - tudo me persegue, tudo me sai contrário...Foi bastante que eu te
amasse, foi bastante pensar que poderíamos ser um do outro, para que aqui se levantassem todos
contra mim e ferissem a guerra que tens visto!
E, desagarrando-se de Amâncio, para segurar de novo a cabeça, num movimento de
embaraço doloroso:
Mas, imagina tu, que estou inteiramente sem recursos!...Tenho que fazer a mudança e
ainda não sei como pagar o carreto das malas!...Vê tu que situação!
Amâncio beijou-a na boca e perguntou se ela não lhe dava uma esperançazinha para
depois que se mudasse.
Lúcia respondeu que dava, não uma esperança, mas uma certeza". E sem desprender os
lábios dos lábios do rapaz, afiançou - que lhe mandaria dizer por escrito o lugar onde seria
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encontrada; e que ele fosse por lá as vezes que entendesse. - Aí ao menos estariam livres do
Coqueiro e das outras pestes!
- prometes então?...insistiu ele , procurando garantir o compromisso.
- Prometo, prometo o que quiseres, tudo! Disse ela, ainda chorosa.
Amâncio foi à algibeira do fraque, abriu a carteira. Havia trezentos mil-réis, tomou uma
nota de cem e entregou-a a Lúcia, dizendo com pesar que era o único dinheiro que possuía na
ocasião.
- Talvez te façam falta...considerou ela escrupulosamente, sem querer tocar na cédula.
- Não! não! apressou-se a declarar o rapaz. - Desculpa não te poder ser mais agradável.
Lúcia beijou-o de novo, e desceu enfim ao primeiro andar, acompanhada pelo Sabino
que já estava à sua disposição.
Ordenou ao moleque de buscar, num pulo, uma carrocinha, e logo que esta chegou fez
embarcar as malas e mandou chamar uma carruagem.
Enquanto esperava, reclamou a sua conta, atirou com o dinheiro sem olhar para quem o
recebia, embolsou o troco e, em seguida, foi acordar o Pereira.
- Onde vamos? Perguntou este entre dois bocejos, assim que a viu em trajes de sair.
- Venha daí, homem! E deixe-se de perguntas!
Pereira levantou-se espreguiçando-se e acompanhou a mulher.
Esta o fez entrar na carruagem que já havia chegado, assentou-se junto dele e disse ao
cocheiro que tocasse par a Tijuca. Deu-lhe o número.
Era o número de uma outra hospedaria nas mesmas condições da que deixavam. Lúcia,
que já pressupunha aquelas rápidas mudanças, tinha, por cautela, uma lista das principais casa
de pensão da Corte e, à medida que se servia de cada uma, riscava-a da coleção. A do Coqueiro
era no rol a Sexta inutilizada com o traço enérgico de seu lápis.
Entretanto, ia o Pereira silenciosamente se atufando nas almofadas e, aos balanços
monótonos do carro, procurava reatar o sono interrompido
XIII
A casa de pensão de Mme. Brizard sofreu muito com as variolóides de Amâncio.
Desmanavam-se hóspedes que era uma coisa por demais.
O gentleman, o Piloto e a pérola do n.º 9, "o estimável Melinho", desde a fatal noite
das cataporas, não davam notícias suas; Fontes e a mulher sumiram-se logo no dia imediato, e,
por conseguinte, não metendo o tal médico do n.º 11, que já não aparecia há bastante tempo,
apenas seis hóspedes restavam dos quatorze primitivos.
E ainda mesmo destes seis nem todos eram aproveitáveis; porque o Paula Mendes e mais
a mulher levantariam o vôo, assim que lhes chegasse uma aragenzinha de dinheiro, e o
estafermo do n.º 7 também estava a se despedir por um daqueles dias, não da casa, mas do
mundo.
Certos, só Amâncio, o guarda-livros, e o esquisitão do Campelo que, fugindo ao pigarro
do tísico, mudara-se para o andar de baixo, mal pilhara um cômodo desocupado.
Mme. Brizard estava, pois, inconsolável. - Em sua vida de hospedeira jamais tivera um
mês tão ruim!
E azoinada por essas contrariedades e já de natureza um tanto supersticiosa, agora em
tudo descobria sinais de agouro e motivos para desconfiança. - Pois se até o ilustre Sr.
Lambertosa, "o respeitável gentleman, a flor dos homens finos, uma criatura tão cheia de
circunspeção", quem diria?...aproveitar ao ensejo das bexigas para lhe passar a perna!
E o Melinho? "estimável Melinho! A pérola do n.º 9, o homem das frutas cristalizadas!"
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também não deixara as suas contas em aberto?...
Só o Piloto, o estúrdio, aquele de quem menos se esperava, aparecera três dias depois
da fugas, perguntando, ainda muito escabreado, de quanto era a sua dívida.
- É mesmo caiporismo! Gemia a francesa.
O marido, porém, soprava-lhe a coragem: _Ela que não desanimasse por tão pouco! Nem
tudo se perdera! Enquanto tivessem o Amâncio não se podiam queixar da sorte; este valia por
todos os outros!
Mas o precioso Amâncio não estava também muito satisfeito com a casa, talvez
desconfiado que a esta coubesse em parte a responsabilidade daquele maldito reumatismo que,
ora parecia extinto e ora o obrigava a guardara cama, tolhido de dores.
A noite, quando lho permitiam as pernas, descia a cavaquear na varanda com os
senhorios. Agora os serões tinham um caráter mais íntimo e eram freqüentemente animados com
a presença de uma família, que voltara às relações de Mme. Brizard depois de seis meses de
inimizade.
Tocava-se de piano, jogava-se a víspora quase todos os dias e, às vezes, se dançava
A casa de pensão nunca ofereceu aos seus hóspedes um aspecto tão divertido; menos
para o rabequista, o Paula Mendes, que parecia cada vez mais triste e apoquentado da vida. A
circunstância de já não comer à mesa do Coqueiro obrigava-o a desperdiçar muito tempo com o
restaurante e dificultava-lhe a subsistência da mulher, cujo mau humor ia azedando ao peso da
tanta necessidade e de tanta humilhação. O infeliz marido conseguiu afinal que ela fosse passar
alguns meses na companhia dos parentes em Niterói.
Mme. Brizard, ao vê-la partir, receou a premeditação de uma fuga e exigiu logo que o
Mendes, para garantir a dívida, hipotecasse o piano que tinha no quarto
O pobre homem consentiu, sem dizer palavra, mas, de envergonhado, deixou de
aparecer nos serões da sala de jantar.
E desde então, por alta noite, quando toda a casa era silêncio, Amâncio ouvia no
corredor o som de passos trôpegos e um vozear confuso de alguém quer monologava..
* * *
A casa de pensão, definitivamente, ia se tornando insuportável ao estudante.
Não podia sair à rua; o médico, havia quase um mês, jurara pô-lo pronto em quatro dias,
se Amâncio não fizesse alguma extravagância; as conversa de toda a família Coqueiro, à
exceção de Amelinha, o enfastiava; a leitura muito pouco o distraía, e, para complemento do
enjôo, o maldito tossegoso do n.º 7, o qual por caridade entregara ele ultimamente ao seu
médico, parecia morrer de cinco em cinco minutos e não lhe dava um momento de sossego.
Mas a causa principal desse tédio era, sem dúvida, a ausência de Lúcia. Desde que ela se
foi, o coração do rapaz turgia de saudade; longe de esquecê-la, cada vez a desejava com mais
sofreguidão.
AS trevas da ausência faziam-na destacar melhor e mais linda, como um fundo negro a
uma estátua de mármore.
Sentiu sobressaltos deliciosos quando recebeu a primeira carta das mãos dela. Era
extensa, cheia de imagens poéticas e figuras de grande alcance amoroso; terminava dizendo
que" Amâncio, logo que pusesse os pés na rua, a fosse procurar". O endereço vinha à parte, num
pedacinho de papel.
E não poder ir quanto antes!...Que espiga!, considerou ele, sinceramente penalizado.
E cresciam-lhe os enjôos.
Só Amélia, com os estiletes da sua perceptibilidade feminina, consegui penetrar no
âmago daquelas tristezas, mas não se deu por achada e redobrou de desvelos e meiguices para
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com ele.
Amâncio, por mais de uma vez, beijou-lhe as mãos suspirando que ela era o seu bom
anjo, a sua consolação única no meio de "tantos dissabores"!
Assim se passaram quinze dias. O apaixonado já a tratava por tu, por você e raras vezes
por senhora.
Era a piedosas Amelinha quem lhe arrumava o quarto, quem lhe cuidava da roupa, e, já
por fim,. Era até quem lhe levava o cafezinho pela manhã. Mas não entrava, apenas metia o
braço pela abertura da porta que ficava sempre encostada, depunha cautelosamente a xícara
sobre soalho, e, se Amâncio ainda dormia, gritava-lhe no seu falsete aprazível:
- Preguiçoso, acorde! São horas!
Depois, apanhava novamente as saias e descia a escada, ligeira e sem rumor.
Outras vezes, ao anoitecer, subia para lhe pedir um livro emprestado, para saber se ele
queria chá no quarto ou se preferia descer à sala de jantar. Sempre havia um pretexto para lá ir e,
depois de lá estar, sempre arranjava um motivo de demora. Entretinha-se a ver o que se achava
sobre a mesas; examinava tudo; lia a lombada dos livros, e brincava com um esqueleto que
jazia pendurado a um canto do quarto.
Amâncio, de uma feita, não pôde deixar de rir, quando a encontrou muito espantada a
examinar as gravuras de um tratado fisiológico de Vernier.
Estava ,porém , mais e mais convencido de que toda aquela familiaridade e toda aquela
confiança da rapariga procediam do modo e das maneiras respeitosas e fraternais com que ele,
até ali, a tratara. E então fazia por domar os seus impulsos luxuriosos, receoso de cair-lhe em
desagrado.
Verdade é que , em grande parte, contribuía para esse estranho heroísmo do garanhão,
não só a moléstia, como a ilimitada confiança que, muito propositalmente depositavam nele o
Coqueiro e a mulher.
Se Amélia e Lúcia trocassem os papéis, isto é, se aquela se negasse e esta se oferecesse, é
de supor que Amâncio desdenhasse a última e ambicionasse a primeira.
Mas o Sr. João Coqueiro, apesar de tão fino, não calculou que, em naturezas viciadas
como a de Amâncio, o mais forte estímulo para o amor é a proibição.
Embalde deixavam o rapaz horas e horas no salão, às voltas com a menina; embalde
Mme. Brizard lhe dava a perceber o quanto era ele amado pela cunhada; embalde lhe chamava
"coração de gelo"; embalde lhe preparava todos os laços. - Nada produzia o efeito desejado;
Amâncio tornava-se cada vez mais respeitoso e mais frio em presença de Amélia.
Era para desesperar!
Uma ocasião, todavia, estava ele no quarto, de costas para a porta e muito entretido a ler
defronte o gás, quando Amélia, pé ante pé, entrou sem ser sentida e, encaminhando-se contra o
moço, tomou-lhe a cabeça nas mãos e cobriu-lhe o rosto de beijos.
Amâncio quis prendê-la, mas a rapariga não se deixou enlear, e fugiu, como um pássaro
assustado.
* * *
O rapaz, então, nunca mais receou lhe cair em desagrado. Mas o demônio do reumatismo
lá estava erguido entre ele e a provocadora menina. A despeito do tratamento, as dores
recrudesciam-lhe de vez em quando e assanhavam-lhe a bílis. Amâncio principiou a emagrecer,
tomado de uma estranha prostração, muito assustadora. O médico aconselhou-o, logo a que se
mudasse para um arrabalde de bons ares, como Santa Tereza, por exemplo, e esta notícia
produziu enormes sobressaltos na família dos locandeiros.
Mme. Brizard parecia ter um filho em risco de vida; Coqueiro declarou, cheio de
dedicação, que não deixaria o "pobre amigo " ir assim desamparado para uma casa de saúde ou
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para um hotel; Amelinha choramingava ao lado da cama do enfermo, e, quando se achava a com
este, beijava-lhe as mãos, afagava-lhe os cabelos e soluçava palavras de ternura.
Nesses dias Amâncio era o assunto obrigado das conversas da casa. À mesa e durante os
serões não se falava noutra coisa. Lembravam-se todos os expedientes: - uma mudança geral da
família; alugar fora uma casinha e levá-lo de passeio até que se restabelecesse; abandonar a
casa de pensão ou entregá-la aos cuidados de alguma pessoa de confiança.
Nada, porém, ficava resolvido. A conversa turbinava em volta do mesmo assunto, sem
descobrir uma saída.
Nini era a única que parecia não se importar com tudo aquilo; de olhos muito abertos,
sonâmbula, ouvia em silêncio as conversas da família, apenas suspirando de espaço a espaço.
Não obstante, já uma noite estava a casa recolhida, quando despertaram alarmados com
o baque de um corpo que, entre medonhos gritos , rolava pela escada do segundo andar.
Acudiram todos, num levante.
- _Que acontecera?! Que acontecera?!
Nini, coberta de sangue, jazia estendida sem sentidos ao sopé da escada. Rolara vinte
degraus e partira a cabeça em dois lugares.
Ia fazer uma visita ao seu esquivoso enfermo, mas no patamar da maldita escada,
perdera o equilíbrio e baqueara desastradamente.
Tomaram-lhe as feridas a pontos falsos, friccionaram-lhe o corpo inteiro com aguardente
canforada e deram-lhe a beber cerveja preta.
Supunham, todavia, que amanhecesse morta. Foi o contrário: Nini melhorou muito de
seus antigos padecimentos e apresentou uma inesperada lucidez de idéias, como há muito não
possuía. - O choque fizera-lhe bem e não menos o sangue que derramou da cabeça, afiançou o
médico.
Aquele trambolhão era uma providência!
À noite, conversou-se bastante a esse respeito; vieram as amigas de Mme. Brizard;
choveram os comentários sobre Nini; citaram-se as anedotas correlativas ao fato, e Amâncio,
que se achava então mais desembaraçado das pernas, entendeu de sua obrigação fazer uma
visita à pobre criatura.
Nini estava melhor que nunca, tranqüila; havia comido regularmente e mostrava-se até
mais satisfeita e mais comunicativa; ao dar, porém, com Amâncio, que entrara no quarto com o
seu risinho de boa amizade, abriu de repente a estrebuchar na cama, bramindo impropérios e
atassalhando as roupas.
Para sossegar um pouco foi preciso que o rapaz fugisse o mais depressa de sua presença.
E, desde então, a desgraçada não o podia ver, que lhe não voltassem logo as insânias e os
frenesis
Estabeleceu-se um cuidado enorme para evitar que os dois se encontrassem. Já não era
permitido a Amâncio dar um passo fora do quarto, sem se precaver e indagar se Nini estava por
ali perto.
O médico declarou que um novo encontro exacerbaria os padecimentos da enferma e
talvez lhe produzisse a loucura absoluta.
Mme. Brizard pranteava-se toda, quando lhe falavam na filha. - Era uma desgraçada,
dizia, com os olhos epispados pelo esforço que faziam - era uma grande desgraça! Antes Deus a
levasse logo para si, coitada!
Um encontro, que Amâncio não pudera evitar, a despeito de suas precauções, deixou
Nini em tal excitação nervosa, que o doutor proibiu que a consentissem fora do quarto. Ficou
presa desde esse dia.
Malgrado a felicidade prevista ao lado de Amélia, o provinciano sentia já bastante
desejo de se tirar dali. - Assim estivesse bom!
Campos, em uma visita que lhe fez por essa ocasião, falou muito na generosidade com
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que se portara a família do Coqueiro durante a moléstia do rapaz. - Que aquilo era uma fortuna
que nem todos abichavam! Citou principalmente as canseiras de Amelinha e concluiu
declarando que, segundo o seu fraco modo de pensar, Amâncio tinha obrigação de fazer à
menina um qualquer presente de valor.
Sim! porque, no fim de contas. Era muito difícil encontrar daquilo nas casa de pensão
! Outros foram eles, que Amâncio teria de Pôr os quartos na rua! - Não.
Inquestionavelmente, era preciso dar o presente!
E, depois de se concentrar numa pausa:
- Aí uma jóia de uns cem mil-réis...Que diabo! Esse dinheiro não o faria pobre...
Mas o estudante, em voz discreta e abafada, confessou ao Campos que a brincadeira não
lhe havia saído tão de graça, como parecia à primeira vista: Só no mês passado gastara perto de
seiscentos mil-réis, sem contar que o Sabino vivia numa dobadoura, de casa para a botica e da
botica para a casa, e eram remédios para Nini, remédios para o tísico do n.º 7, água de flor de
laranja para Mme. Brizard, xaropes para o Coqueiro; um inferno!...E que toda essa droga caía na
sua conta! - E os dinheiros emprestados?...E as fitas, os botões, as linha, as tiras bordadas, que
Amelinha estava sempre a lhe pedir que mandasse buscar nos armarinhos sem nunca dar
dinheiro para isso?...Não! O Sr. Luís Campos não lhe podia calcular o que havia! - Hoje cinco
mil-réis, amanhã vinte! E, no tirar das contas, parecia que tudo isso, em vez de ser descontado,
era aumentado nas suas despesas!...Que tal?!- Recebera obséquios, sim senhor! mas também
puxara muito pela bolsa!
Campos ignorava aquelas particularidades!...Mas entendia que Amâncio, nem menos por
isso devia menos obrigações à família do Coqueiro.
E ofereceu a "sua modesta choupana", caso o estudante não quisesse continuar ali.
Amâncio rejeitou, um tanto por se lembrar das esperanças que embalava a respeito de
Amélia, um tanto por se não querer sujeitar ao regime do negociante e um tanto por mera
cerimônia.
- Enfim, disse o marido de Hortênsia, despedindo-se- acho que o senhor deve fazer o
presente e tratar logo de sair daqui; já não digo pela questão da despesa, mas porque lhe convém
à saúde.
Escolha um arrabalde de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis; o médico
afiançou-me que o senhor tem ameaços de uma febre paludosa, e isso é o diabo na época que
atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é brinquedo!
* * *
Logo que constaram as novas disposições de Amâncio a respeito de mudança, houve
uma grande consternação por toda a casa.
- Deixar-nos?! Exclamou Mme. Brizard em sobressalto. - Não consentimos! Se para o
seu completo restabelecimento é necessário um arrabalde, vamos todos para o arrabalde! Só -
isso é que não! Seria até uma falta de humanidade, coitado!
E formou-se um zunzum de opiniões. Cochichava-se pelos cantos, em magotes,
discreteando-se projetos em voz de mistério, como se se tratasse de um moribundo. O Coqueiro
andava de um para outro lado, coçando desesperadamente a cabeça, gesticulando, à procura de
um meio de conciliar os seus interesses.
Amélia, afinal, subiu ao quarto do doente, e, com uma aflição a quebrar-lhe a voz, toda a
tremer, os olhos úmidos, perguntou se ele tencionava deixar a casa.
Amâncio, ignorando o que ia por baixo a seu respeito, trejeitou uns momos de
indiferença e respondeu: "que não sabia ainda ao certo...havia de ver!...mas o médico lhe
ordenara que fosse..."
Como se só esperasse por aquelas palavras, o pranto da menina irrompeu violentamente.
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Ele, meio surpreso, a tomou nos braços, indagando com ternura "o que significava
aquilo?..."
Amélia não respondeu logo, mas depois, levantando a cabeça, que lhe havia pousado no
colo, exclamou entre soluços angustiados: - Não! não! não hás de ir ! peço-te que não vás!
O provinciano quis saber por quê.
- Eu te amo! disse ela, escondendo de novo o rosto. - Eu te amo e não posso me separar
de ti! Vejo a sua indiferença ! percebo que me detesta, mas que hei de eu fazer?! Adoro-te, meu
amor!
- Ah! se eu não estivesse tão doente!...suspirou Amâncio.
XIV
O tísico do n.º 7 há dias esperava o seu momento de morrer, estendido na cama, os olhos
cravados no ar, a boca muito aberta , porque já lhe ia faltando o fôlego.
Não tossia; apenas, de quando em quando, o esforço convulsivo para atravessar os
pulmões desfeitos sacudia-lhe todo o corpo e arrancava-lhe da garganta um a ronqueira lúgubre,
que lembrava o arrulhar ominoso dos pombos.
Contavam que expirasse a todo o instante. Amâncio cedera o seu moleque para lhe fazer
companhia, e dos brancos da casa era o único que lhe aparecia lá uma vez por outra.
Não é que o espetáculo daquele aniquilamento lhe tocasse o coração, mas porque lhe
mordiscava a curiosidade com esse frívolo interesse de pavor, que nos espíritos românticos
provocam os loucos e os defuntos.
Uma noite, seriam duas horas da madrugada, o tísico gemeu com tal insistência que
acordou o estudante. Amâncio levantou-se, tomou uma vela e foi até o quarto dele.
Ficou impressionado. O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no
desespero da sua ortopnéia A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curva, a
barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentiam-se-lhe por detrás da pele empobrecida do
rosto os ângulos da caveira; acusavam-se-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente
vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo
esvazamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e
divisavam-se-lhe as duas filas de dentadura.
Não podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético,
virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementícias, a porejar um suor gorduroso e
frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele, cor de osso velho, um brilho
repugnante.
Faltava-lhe o ar e, todavia, pela janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite
entravam impregnados da música de um baile distante, e punham no triste abandono daquele
quarto uma melancolia dura, um áspero sentimento de egoísmo; alguma coisa da indiferença
dos que vivem pelos que se vão meter silenciosamente dentro da terra.
O médico recomendara que lhe dessem todo o ar possível e lhe fizessem beber de
espaço a espaço uma porção do calmante que lhe receitara. Uma lamparina de azeite fazia
tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente. Havia um cheiro enjoativo de moléstia e
desasseio.
Sabino dormia a sono solto no corredor. Amâncio acordou-o com o pé.
- É dessa forma que velas pelo homem? perguntou.
O moleque ergueu-se estremunhado e deu alguns passos, esbarrando pelas paredes, sem
cair em si.
- Vamos! Desperta por uma vez e dá-lhe o remédio! Ele parece que tem sede!
O tísico, ao ouvir a voz de Amâncio, principiou a agitar os braços, como se o chamasse,
grugulejando sons roucos e ininteligíveis.
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O estudante não quis atender, mas o doente insistia com tamanho desespero, que ele,
afinal, vencendo a repugnância, se aproximou, a conchear a mão contra a língua trêmula da vela.
Apesar de seus fracos estudos de medicina, fazia-lhe mal aos nervos aquela figura
descarnada, que se exinania na impudência aterradora da morte; faziam-lhe mal aqueles
membros despojados em vida, aquele esqueleto animado, que, na sua distanasia, parecia
convidá-lo para um passeio no cemitério.
E o tísico rouquejava sempre, agitando os braços.
O moleque, ao lado, derramava-lhe colheradas de remédio na boca; mas o líquido
voltava em fios pelo canto dos lábios do moribundo e escorria-lhe ao comprido do pescoço e
pela aridez escalavrada do peito.
Amâncio tomou-lhe um dos pulsos. O contacto pegajoso e úmido fez-lhe retirar-lhe logo
a mão com um arrepio.
- Creio que não deita esta noite! Disse ao moleque, afetando tranqüilidade, mas com a
voz sumida e alterada.
- Qual, nhô, ele está assim a um ror de dias! Leva nisto e não decide!...
- Não! Creio que agora está morrendo...
E olhou para o doente.
Este espichou a cabeça e respondeu que não, com um movimento demorado.
- Ele ouviu?...Perguntou Amâncio, impressionado com a intervenção inesperada do
moribundo.
A caveira tornou a agitar-se nos travesseiros para dizer que sim.
- Olha!...fez o estudante arregalando os olhos. E aproximou-se da porta, recomendando
ao Sabino que se não descuidasse da pobre criatura; que se não pusesse a dormir como ainda há
pouco!
O tísico, que havia serenado alguma coisa com a presença do rapaz, principiou de novo a
espolinhar-se, rilhando os dentes e agitando os braços e as pernas.
Amâncio, porém, não atendeu desta vez e saiu. O tísico rosnou com mais ânsia,
procurando lançar-se fora do leito, numa aflição crescente.
- Fica quieto! Gritou Sabino, obrigando-o a deitar-se.
* * *
Logo que o estudante se afastou com a vela, o quarto recaiu na sua dúbia claridade
modorrenta. Os ventos frios da madrugada continuavam a soprar. O moleque foi até a janela,
olhou a rua em silêncio, acendeu um cigarro e, quando viu que o seu homem parecia serenado,
tratou de reassumir o sono.
O senhor é que não podia sossegar, com a idéia naquele pobre rapaz, que ali morria aos
poucos, sem família, nem carinhos de espécie alguma; sem Ter ao menos quem o tratasse, nem
dispor de um amigo que se compadecesse dele.
- Infeliz criatura! Pensava .- Além do mais, longe da pátria, longe de tudo que lhe podia
ser caro!
E, sacudido de estanhas condolências, imaginava o pobre desterrado saindo de sua
aldeia em Portugal, atravessando os mares, atirado no convés de um navio, afinal no Brasil,
neste país-sonho, a trabalhar dia a dia durante uma mocidade, e economizar, e sofrer privações;
depois - falir, perder tudo de repente, achar-se em plena miséria e com a ladra da tísica a
comer-lhe os pulmões! Oh! cortava a alma!
Não se podia esquecer do desespero com que o desgraçado o chamava, como se lhe
quisesse pedir alguma coisa, fazer alguma revelação: - Talvez, quem sabe? Até o tomasse, no seu
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delírio, por algum amigo: porque Amâncio se se não enganava, chegara a distinguir-lhe balbuciar
o nome de alguém. - Não podia ser outra coisa, o mísero chama v apor um amigo!
- Mas, também, que idéia, a sua, de andar por aquelas horas a visitar moribundos! Que
diabo tinhas ele, no fim de contas, com o tal tísico?...Ora essa!
O vulto esquelético não lhe saía. porém, de defronte dos olhos, com a sua ronqueira
lúgubre, sempre a lhe estender os longos braços sem músculos e a rolar nas órbitas,
convulsivamente, aqueles dois bugalhos luminosos.
Fechou a porta do quarto, despiu o sobretudo que havia enfiado, apagou a vela e
recolheu-se à cama.
* * *
Era inútil; o sono não vinha; o quarto às escuras fazia-lhe mal aos nervos. No fim de
meia hora, ergueu-se novamente, tentou acender um bico de gás, haviam fechado no registro;
recorreu à vela e assentou-se à mesinha diante de um livro.
O tísico gemia.
- Que maçada! resmungou Amâncio, sem se poder safar da impressão que trouxera do
quarto "daquele diabo"! E cansava os olhos contra as páginas do livro, lendo sem
compreender.
Vinham-lhe bocejos repetidos, ardiam-lhe os olhos.- Agora talvez dormisse. O
importuno parecia sossegado, pelo menos não se lhe ouvia gemer.
Amâncio voltou à cama, sem ânimo de apagar a vela.
Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o despertaram em
sobressalto e uma pancada em cheio na porta fê-lo erguer-se de pulo e precipitar-se para ela.
Sabino e o tísico vieram-lhe à memória. Ouriçaram-se-lhe os cabelos, enlixou-se-lhe a
pele, e o coração bateu-lhe com mais força.
- Que teria sucedido? A mão tremia-lhe ao forçar o trinco.
A porta afinal cedeu, e Amâncio sentiu cair desamparadamente no chão o corpo
comprido e nu do héctico.
Estava horrível. Queria erguer-se, e em vão agitava as pernas e os braços. Amâncio
tentou ajudá-lo, gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tísico pareciam
quebrar-se-lhe nas mãos, que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas
de umidade desenhavam-lhe já o feitio do corpo.
O estudante desejava chamar por alguém. - O Sabino dormia com certeza! - Peste! Fez
um movimento para sair; mas o esqueleto agarrou-lhe violentamente os pulsos e pediu-lhe com
uns vagidos dolorosos que ficasse.
De seus olhos corriam duas lágrimas compridas.
Depois de um esforço terrível, conseguiu falar. Eram sons apenas murmurados, fracos,
quase imperceptíveis
Amâncio tinha razão: O desgraçado, no delírio de sua fraqueza, o tomara por algum bom
amigo. Suas palavras vinham-lhe aos lábios roxos impregnadas de confiança e de amor. Falava
de coisas estranhas ao outro; perguntava-lhe por indivíduos desconhecidos para Amâncio e
reprochava-lhe a culpa de não ter vindo mais cedo.
Depois referiu-se dolentemente à sua terra; tratou da infância, rindo, com os
olhos cheios d'água. Pediu que Amâncio, logo que lá voltasse, fosse à procura do senhor
padre, e encomendasse-lhe três missas.
Em seguida, fez um esforço para chegar ao ouvido do rapaz e começou, em ar de
mistério, a ensinar-lhe um caminho longo, muito longo... Explicava-lhe ruas, as voltas que era
necessário fazer para chegar lá; afinal, dava-se com uma choupana. Uma velhinha entrevada
fazia meia a um canto da casa. Amâncio que se aproximasse dela e lhe dissesse em segredo
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que o João, o seu querido filho...
Uma agonia violenta tolheu-lhe a fala. Ele ainda tentou dizer alguma coisa, mas o
sangue purulento já lhe golfeava da boca e caía-lhe um jorro pelo corpo. Estirou-se todo,
dobrou a cabeça para trás e, depois de entesar num estremecimento os membros
rechupados, foi pouco a pouco cerrando os lábios e empenando o corpo com um gemido
longo e sentidíssimo.
Lá fora, a música duvidosa continuava, ao longe, entristecendo.
Amâncio teve um assomo de cólera; seu temperamento nervoso e egoísta
revolucionava-se com o choque daquele incidente desagradável, que lhe não dizia respeito e
vinha-lhe todavia roubar despoticamente o sossego.
Logo que o tísico expirou, correu a acordar Sabino com um murro. O moleque
levantou-se, como da primeira vez, e correu à cama do tísico. A lamparina bruxuleava
sobre o velador, projetando em volta, pelas paredes, sombras que se iam dobrar no teto.
Sabino abismou-se ao dar com o leito vazio, olhou em torno, muito pasmo, chegou a
levantar a colcha e a espiar para debaixo da cama; depois correu à janela e interrogou a
solidão fria da rua.
- Ué! disse .
- És uma peste! Gritou-lhe Amâncio. - Por tua causa o tísico foi morrer no meu
quarto! Ande! Vá chamar o Dr. Coqueiro ou alguém que trate do corpo! Aqui em cima,
creio que não há ninguém, nem sequer o Paula Mendes.
O rabequista, com efeito, havia ficado essa noite em companhia da mulher em Niterói .
A notícia levantou embaixo um rebuliço. À exceção do Campelo e do
guarda-livros, ninguém mais se conservou na cama.
Mme. Brizard arrepelava-se, praguejando contra o maldito caiporismo que a perseguia
ultimamente. - Até já lhe vinham os tísicos morrer em casa! Era demais!
Causou grande impressão a narrativa de Amâncio sobre os últimos momentos do
homem. O Dr. Tavares desfez-se em altas considerações a esse respeito. Coqueiro proibiu
à irmã que subisse ao segundo andar, enquanto o cadáver não estivesse convenientemente
amortalhado e deposto no sofá que às pressas se carregou para cima. Por toda a casa
distribuíram-se fogareiros de incenso e alfazema. Sabino fora, de um pulo, buscar à botica
uma garrafa de labarraque , e o copeiro saíra para lançar à primeira praia o colchão, os
lençóis e os travesseiros que serviam ao defunto.
Descarregou-se o quarto. A francesa quis abrir um velho baú de folha, que jazia a um
canto e que era o único objeto deixado pelo morto; mas o Dr. Tavares opôs-se-lhe
energicamente, citando artigos do código criminal e dizendo em tom de autoridade que o
falecido era um súdito português e, por conseguinte, só ao cônsul de sua nação competia
fazer-lhe o espólio dos bens!
- E o que nos ficou ele a dever?! E mais a despesa dos lençóis, do colchão e do
diabo?! Perguntou Mme. Brizard.
- Recebe-se do consulado português ou não se recebe de pessoa alguma,
apressou-se a explicar o Coqueiro, que já sabia perfeitamente não haver dentro do tal baú
coisa alguma de valor.
* * *
O corpo saiu no dia seguinte, em um carro da misericórdia. E Amâncio declarou
positivamente que não estava disposto a ficar na casa de pensão em mais um dia.
- Pois então vamos todos para um arrabalde! - deliberou Mme. Brizard , em
conseqüência dos repetidos conchavos que fizera com o marido.
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Diabo era o estado de Nini, a pobrezita achava-se agora completamente
desarranjada. Comia encostando a boca ao prato, como um bicho; não trocava palavra
com pessoa alguma e nem mais podia ficar em liberdade , porque de vez em quando lhe
acometiam frenesis, que lhe davam para morder os outros e espatifar as roupas, até ficar
nua.
O médico entendia, porém, que, com um bom regime hidroterápico, ela ainda podia se
restabelecer. Citou exemplos animadores, "bonitos casos", disse os belos resultados que
ultimamente se obtinham por meio das duchas de água fria no tratamento das enfermidades
nervosas, e terminou declarando que, só por esse meio, havia esperança de uma cura radical.
E o doutor, logo que esteve a sós com Amâncio, confidenciou-lhe, rindo:
- Já toquei à velha sobre aquilo que falamos; creio que desta vez fica o senhor livre
da histérica!
Venceram-se, com efeito, os escrúpulos de Mme. Brizard, e Nini foi para a casa de
saúde do Dr. Eiras. A mãe teria notícias dela todos os dias e havia de lhe aparecer em pessoa
duas vezes por semana.
- Aquela rapariga era o tormento de sua vida! Antes Deus a tivesse chamado para
si! Agora, o que não seria necessário gastar com a tal casa de saúde?... talvez uns vinte
mil-réis diários, se não foram mais! Onde iria tudo aquilo parar? Era caiporismo,
definitivamente!
Como desejavam, descobrir-se uma casa em Santa Teresa. O Dr. Tavares e o
guarda-livros acompanhariam a família; Campelo, o esquisitão, é que não estava pela
mudança. Logo que lhe falaram nisso, pediu secamente a nota de suas despesas, pagou-a, e
retirou-se muito calmo, assoviando, de mão no bolso, cabeça erguida, na mesma fleuma
inalterável com que costumava sair todas as manhãs para o trabalho.
Todo ele ia como a dizer no seu silêncio indiferente e egoísta: "A mim tanto se me dá
seis como meia dúzia ...morar com Pedro ou morar com Paulo, tudo para mim é a
mesma coisa, desde que, em troca do - meu dinheiro - , me apresentem um quarto limpo e a
comida a horas certas. Se dez anos continuasse aqui Mme. Brizard, dez anos ficaria eu
na Rua do Resende; mas, uma vez que se muda para Santa Teresa - Adeus! vou
bater a outra freguesia... o que por aí não faltam são casas de pensão."
O Paula Mendes, ao entra pouco depois, recebeu em cheio a notícia de a família
Coqueiro ia deixar a casa e que por conseguinte era preciso que ele saldasse as suas
contas.
Mas o rabequista não tinha dinheiro na ocasião. - Logo que o tivesse havia de pagar
integralmente.
Os locandeiros não estavam por isso, já lhes bastavam os calos do gentleman e do
Melinho! E , depois de uma troca agitada de palavras, Mendes propôs deixar o piano,
ficando-lhe o direito de resgatá-lo mais tarde com a devida importância.
Mme. Brizard queria do dinheiro e não instrumentos de música! O Sr. Paula Mendes
que vendesse o piano e liquidasse depois as suas contas!
Assim foi. O rabequista saiu, e, quando à tarde voltou à casa de pensão, trazia
consigo um homenzinho de barbas compridas, que fechou o negócio por quatrocentos mil
réis. Mendes pagou o que devia, fez tristemente as suas malas, e afinal se retirou de cabeça
baixa e mãos cruzadas par trás.
César, que o fora espreitar ao corredor, voltou à varanda, dizendo espantado que
ele chorava ao descer as escadas.
- Deixa-o lá, menino! Resmungou a locandeira, e tocou a sineta, chamando para a
mesa.
* * *
[Linha 5500 de 8244 - Parte 4 de 5]
O jantar já não tinha o caráter de uma refeição de hotel, em mesa-redonda. Agora
compareciam apenas cinco pessoas: Amâncio, Amelinha, Mme. Brizard, Coqueiro, César e o
Dr. Tavares. O guarda-livros, esse continuava a não comer em casa.
Mme. Brizard suspirava à vista dos lugares vazios. - Oh! que aperto de coração
lhe fazia aquilo! Não podia resistir a tanta contrariedade ao mesmo tempo!...
Pelo corredor do jantar, falou a respeito de Nini, queixou-se de saudades. Já à
sobremesa, recrudesceram-lhe as ternuras maternais, vieram-lhe nostalgias, uma lágrima
saltou-lhe do olho esquerdo.
Chamou César para junto de si, abraçou-o e beijou-o repetidas vezes e ficou a
passar-lhe a mão pela cabeça. Um silencioso constrangimento se apoderou das pessoas
presentes; depois, ainda com a voz quebrada de comoção, ela pediu ao Coqueiro que se
não descuidasse de cobrar o que o Lambertosa e o Melinho ficaram a dever. - Agora
precisavam muito e muito de dinheiro!...
Mudaram-se no dia seguinte. Amâncio ia muito incomodado, amanhecera pior, quase
que não podia mexer com as pernas; todos lhe profetizavam, entretanto, rápidas melhoras
em Santa Teresa. O cômodo que lhe destinaram era da casa o mais espaçoso e arejado.
Amelinha não o desamparava, já não escondia até os seus carinhos, chegava-se
abertamente para o rapaz, como se fora casada com ele. Às vezes dizia-lhe segredos na
presença do irmão ou da francesa; prestava-lhe pequeninos serviços amorosos: levantar-lhe,
por exemplo, a gola do fraque, se fazia frio; abotoar-lhe o colarinho, se estava desabotoado;
atar-lhe a gravata, se o laço se desmanchava; chegar-lhe para junto a escarradeira se
Amâncio queria fumar.
Em Santa Teresa esses desvelos multiplicaram-se . aí já era a menina quem lhe
metia os botões na camisa e as fivelas no colete, quem lhe escovava a roupa e o chapéu, quem
lhe punha o perfume no lenço e lhe dava corda ao relógio, e, quando fazia bom tempo e o
rapaz tentava um passeio pelo morro, era ela quem corria a lhe trazer a bengala ou o
chapéu-de-sol, perguntando muito solícita se ele não se esquecera dos charutos e dos fósforos,
sem já tinha lenço, se levava dinheiro.
Mas, às vezes, rezingava, quase que ralhava com o estudante. Fazia-lhe censuras,
tomava-lhe contas de umas muitas coisas: se Amâncio passara por tal rua, se estivera durante
a ausência a passear sempre ou se encontrara alguém porventura em alguma parte; quando
lhe sentia cheiro de álcool queria saber o que o rapaz bebera.
Amélia, enfim, se derramava por todo ele, sem Amâncio dar por isso; invadia-o
sutilmente, como um bicho que entra na carne.
A nova residência punha-os muito mais juntos, muito mais unidos do que a da Rua do
Resende. Os quartos eram pequenos, chegados uns dos outros; havia um sótão com escadaria
para a sala de jantar. Amâncio morava aí, sozinho.
Tinha de seu uma alcova e um pequeno gabinete de trabalho; janelas para o nascente
e para o ocaso, despejando sobre o jardim.
Embaixo, então, era a sala de visitas, a de jantar e mais quatro cômodos, sem meter os
quartos da criadagem, a cozinha, a despensa e o banheiro. Num daqueles cômodos ficou o
João Coqueiro com a mulher; noutro Amelinha; noutro o guarda-livros, e o Dr. Tavares no
último.
A respeito de mobília, só se carregou da Rua do Resende a que era de todo
indispensável. Não se vendeu sequer um objeto; o casarão renderia muito mais com os trastes
e, além disso, Mme. Brizard contava, mais dia, menos dia, reabilitar a sua antiga e afamada
casa de pensão. - Porque, dizia ela - era impossível que as coisas não voltassem ao estado
primitivo!...
[Linha 5550 de 8244 - Parte 4 de 5]
Coqueiro é que parecia, como nunca, satisfeito de sua vida. Cuidava da nova casa com
muito interesse; falava em melhoramentos e aconselhava a Amâncio a que comprasse uma
mobiliazinha catita para ver como "ficava então naquele sótão melhor que um príncipe no
seu castelo".
A casa, de fato, convidava às fantasias do gosto, porque era perfeitamente nova e bem
feita; o papel das paredes estava imaculado, o chão limpo e os tetos virgens ainda de
moscaria
Amâncio experimentou rápidas melhoras; quis logo descer à cidade, mas o Coqueiro não
lhe permitiu ir só.
Aproveitaram o passeio par comprar a mobília. O provinciano recebera nesse mês
dinheiro do Norte e retirara mais algum da casa do Campos; João Coqueiro levou-o a uma loja
de trastes e escolheu ele próprio o que podia convir ao outro; isto é, uma cômoda, um
lavatório, uma boa cama de casados, uma secretária, duas estantes, um velador, e seis cadeiras;
tudo de mogno e trabalhado a gosto moderno.
Estes arranjos pediam outras coisas; escolheram-se também dois quadros para o intervalo
das portas, um belo espelho de parede, um relógio de pêndulo, tapetes, capachos e
escarradeiras.
* * *
O Coqueiro, muito empenhado na condução dos trastes, havia-se afastado alguns passos
de Amâncio, quando este sentiu baterem-lhe no ombro.
Era o Paiva Rocha.
- Oh! exclamou, satisfeito com o encontro.- Como vais tu? Há quanto tempo não nos
vemos!... Que é feito de ti?
- Ai, filho apoquentado! Respondeu o Paiva. Ultimamente tem sido uma enfiada de
coisas más!...Há dois meses que não recebo dinheiro do correspondente; tinha aí um lugar de
revisor numa folha e os ladrões passaram-me a perna em mais de duzentos mil-réis; além de
que, a besta do diretor lá da escola lembrou-se agora do exigir uma infinidade de maçadas e
obrigar-nos a despesas impossíveis! O diabo!
E, mudando de tom, perguntou como ia Amâncio; onde se metera, que ninguém o via?
O outro prestou contas de sua vida, expôs os pormenores de sua moléstia, falou nos
incômodos que dera à família do Coqueiro, principalmente a D. Amélia, que, por sinal, era uma
excelente menina.
- Maganão!... disse o comprovinciano, esbarrando-lhe intencionalmente no braço.
Amâncio repeliu com febre aquela insinuação. O colega fazia uma tremenda injustiça,
tanto a ele, Amâncio, como à pobre rapariga!
- Ora, filho! Queres tu agora dizer a mim o que é a gente do Coqueiro!...
Amâncio abriu grandes olhos.
- Morde aqui! Acrescentou o outro, apresentando-lhe o dedo.
E em troca de um gesto negativo do amigo:
- Não queres falar por ora, e fazes tu muito bem! Mas é impossível que a tua ingenuidade
chegue ao ponto de tomares a sério a irmão do Coqueiro, - a Amélia dos camarões!...
- Juro-te que, até aqui, só a tenho tratado com todo o respeito!
O outro soltou uma risada.
- É fato! Insistiu Amâncio, aborrecido já com aquela troça do companheiro, mas ao
mesmo tempo feliz por imaginar que as suas esperanças sobre a rapariga eram perfeitamente
justificáveis.
- Pois, se é fato, acredita que tens representado um papel de tolo! Fazem-te a barba,
[Linha 5600 de 8244 - Parte 4 de 5]
filho!
Amâncio, então, para provar a pureza de sua conduta, pintou o estado em que se achara
ultimamente, - entrevecido de reumatismo, sem préstimo para nada. E contou o que sofrera
com as bexigas.
- Ora, dize-me cá...volveu o outro em tom de segredo. - O Coqueiro já te não tem dado
algumas facadinhas...Confessa...
Amâncio, nem só confessou, como disse até o dinheiro que por várias vezes emprestara
ao senhorio.
- Hein?! Bradou o Paiva, fazendo-se muito fino. - Queres mais claro?...E ainda tens
escrúpulos, criança! Pois olha que te não fazem nenhum favor - tu pagas, filho, e pagas bem!
E lembrou que não seria mau tomarem alguma coisa num botequim próximo.
O outro declarou que estava ali à espera do Coqueiro.
- Deixa lá o Coqueiro, homem! Tens medo de ir só para casa ?...
- Mas é que não sei se me fará mal beber alguma coisa. Ainda estou em uso de remédios.
- Não sejas idiota! Exclamou o Paiva, puxando-o pelo braço.
Amâncio deixou-se levar, não tanto pelo prazer da companhia, como pela circunstância
de se livrar do Coqueiro, o que lhe dava esperanças de ver Lúcia ainda essa tarde.
No café, defronte dos copos, a conversa voltou de novo à gente de Mme. Brizard.
- Gentinha! qualificou o Paiva, atirando a palavra com o desprezo de quem lança fora o
sobejo de um copo.
E, depois, entornando os lábios, numa obstinação torpe:
- A questão está no pagamento!
Amâncio riu. Sentia-se feliz; aquele dia de liberdade, depois de tamanho recolhimento,
os cálices de xerez, as palavras degotadas do Rocha; tudo isso lhe picava o espírito com uma
pontinha de alegria devassa. Seus gostos, suas tendências luxuriosas, volviam-lhe em revoada,
como pássaro de arribação. Ficou expansivo, disposto aos desabafamentos da vaidade. Em
breve, contava tudo o que se passara com ele na casa de Mme. Brizard, descrevia as maneiras de
Amelinha com sua pessoa, os pequenos cuidados amorosos, as pequeninas frases significativas;
narrou minuciosamente as cenas com Lúcia e disse que, ao sair do café, iria visitá-la à Tijuca.
- Está claro! Trejeitou o outro, cuspilhando a areia branca do chão de pedra e batendo
com a ponta da bengala sobre os pés cruzados. - Eu, no teu caso, já teria desforrado melhor os
cobres!
- Achas então que eu devo?...
- Ora, filho, é o que se leva deste mundo! A respeito de virtudes temos conversado! Eu
cá só acredito numa castidade - a da velhice!... tirando daí...
e concluiu a sua idéia com um gesto feio.
Amâncio já recorria à moléstia para justificar aos olhos do amigo a atitude respeitosa que
ocupara ao lado de Amélia - o colega que não o julgasse um tolo!... Mas que diabo havia ele
de fazer, tolhido de dores, como estava, numa cama?...
Quando se despediram, o Paiva deu a entender que precisava de dinheiro; mas Amâncio
negou-o, apesar de bem provido, dizendo com voz triste que "sentia muito não poder servir
naquela ocasião".
O outro, sem mais querer ouvir coisa alguma, retirou-se logo.
* * *
Amâncio, assim que se viu livre, correu a tomar um tílburi e bateu para a casa de pensão,
onde estava Lúcia.
Era um palacete, com magnífica aparência. Janelas de sacada, grande corredor ladrilhado
de mármore e velhas escadarias encentradas de tapete de oleado, preso a cada degrau por um
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fio de metal amarelo.
Foi recebido cerimoniosamente no salão por uma mulheraça muito gorda, de luneta,
extremamente degotada, mostrando entre as almofadas do peito ramificações de veiazinhas
escarlates, que pareciam miniaturas de árvores secas desenhadas a bico de pena. Em um dos
braços luzia-lhe uma jóia e, por debaixo do vestido de cambraia, aparecia-lhe o pé quase
redondo e empantufado de veludo azul.
Tinha a voz grossa, cheia de uu, e o lóbulo do queixo coberto de penugem negra.
Ai saber que Amâncio não ia com a intenção de tomar algum cômodo, mas sim para falar
com Lúcia, retirou-se sacudindo os rins; e da sala o estudante lhe ouviu gritar ao criado "que
fosse prevenir à senhora do Sr. Pereira de que aí estava um cavalheiro que lhe desejava falar".
Lúcia mostrou-se no fim de meia hora, a pedir mil perdões por se haver demorado mais
um pouco. Fizera toilette especial para recebê-lo e parecia muito lisonjeada com a visita.
Declarou, logo, que o achava mais gordo, de melhor fisionomia. - Abençoada moléstia,
a dele!
E, em resposta ao que o rapaz lhe perguntava sobre aquela nova residência , elogiou
muito a casa, o serviço. "Sempre era outra coisa! Nem havia termo de comparação entre esta e
a de Mme. Brizard!"
Amâncio voltou-se todo na cadeira, considerando a sala. Uma rica sala, apesar de
velha, - grande , espelhada, cortinas de ramagem, consolos cobertos de jarras com flores
artificiais de pena. A um dos cantos um piano antigo e no centro do teto de estuque, no lugar
donde espipava o lustre, um grande escudo de cores, rebentando em cabecinhas de anjos.
Falaram logo sobre as novidades da casa de pensão do Coqueiro: a saída dos hóspedes,
a morte do tísico, a mudança para Santa Teresa.
- Você ali está seguro!... disse Lúcia.
O estudante protestou com um gesto, em que já havia alguma coisa das revelações que
pouco antes lhe fizera o Paiva Rocha.
E, discutindo os amores de Amelinha, foram pouco e pouco empurrando a conversa para
o verdadeiro motivo da visita, até que Amâncio conseguiu tratar de si, das suas saudades do
quanto desejava Lúcia, do quanto sofria por causa daquela ingrata que ali estava!
- Mais baixo! Olha que te podem ouvir!...
ele então chegou-se mais para a ilustrada senhora, tomando-lhe as mãos que cobria de
beijos, e, no seu ardor, com a voz abafada, os olhos acendidos, procurava arrancar-lhe uma
resposta definitiva, uma palavra qualquer que o restituísse por uma vez à tranqüilidade.
- Está quieto! Respondeu a tirana. - Está quieto!
E, vendo que o demônio não a escutava, em risco de comprometê-la aos olhos de quem
por acaso entrasse na sala, propôs mostrar-lhe a chácara enquanto esperavam pelo jantar. -
Que ela já o não deixava sair sem ter jantado!...
Havia duas descidas; uma pelo corredor e outra pela varanda. Tomaram por resta.
Lúcia, muito disfarçada, ia-lhe apontando os cômodos e as benfeitorias da casa, com
tanto empenho e gosto como se fora mesma a proprietária; mostrou-lhe o banheiro, os tanques
para a lavagem de roupa, o coradouro, o cercado das galinhas e por último o jardim.
Colheu logo uma rosa e, por suas próprias mãos enfiou-a na gola do fraque de Amâncio.
Em seguida atravessaram a hora.
Canteiros grandes, cobertos de verdura, saturavam o ar de um cheiro de hortaliças. As
alfaces brilhavam ao sol dourado de julho. Mais para adiante havia um sombrejar melancólico e
deliciosos de árvores grandes; era a chácara; viam-se no ar as folhas largas e recortadas da
fruta-pão faiscarem, como lâminas de metal brunido; ao passo que as bojudas mangueiras se
debruçavam sobre a terra numa concentração pesada de sono.
Os dois prosseguiram de braço dado por entre o murmurejar tristonho daquelas
sombras. E lentamente, e sem trocarem uma palavra, se deixaram ir até a espalda de um morro,
[Linha 5700 de 8244 - Parte 4 de 5]
que servia de limite à chácara.
Havia um grosseiro banco de pau meio escondido entre bambus e trepadeira.
Assentaram-se. Um fio de água corria da montanha e os passarinhos remigiavam trilando na
mole embalsamada das estevas.
Amâncio passou um braço na cintura de Lúcia e chamou-lhe o corpo para junto do
seu. Ela deixou-se arrebatar, bambeando a cabeça, num encontro apaixonado de lábios.
O rapaz parecia louco no seu desejo.
- Não! Isso não! dizia a outra. - Mostra que é um homem de espírito! Não se queira
confundir com esses materialões que há por aí!
Ele opunha as razões que lhe vinham à cabeça para justificar os seus rogos: "Lúcia que
não quisesse desvirtuar o amor, o verdadeiro amor, fazendo de um sentimento real e fecundo
uma pieguice romântica e desenxabida". Lembrou-lhe o que ela própria dissera, quando pela
primeira vez estiveram juntos.
E, num esfolegar febril e ruidoso, suplicava-lhe um pouco de compaixão, ao menos; que
não o torturasse daquele modo; que não o obrigasse a sucumbir ao desespero de sua paixão!
Lúcia não entendeu. - Ele que deixasse a casa de Mme. Brizard e viesse tomar um
cômodo ali na Tijuca. Assim ... bem! Mas, naquele momento e naquelas circunstâncias... Não!
não! e não!
Apesar de enérgica recusa, Amâncio insistia sempre.
- Não seja teimoso, repreendeu ela, arrancando-lhe as saias da mão. - Oh!
ele, porem, não se desenganava e até já recorria à violência.
- Pior! Disse a mulher, notando que o estudante lhe desgrenhava os cabelos e
machucava-lhe as roupas. - Já não vou gostando muito da brincadeira!
E, a um movimento desabrido do rapaz:
- Ora pílulas! Isso agora também já é estupidez!
Amâncio ao lado bufava, imóvel, emitindo sobre ela olhares de cólera.
- O senhor faz-se desentendido! Exclamou Lúcia, afinal, endireitando o penteado e
armando as lunetas. - Há muito devia compreender que nada alcançará de mim, enquanto eu
estiver com meu marido!
- Marido o quê! Desmentiu o provinciano, com a voz sufocada. - Tão marido como
eu!
Lúcia olhou para ele, apertando os olhos.
- É isso! Sustentou aquele. - Sei de tudo! A senhora quer fazer de mim um tolo, pois
fique sabendo que não faz! Trate de arranjar outro, porque comigo perde o seu tempo!
Ela o mediu de alto a baixo, levantou desdenhosamente o lábio superior, e afastou-se
com um grande ar emproado e senhoril, murmurando entredentes.
- Ordinário!
Amâncio calcou o chapéu sobre os olhos, e, de cabeça baixa e passos lentos, retomou
pelo caminho andando, a fustigar com a bengala as ervínculas da estrada. Saiu pelo portão da
chácara.
Já na rua, sacudia os ombros e disse a meia voz:
- Que a leve o diabo!
XV
O rapaz acordou muito bem disposto no outro dia, estava, ou pelo menos parecia,
restabelecido completamente. Os ares tonificantes da Santa Teresa produziram-lhe efeitos
miraculosos.
[Linha 5750 de 8244 - Parte 4 de 5]
- Até que enfim podia mandar ao diabo os xaropes e as tisanas que, de tempos a essa
parte, lhe melancolizavam a vida e relaxavam o estômago. E, ainda, metido entre os lençóis, na
matinal preguiça das sete e meia, dispunha-se a filosofar sobre o ridículo episódio da véspera,
quando um leve rumor na porta do quarto lhe desviou o curso das idéias. Era a menina que
trazia o café.
Viu-lhe a pálida mãozinha medrosamente surdir por entre a fisga da porta mal cerrada,
para depor no chão, como era de costume, a chávena de porcelana. Amâncio. porém, desta vez
saltou da cama e, correndo da gatinhas, a empolgou nas suas.
A mãozinha quis fugir, ele não consentiu, e com ela veio um braço que as folhas da porta
arremangavam.
Começou a beijá-lo sofregamente, desde a ponta dos dedos até os bíceps; enquanto
Amélia, sempre escondida ia consentindo, toda ela arrepiada em cócegas.
- Um beijinho...pediu ele mostrando o rosto.
- Logo!
- Com certeza?...
- Com certeza!
E a pequena desapareceu muito ligeira, - tique, tique, tique, pela escada.
Pouco depois combinaram a primeira entrevista. Ela subiria ao sótão, logo que a casa
estivesse completamente recolhida. Amâncio que a esperasse no escuro e com a porta do quarto
apenas cerrada.
O rapaz não pôde ficar tranqüilo mais um instante.
As horas nunca lhe pareceram tão longas e as conversas tão intermináveis. Um
sobressalto feliz perturbava-o todo, tirava-lhe o apetite e não lhe permitia um pensamento que
não fosse cair aos pés de Amélia.
Por maior caiporismo, o Dr. Tavares tinha essa noite uma visita que parecia disposta a
não largá-lo. Era um velho de sua província, muito falador de política, apaixonado pelas
eleições, pelos conservadores, mas que, nem à mão de Deus Padre, pronunciava os rr e os ss e
dizia: "Os partido liberá, os senadô", e outras barbaridades.
- Quando se irá este cacete?...pensava Amâncio, trêmulo de impaciência.
E o Tavares a puxar pelo demônio do homem, a fazer-lhe perguntas sobre perguntas e a
despejar contra ele a sua retórica inexaurível.
Até o guarda-livros que às vezes passava dias e dias sem dar uma palavra, estava essa
noite disposto a falar pelos cotovelos. Ainda pilhara o chá e, repimpando na cadeira, com um
brilhante a luzir num dedo, o ar satisfeito, os punhos bem engomados, taramelava a respeito dos
seus projetos de casamento. "Sim, que ele, havia coisas de ano e meio, estava para desposar uma
linda menina e de educação esmeradíssima. Já há tempos a pedira!... Só esperava que a casa,
onde trabalhava desde os seus quinze anos, lhe desse sociedade, como aliás, havia já
prometido. - Ah! Toda a sua ambição era fazer família! Que vidinha melhor que a do
casado?...o matrimônio era um complemento do homem...A gente enquanto moça não sentia a
falta da esposa, mas depois?...quando chegasse a velhice?...Aí é que seriam elas! Não! não
podia admitir um eterno celibato!...A vida do solteiro tinha seus encantos, tinha, para que
negar?...os espinhos, porém, eram em maior número; se eram!...
E citava os casos.
Amâncio retirou-se da varanda, sufocado de raiva. Preferia esperar no quarto.
Deram onze horas. Amelinha pediu licença e também se recolheu. Mme. Brizard, à
cabeceira da mesa, já bocejava, entretendo os dedos, a fazer pílulas das migalhas de pão que
ficaram do chá; o marido, ao lado dela, estudava mecânica racional.
Veio finalmente o copeiro levantar a mesa e buscar o César para a cama. O guarda-livros
apertou as mãos de todos e sumiu-se; o sujeito dos partido liberá , a despeito das insistências do
amigo, despediu-se igualmente e, quando o advogado, que o fora acompanhar até o portão da
[Linha 5800 de 8244 - Parte 4 de 5]
chácara voltou à varanda, já não encontrou ninguém.
Em pouco a casa era todo silêncio e trevas. Então, Amelinha, deixou o quarto
sorrateiramente, tirou as botinas, apanhou as saias e galgou a escada do sótão.
Amâncio, que a esperava na porta, logo que a teve ao alcance da mão, puxou-a para
dentro, e deu uma volta à fechadura.
* * *
Desde esse momento, a vida em casa de Mme Brizard tornou-se para ele uma coisa
muito agradável. Ninguém mostrava desconfiar, ao menos, de suas intimidades com Amélia,
que pelo seu lado parecia satisfeita com o estado de coisas.
Só uma ligeira circunstâncias covardemente o arreceava: É que a pequena não lhe exibira
em quarta ou quinta edição, como dizia o Paiva, mas em comprometedoras primícias, com
todos os cruentos requisitos de uma estréia.
Fugiu o primeiro mês de lua-de-mel, sem o menor eclipse. Contudo, ele agora puxava
um pouco mais pela bolsa: a família estava em crise; a pensão de Nini absorvia os proventos que
se obtinham do Tavares e do guarda-livros; o casarão da Rua do Resende apenas se conseguira
alugar em parte; os gêneros de primeira necessidade eram mais caros em Santa Teresa.
Mas que valia tudo isso posto em confronto aos gozos que lhe proporcionava a deliciosa
rapariga?
Ela parecia viver exclusivamente para lhe dar carinhos e afagos. Era como se fora sua
esposa; deixava tudo de mão para só cuidar do amante. - Ele estava em primeiro lugar! Agora
a pequena lhe fazia a cama; levava-lhe ao quarto o moringue d'água, penteava-lhe os cabelos, e
exigia que o rapaz lhe dissesse os passos que dava, por onde estivera, com quem falara e o
dinheiro que gastara. Revistava-lhe conjugalmente as algibeiras, lia-lhe as cartas e, sempre
desconfiada, cheirava-lhe as roupas.
Amâncio sorria de tais ciúmes, com o ar seguro de quem desfruta em paz uma felicidade
legítima e abençoada por todos. Já não furtava beijinhos assustados por detrás das portas; não
roçavam os joelhos por debaixo da mesa, e não se serviam das mãos como instrumentos de
amor; guardavam-se para as liberdades da noite, para a independência do quarto. Na ocasião,
porém, em que ele saia para as aulas ou à noite para o passeio, beijocavam-se, sempre, como
dois bons casados.
Entretanto, as épocas de exame batiam à porta. Amâncio vivia em desassossego com
os seus estudos tão mal apercebidos; mas o Coqueiro dava-lhe coragem, ensinando-lhe como
devia proceder, dizendo-lhe o que devia estudar de preferencia, aconselhando-o a que não
tivesse medo. "Amâncio que se apresentasse de cabeça erguida: o bom êxito nos exames
dependia quase sempre do desembaraço mais ou menos atrevido do concorrente!" E citava
exemplos: "Fulano que apenas conhecia dois pontos de tal matéria, chimpara distinção, só
porque era de um descaramento imperturbável; ao passo que sicrano, apesar de muito bem
preparado, não conseguira passar com a sua vozinha trêmula e o seu todo raquítico e
assustado!"
Um novo acontecimento veio, porém, desviar Amâncio daquela preocupação: por
telegrama de sua província, constou-lhe que o velho Vasconcelos morrera de beribéri
fulminante.
Os pormenores chegaram no primeiro vapor: "Vasconcelos fora atacado como hoje e
morrera como depois de amanhã. Ia pela rua, muito senhor de si, quando, de repente, sentiu
afrouxarem-se-lhe as pernas e teria desabado no chão, se dois homens que passavam não o
socorressem prontamente.
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"Foi recolhido à primeira casa, que era felizmente de um amigo. Meia hora depois já lhe
principiava a faltar a respiração: a moléstia subia, ameaçando-lhe o estômago. Fez-se uma junta
de médicos; ficou resolvido que o doente devia seguir, sem perda de tempo, para qualquer
parte, - Caxias, Rosário, mesmo Alcântara, a Vila do Paço, que fosse; contanto que saísse da
cidade, quanto antes, até aparecer um vapor que o levasse para mais longe.
"Partiu nesse mesmo dia, dentro de uma rede, com direção à Vila do Paço. Mas o
terrível beribéri subia sempre; os membros por onde ele atravessava iam ficando paralisado e
frios como membros de defunto. A onda maldita galgara finalmente a caixa torácica,
Vasconcelos não pôde respirar de todo e morreu".
Amélia, ao receber a inesperada notícia, rebentou num berreiro e tratou de cobrir-se de
luto fechado.
O irmão também se vestiu de preto, fez cerrar as portas e as janelas da casa por sete dias
e, durante esse tempo, andou tristonho e anojado.
* * *
Amâncio perturbou-se deveras com a morte do pai. Há bastante tempo mentalizava
projetos de , em voltando à província, tratá-lo de modo tão carinhoso e tão amigo, que sua
consciência ficasse, por uma vez, tranqüila a esse respeito. Havia no segredo de tal intenção o
sabor inefável de um voto religioso. E seus planos, assim malogrado de repente, enchiam-lhe
agora o coração de tristeza e as noites de sonhos tormentosos.
Mas Amelinha lá estava para o consolar, para lhe reprimir os gemidos com a polpa
vermelha de seus lábios, e espantar-lhe os negrumes do desgosto com a luz voluptuosa de seus
olhos e com a doçura cristalina de suas palavras.
Veio o Campos. Trataram longamente do "triste acontecimento": Amâncio queria dar
um pulo ao Norte: a mãe com certeza precisava dele as seu lado, quando mais não fosse para
tratar do inventário.
O negociante já não compreendia assim: " Estavam a chegar os exames; Amâncio, ase
saísse da Corte naquele momento, perderia o ano; o melhor, por conseguinte, seria esperar pelas
férias. Pois então! eram mais alguns dias de demora que não prejudicavam a ninguém!..."
Coqueiro pensava do mesmo modo. "Nem o colega encontraria alguém com um
bocadinho de juízo que lhe aconselhasse uma semelhante viagem antes do ato. Era até loucura
pensar nisso!"
Cruzaram-se cartas entre o Rio de Janeiro e Maranhão. Amâncio foi considerado maior
pelo Juiz de órfãos, podia receber o que lhe tocavas na herança. Mas a firma liquidante
ofereceu-lhe sociedade em comandita; ele aceitou, a conselho de Campos, e insti5tuiu na
província um advogado de confiança para lhe curar os bens. Escolheu-se o Dr.Silveira, o dos
cabelos pintados, aquele mesmo que, no dia do exame de português, se mostrara tão
entusiasmado pelo rapaz.
Até que enfim estava Amâncio livre e senhor de sua bolsa; podia gastar à farta, sem
sofrer daí em diante as peias da mesada. E não o amedrontava igualmente o risco de cair na
penúria, porque ainda havia para reserva o que tinha a herdar da mãe e da avó.
Os carinhos e as solicitudes da família Coqueiro inflamaram-se, já se vê, com os últimos
acontecimentos. O estudante era cada vez mais adulado e em compensação mais explorado.
Agora, o irmão de Amélia não punha o menor escrúpulo lhe aceitar os obséquios e a casa ia
ficando a pouco e pouco às costas do provinciano.
Era sempre por intermédio de Amélia que ele sofria a cardadura. Hoje tratava-se do
aluguel da casa, amanhã seria a conta do Eiras, depois a dos fornecedores; se entrava um barril
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de vinho para a despensa, ou um saco de feijão; se aparecia um novo aparelho de porcelana à
mesa do almoço ou do jantar, Amâncio ficava à espera da fatura que, à noite,
impreterivelmente, passava as mãos da rapariga para as suas.
Amelinha, essa então, já não procurava rodeios para lhe arranjar as coisas. Quando
precisava de um vestido, de uma jóia, de um chapéu, dizia-lhe secamente:" Deixe-me tanto, que
amanhã tenho de fazer compras".
E as despesas das casa recrudesciam, à proporção que minguavam os lucros. O
guarda-livros despedira-se, porque afinal chegara a época do seu casamento, e ninguém o
substituiu; só ficou advogado que deixaria por mês, quando muito, uns duzentos mil-réis.
Amâncio ia suportando a carga silenciosamente, certo de que não encontraria
dificuldade em despejá-la, assim que a coisa lhe cheirasse mal.
Todavia, o dinheiro era já o único recurso de que dispunha para fazer calar a amante,
quando esta lhe falava em casamento. Em tais ocasiões, a rapariga chorava quase sempre;
dizia-se infeliz; queixava-se da sorte. "Que Amâncio fora a sua perdição! Que ela cedera aos
rogos dele na persuasão de que era amada e de que mais tarde seria sua esposa!"
- Ora, filha! Nós, antes de cairmos na asneira em que caímos, não tocamos uma só vez
em casamento! E , se queres que te diga com franqueza, eu até nem supunha ser o primeiro com
quem tivesses relações!...
Ela irritava-se ao ponto de ameaçá-lo com um escândalo. Amâncio que se não enganasse,
pois que havia um João Coqueiro sobre a terra! Ele que não caísse no descoco de querer
desampará-la, porque então as coisas lhe sairiam mais atravessadas!
Estas rezingas terminavam sempre por uma nova exigência de Amélia. E já não se
contentava com um chapéu ou com um par de botinas, queria vestidos de seda, jóias de valor e
dinheiro para gastar.
Uma noite, Amâncio ficou abismado por lhe ouvir falar na compra de um chalé nas
Laranjeiras.
- Sim! reforçou ela, ao perceber que o rapaz não tomava a sério suas palavras. -
Despedia-se o Tavares e ficaríamos à vontade por uma vez! Eu não estou satisfeita aqui!...
Ele tornou a sorrir. - Amélia com certeza estava gracejando...
Mas a rapariga jurou que não, recorrendo a todos os segredos de sua ternura. Afinal,
vendo que o amante não cedia, zangou-se como de costume.
- Tu assim o queres; disse arrancando-se dos braços dele,- pois bem, tu assim o terás!
Amanhã hás de ver o que sai nesta casa!
Amâncio encolheu os ombros.
- Não te importas?! Pois veremos quem tem razão!!
E limpando os olhos:
- Ingrato! Por que sabe que a gente o estima, abusa deste modo! Tola fui eu em me
deixar seduzir!...
- Eu não a seduzi! Ora essa!
- Até fez mais, replicou ela - Desonrou-me!
- Pois desonrada ou seduzida, não tenho dinheiro para comprar casas!
Amélia saiu essas noite do quarto do estudante ameaçando fazer estourar a bomba no
dia seguinte.
E, pela manhã, quando Amâncio , ao seguir para as aulas, lhe foi dar o beijo favorito, .
ela muito amuada, voltou o rosto, resmungando "que a deixasse".
O rapaz prometeu que "ia pensar" e à noite daria uma resposta.
Mas nessa noite, Amélia, pela primeira vez, depois do seu novo estado, não se
apresentou às horas habituais no quarto do estudante.
Amâncio, sem perder as esperanças de a ver surgir de um momento para outro e
precipitar-se-lhe nos braços, não conseguira ficar tranqüilo. Aquele procedimento, vindo de
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quem vinha, o revoltava como a mais infame das ingratidões!
Ouviu dar três horas, quatro, cinco. Não se conteve, levantou-se, pisando forte, desceu à
varanda e foi bater à porta de Amélia.
Nada.
Bateu mais rijo.
- Que é?! Perguntou ela asperamente.
- Preciso falar-lhe.
- Não são horas para isso!
- Ouça! Quero dizer-lhe uma coisa...
- Não tenho negócios! Entenda-se com meu irmão!
Amâncio voltou ao quarto, desesperado. Não que o acovardassem as ameaças da
rapariga, bem percebia que as suas relações com ela não eram em casa nenhum segredo e, além
disso, desde que aceitavam o pagamento, - ora adeus! nada podiam dizer! Mas
apoquentava-se com a falta que já fazia o diabrete da pequena. Habituara-se a dormir ao calor
perfumado daquele corpinho branco, ajeitara-se ao cômodo amor daquela mulherzinha nova e
palpitante e, agora, não podia voltar, assim sem mais nem menos, às suas tristes noites
desacompanhadas do outro tempo.
Acordou muito tarde no dia seguinte. Amélia , quando ele saiu do quarto, não lhe deu
palavra; estava arrumando uma caixa de retalhos, e arrumando ficou. Mme. Brizard havia saído
para ver Nini. - O Coqueiro e os hóspedes se achavam também na rua.
- Então o senhora não me quer falar? Perguntou Amâncio, fitando-lhe as costas.
Ela interrompeu o que cantarolava e, sem se voltar, disse friamente:
- A culpa é sua ...
E continuou a cantarejar, muito embebida nos seus retalhos de fazenda.
Aquele desdém, namorado e artístico, a tornava ainda mis desejável aos olhos do rapaz.
Parecia-lhe até mais vela esse dia; como se os seus encantos, intervindo na perrice,
florejassem caprichosamente durante aquela noite de soledade.
Amâncio nunca lhe achou a pele tão fina, os dentes tão brancos, os olhos tão vivos e tão
formosos. O pálido e ondulante pescoço da menina jamais lhe pareceu tão misterioso: a sua
garganta, macia e doce, jamais o cativara tão despoticamente. Ele, enfim, nunca a sentira tão
necessária, tão indispensável.
E as cenas venturosas dos seus primeiros dias de amor lhe perpassaram
vertiginosamente diante dos olhos, derramando-lhe por todo o corpo um apetite brutal de
readquirir, no mesmo instante, aquela riqueza, que lhe fugia por entre os dedos, como um vinho
precioso que se derrama.
- Então a culpa é minha?...disse ele, afinal, apalpando com a vista a carne esperta dos
quadris e dos braços da amante.
- Pois você não vê, respondeu ela, voltando-se espevitada - que as coisas não podem
continuar como até aqui?! É uma canseira insuportável! Quase que já não durmo! Preciso
esperar de olho aberto que toda a casa ser recolha e recolher-me ao quarto antes que os mais se
levantem! O resultado é que não descanso; ando tresnoitada; estou enfraquecendo! Já tenho até
uma dor do lado. Quem pode com esta vida?! Ah! você não sente, bem certo! Porque muita vez
o encontro a dormir, e dormindo o deixo quando saio! Mas eu?! Se quero que não aconteça
como outro dia (que nem sei como não deram pela coisa !) o remédio que tenho é ficar alerta e
não deixar que o dia me surpreenda a dormir no seu quarto! Vê você?!
- Mas daí?...perguntou Amâncio, no fundo compenetrado de que "a pobre menina" não
deixava de ter o seu bocadinho de razão.
- Daí...esclareceu Amélia, - é que nessa tal casa de que lhe falei, e que está para se
vender muito em conta, há, além dos cômodos necessários para Loló e Janjão, dois quartos
magníficos, com entradas independentes e comunicáveis entre si por uma pequena alcova. Ora,
[Linha 6000 de 8244 - Parte 4 de 5]
um dos quartos dá para a sala de visitas e o outro para a sala de jantar; no caso de que
arranjássemos o negócio, você ficaria com um e eu ficaria com o outro, e dessa forma
acabavam-se os sustos e as canseiras; porque durante o dia abriam-se as portas do lado de fora e
fecham-se as de dentro, mas à noite praticava-se justamente o contrário, e ficávamos nos em
completa liberdade! Compreende você agora?...
- Sim, Amâncio compreendia e até achava o plano muito bem lembrado, mas a questão é
que não via necessidade d comprar a casa, era bastante alugá-la...
- Sim, sim! mas é que o dono não a aluga, quer vendê-la. E onde ia você encontrar outra
casa nessas condições?...
- Hei de passar por lá...
- Não. Vamos hoje mesmo, à tarde. Loló já prometeu que nos acompanha.
- Pois sim.
E Amâncio puxou Amélia pelo braço, para lhe dar um beijo.
- Deixe-me...rezingou ela, ainda com um restinho do arrufo. Você só cuida de si e das
suas comodidades...Egoísta!
- Não digas isso, meu bem!
- Pois não é assim?! Qual foi a vontade séria que você já me fez? É bastante que eu
mostre gosto numa coisa, para você fazer justamente o contrário...Entretanto, eu, por sua causa,
sacrifiquei tudo que possuía!
E começou a chorar, muito infeliz, a dizer que Amâncio tinha razão! - Ninguém lhe
mandara ser tola! Ela nunca deveria ter-se entregado senão depois do casamento!
E as suas lágrimas enxugavam-se nos lábios dele.
E assim ficaram alguns minutos, até que Amélia, de repente, se lhe tirou dos braços e,
abrindo distancias, declarou de longe, em plena atração de seus encantos, que "não faria
nenhum caso de Amâncio enquanto não possuísse o chalé".
Nessa mesma noite ficou assentado que o rapaz, em nome da amante, compraria a casa
das Laranjeiras.
* * *
Com efeito, umas semana depois, tratava-se da escritura de compra. O negócio correu a
galope, visto que a propriedade era de um pândego sequioso por dinheiro.
Podiam cuidar logo da nova mudança; Amélia, porém, não consentiu em tal, sem que se
realizassem umas tantas benfeitorias que a "sua" casa reclamava; substituir, por exemplo, o papel
da sala de visitas, que era de mau gosto; meter-lhe água, que não havia, e fazer esteirar os
aposentos destinados para si junto com seu homem.
Mas Amâncio não podia distrais tempo com essas coisas: andava muito absorvido pela
idéia dos exames que se aproximavam.
Ultimamente viera-lhe uma febre de formatura, queria a todo o custo "passar "no
primeiro ano. - Também era só do que fazia questão, "passar no primeiro", porque, quanto aos
outros, tinha certeza de se preparar melhor e com mais antecedência. agora, lamentava o tempo
perdido na preguiça e na moléstia; dava ao diabo os seus amores, e vivia numa dobadoura a
arranjar empenhos e cartas de proteção. Agarrou-se ao Campos; agarrou-se àquele Dr. Freitinhas
(do baile do Melo
) que era unha com carne de um dos examinadores. E furou, e virou, e percorreu amigos
e desconhecidos, até se julgar "garantido'" . Então, pagou a Segunda matrícula e entregou-se de
olhos fechados a destino. "Seria o que Deus quisesse!"
Era ,pois, o Coqueiro quem dirigia as obras da casa da irmã. O metódico rapaz sempre
tivera paixão por esse gênero de trabalho.
- Se fosse rico, afirmava ele, - muito prédio havia de fazer, só pelo gfostinho de
[Linha 6050 de 8244 - Parte 4 de 5]
acompanhar as obras!
XVI
C
hegou, finalmente a véspera do amaldiçoado exame.
Que ansiedade! Que de angústias para o pobre Amâncio! que noite, a sua! - Não
descansou um segundo; apenas, já quase ao amanhecer, conseguiu passar pelo sono; antes,
porém, não dormisse, tais eram os pesadelos e bárbaros sonhos que o perseguiam.
Via-se entalado num enorme rosário de vértebras que se enroscava por ele, como uma
cobra de ossos; grandes tíbias dançavam-lhe em derredor, atirando-lhe pancadas nas pernas; as
fórmulas mais difíceis da química e da físicas individualizavam-se para o torturar com a sua
presença; os examinadores surgiam-lhe terríveis, ríspidos, armados de palmatória, todos com
aquela feia catadura do seu ex-professor de português no Maranhão.
Pelo incoerente prisma do sonho, o concurso acadêmico amesquinhava-se às ridículas
proporções do exame de primeiras letras. Era a mesma salinha do mestre-escola, a mesma banca
de paparaúba manchada de tinta, o mesmo fanhoso Sotero dos Reis presidindo a mesa, João
Coqueiro, o Paiva e o Simões, vestidos de menino, fitavam o examinando com um petulante
riso de escárnio. Amâncio sentia corre-lhe o suor por todo o corpo e agulhas invisíveis
penetrarem-no até à medula. O professor, transformado em juiz e ostentando as feições do
falecido Vasconcelos, inquiria-o com asperezas de senhor; mas as suas perguntas, em vez de
concernirem às matérias do ato, só se referiam a Amélia.
- Por que matou você a pobre menina?! Bramia o pai cravando-lhe olhares de fogo: -
Responda, seu canalha! Responda! Ah! Pensa que ainda não sei de que você, para melhor a
seduzir, lhe havia prometido casamento e jurado olhar sempre para ela, seu cachorro?!
O Coqueiro ,lá do canto, sacudia a cabeça afirmativamente e enviava a Amâncio caretas
de vingança. Ao lado deste, o cadáver de Amélia fazia-se todo vermelho com o sangue que lhe
gotejava golpeava de golpejava de um dos seios rasgados de alto a baixo
O réu queria responder, justificar-se, expor a verdade; eram, porém, baldados os seus
esforços: não consegui articular uma palavra; gelatinava-se-lhe a voz. na garganta
,empacando-lhe a fala.
- Bem! Gritou o velho Vasconcelos à meia dúzia de soldados que escoltavam Amâncio. -
Conduzam esse miserável ao cepo e cortem-lhe a cabeça!
O estudante atirou-se de joelhos, com as mãos postas, chorando, suplicando que o não
matassem. mas os soldados apoderaram-se dele com violência e ataram-lhe os braços. O Juiz,
Coqueiro, Simões, o Paiva, sumiram-se de repente, soltando gargalhadas. Amâncio foi
conduzido por um corredor muito escuro e apertado; os soldados, quando o percebiam vacilar,
batiam-lhe no ombro com a coronha das espingardas. Chegou a um pátio lajeado e úmido, onde
milhares de homens armados formavam alas; no centro, sobre um toro de madeira conspurcada
de sangue, reluzia um machado à sua espera; e, de joelhos, abraçado a um crucifixo, um padre
velho, de longos cabelos brancos, engrolava latins
Fizeram silêncio.
No meio das respirações abafadas, só se ouviam os passos trôpegos e o aflitivo
resfolegar do condenado que, à ponta de baioneta, subia os degraus do cadafalso.
Veio o carrasco, despiu-lhe a camisa, tosou-lhe os cabelos, e empunhou o ferro.
Amâncio não se resolvia a entregar o pescoço, mas o velho Vasconcelos, que surgira por
detrás dele, atirou-lhe um murro à nuca e fê-lo cair de bruços contra o cepo.
Então, para lhe abafar os gemidos, romperam todos os soldados num rufo estridente de
[Linha 6100 de 8244 - Parte 4 de 5]
tambores.
Amâncio sentiu o aço frio entrar-lhe na carne do toutiço, espipar o sangue, e o corpo, de
um salto, arrojar-se às lajes.
* * *
Havia saltado, com efeito, mas da cama. E o despertador , que ficara de véspera com
toda a corda para as seis da manhã, continuava o rufo penetrante dos tambores.
O estudante abriu os olhos e passou em sobressalto a mão pela testa; os dedos voltaram
ensopados de suor.
Com a perceptibilidade das coisas foi aos poucos saindo daquele estado de excitação,
mas voltando lentamente à taciturna agonia da véspera.
Vestiu-se quase sem consciência do que fazia; esqueceu-se até de escovar os dentes,
porque, mal voltou a si, correu aos livros, sem aliás, conseguir firmar a atenção sobre coisa
alguma.
E Amâncio tremia todo só com a idéia de sua inabilidade. À medida que as horas se
esgotavam e o momento fatal se lhe antepunha, um langor covarde e mulheril crescia dentro
dele, produzindo-lhe arrepios que principiavam na ponta dos pés e iam-se estendendo pela
espinha dorsal, até lhe interessar a cabeça, depois de percorrer as regiões abdominais.
Mas embaixo, na varanda, em presença de Amélia e Mme. Brizard, fazia-se forte, a
despeito da palidez que lhe alterava as feições. Nem de leve falou nos sonhos dessa noite, e o
Coqueiro, a título de metê-lo em brios, contou várias anedotas de examinandos ridículos.
Os dois tomaram café e por fim saíram. O trajeto de casa à escola foi um martírio para
Amâncio, afigurava-se-lhe, como no sonho, que se dirigia ao patíbulo.
Chegou às dez horas. Alguns companheiros de ato já lá estacionavam em magotes de
quatro e cinco pelos corredores ou à porta da secretaria; fumavam-se cigarros consecutivos,
discreteavam-se os assuntos da ocasião. Amâncio cumprimentou os conhecidos, parando aqui
e ali falando sobre os pontos do exame; - qual preferia que saísse, em qual se presumia menos
fraco e capaz de fazer figura.
Agora, sim, estava mais animado; a presença dos colegas o robustecia com um vago
espírito de coletividade. Sentia-se maios forte e resoluto ao lado dos companheiros de perigo,
como se a vitória dependesse do número de combatentes.
Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de exames,
em torno da sua mesa forrada de pano verde. Amâncio lobrigava-os pela frincha da porta
entreaberta e ouvia-lhes o murmurar descuidoso da conversa, intercaladas de risotas e baforadas
de charuto
À vista daqueles homens resfriaram-lhe de novo as mãos e voltaram-lhe os calafrios do
terror, algum resto de confiança, que ainda teria em si, evaporou-se de todo.
E, para não sucumbir, procurava acreditar na eficácia dos empenhos que arranjara; seu
espírito, como o náufrago que braceja nas agonias da morte, já não escolhia os pontos a que se
agarrava; tudo ser ia naqueles apuros, tudo era pretexto de esperança; mas a consciência da
verdadeira situação vinha meter-se-lhe de permeio, arrancando, uma por uma, todas as tábuas
de salvação.
E Amâncio arquejava, desorientado, perdido.
- Que diabo viera fazer ali?! Para que se apresentara? por que não se guardou para o ano
seguinte ou, quando menos para março? Antes não tivesse pago a Segunda matrícula! Oh! se o
arrependimento salvasse!...
E, `proporção que se avizinhava o momento supremo, mais e mais imprudente lhe parecia
a sua temeridade.
- Naquela ocasião, pensava ele, - bem podia estar na província, à testa dos seus
[Linha 6150 de 8244 - Parte 4 de 5]
negócios, ao lado de sua querida mãe, passeando, rindo, gozando, como nos outros
tempos!...Era rico, era já tão estimado antes da academia, para que então sofrer semelhantes
torturas, passar por aqueles maus quartos de hora, que ali estava curtindo?...
E vinham-lhe venetas de fugir, abandonar tudo aquilo, sem dar satisfações a ninguém,
correr à casa do Campos, encher-se de dinheiro e arribar para a Europa, para o inferno!
Contanto que se livrasse da obrigação de expor uma ciência que não tinha, escrever idéias de
que não dispunha!
Mas o bedel havia surgido e principiava a "chamada", e, a cada nome, recitado
pausadamente, o seu olhar mórbido, de funcionário público no cumprimento de um velho dever
enfadonho, consultava a multidão de estudantes, que em sussurros se apinhava pelo
esvazamento das portas, empurrando-se uns aos outros, impacientes, curiosos, o pescoço
espichado, a boca aberta, o calcanhar suspenso.
- Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, disse aquele arrastando a voz.
Amâncio sentiu uma pontada no coração e tartamudeou:
- Presente.
Os companheiros, que lhe ficavam por diante, arredaram-se logo, dando-lhe passagem, e
ele foi ocupar uma das banquinhas que havia na sala.
A chamada ainda durou algum tempo, porque Amâncio era dos primeiros; afinal, o bedel
mastigou o último nome; fecho-se a porta da sala; e um silêncio formalista espalhou-se entre a
turma dos estudantes e o grupo dos examinadores.
O presidente da mesa tomou a lista dos examinandos, arranjou os óculos, tossicou e,
com um bocejo, chamou pelo que estava em primeiro lugar.
Um rapazote louro, de buço, ergueu-se e foi ter com ele. O presidente, com um segundo
bocejo e um gesto de cabeça, ordenou-lhe que tomasse um dos pontos da urna.
Amâncio ofegava. - Ia decretar-se o ponto!
- Qual seria?... E se, por caiporismo, fosse justamente um dos mais crus?
E o sangue trepava-lhe à cabeças, pondo-lhe latejos nas fontes.
O rapazote louro meteu enfim a mão na urna e tirou com a ponta dos dedos trêmulos
uma pequena torcida de papel, que passou ao presidente
Este desenrolou-a e leu: "Hidrogênio".
Amâncio respirou: o ponto não podia ser melhor para ele do que era! Talvez fosse até
entre todos o menos mal sabido; ainda essa manhã lhe passara uma vista de olhos. Contudo,
uma vez imposto o Hidrogênio, quis lhe parecer vagamente que havia outros pontos preferíveis..
Estava mais tranqüilo, que era o principal; já quase nada lhe tremia a mão ao receber das
do bedel uma folhas de papel almaço, rubricada pelos lentes, das que ia aquele distribuindo
por todas banquinhas dos examinandos.
- Ali, naqueles miseráveis dois vinténs der papel, tinha ele de determinar o seu futuro, a
sua posição na sociedade, talvez a própria vida de sua mãe, dizendo o que sabia a respeito do tal
Hidrogênio!...
Experimentou a pena, endireitou-se na cadeira, e escreveu, caprichando na letra e
procurando obter estilo.
A areia da ampulheta esgotava-se defronte da calva e dos bocejos do senhor
presidente. Correu meia hora; Amâncio ergueu-se afinal, entregou a sua prova e saiu das sala, a
esfregar, muito preocupado, os dedos das mão direita contra a palma da esquerda.
À porta, mal acendera sofregamente o cigarro, contava já aos seus amigos o que havia
exposto pouco mais ou menos. - Ah! com certeza pilhava uma - nota boa! - Não era por querer
falar, mas a sua prova saíra limpa. "Assim não fosse o ponto tão ingrato!..."
E ficaria a prosar sobre o caso, se o Coqueiro, aguilhoado pela ausência do almoço, não o
arrancasse dali.
[Linha 6200 de 8244 - Parte 4 de 5]
* * *
A nota foi boa, efetivamente.
Soube-o Amâncio no dia seguinte, logo que correu à secretaria. Não contava, porém
ficar tranqüilo, senão depois do resultado de sua provas oral.
Novos sobressaltos foram se agravando durante os dias que era preciso esperar.
Votavam-lhe as aflições; no fim de algum tempo já não podia comer, não podia ligar duas idéias
sobre qualquer coisa e não conseguia repousar duas horas seguidas. Ficou ainda mais
desnorteado que da primeira vez.
Amelinha, então, o estimulava com as suas garrulices e pomba que já fez ninho. Puxava
por ele, tentando arrancá-lo daquele estado, mas não conseguia lhe despertar um só dos antigos
momentos de bom humor, nem lhe merecer uma de suas primitivas caricias
O rapaz andava tonto, cheio de pressentimentos e de sustos. Tornou-se até supersticioso.
- Não podia ver entrar no quarto uma borboleta de cor mais escura; não podia suportar o grunhir
dos cães, nem queria que a amante prognosticasse "um bom resultado nos exames"
- É melhor não falar!...dizia ele, muito esmalmado.
Mas que prazer o seu ao voltar pronto da escola! Jamais tivera um contentamento tão
agudo. Ria sem motivo, sentia ímpetos de abraçar a toda gente, pulava, cantava, parecia doido..
Soubera do resultado no mesmo dia da prova oral, por intermédio de um dos
professores. - Saíra aprovado plenamente.
Vencera!
Colegas o acompanharam até a casa. Lá ia o Paiva, sempre com o seu olhinho irrequieto
e mexeriqueiro, o seu todo enfrenesiado e farto "desta porcaria de mundo". Lá ia o triste
Salustiano Simões, encasmurrado no seu ar incrédulo e bamba, a mascar o cigarro, a aba do
chapéu encostada à gola sebosa do fraque
Abriram-se garrafas de champanha; fizeram-se brindes. João Coqueiro desmanchava-se
em sorrisos, como se partilhasse diretamente de todas aquelas manifestações.
Foi muito elogiado o exame de Amâncio, tocaram-se os copos, entre fervorosas palavras
de animação; falou-se em "filhos diletos da ciência", em "liberdade". Em "geração nova", em
"mineiros do progresso".
Todavia, Amâncio, em ar feliz e pretensioso, confessava o pouco que estudara e
gabava-se de sua fortuna. - Podia dar a palavra de honra em como mal havia tocado nos livros
durante o ano. - O Coqueiro e a família estavam ali, que dissessem!...
E basofiava a respeito de sua presença de espírito particularizando circunstâncias
comprobativas de uma sagacidade a toda prova.
- Cá o menino não se aperta! Dizia ele, muito satisfeito consigo.
Expediu-se um telegrama para o Maranhão, dando noticia do grande "acontecimento".
O Simões e o Paiva ficaram para jantar. Já estavam todos à mesa, quando apareceu o copeiro
com uma carta que um portuguesito acabava de trazer.
Era do Campos. O bom negociante queria festejar o êxito feliz do - jovem acadêmico -
com "uma pequena reunião familiar. Pena era que o Dr. Amâncio estivesse de luto".
"Não há festa", explanava a carta, "apenas se reúnem alguns amigos para lhe beber à
saúde; e o doutor bem pode trazer em sua companhia mais alguns".
Amâncio declarou logo que não dispensava o Simões e o Paiva Rocha e exigiu que o
Coqueiro levasse consigo a família.
Pois iriam, iriam todos, até o César. Mas o festejado teve de franquear o seu
guarda-roupa àqueles dois colegas que não queriam apresentar-se mal amanhados em uma casa,
onde entravam pela primeira vez.
O Coqueiro, em particular, exprobrou-lhe essa franqueza:
[Linha 6250 de 8244 - Parte 4 de 5]
- Foge da boêmia!... disse-lhe, no seu diapasão de homem sério. - Foge da boêmia,
rapaz! Esses tipos não merecem que se lhes faça a menor coisa!... metem os pés - sempre! Já os
conheço; não seria eu quem os convidara para a casa de ninguém! É gentinha que só está
habituada a cafés e botequins, não respeitam família! Para eles as mulheres são todas iguais!...
Amâncio sorriu.
- Ora Deus queira que não tenhamos de nos arrepender!... acrescentou o outro.- E,
àquela roupa, podes rezar-lhe por alma... o ali cai, fica!
O provinciano afastou-se sem responder e lamentando interiormente que, logo nessa
tarde, não estivesse em casa o eloqüente Dr. Tavares, que seria uma excelente perna dos brindes
da sobremesa.
Mandaram-se vir dois carros. Num iria o Coqueiro mais a família e no outro Amâncio
com os dois amigos.
Partiram às oito horas, alegremente, num alvoroço gárrulo de festa. Mme Brizard dera
toda força à sua elegância: atirou-se ao decote, pôs a pedraria ainda do tempo do primeiro
marido, e exibiu aquele rico pescoço, "que ela não trocava pelo de ninguém"!
Amelinha estreou um belo vestido de escumilha azul que lhe dera o amante. No seu colo,
cor de camélia fanada, assentavam muito bem as pérolas e os rubis; seus braços, levemente
dourados de penugem, sabiam, no meio da confusão caprichosa das rendas valencianas, fazer
tilintar com graça os braceletes que se enroscavam nas compridas e transparentes luvas de retrós.
A cunhada, ao vê-la sair do quarto, dissera:
- Não parece uma brasileira!... Tão linda está!
* * *
Foram recebidos com transportes de júbilo por toda a família do negociante. Campos
entregou a casa ao festejado, "que a este competia, naquela noite, obsequiar às pessoas
presentes; fazer as honras da copa e da mesa; promover quadrilhas e prender as moças até pela
manhã. Era o dono da festa, que se arranjasse!"
Amâncio tomou posse do cargo, sem caber em si de contente. Muito o sensibilizava tudo
aquilo que, de qualquer modo, lhe pudesse afagar o amor-próprio.
E em suas mãos a festa tomou um caráter assustador: o pianista não tinha tempo para
fumar um cigarro; os convidados eram constrangidos a beber nos intervalos da dança e a dançar
nos intervalos das libações. Paiva Rocha e o Salustiano, a despeito de todas as suas garantias de
filósofos, intransigentes e péssimos dançadores, tiveram de entrar, por mais de uma vez, nas
intermináveis contradanças.
Ao inverso do que pressagiara o Coqueiro a respeito destes dois, tanto um como o
outro se houveram admiravelmente. Ninguém melhor que eles para respeitar senhoras; um
espesso acanhamento os encascava e tolhia, que nem a concha ao molusco. Salustiano,
principalmente, estava mais tenro e inofensivo que uma criança; na quadrilha, mal ousava erguer
os olhos para sua dama e, querendo ser muito delicado, apenas lograva, com os exageros da
cortesia, trair a sua nenhuma freqüência nas salas.
Para os intimidar bastava as cerimoniosa presença de senhoras de boa sociedade.
Aqueles dois pândegos, tão céticos em teoria a respeito da mulher, ali, governados pelo meio,
eram os homens mais tolerantes deste mundo; seriam capazes de defender a existência de
Deus ou do diabo, se elas o entendessem. Fato é que o dono da casa gostou deles em extremo e
pediu-lhes que aparecessem aos domingos, uma vez por outra, para jantar.
A festa correu sempre animada até as três horas da manhã, quando Amâncio convidou
as senhoras a tomar lugar na mesa. Ao desrolhar do champanha, ergueu-se este resolutamente e
exigiu que o acompanhassem num brinde.
Abstiveram-se da bulha, e o estudante grupou em torno do nome inteiro do Campos
[Linha 6300 de 8244 - Parte 4 de 5]
todo o velho arsenal de retórica aplicável à situação. Em substância nada afirmou, mas a sua
palavra sonora e cheia; as frases gorgolhavam-lhe dos lábios com essa verbosidade oca e
retumbante que se observa nos filhos do Norte do Brasil, e que, aliás, tem valido a muitos
posição eminente na política. Aquela voz, estalada e aberta, ferindo as vogais, tinha um sabor
muito picante de ironia, vibrava no ar como uma flecha selvagem e feria os tímpanos como um
insulto inverso.
As damas interessaram-se pelo discurso e alguns homens o ouviram sem pestanejar. E
todos eram de acordo que Amâncio estava talhado para o Direito e que havia de fazer "uma
brilhante figura", quer na advocacia, quer na política, se por acaso abraçasse uma dessas
carreiras.
- É rapaz de talento!... diziam já as senhoras cochichando.
- A mim comoveu tanto o demônio do moço, que chorei!... segredou uma quarentona
de chinó, que passava entre os conhecidos por mulher de maus bofes.
E principiaram a olhar com uma certa submissão para o esperançoso Amâncio.
E, com efeito o seu tipo nervoso e moreno de nortista, o seu modo sem-cerimônia de
abrir muito a boca, mostrando num gesto de pasmo a dentadura, o desembaraço de sua
gesticulação, sempre que entornava para dentro um pouco mais de vinho, e principalmente o
metal daquela voz enfática e encrespada pelo tal sotaque da província; tudo isso, sem dúvida
alguma agradava depois de uma boa ceia, quando cada um não exige de ninguém senão que lhe
deixem tomar me paz o seu café e lhe permita acender o seu charuto.
O caso é que Amâncio se converteu numa espécie de presidente da mesa. Era a ele que
se dirigiam os que propunham novos brindes; era para ele que mais se voltavam durante o
discurso, e, tal e qual no jantar de seu pai por ocasião do célebre exame de primeiras letras,
ainda era ele o alvo das melhores felicitações; com a diferença de que, neste agora, em vez de
consultar de instante a instante o famoso relógio alcançado naquele dia, o que Amâncio
consultava eram os olhos de Hortênsia, nele igualmente presos mas por uma cadeia doutra
espécie.
E, ainda como na primeira festa, o estudante abusou um pouco dos licores; mas, agora,
em vez de pegar no sono, deu-lhe a bebedeira para abrir às francas com a dona da casa, logo que
a pilhou sozinha no terraço, ao fundo do segundo andar.
Hortênsia não se indignou com isso, mas também não se mostrou satisfeita; não repeliu
com energia as palavras do sedutor, mas não se pode dizer que as acolhesse de boa cara; não lhe
deu enfim, os beijos que ele pedia, mas por outro lado não retirou a mão que o rapaz agarrara
entre as suas.
- Eu te adoro, meu amor, minha vida! dizia-lhe o velhaco, cheirando-lhe os grossos
braços revestidos de filó. - Não to disse há mais tempo por falta de coragem, juro-te, porém, que
é verdade! Amo-te, minha Hortênsia, amo-te com todo o entusiasmo, com toda a paixão de que
sou capaz!
Ela o ouvia em silêncio, a pensar, os olhos ferrados a um ponto, o ar todo caído e
acabrunhado como por uma espécie de desgosto; não se mexia, apenas, quando Amâncio
teimava muito em querer beijá-la, desviava o corpo, sem voltar a cabeça.
- Mas, então?...perguntou ele.
- Então, o quê?...fez a outra como interrompendo um longo pensamento.
- Não aceita o meu amor?..
- Não, decerto, não posso aceitar semelhante coisa!
- Por que, minha santa?...
- Não tenho esse direito; conheço os meus deveres e a minha responsabilidade .O mais
que lhe posso dar é uma afeição de irmã, de amiga, uma afeição sagrada e pura !
Amâncio declarou que pensava desse modo justamente, mas agora queria um beijo, um
só! O primeiro e último! - nada mais sagrado e puro do que um beijo!...
[Linha 6350 de 8244 - Parte 4 de 5]
- Nunca! Disse ela, fugindo com o rosto.
Ele a tomou à força e a senhora ficou ressentida, chegou a ter um gesto de impaciência e
teria fugido, se o estudante não a segurasse pela cintura.
- Solte-me!
- Perdoa, perdoa, meu amor! Segredava ele, quase ajoelhado .- Bem quisera ser para
contigo o mais respeitoso dos homens, mas não me pude dominar...Perdoa!
- E jura que , de hoje em diante, não cairá noutra?...
- Juro! Juro! Mas não te revoltes contra mim!
- E que nunca mais me faltará ao respeito?...
Amâncio fez um gesto afirmativo, em o qual seus olhos , agora mais estrábicos sob a
influência do vinho e do desejo, luziam suplicantes, como os olhos de um cão que tem fome.
- Pois bem, murmurou ela, meio compadecida. - vá lá por esta vez! Está perdoado, mas
fique prevenido de que, se repetir a graça não, respondo pelas conseqüências
Amâncio ia fazer novos protestos , quando sentiu que alguém se aproximava;
ergueram-se ambos, instintivamente, e ,fugindo ao rumor, seguiram de braço dado para a sala.
Tocava-se uma valsa. Ele , sem consultar Hortênsia, enlaçou-lhe a cintura, e puseram-se
os dois a rodar, a rodar, tão certos e tão leves, que prendiam a atenção de quantos lá s achavam.
E o Coqueiro, encostado à ombreiras de uma porta, acompanhava-os com um sorriso de
felicidade, no qual havia alguma coisa de orgulho de pai que se revê num filho prodigioso.
Mas o querido estudante, para o fim da festa, já não pareci o mesmo: as bebidas e o
cansaço davam-lhe um ar grosseiro e desalinhado; já se lhe não via o colarinho, nem os punhos;
a roupa empastava-se-lhe com o suor e a cabeleira desguedelhava-se sobre a testa. E vinham-lhe
então pilhérias de mau gosto; tratava Amelinha quase licenciosamente e regamboleava as pernas
e os braços no meio da quadrilha, como se estivesse num baile público. Já não dava excelência a
ninguém e queria, por força ,que o Simões e o Paiva, depois da festa, o acompanhassem a um
passeio ao alto da Tijuca.
- Que diabo! Rosnava ele, cuspilhando para os lados. - Ou bem que a gente se mete na
pândega ou bem que se não mete!
Só se retiraram ao despontar da aurora. César, que adormecera desde as onze horas da
noite, ficou para passar o dia com a família do Campos. Amâncio pôs um carro à disposição do
Paiva e do Simões e seguiu no outro com as duas senhoras e o Coqueiro.
Este toscanejava durante a viagem, ao lado da mulher que se sumia na abundância de
uma formidável capa de lã; enquanto que Amâncio, a charutar derreado para um canto da
carruagem, adormecia com a mão direita esquecida entre as de Amélia
XVII
R
ecebeu no dia seguinte uma carta de Ângela; era a segunda que ela escrevia ao filho
depois da morte do marido.
Já na primeira lhe suplicava que a fosse ver, logo ao entrar das férias, pois agora estava
muito só e acabrunhada de desgostos; além disso, os seus padecimentos se agravavam.
Amâncio que se não demorasse; a infeliz tinha para si que a presença do filho substituiria com
vantagem todos os remédios da botica.
Na segunda carta ainda se mostrava mais impaciente e mais aflita pelo rapaz. Falava até
no receio de morrer sem abraçá-lo, caso Amâncio não se apressasse a ir em seu socorro.- A
presença dele tornava-se precisa , mesmo com referências aos interesses do inventário; por
quanto D. Angela começava a desconfiar do Silveira, que não fazia outra coisa senão lhe pedir
[Linha 6400 de 8244 - Parte 4 de 5]
dinheiro e mais dinheiro para as tais custas. - Enfim, por todos os motivos, era urgente que
Amâncio desse, quanto antes, um pulo ao Maranhão.
Amelinha, que já não ficara muito tranqüila com a primeira carta, assustou-se deveras
quando o amante lhe mostrou a segunda .
- Eu não consinto nesta viagem! Disse-lhe terminantemente.
- Mas não vês que se trata de um caso urgente, que se trata de defender meus interesses,
que se trata de salvar a vida de minha mãe?...Ou queres tu que eu a mate, hein?...
- Amélia não tinha nada quer ver com isso!...A sua questão resumia-se no seguinte:
"Dera-se a um homem, porque o amava e porque se supunha amada por ele; esse homem a
possuiu como bem quis, gozou-a como muito bem entendeu, e, um belo dia, talvez por já estar
farto, resolvia meter-lhe os pés e pôr-se ao fresco!..." Boas! Não havia de ser com ela! Amâncio
que não caísse em semelhante asneira, porque então veria o bom e o bonito! Quem o afiançava
era "a Amelinha dos camarões"!
- Mas , filha, que queres tu que eu faça?...Bem vês que esta viagem ao Norte é
inevitável!
- Pois então vamos juntos...Casa-te primeiro comigo!
A idéia foi tão intempestiva que o estudante respondeu com uma gargalhada. Mas o
demônio da rapariga, tornando às boas de repente, saltou-lhe ao pescoço e disse-lhe, entre
beijos:
- E por que não ?...Por que não te casa logo comigo, meu amor?...
- Porque era impossível!...explicava ele. "Casar não é casaca" Era muito cedo para cuidar
nisso!...Primeiro tinha de formar-se, praticar algum tempo em Paris, e depois então...sim senhor,
não dizia o contrário e havia de ser o mais empenhado em que a coisa se realizasse! Mas por
ora..."Deus nos acuda!" era até loucura pensar em semelhante história!...
Amélia fez-se logo de mau humor; vieram os remoques e o s reviretes do costume,
houve palavras duras de parte a parte e, afinal, como estabelecido imposto de reconciliação,
ficou assentado que Amâncio arranjaria mobília nova para o chalezinho das Laranjeiras.
E o rapaz lá foi comprar os trastes.
Dois dias depois, realizava-se a terceira mudança. O Dr. Tavares, o último hóspede da
famigerada Mme. Brizard, pagou a sua última conta e recebeu da francesa um abraço de
despedida.
- Ah! suspirou elas. - Até que enfim se podia descansar um pouco! Já não era sem
tempo!
O chalezinho de Amélia ficou muito catita; parecia um ninho de noivos. Estava a pedir
lua-de-mel!
A cachorra da pequena tinha gosto. Exigiu tapetes, espelhos, cortinas de chita indiana
para a sala de jantar, cortinas de renda para a salas d visitas; quis moldura dourada nos quadros,
estatuetas pelas paredes; não dispensou nos aparadores e nos consolos jarras de porcelana das
mais à moda; jardineiras aqui e ali, vasos caprichosos com begônias e tinhorões sobre a mesa de
jantar; cestinhas artísticas, com para sitas, para dependurar nas janelas; e ainda fez substituir na
cozinha, nos arranjos da comida e no arranjo dos quartos, tudo aquilo que lhe parecia em
condições de reformas.
E só com essas coisas e só com a satisfação de tanta exigência é que Amâncio conseguia
paliar as revoltas da amante. O desgraçado já não tinha ânimo de contrariá-la, porque bem
conhecia o preço das rezingas e, sem achar meio de reagir, via claramente que as reconciliações
se tornavam mais caras de dia para dia.
* * *
Entretanto, depois da mudança, o amor dos dois tomou um caráter mais digno e
[Linha 6450 de 8244 - Parte 4 de 5]
decente. Já não era necessário que a rapariga andasse à noite em ponta de pés pela casa,
tateando a escuridão para ir ter com o seu homem. agora dormiam à vontade, com as portas bem
fechadas por dentro.
E só se despregavam do lado um do outro, quando tinham que abandonar o quarto.
Então, cada um se servia da porta competente: Amélia tomava a da varanda e Amâncio a da
sala de visitas!
Não podiam desejar melhor!
Melhor, bem certo para o descanso do corpo e repouso do espírito; não, porém, para
garantia do amor, essa estranha função psicológica que só alimenta asa suas raízes nos
sobressaltos e no perigo. Tamanha segurança e tamanha liberdade de ação deviam fatalmente
levantar a pontas do tédio, cujo novelo existe, mais ou menos escondido, no fundo de todas as
coisas.
Não vinha longe a saciedade; Amâncio já lhe ouvia o bocejar. Iam-se-lhe pouco a pouco
amornecendo os primitivos arrebatamentos do desejo; os dois tinham-se já frouxamente, sem
lumes de entusiasmo, sem os esforçadores auxílios da imaginação. Assuntos práticos, positivos,
agora se lhes intercalavam nas carícias, puxando-os grosseiramente à calma realidade da vida.
Amelinha já lhe não surgia no quarto com aquele trêfego ruçar-se de pomba assustada, o
que lhe enchia as feições e os movimentos de uma graça tão maliciosa e provocadora; agora se
apresentava com um ar muito tranqüilo, de casada, a arrastar os chinelos, o roupão desabotoado
e solto, num farto abandono de alcova.
Despia-se defronte de Amâncio, coçando negligentemente as partes do corpo que
estiveram comprimidas durante o dia, como a cinta, o lugar das ligas e dos canos das botinas.
Despenteava-se ali mesmo, alado da cama do rapaz, sacudindo o cabelo com ambas as mãos,
num movimento de braços erguidos que lhe mostrava a grenha das axilas; ele, também, parecia
não dar por isso, eras todo do livro que lia à luz de uma vela pousada no criado-mudo.
E os assuntos de suas conversas materializavam-se completamente. Já só discutiam
interesses práticos, arranjos de vida e conveniências domésticas: "Era preciso arranjar um
jardineiro, que viesse uma vez por semana cuidar das plantas e limpar os tanques. - Era preciso
chamar o homem do gás para consertar tal candeeiro que não dava boa luz. - Era conveniente
alugar uma criada que soubesse lavar; porque a ladra da lavadeira trocava as camisas e encardia
a roupa, que fazia lástima!"
E, à vezes, na intimidade dessas conversas, criticavam os atos de Mme. Brizard e do
Coqueiro; censuravam-lhes umas tantas coisas, como, por exemplo: a negligência destes para
com o César. "O pequeno ia por um tal caminho, que, se não abrissem os olhos, havia de
amargar mais tarde! - Que diabo custava ao Janjão arranjá-lo aí em qualquer casa de comércio
ou, pelo menos, fazê-lo aprender um ofício?...Em casa mesmo já lhe podiam ter metido nas
unhas a carta do ABC e já lhe podiam ter ensinado alguma coisa...Mas Loló não se queria
incomodar! E senão, vissem o que se passava a respeito de Nini; outra fosse a boa da mãe, que
as pobre rapariga não levaria semanas e semanas lá na casa de saúde, sem ter uma pessoa que
olhasse por ela."
Eram sempre deste teor os motivos de sua conversa. Amélia, não obstante, fazia-se
muito ligada aos menores interesses do amigo: queria saber o que ele gastava por fora, com
quem estivera; reprovava-lhe certas relações, certas companhias "que não punham ninguém pra
diante", e aconselhava-o a que se não descuidasse de outras que lhe podiam ainda vir a servir;
pregava-lhe sermões a respeito de economias. "O mundo estava cheio de espertos: ele que
desconfiasse de todos; cada um só procurava chamar a brasa para a sua sardinha!" Queria estar
a par de como iam os negócios do amante na província. "Se o dinheiro ficara em boas mãos; se
não havia risco de uma quebra ou de alguma ladroeira". E muito egoísta, muito mulher, muito
agarrada ao que lhe pertencia, desde Amâncio até ao pó de suas gavetas, fazia justamente como
fazem os sócios comerciais que parecendo tratar dos interesses abstratos de uma firma, estão
[Linha 6500 de 8244 - Parte 4 de 5]
mas é tratando dos próprios interesses.
Outras vezes boquejavam sobre os conhecidos, sobre as pessoas de amizade. Uma noite,
em que , durante o serão da varanda, se conversou muito a respeito de Hortênsia, Amélia, já no
quarto, em fralda, com um joelho dobrado em cima da cama, enquanto tirava grampos da
cabeça e os arremessava para o velador, disse, como se continuasse um pensamento:
- Ela, fim de contas, não passa de uma mulher como as outras!...Loló e Janjão. É que,
quando gostam de uma pessoa tiram tudo dos outros para enfeitá-la!
- Quem? D. Maria Hortênsia? Perguntou Amâncio, procurando num livro o lugar em que
na véspera deixara a leitura. E, depois de um movimento afirmativo da rapariga:
- Não, o Coqueiro tem razão - a mulher do Campos é uma excelente senhora. Muito
honesta!
- Ora! É uma mulher como as outras...sustentou Amélia, galgando a cama por cima do
amante, para se aninhar ao lado da parede.
- Como as outras, como? Em que sentido?
- Não é lá essas purezas que a querem fazer! Não é nenhuma santa!
- Estás enganada, filha! A Hortênsia é uma mulher muito séria!...
- Quando não se ri...
- Pelo menos até aqui, que me conste, ninguém ainda se animou a dizer nada de sua
conduta!
Amélia, então, possuída de um rancor instintivo de classe, de uma surda antipatia de
mulher suspeita por mulher honesta, desencadeou os seus argumentos e as suas razões. Trouxe a
lume conversas inteiras, que bispara na tal noite do exame. "Amâncio via caras e não via
corações!...Aquele - meu bem pra cá, meu bem pra lá, - que todos notavam entre o Campos e a
mulher, era só dos dentes para fora! No íntimo, Hortênsia detestava o marido! Achava-o muito
bom homem, é verdade, muito generoso, não podia se queixar de que lhe faltasse nada, - boa
mesa, boa casa, criados pra servir, teatros, bailes, seu bom carro, seu vestido de preço, - sim
senhor! Mas só ! Quanto a carinhos - nicles! A respeito de certos confortos de que uma mulher
precisas, - era uma miséria! Às vezes, passavam-se meses e meses sem que o marido a
procurasse! O pobre homem andava lá com os seus negócios, coitado! E a doida, em lugar de
conformar-se com a sorte, punha a boca no mundo e eram queixas e mais queixas pra frente!
Que ela, Amélia, não soubera de tudo isso, por parte deste ou daquele - escutara com seus
próprios ouvidos!"
- Pois bem, ainda me ajudas!...volveu Amâncio, tomando extremo interesse pela
conversa, - ainda me ajudas, porque, se é como dizes, o bom comportamento de D. Hortênsia
torna-se muito mais digno de admiração!...
- Sim!...Retrucou a rapariga ironicamente. - Também acho bom, mas moro longe! - De
um, quando mais não seja, sei eu, por quem o tal "anjo de pureza" seria capaz de dar uma perna
ao diabo! E olha que, se ainda não a deu, foi porque ainda não teve ocasião para isso! Vontade
não lhe falta! Ele que se apresentasse e veríamos!
Amâncio quis logo saber quem era o sujeito.
- Um tipo! Não o conheces.
- Mas como se chama?
Amélia, depois de alguma hesitação, confessou. - Era o Sousa Antunes...Aí tinha!
- Que Antunes? Interrogou Amâncio, já mordido.
- O Antunes, homem! Aquele sujeito da Câmara. Alto, de cavanhaque, aquele de castor
branco, que uma vez encontramos nas regatas, em Botafogo.
- Ah!...Já sei, já sei...
E Amâncio procurou disfarçar a sua contrariedade, fingindo que se abismava na leitura.
E parecia muito preso à página, enquanto aliás o seu pensamento buscava descobrir no tipo de
Sousa Antunes os atrativos que cativaram a mulher do Campos. - Impossível! O tal Antunes era
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um viúvo talvez de quarenta anos, pai de filhos, e vulgar, sem talento de espécie alguma,
vivendo de um ordenado oficial de secretaria, nem tendo, ao menos, qualidades físicas que
inspirassem paixão a qualquer mulher, quanto mais àquela! aquela que não pôs dúvida em lhe
atirar com uma recusa pelas ventas!...
- Não! Isso deve ser história!...considerou ele em voz alta.
- Qual história, o quê! Retorquiu logo Amélia. - É louca por ele! Quando o avista, fica
tonta! Eu vi! ( e arregalou um dos olhos com o dedo. ) Ainda outro dia, no São Pedro- que
escândalo! Não lhe tirava o binóculo de cima! O que a cegou, sei eu...
- Mas como viste tu a saber disto?...
- Ora! Loló é toda das Fonsecas, que estão agora de cama e mesa com a Hortênsia!...
- Fonsecas?...
- Aquelas moças esquisitas, aquelas que foram à soirée!... Lembras-te?...Ó homem! as
Fonsecas...as de Catumbi!...
A Amâncio pouco lhe importavam as Fonsecas, o quer ele desejava eram mais algumas
informações a respeito do escândalo. Não podia suportar a idéia de que Hortênsia, a mesma
Hortênsia que lhe repelira os beijos, tivesse um fraco pelo Antunes, o Antunes do cavanhaque! -
Que horror!
* * *
E, depois dessa conversa, principiou a freqüentar a casa do Campos com mais
assiduidade. Aparecia regularmente duas vezes por semana e quase sempre se demorava até as
horas do chá.
- Mas Hortênsia - qual! Não atava, nem desatava. Era sempre a mesma criatura
incompreensível; sempre aquela mesma ambigüidade, a mesma dúvida, o mesmo querer e não
querer! Hoje - Um sorriso de esperanças; amanhã - uma frieza esmagadora; depois - ora muito
coloridos de ternura, ora lulados de orgulho; tão depressa altiva e sobranceira, como suplicante e
humilde; tão depressa risonha como triste, generosa como sovina, dando com uma das mãos
para tomar logo com a outra.
O rapaz impacientava-se: - Fossem lá compreender semelhante mulher! Um dia - toda
condescendência, toda interesse por ele, no outro - gestos desabridos, ameaças, palavras duras .
- Sebo! - Já passava a debique! No fim de contas não valia a pena!
Mas o ladrão da mulher tinha uns olhos tão doces, uns decentes tão brancos, uma pele
tão viçosa!..."Não senhor! Era preciso acabar com aquilo! Ele estava fazendo um papel
ridículo!..."
E deliberava não pensar mais na mulher do Campos. "Que diabo! Se se queria
divertir, comprasse um boneco de engonços!..." Quando , porém , dava por si no dia imediato,
já os passos o tinham conduzido para a casa do negociante.
Entraria, mas lá dentro havia de ser forte, inabalável! E trepava pelas escadas,
imaginando o improvisar um namoro com a Carlotinha, estudando os assuntos de que teria de
usar na conversa, calculando os efeitos que a sua afetada indiferença devia produzir no espírito
da caprichosa. Bastava, porém, um sorriso de Hortênsia,, uma palavra mais terna, um gesto mais
amoroso, para o fazer ficar caído, desarmado, seguro como nunca.
- Era o diabo!
Voltava para casa furioso, atirando com as portas, respondendo de má vontade às
perguntas que lhe dirigiam.
Amélia o estranhava, sem dar contudo, a perceber coisa alguma. Apenas lhe perguntava,
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Casa de Pensão - Parte 5 de 5 - Aluísio Azevedo:
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