segunda-feira, 19 de junho de 2017

Contos Fluminenses - Parte 2 de 4 - Machado de Assis


Contos Fluminenses - Parte 2 de 4 - Machado de Assis



Machado de Assis - CONTOS FLUMINENSES

Estêvão hesitou um pouco; mas não podia deixar de subir sem ofender o
digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obséquio.
Subiram.



Mas em vez de mandar o cocheiro para a rua da Misericórdia, o deputado
gritou:
- João, para casa!
E entrou.
Estêvão olhou para ele admirado.
- Já sei, disse-lhe Menezes; admira-se de ver que faltei à minha palavra;
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mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa a fim de lá voltar
quanto antes.
O coupé rolava já pela rua fora debaixo de uma chuva torrencial.
Menezes foi o primeiro que rompeu o silêncio de alguns minutos,
dizendo ao jovem amigo:
- Espero que o romance da nossa amizade não termine no primeiro
capítulo.
Estêvão, que já reparara nas maneiras solícitas do deputado, ficou
inteiramente pasmado quando lhe ouviu falar no romance da amizade. A razão
era simples. O amigo que os havia apresentado no teatro Lírico disse no dia
seguinte:
- Menezes é um misantropo, e um cético; não crê em nada, nem estima
ninguém. Na política como na sociedade faz um papel puramente negativo.
Esta era a impressão com que Estêvão, apesar da simpatia que o
arrastava, falou a segunda vez a Menezes, e admirava-se de tudo, das maneiras,
das palavras, e do tom de afeto que elas pareciam revelar.
À linguagem do deputado o jovem médico respondeu com igual
franqueza.
- Por que acabaremos no primeiro capítulo? perguntou ele; um amigo
não é coisa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses.
- Dos deuses! disse Menezes rindo; já vejo que é pagão.
- Alguma coisa, é verdade; mas no bom sentido, respondeu Estêvão rindo
também. Minha vida assemelha-se um pouco à de Ulisses...


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- Tem ao menos uma Ítaca, sua pátria, e uma Penélope, sua esposa.
- Nem uma nem outra.
- Então entender-nos-emos.
Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva
que caía na vidraça da portinhola.
Decorreram dois ou três minutos, durante os quais Estêvão teve tempo de
contemplar a seu gosto o companheiro de viagem.
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Menezes voltou-se e entrou em novo assunto.
Quando o coupé entrou na rua do Lavradio, Meneses disse ao médico:
- Moro nesta rua; estamos perto de casa. Promete-me que há de vir verme
algumas vezes?
- Amanhã mesmo.
- Bem. Como vai a sua clínica?
- Apenas começo, disse Estêvão; trabalho pouco; mas espero fazer
alguma coisa.
- O seu companheiro, na noite em que mo apresentou, disse-me que o
senhor é moço de muito merecimento.
- Tenho vontade de fazer alguma coisa.
Daí a dez minutos parava o coupé à porta de uma casa da rua do
Lavradio.
Apearam-se os dois e subiram.
Menezes mostrou a Estêvão o seu gabinete de trabalho, onde havia duas
longas estantes de livros.
- É minha família, disse o deputado mostrando os livros. História,
filosofia, poesia... e alguns livros de política. Aqui estudo e trabalho. Quando cá
vier, é aqui que o hei de receber.
Estêvão prometeu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé
que esperava por ele, e que o levou à rua da Misericórdia.
Entrando em casa Estêvão dizia consigo:
- Onde está a misantropia daquele homem? As maneiras de misantropo
são mais rudes do que as dele; salvo se ele, mais feliz do que Diógenes, achou
em mim o homem que procurava.
II
Estêvão era o tipo do rapaz sério. Tinha talento, ambição e vontade de
saber, três armas poderosas nas mãos de um homem que tenha consciência de si.
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Desde os dezesseis anos a sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo.
Destinado ao curso médico, Estêvão entrou na academia um pouco forçado; não
queria desobedecer ao pai. A sua vocação era toda para as matemáticas. Que
importa? disse ele ao saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a
matemática. Com efeito teve tempo para uma e outra coisa; teve tempo ainda
para estudar a literatura, e as principais obras da antigüidade e contemporâneas
eram-lhe tão familiares como os tratados de operações e de higiene.
Para estudar tanto, foi-lhe preciso sacrificar uma parte da saúde. Estêvão
aos vinte e quatro anos adquirira uma magreza, que não era a dos dezesseis; tinha
a tez pálida e a cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo hábito da
leitura. Mas esses vestígios de uma longa aplicação intelectual não lhe alteraram
a regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perderam nos livros o brilho
e a expressão. Era além disso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é


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coisa diferente: era elegante nas maneiras, na atitude, no sorriso, no trajo, tudo
mesclado de uma certa severidade que era o cunho do seu caráter. Podia-se notarlhe
muitas infrações ao código da moda; ninguém poderia dizer que ele faltasse
nunca às boas regras do gentleman.
Perdera os pais aos vinte anos, mas ficara-lhe bastante juízo para
continuar sozinho a viagem do mundo. O estudo serviu-lhe de refúgio e bordão.
Não sabia nada do que era o amor. Ocupara-se tanto com a cabeça que
esquecera-se de que tinha um coração dentro do peito. Não se infira daqui que
Estêvão fosse puramente um positivista. Pelo contrário, a alma dele possuía ainda
em toda a plenitude da graça e da força, as duas asas que a natureza lhe dera. Não
raras vezes rompia ela do cárcere da carne para ir correr os espaços do céu, em
busca de não sei que ideal mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava desses
êxtases, Estêvão curava-se deles enterrando-se nos volumes à cata de uma
verdade científica. Newton era-lhe o antídoto de Goethe.
Além disso, Estêvão tinha idéias singulares. Havia um padre, amigo dele,
rapaz de trinta anos, da escola de Fénelon, que entrava com Telêmaco na ilha de
Calipso. Ora, o padre dizia muitas vezes a Estêvão, que só uma coisa lhe faltava
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para ser completo: era casar-se.
- Quando você tiver, dizia-lhe, uma mulher amada e amante ao pé de si,
será um homem feliz e completo. Dividirá então o tempo entre as duas coisas
mais elevadas que a natureza deu ao homem, a inteligência e o coração. Nesse
dia quero eu mesmo casá-lo...
- Padre Luiz, respondia Estêvão, faça-me então o serviço completo:
traga-me a mulher e a bênção.
O padre sorria-se ao ouvir a resposta do médico, e como o sorriso parecia
a Estêvão uma nova pergunta, o médico continuava:
- Se encontrar uma mulher tão completa como eu exijo, afirmo-lhe que
me casarei. Dirá que as obras humanas são imperfeitas, e eu não contestarei,
padre Luiz; mas nesse caso deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições.
Daqui engendrava-se sempre uma discussão, que se animava e crescia
até o ponto em que Estêvão concluía por este modo:
- Padre Luiz, uma menina que deixa as bonecas para ir decorar
mecanicamente alguns livros mal escolhidos; que interrompe uma lição para
ouvir contar uma cena de namoro; que em matéria de arte só conhece os
figurinos parisienses; que deixa as calças para entrar no baile, e que antes de
suspirar por um homem, examina-lhe a correção da gravata, e o apertado do
botim; padre Luiz, esta menina pode vir a ser um esplêndido ornamento de salão
e até uma fecunda mãe de família, mas nunca será uma mulher.
Esta sentença de Estêvão tinha o defeito de certas regras absolutas. Por
isso, o padre dizia-lhe sempre:
- Tem você razão; mas eu não lhe digo que case com a regra; procure a
exceção que há de encontrar e leve-a ao altar, onde eu estarei para os unir.
Tais eram os sentimentos de Estêvão em relação ao amor e à mulher. A
natureza dera-lhe em parte esses sentimentos; mas em parte adquiriu-os ele nos
livros. Exigia a perfeição intelectual e moral de uma Heloísa; e partia da exceção
para estabelecer uma regra. Era intolerante para os erros veniais. Não os
reconhecia como tais. Não há erro venial, dizia ele, em matéria de costumes e de
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amor.


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Contribuíra para esta rigidez de ânimo o espetáculo da própria família de
Estêvão. Até aos vinte anos foi ele testemunha do que era a santidade do amor
mantido pela virtude doméstica. Sua mãe, que morrera com trinta e oito anos,
amou o marido até os últimos dias, e poucos meses lhe sobreviveu. Estêvão
soube que fora ardente e entusiástico o amor de seus pais, na estação do noivado,
durante a manhã conjugal: conheceu-o assim por tradição; mas na tarde conjugal
a que ele assistiu viu o amor calmo, solícito e confiante, cheio de dedicação e
respeito, praticado como um culto; sem recriminações nem pesares, e tão
profundo como no primeiro dia. Os pais de Estêvão morreram amados e felizes,
na tranqüila serenidade do dever.
No ânimo de Estêvão, o amor que funda a família devia ser aquilo ou não
seria nada. Era justiça; mas a intolerância de Estêvão começava na convicção que
ele tinha de que com a dele morrera a última família, e fora com ela a derradeira
tradição do amor. Que era preciso para derrubar todo este sistema, ainda que
momentâneo? Uma coisa pequeníssima: um sorriso e dois olhos.
Mas como esses dois olhos não apareciam, Estêvão entregava-se na
maior parte do tempo aos seus estudos científicos, empregando as horas vagas
em algumas distrações que o não prendiam por muito tempo.
Morava só; tinha um escravo, da mesma idade que ele, e cria da casa do
pai, - mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto. Recebia alguns
amigos, a quem visitava de quando em quando, entre os quais incluímos o jovem
padre Luiz, a quem Estêvão chamava – Platão de sotaina.
Naturalmente bom e afetuoso, generoso e cavalheiresco, sem ódios nem
rancores, entusiasta por todas as coisas boas e verdadeiras, tal era o Dr. Estêvão
Soares, aos vinte e quatro anos de idade.
Do seu retrato físico já dissemos alguma coisa. Bastará acrescentar que
tinha uma bela cabeça, coberta de bastos cabelos castanhos, dois olhos da mesma
cor, vivos e observadores; a palidez do rosto fazia realçar o bigode naturalmente
encaracolado. Era alto e tinha mãos admiráveis.
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III
Estêvão Soares visitou Menezes no dia seguinte.
O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho.
Estêvão marcara a hora da visita, o que impossibilitava a presença de Meneses na
câmara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi à câmara. Mas teve
a delicadeza de o não dizer a Estêvão.
Menezes estava no gabinete quando o criado anunciou-lhe a chegada do
médico. Foi recebê-lo à porta.
- Pontual como um rei, disse-lhe alegremente.
- Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci.
- E agradeço-lho.
Sentaram-se os dois.
- Agradeço-lho porque eu receava sobretudo que me houvesse
compreendido mal; e que os impulsos da minha simpatia não merecessem da sua
parte nenhuma consideração...
Estêvão ia protestar.
- Perdão, continuou Menezes, bem vejo que me enganei, e é por isso que
lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho quarenta e sete anos; e para a sua idade as
relações de um homem como eu já não têm valor.
- A velhice, quando é respeitável, deve ser respeitada; e amada, quando é


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amável. Mas V. Ex. não é velho; tem os cabelos apenas grisalhos: pode-se dizer
que está na segunda mocidade.
- Parece-lhe isso...
- Parece e é.
- Seja como for, disse Menezes, a verdade é que podemos ser amigos.
Quantos anos tem?
- Vinte e quatro.
- Olhe lá; podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?
- Morreram há quatro anos.
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- Lembra-me haver dito que era solteiro...
- É verdade.
- De maneira que os seus cuidados são todos para a ciência?
- É minha esposa.
- Sim, a sua esposa intelectual; mas essa não basta a um homem como o
senhor... Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço.
Durante este diálogo, Estêvão contemplava e observava Menezes, em
cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janelas. Era uma cabeça
severa, cheia de cabelos já grisalhos, que lhe caíam em gracioso desalinho. Tinha
os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinha-se porém que deviam ter sido
vivos e ardentes. As suíças também grisalhas eram como as de lord Palmerston,
segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa,
entre as sobrancelhas, indício de concentração de espírito, e não vestígio do
tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes.
Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e
antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o
sorriso, embora aquele rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão
singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruína. É que o sorriso era
amável, mas não era alegre.
Todo aquele conjunto impressionava e atraía; Estêvão sentia-se cada vez
mais arrastado para aquele homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.
A conversa continuou no tom afetuoso com que começara; a primeira
entrevista da amizade é o oposto da primeira entrevista do amor; nesta a mudez é
a grande eloqüência; naquela inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição
franca dos sentimentos e das idéias.
Não se falou de política. Estêvão aludiu de passagem às funções de
Meneses; mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou atenção.
No fim de uma hora, Estêvão levantou-se para sair; tinha de ir ver um
doente.
- O motivo é sagrado; senão retinha-o.
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- Mas eu voltarei outras vezes.
- Sem dúvida alguma, e eu irei vê-lo algumas vezes. Se no fim de quinze
dias não se aborrecer... olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois
da câmara estou completamente livre.
Estêvão saiu prometendo tudo.
Voltou lá, com efeito, e jantou duas vezes com o deputado, que também
visitou Estêvão em casa; foram ao teatro juntos; relacionaram-se intimamente
com as famílias conhecidas. No fim de um mês eram dois amigos velhos. Tinham
observado reciprocamente o caráter e os sentimentos. Menezes gostava de ver a


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seriedade do médico e o seu bom senso; estimava-o com as suas intolerâncias,
aplaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o médico via
em Menezes um homem que sabia ligar a austeridade dos anos à amabilidade de
cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruído, sentimental. Da misantropia
anunciada não encontrou vestígios. É verdade que em algumas ocasiões Menezes
parecia mais disposto a ouvir do que a falar; e então o olhar tornava-se-lhe
sombrio e parado, como se em vez de ver os objetos exteriores, estivesse
contemplando a sua própria consciência. Mas eram rápidos esses momentos, e
Menezes voltava logo aos seus modos habituais.
- Não é um misantropo, pensava então Estêvão; mas este homem tem um
drama dentro de si.
A observação de Estêvão adquiriu certo caráter de verossimilhança
quando uma noite em que se achavam no teatro Lírico, Estêvão chamou a
atenção de Menezes para uma mulher vestida de preto que se achava em um
camarote da primeira ordem.
- Não conheço aquela mulher, disse Estêvão. Sabe quem é?
Menezes olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por
alguns instantes e respondeu:
- Não conheço.
A conversa ficou aí; mas o médico reparou que a mulher duas vezes
olhou para Menezes, e este duas vezes olhou para ela, encontrando-se os olhos de
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ambos.
No fim do espetáculo, os dois amigos dirigiram-se pelo corredor do lado
em que estivera a mulher de preto. Estêvão teve apenas nova curiosidade, a
curiosidade de artista: quis vê-la de perto. Mas a porta do camarote estava
fechada. Teria já saído ou não? Era impossível sabê-lo. Menezes passou sem
olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos,
pararam os dois porque havia grande afluência de gente. Daí a pouco ouviu-se
passo apressado; Menezes voltou o rosto; e dando o braço a Estêvão desceu
imediatamente, apesar da dificuldade.
Estêvão compreendeu, mas nada viu.
Pela sua parte, Menezes não deu sinal algum.
Apenas se desembaraçaram da multidão, o deputado encetou uma alegre
conversa com o médico.
- Que efeito lhe faz, perguntou ele, quando passa no meio de tantas
damas elegantes, aquela confusão de sedas e de perfumes?
Estêvão respondeu distraidamente, e Menezes continuou a conversa no
mesmo estilo; daí a cinco minutos a aventura do teatro tinha-se-lhe varrido da
memória.
IV
Um dia Estêvão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho
amigo de seu pai.
A sociedade era luzida e numerosa; Estêvão, embora vivesse muito
arredado, achou ali grande número de conhecidos e conhecidas. Não dançou; viu,
conversou, riu um pouco e saiu.
Mas ao entrar levava o coração livre; ao sair trouxe nele uma flecha, para
falar a linguagem dos poetas da Arcádia; era a flecha do amor.
Do amor? A falar a verdade não se pode dar este nome ao sentimento
experimentado por Estêvão; não era ainda o amor, mas bem pode ser que viesse a


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sê-lo. Por enquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher
que lá estava produzira nele a impressão que as fadas produziam nos príncipes
errantes ou nas princesas perseguidas, segundo nos rezam os contos das velhas.
A mulher em questão não era uma virgem; era uma viúva de trinta e
quatro anos, bela como o dia, graciosa e terna. Estêvão via-a pela primeira vez;
pelo menos não se lembrava daquelas feições. Conversou com ela durante meia
hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a beleza de Madalena, que ao
chegar a casa não pôde dormir.
Como verdadeiro médico que era, sentia em si os sintomas dessa
hipertrofia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade
nascente. Leu algumas páginas de matemática, isto é, percorreu-as com os olhos;
porque apenas começava a ler o espírito alheava do livro onde apenas ficavam os
olhos: o espírito ia ter com a viúva.
O cansaço foi mais feliz que Euclides: sobre a madrugada Estêvão
Soares adormeceu.
Mas sonhou com a viúva.
Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era
seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade.
Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorriu.
- Casar-me! disse ele. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz
com o espírito receoso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto;
nunca mais verei aquela mulher... e boa noite.
Começou a vestir-se.
Trouxeram-lhe o almoço; Estêvão comeu rapidamente, porque era tarde,
e saiu para ir ver alguns doentes.
Mas ao passar pela rua do Conde lembrou-se que Madalena lhe dissera
morar ali; mas aonde? A viúva disse-lhe o número; o médico porém estava tão
embebido em ouvi-la falar que não o decorou.
Queria e não queria; protestava esquecê-la, e contudo daria o que se lhe
pedisse para saber o número da casa naquele momento.
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Como ninguém podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora.
No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela rua do
Conde a ver se descobria a encantadora viúva. Não descobriu nada; mas quando
ia tomar um tílburi e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa
encontrara Madalena.
Estêvão já tinha pensado nele; mas imediatamente tirou dali o
pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viúva era uma coisa que
podia traí-lo.
Estêvão já empregava o verbo trair.
O homem em questão, depois de cumprimentar ao médico, e trocar com
ele algumas palavras, disse-lhe que ia à casa de Magdalena, e despediu-se.
Estêvão estremeceu de satisfação.
Acompanhou de longe o amigo e viu-o entrar em uma casa.
- É ali, pensou ele.
E afastou-se rapidamente.
Quando entrou em casa achou uma carta para ele; a letra, que lhe era
desconhecida, estava traçada com elegância e cuidado: a carta recendia a sândalo.
O médico rompeu o lacre.


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A carta dizia assim:
«Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quiser vir passar algumas
horas conosco dar-nos-á sumo prazer. - Magdalena C...»
Estêvão leu e releu o bilhete; teve idéia de levá-lo aos lábios, mas
envergonhado diante de si próprio por uma idéia que lhe parecia de fraqueza,
cheirou simplesmente o bilhete e meteu-o no bolso.
Estêvão era um pouco fatalista.
- Se eu não fosse àquele baile não conhecia esta mulher, não andava
agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade,
porque ambas as coisas podem nascer deste encontro fortuito. Que será? Eis-me
na dúvida de Hamleto. Devo ir à casa dela? A cortesia pede que vá. Devo ir; mas
irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas idéias, e continuar a
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vida tranqüila que tenho tido.
Estava nisto quando Meneses lhe entrou por casa. Vinha buscá-lo para
jantar. Estêvão saiu com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas.
Por exemplo:
- Acredita no destino, meu amigo? Pensa que há um deus do bem e um
deus do mal, em conflito travado sobre a vida do homem?
- O destino é a vontade, respondia Menezes; cada homem faz o seu
destino.
- Mas enfim nós temos pressentimentos... Às vezes adivinhamos
acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deus
benfazejo que no-los segreda?
- Fala como um pagão; eu não creio em nada disso. Creio que tenho o
estômago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no hotel de
Europa em vez de ir à rua do Lavradio.
Subiram ao hotel de Europa.
Ali havia vários deputados que conversavam de política, e os quais se
reuniram a Menezes. Estêvão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viúva, a
carta e o sândalo.
Assim, pois, davam-se contrastes singulares entre a conversa geral e o
pensamento de Estêvão.
Dizia por exemplo um deputado:
- O governo é reator; as províncias não podem mais suportá-lo. Os
princípios estão todos preteridos; na minha província foram demitidos alguns
subdelegados pela circunstância única de serem meus parentes; meu cunhado,
que era diretor das rendas, foi posto fora do lugar, e este deu-se a um peralta
contraparente dos Valadares. Eu confesso que vou romper amanhã a oposição.
Estêvão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto:
- Com efeito, Magdalena é bela, é admiravelmente bela. Tem uns olhos
de matar. Os cabelos são lindíssimos: tudo nela é fascinador. Se pudesse ser
minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?... Contudo sinto que vou amá-la. Já
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é irresistível; é preciso amá-la; e ela? que quer dizer aquele convite? Amar-me-á?
Estêvão embebera-se tanto nesta contemplação ideal, que, acontecendo
perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estêvão
entregue ao seu pensamento respondeu:
- É lindíssima!
- Ah! disse o deputado, vejo que o senhor é ministerialista.


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Estêvão sorriu; mas Menezes franziu o sobrolho.
Compreendera tudo.
V
Quando saíram, o deputado disse ao médico:
- Meu amigo, você é desleal comigo...
- Por quê? perguntou Estêvão meio sério e meio risonho, não
compreendendo a observação do deputado.
- Sim, continuou Menezes; você esconde-me um segredo...
- Eu?
- É verdade: e um segredo de amor.
- Ah!... disse Estêvão; por que diz isso?
- Reparei há pouco que, ao passo que os mais conversavam em política,
você pensava em uma mulher, e mulher... lindíssima...
Estêvão compreendeu que estava descoberto; não negou.
- É verdade, pensava em uma mulher.
- E eu serei o último a saber?
- Mas saber o quê? Não há amor, não há nada. Encontrei uma mulher que
me impressionou e ainda agora me preocupa; mas é bem possível que não passe
disto. Aí está. É um capítulo interrompido; um romance que fica na primeira
página. Eu lhe digo: há de me ser difícil amar.
- Por quê?
- Eu sei? custa-me a crer no amor.
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Menezes olhou fixamente para Estêvão, sorriu, abanou a cabeça e disse:
- Olhe, deixe a descrença para os que já sofreram as decepções; o senhor
está moço, não conhece ainda nada desse sentimento. Na sua idade ninguém é
cético... Demais, se a mulher é bonita, eu aposto que daqui a pouco há de dizerme
o contrário.
- Pode ser... respondeu Estêvão.
E ao mesmo tempo entrou a pensar nas palavras de Menezes, palavras
que ele comparava ao episódio do teatro Lírico.
Entretanto, Estêvão foi ao convite de Magdalena. Preparou-se e
perfumou-se como se fosse falar a uma noiva. Que sairia daquele encontro? Viria
de lá livre ou cativo? Já seria amado? Estêvão não deixou de pensá-lo; aquele
convite parecia-lhe uma prova irrecusável. O médico entrando num tílburi
começou a formar vários castelos no ar.
Enfim chegou à casa.
VI
Magdalena estava na sala acompanhada de um filho.
Ninguém mais.
Eram nove horas e meia.
- Viria eu cedo demais? perguntou ele à dona da casa.
- O senhor nunca vem cedo.
Estêvão inclinou-se.
Magdalena continuou:
- Se me acha só, é porque, tendo enfermado um pouco, mandei desavisar
as poucas pessoas que eu havia convidado.
- Ah! mas eu não recebi...
- Naturalmente; eu não lhe mandei dizer nada. Era a primeira vez que o
convidava; não queria por modo algum arredar de casa um homem tão distinto.


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Estas palavras de Magdalena não valiam coisa alguma, nem mesmo
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como desculpa, porque a desculpa é fraquíssima.
Estêvão compreendeu logo que havia algum motivo oculto.
Seria o amor?
Estêvão pensou que era, e doeu-se, porque, apesar de tudo, sonhara uma
paixão mais reservada e menos precipitada. Não queria, embora lhe agradasse,
ser objeto daquela preferência; e mais que tudo achava-se embaraçadíssimo
diante de uma mulher a quem começava a amar, e que talvez o amasse. Que lhe
diria? Era a primeira vez que o médico achava-se em tais apuros. Há toda a razão
para supor que Estêvão naquele momento preferia estar cem léguas distante, e,
contudo, longe que estivesse pensaria nela.
Magdalena era excessivamente bela, embora mostrasse no rosto sinais de
longo sofrimento. Era alta, cheia, tinha um belíssimo colo, magníficos braços,
olhos castanhos e grandes, boca feita para ninho de amores.
Naquele momento trajava um vestido preto.
A cor preta ia-lhe muito bem.
Estêvão contemplava aquela figura com amor e adoração; ouvia-a falar e
sentia-se encantado e dominado por um sentimento que não podia explicar.
Era um misto de amor e de receio.
Magdalena mostrou-se delicada e solícita. Falou no merecimento do
rapaz e na sua nascente reputação, e instou com ele para que fosse algumas vezes
visitá-la.
Às 10 horas e meia serviu-se o chá na sala. Estêvão conservou-se lá até
as onze horas.
Chegando à rua o médico estava completamente namorado. Magdalena
tinha-o atado no seu carro, e o pobre rapaz nem vontade tinha de quebrar o jugo.
Caminhando para casa ia ele formando projetos: via-se casado com ela,
amado e amante, causando inveja a todos, e mais que tudo feliz no seu interior.
Quando chegou à casa, lembrou-se de escrever uma carta que mandaria
no dia seguinte a Menezes. Escreveu cinco e rasgou-as todas.
Afinal redigiu um simples bilhete nestes termos:
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«Meu amigo.- Você tem razão; na minha idade crê-se; eu creio e amo.
Nunca o pensei; mas é verdade. Amo... Quer saber a quem? Hei de apresentá-lo
em casa dela. Há de achá-la bonita... Se o é!...»
A carta dizia muitas coisas mais; era tudo, porém, uma glosa do mesmo
mote.
Estêvão voltou à casa de Magdalena e as suas visitas começaram a ser
regulares e assíduas.
A viúva usava para com ele de tanta solicitude que não era possível
duvidar do sentimento que a dirigia. Pelo menos Estêvão assim o pensava.
Achava-a quase sempre só, e deliciava-se em ouvi-la. A intimidade começou a
estabelecer-se.
Logo na segunda visita, Estêvão falou-lhe em Menezes pedindo licença
para apresentá-lo. A viúva disse que teria muito prazer em receber amigos de
Estêvão; mas pedia-lhe que adiasse a apresentação. Todos os pedidos e todas as
razões de Magdalena eram dignas para o médico; não disse mais nada.
Como era natural, ao passo que as visitas à viúva eram mais assíduas, as
visitas ao amigo eram mais raras.


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Menezes não se queixou; compreendeu, e disse-o ao rapaz.
- Não se desculpe, acrescentou o deputado; é natural: a amizade deve
ceder o passo ao amor. O que eu quero é que seja feliz.
Um dia Estêvão pediu ao amigo que lhe contasse o motivo que o tinha
feito descrer do amor, e se algum grande infortúnio lhe havia acontecido.
- Nada me aconteceu, disse Menezes.
Mas ao mesmo tempo, compreendendo que o médico merecia-lhe toda a
confiança, e podia não acreditá-lo absolutamente, disse:
- Por que negá-lo? Sim, aconteceu-me um grande infortúnio; amei
também, mas não encontrei no amor as doçuras e a dignidade do sentimento;
enfim, é um drama íntimo de que não quero falar: limite-se a pateá-lo.
70
VII
- Quando quiser que eu lhe apresente o meu amigo Menezes... dizia
Estêvão uma noite à viúva Magdalena.
- Ah! é verdade; um dia destes. Vejo que o senhor é amigo dele.
- Somos amigos íntimos.
- Verdadeiros?
- Verdadeiros.
Magdalena sorriu; e como estava brincando com os cabelos do filho deulhe
um beijo na testa.
A criança riu alegremente e abraçou a mãe.
A idéia de vir a ser pai honorário do pequeno apresentou-se ao espírito
de Estêvão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no
mesmo lugar em que pousaram os lábios de Magdalena.
Estêvão tocava piano, e às vezes executava algum pedaço de música a
pedido de Magdalena.
Nessas e noutras distrações lá passavam as horas.
O amor não adiantava um passo.
Podiam ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então
não davam o menor sinal de si.
Esta situação incomodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o sofrer; mas
quando ele pensava em dar um ataque decisivo, era exatamente quando se
mostrava mais covarde e poltrão.
Era o primeiro amor do rapaz: ele nem conhecia as palavras próprias
desse sentimento.
Um dia resolveu escrever à viúva.
- É melhor, pensava ele; uma carta é eloqüente e tem a grande vantagem
de deixar a gente longe.
Entrou para o gabinete e começou uma carta.
Gastou nisso uma hora; cada frase ocupava-lhe muito tempo. Estêvão
71
queria fugir à hipótese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que
a carta não respirasse sentimentos frívolos nem maus; queria revelar-se puro
como era.
Mas de que não dependem às vezes os acontecimentos? Estêvão estava
relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha
intimidade com ele. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do
Rio de Janeiro.
Entrou com um rolo de papel na mão.


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Estêvão escondeu rapidamente a carta.
- Adeus, Estêvão! disse o recém-chegado. Estavas escrevendo algum
libelo ou carta de namoro?
- Nem uma nem outra coisa, respondeu Estêvão secamente.
- Dou-te uma notícia.
- Que é?
- Entrei na literatura.
- Ah!
- É verdade, e venho ler-te a primeira comédia.
- Deus me livre! disse Estêvão levantando-se.
- Hás de ouvir, meu amigo; ao menos algumas cenas; dar-se-à caso que
não me protejas nas letras? Anda cá; ao menos duas cenas. Sim? É pouca coisa.
Estêvão sentou-se.
O dramaturgo continuou:
- Talvez prefiras ouvir a minha tragédia intitulada O punhal de Bruto...
- Não, não; prefiro a comédia: é menos sanguinária. Vamos lá.
O Oliveira abriu o rolo, arranjou as folhas, tossiu e começou a ler o que
se segue, com voz pausada e fanhosa:
Cena I
CÉSAR entrando pela direita, JOÃO pela esquerda.
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CÉSAR.- Fechada! A sinhá já se levantou?
JOÃO.- Já, sim senhor; mas está incomodada.
CÉSAR.- O que tem?
JOÃO.- Tem... está incomodada.
CÉSAR.- Já sei. (Consigo.) Os incômodos do costume. (A JOÃO.) Qual
é então o remédio hoje?
JOÃO.- O remédio? (Depois de uma pausa.) Não sei.
CÉSAR.- Está bom, vai-te!
Cena II
CÉSAR, FREITAS pela direita.
CÉSAR.- Bom dia, Sr. procurador...
FREITAS.- De causas perdidas. Só me ocupo em procurar as perdidas.
Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte?
CÉSAR.- Disse-me o João que está incomodada.
FREITAS.- Mesmo para V. S.ª?
CÉSAR.- (Sentando-se.) Mesmo para mim. Por que me olha com esse
olhar? Tem inveja?
FREITAS.- Não é inveja, é admiração! De ordinário ninguém
corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. César, benza-o Deus, não
desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas páginas amorosas o
que foi o outro nas batalhas campais.
CÉSAR.- Pois também os procuradores dizem coisas destas?
FREITAS.- De vez em quando. (Indo sentar-se.) V. S.ª admira-se?
CÉSAR.- (Tirando charutos.) Como não é de costume... Quer um
charuto?
FREITAS.- Obrigado... Eu tomo rapé. (Tira a boceta.) Quer uma pitada?
CÉSAR.- Obrigado.
FREITAS.- (Sentando-se.) Pois a causa da minha constituinte vai às mil
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maravilhas. A parte contrária requereu assinação de dez dias, mas eu vou...
CÉSAR.- Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me fale
linguagem do foro. Em resumo, ela vence?
FREITAS.- Está claro. Tratando provar que...
CÉSAR.- Vence, é quanto basta.
FREITAS.- Pudera não vencer! Pois se eu ando nisto...
CÉSAR.- Tanto melhor!
FREITAS.- Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já
perdi uma, mas é porque nas vésperas de ganhar disse-me o constituinte que
desejava perdê-la. Dito e feito. Provei o contrário do que já tinha provado, e
perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.
CÉSAR.- É a fênix dos procuradores.
FREITAS.- (Modestamente.) São os seus bons olhos...
CÉSAR.- Mas a consciência?
FREITAS.- Quem é a consciência?
CÉSAR.- A consciência, a sua consciência?
FREITAS.- A minha consciência? Ah! essa também ganha.
CÉSAR.- (Levantando-se.) Ah! também?...
FREITAS.- (O mesmo.) Tem V. S.ª alguma demandazinha?
CÉSAR.- Não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater
à sua porta...
FREITAS.- Sempre às ordens de V. S.ª.
VIII
Estêvão interrompeu violentamente a leitura, o que desgostou bastante ao
poeta novel. O pobre candidato às musas mal pôde balbuciar uma súplica;
Estêvão mostrou-se surdo, e o mais que lhe concedeu foi ficar com a comédia
para lê-la depois.
Oliveira contentou-se com isso; mas não se retirou sem recitar-lhe de cor
74
uma fala do protagonista da tragédia, em versos duros e compridos, dando-lhe
por quebra uma estrofe de uma poesia lírica, no estilo dos Djinns de Vitor Hugo.
Enfim saiu.
Entretanto havia passado o tempo.
Estêvão releu a carta e quis ainda mandá-la; mas a interrupção do poeta
fora proveitosa; relendo a carta, Estêvão achou-a fria e nula; a linguagem era
ardente, mas não lhe correspondia ao fogo do coração.
- É inútil, disse ele rasgando a carta em mil pedaços, a língua humana há
de ser sempre impotente para exprimir certos afetos da alma; tudo aquilo era frio
e indiferente no que sinto. Estou condenado a não dizer nada ou a dizer mal. Ao
pé dela não tenho forças, sinto-me fraco...
Estêvão parou diante da janela que dava para a rua, no momento em que
passava um antigo colega dele, com a mulher de braço, a mulher que era bonita,
e com quem se casara um mês antes.
Os dois iam alegres e felizes.
Estêvão contemplou aquele quadro com adoração e tristeza. O casamento
já não era para ele aquele impossível de que falava quando apenas tinha idéias e
não sentimentos. Agora era uma ventura realizável.
O casal que passara dera-lhe nova força.
- É preciso acabar com isto, dizia ele; eu não posso deixar de ir àquela
mulher e dizer-lhe que a amo, que a adoro, que desejo ser o seu marido. Ela


[Linha 2150 de 6063 - Parte 2 de 4]


amar-me-á, se já me não ama: sim, ama-me...
E começou a vestir-se.
Quando calçava as luvas e lançava um olhar para o relógio, o criado
trouxe-lhe uma carta.
Era de Magdalena.
«Espero, meu caro doutor, que não deixe de vir hoje; esperei-o ontem em
vão. Desejo falar-lhe.»
Estêvão acabou de ler este bilhete na escada, com tal pressa descia e tal
urgência tinha de achar-se em casa da viúva.
75
O que ele não queria era perder aquele assomo de coragem.
Partiu.
Quando chegou à casa de Magdalena achava-se esta à janela. Recebeu-o
com a costumada afabilidade. Estêvão desculpou-se como pôde por não ter
podido vir na véspera, acrescentando que só com desgosto do seu coração havia
faltado.
Que melhor ocasião do que era essa para lançar a bomba de uma
declaração franca e apaixonada? Estêvão hesitou alguns segundos; mas tomando
ânimo, ia continuar o período, quando a viúva lhe disse:
- Estava ansiosa por vê-lo para comunicar-lhe uma coisa de certa
importância, e que só a um homem de honra, como o senhor, se pode confiar.
Estêvão empalideceu.
- Sabe onde foi que eu o vi pela primeira vez?
- No baile de ***.
- Não; foi antes disso; foi no teatro Lírico.
- Ah!
- Lá o vi com o seu amigo Menezes.
- Fomos algumas vezes lá!
Magdalena entrou então em uma longa exposição, que o rapaz ouviu sem
pestanejar, mas pálido e agitado por comoções íntimas. As últimas palavras da
viúva foram estas:
- Bem vê, senhor; coisas destas só uma grande alma pode ouvi-las. As
pequenas não as compreendem. Se lhe mereço alguma coisa, e se esta confiança
pode ser paga com um benefício, peço-lhe que faça o que lhe pedi.
O médico passou a mão pelos olhos, e apenas murmurou:
- Mas...
Neste momento entrava na sala o filhinho de Madalena; a viúva
levantou-se e trouxe-o pela mão até o lugar onde se achava Estêvão Soares.
- Se não por mim, disse ela, ao menos por esta criança inocente!
A criança, sem nada compreender, atirou-se aos braços de Estêvão. O
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moço deu-lhe um beijo na testa, e disse para a viúva:
- Se hesitei não foi porque duvidasse do que a senhora acaba de contarme;
foi porque a missão é espinhosa; mas prometo que hei de cumpri-la.
IX
Estêvão saiu da casa da viúva agitado por diversos sentimentos, com
passo trêmulo e a vista turva. A conversa com a viúva fora um longo combate; a
última promessa foi um golpe decisivo e mortal. Estêvão saía dali como um
homem que acabava de matar as suas esperanças em flor; caminhava ao acaso,
precisava de ar e queria meter-se em um quarto sombrio; quisera ao mesmo


[Linha 2200 de 6063 - Parte 2 de 4]


tempo estar solitário e no meio de imensa multidão.
No caminho encontrou Oliveira, o poeta novel.
Lembrou-se que a leitura da comédia impedira a remessa da carta, e
portanto poupou-lhe um tristíssimo desengano.
Estêvão involuntariamente abraçou o poeta com toda a efusão d'alma.
Oliveira correspondeu ao abraço, e quando pôde desligar-se do médico,
disse-lhe:
- Obrigado, meu amigo; estas manifestações são muito honrosas para
mim; sempre te conheci como um perfeito juiz literário, e a prova que acabas de
dar-me é uma consolação e uma animação; consola-me do que tenho sofrido,
anima-me para novos cometimentos. Se Torquato Tasso...
Diante desta ameaça de discurso, e sobretudo vendo a interpretação do
seu abraço, Estêvão resolveu-se a continuar caminho abandonando o poeta.
- Adeus, tenho pressa.
- Adeus, obrigado!
Estêvão chegou à casa e atirou-se à cama. Ninguém o soube nunca, só as
paredes do quarto foram testemunhas; mas a verdade é que Estêvão chorou
lágrimas amargas.
Enfim que lhe dissera Magdalena e que exigira dele?
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A viúva não era viúva; era mulher de Menezes; viera do norte meses
antes do marido, que só veio como deputado; Menezes, que a amava doidamente,
e que era amado com igual delírio, acusava-a de infidelidade; uma carta e um
retrato eram os indícios; ela negou, mas explicou-se mal; o marido separou-se e
mandou-a para o Rio de Janeiro.
Magdalena aceitou a situação com resignação e coragem: não murmurou
nem pediu; cumpriu a ordem do marido.
Todavia Magdalena não era criminosa; o seu crime era uma aparência;
estava condenada por fidelidade de honra. A carta e o retrato não lhe pertenciam;
eram apenas um depósito imprudente e fatal. Magdalena podia dizer tudo, mas
era trair uma promessa; não quis; preferiu que a tempestade doméstica caísse
unicamente sobre ela.
Agora, porém, a necessidade do segredo expirara; Magdalena recebeu do
norte uma carta em que a amiga, no leito de morte, pedia que inutilizasse a carta
e o retrato, ou os restituísse ao homem que lhos dera. Esta carta era uma
justificação.
Magdalena podia mandar a carta ao marido, ou pedir-lhe uma entrevista;
mas receava tudo; sabia que seria inútil, porque Menezes era extremamente
severo.
Vira o médico uma noite no teatro em companhia do seu marido;
indagara e soube que eram amigos; pedia-lhe pois que fosse mediador entre os
dois, que a salvasse e que reconstruísse uma família.
Não era pois somente o amor de Estêvão que sofria; era também o seu
amor-próprio. Estêvão facilmente compreendeu que não fora atraído àquela casa
para outra coisa. É verdade que a carta só chegara na véspera; mas a carta apenas
vinha apressar a resolução. Naturalmente Magdalena pedir-lhe-ia, sem haver
carta, algum serviço análogo àquele.
Se se tratasse de qualquer outro homem, Estêvão recusaria o serviço que
lhe pedia a viúva; mas tratava-se do seu amigo, de um homem a quem ele devia
estima e serviços de amizade.


[Linha 2250 de 6063 - Parte 2 de 4]


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Aceitou, pois, a cruel missão.
- Cumpra-se o destino, disse ele; hei de ir lançar a mulher que amo aos
braços de outro; e por desgraça maior, em vez de gozar com este
restabelecimento de concórdia doméstica, vejo-me na dura situação de amar a
mulher do meu amigo, isto é, de fugir para longe...
Estêvão não saiu mais de casa nesse dia.
Quis escrever ao deputado contando-lhe tudo; mas pensou que o melhor
era falar-lhe de viva voz. Embora lhe custasse mais, era de mais efeito para o
desempenho da sua promessa.
Adiou, porém, para o dia seguinte, ou antes para o mesmo dia, porque a
noite não lhe interrompeu o tempo, visto que Estêvão não dormiu um minuto
sequer.
X
Levantou-se da cama o pobre namorado sem ter conseguido dormir.
Vinha nascendo o sol.
Quis ler os jornais e pediu-os.
Já os ia pondo de lado, por haver acabado de ler, quando repentinamente
viu o seu nome impresso no Jornal do Comércio.
Era um artigo a pedido com o título de «Uma obra-prima».
Dizia o artigo:
«Temos o prazer de anunciar ao país o próximo aparecimento de uma
excelente comédia, estréia de um jovem literato fluminense, de nome Antônio
Carlos de Oliveira.
Este robusto talento, por muito tempo incógnito, vai enfim entrar nos
mares da publicidade, e para isso procurou logo ensaiar-se em uma obra de
certo vulto.
Consta-nos que o autor, solicitado por seus numerosos amigos, leu há
dias a comédia em casa do Sr. Dr. Estêvão Soares, diante de um luzido
79
auditório, que aplaudiu muito e profetizou no Sr. Oliveira um futuro
Shakespeare.
O Sr. Dr. Estêvão Soares levou a sua amabilidade a ponto de pedir a
comédia para ler segunda vez, e ontem ao encontrar-se na rua com o Sr.
Oliveira, de tal entusiasmo vinha possuído que o abraçou estreitamente, com
grande pasmo dos numerosos transeuntes.
Da parte de um juiz tão competente em matérias literárias este ato é
honroso para o Sr. Oliveira.
Estamos ansiosos por ler a peça do Sr. Oliveira, e ficamos certos de que
ela fará fortuna de qualquer teatro.
'O amigo das letras'».
Estêvão, apesar dos sentimentos que o agitavam então, enfureceu-se com
o artigo que acabava de ler. Não havia dúvida que o autor dele era o próprio autor
da comédia. O abraço da véspera fora mal interpretado, e o poetastro
aproveitava-o em seu favor. Se ao menos não falasse no nome de Estêvão, este
poderia desculpar a vaidadezinha do escritor. Mas o nome ali estava como
cúmplice da obra.
Pondo de lado o Jornal do Comércio, Estêvão lembrou-se de protestar, e
ia já escrever um artigo quando recebeu uma cartinha de Oliveira.
Dizia a carta:


[Linha 2300 de 6063 - Parte 2 de 4]


«Meu Estêvão.- Lembrou-se um amigo meu de escrever alguma coisa a
propósito da minha peça. Expliquei-lhe como se dera a leitura em tua casa, e
disse-lhe como é que, apesar do vivo desejo que tinhas de ouvir lê-la,
interrompeste-me para ir cuidar de um doente. Apesar de tudo isto, o meu
referido amigo contou hoje no Jornal do Comércio a história alterando um pouco
a verdade. Desculpa-o; é a linguagem da amizade e da benevolência.
Ontem entrei para casa tão orgulhoso com o teu abraço, que escrevi uma
ode, e assim manifestou-se em mim a veia lírica, depois da cômica e da trágica.
Aí te mando o rascunho; se não prestar, rasga-a.»
80
A carta tinha, por engano, a data da véspera.
A ode era muito comprida; Estêvão nem a leu, atirou-a para um canto.
A ode começava assim:
Sai do teu monte, ó musa!
Vem inspirar a lira do poeta;
Enche de luz a minha fronte ousada,
E mandemos aos evos,
Nas asas de uma estrofe ingente e altíssona,
Do caro amigo o animador abraço!
Não canto os altos feitos
De Aquiles, nem traduzo os sons tremendos
Dos rufos marciais enchendo os campos!
Outro assunto me inspira.
Não canto a espada que dá morte e campa;
Canto o abraço que dá vida e glória!
XI
Como havia prometido, Estêvão foi logo procurar o deputado Menezes.
Em vez de ir direito ao fim, quis antes sondá-lo a respeito do seu passado. Era a
primeira vez que o moço tocava em tal. Menezes não desconfiou, mas estranhou;
mas tal confiança tinha nele que não recusou nada.
- Sempre imaginei, dissera-lhe Estêvão, que há na sua vida um drama. É
talvez engano meu, mas a verdade é que ainda não perdi a idéia.
- Há, com efeito, um drama; mas um drama pateado. Não sorria; é assim.
Que supõe então?
- Não suponho nada. Imagino que...
- Pede dramas a um homem político?
- Por que não?
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- Eu lhe digo. Sou político e não sou. Não entrei na vida pública por
vocação; entrei como se entra em uma sepultura: para dormir melhor. Por que o
fiz? A razão é o drama de que me fala.
- Uma mulher, talvez...
- Sim, uma mulher.
- Talvez mesmo, disse Estêvão procurando sorrir, talvez uma esposa.
Menezes estremeceu e olhou para o amigo, espantado e desconfiado.
- Quem lho disse?
- Pergunto.
- Uma esposa, sim; mas não lhe direi mais nada. É a primeira pessoa que
ouve tanta coisa de mim. Deixemos o passado que morreu: parce sepultis.
- Conforme, disse Estêvão; e se eu pertencer a uma seita filosófica que


[Linha 2350 de 6063 - Parte 2 de 4]


pretenda ressuscitar os mortos, mesmo quando é um passado...
- As suas palavras, ou querem dizer muito, ou nada. Qual é a sua
intenção?
- A minha intenção não é ressuscitar o passado unicamente; é repará-lo, é
restaurá-lo em todo o seu esplendor, com toda a legitimidade do seu direito; o
meu fim é dizer-lhe, meu caro amigo, que a mulher condenada é uma mulher
inocente.
Ouvindo estas palavras Menezes deu um pequeno grito.
Depois levantando-se com rapidez pediu a Estêvão que lhe dissesse o
que sabia e como sabia.
Estêvão referiu tudo.
Quando concluiu a sua narração, o deputado abanou a cabeça com aquele
último sintoma de incredulidade que é ainda um eco das grandes catástrofes
domésticas.
Mas Estêvão ia armado contra as objeções do marido. Protestou
energicamente pela defesa da mulher; instou pelo cumprimento do dever.
A última resposta de Menezes foi esta:
- Meu caro Estêvão, a mulher de César nem deve ser suspeitada.
82
Acredito em tudo; mas o que está feito, está feito.
- O princípio é cruel, meu amigo.
- É fatal.
Estêvão saiu.
Ficando só, Menezes caiu em profunda meditação; ele acreditava em
tudo, e amava a mulher; mas não acreditava que os belos dias pudessem voltar.
Recusando, pensava ele, era ficar no túmulo em que tivera tão brando
sono.
Estêvão, porém, não desanimou.
Quando entrou em casa, escreveu uma longa carta ao deputado
exortando-o a que restaurasse a família um momento separada e desfeita. Estêvão
era eloqüente; o coração de Menezes com pouco se contentava.
Enfim, nesta missão diplomática, o médico houve-se com suprema
habilidade. No fim de alguns dias dissipara-se a nuvem do passado, e o casal
reunira-se.
Como?
Magdalena soube das disposições de Menezes e recebeu o anúncio de
uma visita de seu marido.
Quando o deputado se preparava para sair, vieram dizer-lhe que uma
senhora o procurava.
A senhora era Magdalena.
Menezes nem quis abraçá-la; ajoelhou-se-lhe aos pés.
Tudo estava esquecido.
Quiseram celebrar a reconciliação, e Estêvão foi convidado para lá
passar o dia em companhia dos seus amigos, que lhe deviam a felicidade.
Estêvão não foi.
Mas no dia seguinte Menezes recebeu este bilhete:
«Desculpe, meu amigo, se não vou despedir-me pessoalmente. Sou
obrigado a partir repentinamente para Minas. Voltarei daqui a alguns meses.
Estimo que sejam felizes, e espero que não se esqueçam de mim.»
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[Linha 2400 de 6063 - Parte 2 de 4]


Menezes foi apressadamente à casa de Estêvão, e ainda o achou
preparando as malas.
Achou singular a viagem, e mais singular o bilhete; mas o médico não
revelou por modo nenhum o verdadeiro motivo da sua partida.
Quando Menezes voltou, comunicou à mulher as suas impressões; e
perguntou se ela compreendia aquilo.
- Não, respondeu Magdalena.
Mas tinha compreendido enfim.
- Nobre alma! disse ela consigo.
Nada disse ao marido; nisso mostrava-se esposa solícita pela
tranqüilidade conjugal; mas mostrava-se sobretudo mulher.
Menezes não foi à câmara durante muitos dias, e no primeiro paquete
seguiu para o norte.
A ausência transtornou algumas votações, e a sua partida logrou muitos
cálculos.
Mas o homem tem o direito de procurar a sua felicidade, e a felicidade de
Menezes era independente da política.
84


**************************************************************************************************************
O SEGREDO DE AUGUSTA
I
São onze horas da manhã.
D. Augusta Vasconcelos está reclinada sobre um sofá, com um livro na
mão. Adelaide, sua filha, passa os dedos pelo teclado do piano.
- Papai já acordou? pergunta Adelaide à sua mãe.
- Não, responde esta sem levantar os olhos do livro.
Adelaide levantou-se e foi ter com Augusta.
- Mas é tão tarde, mamãe, disse ela. São onze horas. Papai dorme muito.
Augusta deixou cair o livro no regaço, e disse olhando para Adelaide:
- É que naturalmente recolheu-se tarde.
- Reparei já que nunca me despeço de papai quando me vou deitar. Anda
sempre fora.
Augusta sorriu.
- És uma roceira, disse ela; dormes com as galinhas. Aqui o costume é
outro. Teu pai tem que fazer de noite.
- É política, mamãe? perguntou Adelaide.
- Não sei, respondeu Augusta.
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Comecei dizendo que Adelaide era filha de Augusta, e esta informação,
necessária no romance, não o era menos na vida real em que se passou o episódio
que vou contar, porque à primeira vista ninguém diria que havia ali mãe e filha;
pareciam duas irmãs, tão jovem era a mulher de Vasconcelos.
Tinha Augusta trinta anos e Adelaide quinze; mas comparativamente a
mãe parecia mais moça ainda que a filha. Conservava a mesma frescura dos
quinze anos, e tinha de mais o que faltava a Adelaide, que era a consciência da
beleza e da mocidade, consciência que seria louvável se não tivesse como
conseqüência uma imensa e profunda vaidade. A sua estatura era mediana, mas
imponente. Era muito alva e muito corada. Tinha os cabelos castanhos, e os olhos


[Linha 2450 de 6063 - Parte 2 de 4]


garços. As mãos compridas e bem feitas pareciam criadas para os afagos de
amor. Augusta dava melhor emprego às suas mãos; calçava-as de macia pelica.
As graças de Augusta estavam todas em Adelaide, mas em embrião.
Adivinhava-se que aos vinte anos Adelaide devia rivalizar com Augusta; mas por
enquanto havia na menina uns restos da infância que não davam realce aos
elementos que a natureza pusera nela.
Todavia, era bem capaz de apaixonar um homem, sobretudo se ele fosse
poeta, e gostasse das virgens de quinze anos, até porque era um pouco pálida, e
os poetas em todos os tempos tiveram sempre queda para as criaturas descoradas.
Augusta vestia com suprema elegância; gastava muito, é verdade; mas
aproveitava bem as enormes despesas, se acaso é isso aproveitá-las. Deve-se
fazer-lhe uma justiça; Augusta não regateava nunca; pagava o preço que lhe
pediam por qualquer coisa. Punha nisso a sua grandeza, e achava que o
procedimento contrário era ridículo e de baixa esfera.
Neste ponto Augusta partilhava os sentimentos e servia aos interesses de
alguns mercadores, que entendem ser uma desonra abater alguma coisa no preço
das suas mercadorias.
O fornecedor de fazendas de Augusta, quando falava a este respeito,
costumava dizer-lhe:
- Pedir um preço e dar a fazenda por outro preço menor, é confessar que
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havia intenção de esbulhar o freguês.
O fornecedor preferia fazer a coisa sem a confissão.
Outra justiça que devemos reconhecer era que Augusta não poupava
esforços para que Adelaide fosse tão elegante como ela.
Não era pequeno o trabalho.
Adelaide desde a idade de cinco anos fora educada na roça em casa de
uns parentes de Augusta, mais dados ao cultivo do café que às despesas do
vestuário. Adelaide foi educada nesses hábitos e nessas idéias. Por isso quando
chegou à corte, onde se reuniu à família, houve para ela uma verdadeira
transformação. Passava de uma civilização para outra; viveu numa hora uma
longa série de anos. O que lhe valeu é que tinha em sua mãe uma excelente
mestra. Adelaide reformou-se, e no dia em que começa esta narração já era outra;
todavia estava ainda muito longe de Augusta.
No momento em que Augusta respondia à curiosa pergunta de sua filha
acerca das ocupações de Vasconcelos, parou um carro à porta.
Adelaide correu à janela.
- É D. Carlota, mamãe, disse a menina voltando-se para dentro.
Daí a alguns minutos entrava na sala a D. Carlota em questão. Os leitores
ficarão conhecendo esta nova personagem com a simples indicação de que era
um segundo volume de Augusta; bela, como ela; elegante, como ela; vaidosa,
como ela.
Tudo isto quer dizer que eram ambas as mais afáveis inimigas que pode
haver neste mundo.
Carlota vinha pedir a Augusta para ir cantar num concerto que ia dar em
casa, imaginado por ela para o fim de inaugurar um magnífico vestido novo.
Augusta de boa vontade acedeu ao pedido.
- Como está seu marido? perguntou ela a Carlota.
- Foi para a praça; e o seu?
- O meu dorme.


[Linha 2500 de 6063 - Parte 2 de 4]


- Como um justo? perguntou Carlota sorrindo maliciosamente.
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- Parece, respondeu Augusta.
Neste momento, Adelaide, que por pedido de Carlota tinha ido tocar um
noturno ao piano, voltou para o grupo.
A amiga de Augusta perguntou-lhe:
- Aposto que já tem algum noivo em vista?
A menina corou muito, e balbuciou:
- Não fale nisso.
- Ora, há de ter! Ou então aproxima-se da época em que há de ter um
noivo, e eu já lhe profetizo que há de ser bonito...
- É muito cedo, disse Augusta.
- Cedo!
- Sim, está muito criança; casar-se-á quando for tempo, e o tempo está
longe...
- Já sei, disse Carlota rindo, quer prepará-la bem... Aprovo-lhe a
intenção. Mas nesse caso não lhe tire as bonecas.
- Já não as tem.
- Então é difícil impedir os namorados. Uma coisa substitui a outra.
Augusta sorriu, e Carlota levantou-se para sair.
- Já? disse Augusta.
- É preciso; adeus!
- Adeus!
Trocaram-se alguns beijos e Carlota saiu logo.
Logo depois chegaram dois caixeiros: um com alguns vestidos e outro
com um romance; eram encomendas feitas na véspera. Os vestidos eram
caríssimos, e o romance tinha este título: Fanny, por Ernesto Feydeau.
II
Pela uma hora da tarde do mesmo dia levantou-se Vasconcelos da cama.
Vasconcelos era um homem de quarenta anos, bem apessoado, dotado de
88
um maravilhoso par de suíças grisalhas, que lhe davam um ar de diplomata, coisa
de que estava afastado umas boas cem léguas. Tinha a cara risonha e expansiva;
todo ele respirava uma robusta saúde.
Possuía uma boa fortuna e não trabalhava, isto é, trabalhava muito na
destruição da referida fortuna, obra em que sua mulher colaborava
conscienciosamente.
A observação de Adelaide era verídica; Vasconcelos recolhia-se tarde;
acordava sempre depois do meio-dia; e saía às ave-marias para voltar na
madrugada seguinte. Quer dizer que fazia com regularidade algumas pequenas
excursões à casa da família.
Só uma pessoa tinha o direito de exigir de Vasconcelos mais alguma
assiduidade em casa: era Augusta; mas ela nada lhe dizia. Nem por isso se davam
mal, porque o marido em compensação da tolerância de sua esposa não lhe
negava nada, e todos os caprichos dela eram de pronto satisfeitos.
Se acontecia que Vasconcelos não pudesse acompanhá-la a todos os
passeios e bailes, incumbia-se disso um irmão dele, comendador de duas ordens,
político de oposição, excelente jogador de voltarete, e homem amável nas horas
vagas, que eram bem poucas. O irmão Lourenço era o que se pode chamar um
irmão terrível. Obedecia a todos os desejos da cunhada, mas não poupava de


[Linha 2550 de 6063 - Parte 2 de 4]


quando em quando um sermão ao irmão. Boa semente que não pegava.
Acordou, pois, Vasconcelos, e acordou de bom humor. A filha alegrouse
muito ao vê-lo, e ele mostrou-se de uma grande afabilidade com a mulher, que
lhe retribuiu do mesmo modo.
- Por que acorda tão tarde? perguntou Adelaide acariciando as suíças de
Vasconcelos.
- Porque me deito tarde.
- Mas por que se deita tarde?
- Isso agora é muito perguntar! disse Vasconcelos sorrindo.
E continuou:
- Deito-me tarde porque assim o pedem as necessidades políticas. Tu não
89
sabes o que é política; é uma coisa muito feia, mas muito necessária.
- Sei o que é política, sim! disse Adelaide.
- Ah! explica-me lá então o que é.
- Lá na roça, quando quebraram a cabeça ao juiz de paz, disseram que era
por política; o que eu achei esquisito, porque a política seria não quebrar a
cabeça...
Vasconcelos riu muito com a observação da filha, e foi almoçar,
exatamente quando entrava o irmão, que não pôde deixar de exclamar:
- A boa hora almoças tu!
- Aí vens tu com as tuas reprimendas. Eu almoço quando tenho fome...
Vê se me queres agora escravizar às horas e às denominações. Chama-lhe almoço
ou lunch, a verdade é que estou comendo.
Lourenço respondeu com uma careta.
Terminado o almoço, anunciou-se a chegada do Sr. Batista. Vasconcelos
foi recebê-lo no gabinete particular.
Baptista era um rapaz de vinte e cinco anos; era o tipo acabado do
pândego; excelente companheiro numa ceia de sociedade equívoca, nulo conviva
numa sociedade honesta. Tinha chiste e certa inteligência, mas era preciso que
estivesse em clima próprio para que se lhe desenvolvessem essas qualidades. No
mais era bonito; tinha um lindo bigode; calçava botins do Campas, e vestia no
mais apurado gosto; fumava tanto como um soldado e tão bem como um lord.
- Aposto que acordaste agora, disse Batista entrando no gabinete do
Vasconcelos.
- Há três quartos de hora; almocei neste instante. Toma um charuto.
Batista aceitou o charuto, e estirou-se numa cadeira americana, enquanto
Vasconcelos acendia um fósforo.
- Viste o Gomes? perguntou Vasconcelos.
- Vi-o ontem. Grande notícia: rompeu com a sociedade.
- Deveras?
- Quando lhe perguntei por que motivo ninguém o via há um mês,
90
respondeu-me que estava passando por uma transformação, e que do Gomes que
foi só ficará lembrança. Parece incrível; mas o rapaz fala com convicção.
- Não creio; aquilo é alguma caçoada que nos quer fazer. Que novidades
há?
- Nada; isto é, tu é que deves saber alguma coisa.
- Eu, nada...
- Ora essa! não foste ontem ao Jardim?


[Linha 2600 de 6063 - Parte 2 de 4]


- Fui, sim; houve uma ceia...
- De família, sim. Eu fui ao Alcazar. A que horas acabou a reunião?
- Às quatro da manhã...
Vasconcelos estendeu-se numa rede, e a conversa continuou por esse
tom, até que um moleque veio dizer a Vasconcelos que estava na sala o Sr.
Gomes.
- Eis o homem! disse Batista.
- Manda subir, ordenou Vasconcelos.
O moleque desceu para dar o recado; mas só um quarto de hora depois é
que Gomes apareceu, por demorar-se algum tempo em baixo conversando com
Augusta e Adelaide.
- Quem é vivo sempre aparece, disse Vasconcelos ao avistar o rapaz.
- Não me procuram... disse ele.
- Perdão; eu já lá fui duas vezes, e disseram-me que havias saído.
- Só por grande fatalidade, porque eu quase nunca saio.
- Mas então estás completamente ermitão?
- Estou crisálida; vou reaparecer borboleta, disse Gomes sentando-se.
- Temos poesia... Guarda debaixo, Vasconcelos...
O novo personagem, o Gomes tão desejado e tão escondido, representava
ter cerca de trinta anos. Ele, Vasconcelos e Baptista eram a trindade do prazer e
da dissipação, ligada por uma indissolúvel amizade. Quando Gomes, cerca de um
mês antes, deixou de aparecer nos círculos do costume, todos repararam nisso,
mas só Vasconcelos e Batista sentiram deveras. Todavia, não insistiram muito
91
em arrancá-lo à solidão, somente pela consideração de que talvez houvesse nisso
algum interesse do rapaz.
Gomes foi portanto recebido como um filho pródigo.
- Mas onde te meteste? que é isso de crisálida e de borboleta? Cuidas que
eu sou do mangue?
- É o que lhes digo, meus amigos. Estou criando asas.
- Asas! disse Baptista sufocando uma risada.
- Só se são asas de gavião para cair...
- Não, estou falando sério.
E com efeito Gomes apresentava um ar sério e convencido.
Vasconcelos e Baptista olharam um para o outro.
- Pois se é verdade isso que dizes, explica-nos lá que asas são essas, e
sobretudo para onde é que queres voar.
A estas palavras de Vasconcelos, acrescentou Batista:
- Sim, deves dar-nos uma explicação, e se nós, que somos o teu conselho
de família, acharmos que a explicação é boa, aprovamo-la; senão, ficas sem asas,
e ficas sendo o que sempre foste...
- Apoiado, disse Vasconcelos.
- Pois é simples; estou criando asas de anjo, e quero voar para o céu do
amor.
- Do amor! disseram os dois amigos de Gomes.
- É verdade, continuou Gomes. Que fui eu até hoje? Um verdadeiro
estróina, um perfeito pândego, gastando às mãos largas a minha fortuna e o meu
coração. Mas isto é bastante para encher a vida? Parece que não...
- Até aí concordo... isso não basta; é preciso que haja outra coisa; a
diferença está na maneira de...


[Linha 2650 de 6063 - Parte 2 de 4]


- É exato, disse Gomes; é exato; é natural que vocês pensem de modo
diverso, mas eu acho que tenho razão em dizer que sem o amor casto e puro a
vida é um puro deserto.
Baptista deu um pulo...
92
Vasconcelos fitou os olhos em Gomes:
- Aposto que vais casar? disse-lhe.
- Não sei se vou casar; sei que amo, e espero acabar por casar-me com a
mulher a quem amo.
- Casar! exclamou Baptista.
E soltou uma estridente gargalhada.
Mas Gomes falava tão seriamente, insistia com tanta gravidade naqueles
projetos de regeneração, que os dois amigos acabaram por ouvi-lo com igual
seriedade.
Gomes falava uma linguagem estranha, e inteiramente nova na boca de
um rapaz que era o mais doido e ruidoso nos festins de Baco e de Citera.
- Assim, pois, deixas-nos? perguntou Vasconcelos.
- Eu? Sim e não; encontrar-me-ão nas salas; nos hotéis e nas casas
equívocas, nunca mais.
- De profundis... cantarolou Baptista.
- Mas, afinal de contas, disse Vasconcelos, onde está a tua Marion?
Pode-se saber quem ela é?
- Não é Marion, é Virgínia... Pura simpatia ao princípio, depois afeição
pronunciada, hoje paixão verdadeira. Lutei enquanto pude; mas abati as armas
diante de uma força maior. O meu grande medo era não ter uma alma capaz de
oferecer a essa gentil criatura. Pois tenho-a, e tão fogosa, e tão virgem como no
tempo dos meus dezoito anos. Só o casto olhar de uma virgem poderia descobrir
no meu lodo essa pérola divina. Renasço melhor do que era...
- Está claro, Vasconcelos, o rapaz está doido; mandemo-lo para a Praia
Vermelha; e como pode ter algum acesso, eu vou-me embora...
Baptista pegou no chapéu.
- Onde vais? disse-lhe Gomes.
- Tenho que fazer; mas logo aparecerei em tua casa; quero ver se ainda é
tempo de arrancar-te a esse abismo.
E saiu.
93
III
Os dois ficaram sós.
- Então é certo que estás apaixonado?
- Estou. Eu bem sabia que vocês dificilmente acreditariam nisso: eu
próprio não creio ainda, e contudo é verdade. Acabo por onde tu começaste. Será
melhor ou pior? Eu creio que é melhor.
- Tens interesse em ocultar o nome da pessoa?
- Oculto-o por ora a todos, menos a ti.
- É uma prova de confiança...
Gomes sorriu.
- Não, disse ele, é uma condição sine qua non; antes de tudo tu deves
saber quem é a escolhida do meu coração; trata-se de tua filha.
- Adelaide? perguntou Vasconcelos espantado.
- Sim, tua filha.


[Linha 2700 de 6063 - Parte 2 de 4]


A revelação de Gomes caiu como uma bomba. Vasconcelos nem por
sombras suspeitava semelhante coisa.
- Este amor é da tua aprovação? perguntou-lhe Gomes.
Vasconcelos refletia, e depois de alguns minutos de silêncio, disse:
- O meu coração aprova a tua escolha; és meu amigo, estás apaixonado, e
uma vez que ela te ame...
Gomes ia falar, mas Vasconcelos continuou sorrindo:
- Mas a sociedade?
- Que sociedade?
- A sociedade que nos tem em conta de libertinos, a ti e a mim, é natural
que não aprove o meu ato.
- Já vejo que é uma recusa, disse Gomes entristecendo.
- Qual recusa, pateta! É uma objeção, que tu poderás destruir dizendo: a
sociedade é uma grande caluniadora e uma famosa indiscreta. Minha filha é tua,
com uma condição.
94
- Qual?
- A condição da reciprocidade. Ama-te ela?
- Não sei, respondeu Gomes.
- Mas desconfias...
- Não sei; sei que a amo e que daria a minha vida por ela, mas ignoro se
sou correspondido.
- Hás de ser... Eu me incumbirei de apalpar o terreno. Daqui a dois dias
dou-te a minha resposta. Ah! se ainda tenho de ver-te meu genro!
A resposta de Gomes foi cair-lhe nos braços. A cena já roçava pela
comédia quando deram três horas. Gomes lembrou-se que tinha rendez-vous com
um amigo; Vasconcelos lembrou-se que tinha de escrever algumas cartas.
Gomes saiu sem falar às senhoras.
Pelas quatro horas Vasconcelos dispunha-se a sair, quando vieram
anunciar-lhe a visita do Sr. José Brito.
Ao ouvir este nome o alegre Vasconcelos franziu o sobrolho.
Pouco depois entrava no gabinete o Sr. José Brito.
O Sr. José Brito era para Vasconcelos um verdadeiro fantasma, um eco
do abismo, uma voz da realidade: era um credor.
- Não contava hoje com a sua visita, disse Vasconcelos.
- Admira, respondeu o Sr. José Brito com uma placidez de apunhalar,
porque hoje são 21.
- Cuidei que eram 19, balbuciou Vasconcelos.
- Anteontem, sim; mas hoje são 21. Olhe, continuou o credor pegando no
Jornal do Comércio que se achava numa cadeira: quinta-feira, 21.
- Vem buscar o dinheiro?
- Aqui está a letra, disse o Sr. José Brito tirando a carteira do bolso e um
papel da carteira.
- Por que não veio mais cedo? perguntou Vasconcelos, procurando assim
espaçar a questão principal.
- Vim às oito horas da manhã, respondeu o credor, estava dormindo; vim
95
às nove, idem; vim às dez, idem; vim às onze, idem; vim ao meio-dia, idem. Quis
vir à uma hora, mas tinha de mandar um homem para a cadeia, e não me foi
possível acabar cedo. Às três jantei, e às quatro aqui estou.


[Linha 2750 de 6063 - Parte 2 de 4]


Vasconcelos puxava o charuto a ver se lhe ocorria alguma idéia boa de
escapar ao pagamento com que ele não contava.
Não achava nada; mas o próprio credor forneceu-lhe ensejo.
- Além de que, disse ele, a hora não importa nada, porque eu estava certo
de que o senhor me vai pagar.
- Ah! disse Vasconcelos; é talvez um engano; eu não contava com o
senhor hoje, e não arranjei o dinheiro...
- Então, como há de ser? perguntou o credor com ingenuidade.
Vasconcelos sentiu entrar-lhe n'alma a esperança.
- Nada mais simples, disse; o senhor espera até amanhã.
- Amanhã quero assistir à penhora de um indivíduo que mandei processar
por uma larga dívida; não posso...
- Perdão, eu levo-lhe o dinheiro à sua casa...
- Isso seria bom se os negócios comerciais se arranjassem assim. Se
fôssemos dois amigos é natural que eu me contentasse com a sua promessa, e
tudo acabaria amanhã; mas eu sou seu credor, e só tenho em vista salvar o meu
interesse... Portanto, acho melhor pagar hoje...
Vasconcelos passou a mão pelos cabelos.
- Mas se eu não tenho! disse ele.
- É uma coisa que o deve incomodar muito, mas que a mim não me causa
a menor impressão... isto é, deve causar-me alguma, porque o senhor está hoje
em situação precária.
- Eu?
- É verdade; as suas casas da rua da Imperatriz estão hipotecadas; a da
rua de S. Pedro foi vendida, e a importância já vai longe; os seus escravos têm
ido a um e um, sem que o senhor o perceba, e as despesas que o senhor há pouco
fez para montar uma casa a certa dama da sociedade equívoca são imensas. Eu
96
sei tudo; sei mais do que o senhor...
Vasconcelos estava visivelmente aterrado.
O credor dizia a verdade.
- Mas enfim, disse Vasconcelos, o que havemos de fazer?
- Uma coisa simples; duplicamos a dívida, e o senhor passa-me agora
mesmo um depósito.
- Duplicar a dívida! Mas isto é um...
- Isto é uma tábua de salvação; sou moderado. Vamos lá, aceite. Escrevame
aí o depósito, e rasga-se a letra.
Vasconcelos ainda quis fazer objeção; mas era impossível convencer o
Sr. José Brito.
Assinou o depósito de dezoito contos.
Quando o credor saiu, Vasconcelos entrou a meditar seriamente na sua
vida.
Até então gastara tanto e tão cegamente que não reparara no abismo que
ele próprio cavara a seus pés.
Veio porém adverti-lo a voz de um dos seus algozes.
Vasconcelos refletiu, calculou, recapitulou as suas despesas e as suas
obrigações, e viu que da fortuna que possuía tinha na realidade menos da quarta
parte.
Para viver como até ali vivera, aquilo era nada menos que a miséria.
Que fazer em tal situação?


[Linha 2800 de 6063 - Parte 2 de 4]


Vasconcelos pegou no chapéu e saiu.
Vinha caindo a noite.
Depois de andar algum tempo pelas ruas entregue às suas meditações,
Vasconcelos entrou no Alcazar.
Era um meio de distrair-se.
Ali encontraria a sociedade do costume.
Baptista veio ao encontro do amigo.
- Que cara é essa? disse-lhe.
97
- Não é nada, pisaram-me um calo, respondeu Vasconcelos, que não
encontrava melhor resposta.
Mas um pedicuro que se achava perto de ambos ouviu o dito, e nunca
mais perdeu de vista o infeliz Vasconcelos, a quem a coisa mais indiferente
incomodava. O olhar persistente do pedicuro aborreceu-o tanto, que Vasconcelos
saiu.
Entrou no hotel de Milão, para jantar. Por mais preocupado que ele
estivesse, a exigência do estômago não se demorou.
Ora, no meio do jantar lembrou-lhe aquilo que não devia ter-lhe saído da
cabeça: o pedido de casamento feito nessa tarde por Gomes.
Foi um raio de luz.
- Gomes é rico, pensou Vasconcelos; o meio de escapar a maiores
desgostos é este; Gomes casa-se com Adelaide, e como é meu amigo não me
negará o que eu precisar. Pela minha parte procurarei ganhar o perdido... Que boa
fortuna foi aquela lembrança do casamento!
Vasconcelos comeu alegremente; voltou depois ao Alcazar, onde alguns
rapazes e outras pessoas fizeram esquecer completamente os seus infortúnios.
Às três horas da noite Vasconcelos entrava para casa com a tranqüilidade
e regularidade do costume.
IV
No dia seguinte o primeiro cuidado de Vasconcelos foi consultar o
coração de Adelaide. Queria porém fazê-lo na ausência de Augusta. Felizmente
esta precisava de ir ver à rua da Quitanda umas fazendas novas, e saiu com o
cunhado, deixando a Vasconcelos toda a liberdade.
Como os leitores já sabem, Adelaide queria muito ao pai, e era capaz de
fazer por ele tudo. Era, além disso, um excelente coração. Vasconcelos contava
com essas duas forças.
- Vem cá, Adelaide, disse ele entrando na sala; sabes quantos anos tens?
98
- Tenho quinze.
- Sabes quantos anos tem tua mãe?
- Vinte e sete, não é?
- Tem trinta; quer dizer que tua mãe casou-se com quinze anos.
Vasconcelos parou, a fim de ver o efeito que produziam estas palavras;
mas foi inútil a expectativa; Adelaide não compreendeu nada.
O pai continuou:
- Não pensaste no casamento?
A menina corou muito, hesitou em falar, mas como o pai instasse,
respondeu:
- Qual, papai! eu não quero casar...
- Não queres casar? É boa! por quê?


[Linha 2850 de 6063 - Parte 2 de 4]


- Porque não tenho vontade, e vivo bem aqui.
- Mas tu podes casar e continuar a viver aqui...
- Bem; mas não tenho vontade.
- Anda lá... Amas alguém, confessa.
- Não me pergunte isso, papai... eu não amo ninguém.
A linguagem de Adelaide era tão sincera que Vasconcelos não podia
duvidar.
- Ela fala a verdade, pensou ele; é inútil tentar por esse lado...
Adelaide sentou-se ao pé dele, e disse:
- Portanto, meu paizinho, não falemos mais nisso...
- Falemos, minha filha; tu és criança, não sabes calcular. Imagina que eu
e a tua mãe morremos amanhã. Quem te há de amparar? Só um marido.
- Mas se eu não gosto de ninguém...
- Por ora; mas hás de vir a gostar se o noivo for um bonito rapaz, de bom
coração... Eu já escolhi um que te ama muito, e a quem tu hás de amar.
Adelaide estremeceu.
- Eu? disse ela, Mas... quem é?
- É o Gomes.
99
- Não o amo, meu pai...
- Agora, creio; mas não negas que ele é digno de ser amado. Dentro de
dois meses estás apaixonada por ele.
Adelaide não disse palavra. Curvou a cabeça e começou a torcer nos
dedos uma das tranças bastas e negras. O seio arfava-lhe com força; a menina
tinha os olhos cravados no tapete.
- Vamos, está decidido, não? perguntou Vasconcelos.
- Mas, papai, e se eu for infeliz?...
- Isso é impossível, minha filha; hás de ser muito feliz; e hás de amar
muito a teu marido.
- Oh! papai, disse-lhe Adelaide com os olhos rasos de água, peço-lhe que
não me case ainda...
- Adelaide, o primeiro dever de uma filha é obedecer a seu pai, e eu sou
teu pai. Quero que te cases com o Gomes; hás de casar.
Estas palavras, para terem todo o efeito, deviam ser seguidas de uma
retirada rápida. Vasconcelos compreendeu isso, e saiu da sala deixando Adelaide
na maior desolação.
Adelaide não amava ninguém. A sua recusa não tinha por ponto de
partida nenhum outro amor; também não era resultado de aversão que tivesse
pelo seu pretendente.
A menina sentia simplesmente uma total indiferença pelo rapaz.
Nestas condições o casamento não deixava de ser uma odiosa imposição.
Mas que faria Adelaide? a quem recorreria?
Recorreu às lágrimas.
Quanto a Vasconcelos, subiu ao gabinete e escreveu as seguintes linhas
ao futuro genro:
«Tudo caminha bem; autorizo-te a vires fazer a corte à pequena, e espero
que dentro de dois meses o casamento esteja concluído».
Fechou a carta e mandou-a.
Pouco depois voltaram de fora Augusta e Lourenço.
100


[Linha 2900 de 6063 - Parte 2 de 4]


Enquanto Augusta subiu para o quarto da toilette para mudar de roupa,
Lourenço foi ter com Adelaide, que estava no jardim.
Reparou que ela tinha os olhos vermelhos, e inquiriu a causa; mas a
moça negou que fosse de chorar.
Lourenço não acreditou nas palavras da sobrinha, e instou com ela para
que lhe contasse o que havia.
Adelaide tinha grande confiança no tio, até por causa da sua rudeza de
maneiras. No fim de alguns minutos de instâncias, Adelaide contou a Lourenço a
cena com o pai.
- Então, é por isso que estás chorando, pequena?
- Pois então? Como fugir do casamento?
- Descansa, não te casarás, eu te prometo que não te hás de casar...
A moça sentiu um estremecimento de alegria.
- Promete, meu tio, que há de convencer a papai?
- Hei de vencê-lo ou convencê-lo, não importa; tu não te hás de casar.
Teu pai é um tolo.
Lourenço subiu ao gabinete de Vasconcelos, exatamente no momento em
que este se dispunha a sair.
- Vais sair? perguntou-lhe Lourenço.
- Vou.
- Preciso falar-te.
Lourenço sentou-se, e Vasconcelos, que já tinha o chapéu na cabeça,
esperou de pé que ele falasse.
- Senta-te, disse Lourenço.
Vasconcelos sentou-se.
- Há dezesseis anos...
- Começas de muito longe; vê se abrevias uma meia dúzia de anos, sem o
que não prometo ouvir o que me vais dizer.
- Há dezesseis anos, continuou Lourenço, que és casado; mas a diferença
entre o primeiro dia e o dia de hoje é grande.
101
- Naturalmente, disse Vasconcelos. Tempora mutantur et...
- Naquele tempo, continuou Lourenço, dizias que encontraras o paraíso,
o verdadeiro paraíso, e foste durante dois ou três anos o modelo dos maridos.
Depois mudaste completamente; e o paraíso tornar-se-ia verdadeiro inferno se
tua mulher não fosse tão indiferente e fria como é, evitando assim as mais
terríveis cenas domésticas.
- Mas, Lourenço, que tens com isso?
- Nada; nem é disso que vou falar-te. O que me interessa é que não
sacrifiques tua filha por capricho, entregando-a a um dos teus companheiros de
vida solta...
Vasconcelos levantou-se:
- Estás doido! disse ele.
- Estou calmo, e dou-te o prudente conselho de não sacrificares tua filha
a um libertino.
- Gomes não é libertino; teve uma vida de rapaz, é verdade, mas gosta de
Adelaide, e reformou-se completamente. É um bom casamento, e por isso acho
que todos devemos aceitá-lo. É a minha vontade, e nesta casa quem manda sou
eu.
Lourenço procurou falar ainda, mas Vasconcelos já ia longe.


[Linha 2950 de 6063 - Parte 2 de 4]


- Que fazer? pensou Lourenço.
V
A oposição de Lourenço não causava grande impressão a Vasconcelos.
Ele podia, é verdade, sugerir à sobrinha idéias de resistência; mas Adelaide, que
era um espírito fraco, cederia ao último que lhe falasse, e os conselhos de um dia
seriam vencidos pela imposição do dia seguinte.
Todavia era conveniente obter o apoio de Augusta. Vasconcelos pensou
em tratar disso o mais cedo que lhe fosse possível.
Entretanto, urgia organizar os seus negócios, e Vasconcelos procurou um
102
advogado a quem entregou todos os papéis e informações, encarregando-o de
orientá-lo em todas as necessidades da situação, quais os meios que poderia opor
em qualquer caso de reclamação por dívida ou hipoteca.
Nada disto fazia supor da parte de Vasconcelos uma reforma de
costumes. Preparava-se apenas para continuar a vida anterior.
Dois dias depois da conversa com o irmão, Vasconcelos procurou
Augusta, para tratar francamente do casamento de Adelaide.
Já nesse intervalo o futuro noivo, obedecendo ao conselho de
Vasconcelos, fazia corte prévia à filha. Era possível que se o casamento não lhe
fosse imposto, Adelaide acabasse por gostar do rapaz. Gomes era um homem
belo e elegante; e, além disso, conhecia todos os recursos de que se deve usar
para impressionar uma mulher.
Teria Augusta notado a presença assídua do moço? Vasconcelos fazia
essa pergunta ao seu espírito no momento em que entrava na toilette da mulher.
- Vais sair? perguntou ele.
- Não; tenho visitas.
- Ah! quem?
- A mulher do Seabra, disse ela.
Vasconcelos sentou-se, e procurou um meio de encabeçar a conversa
especial que ali o levava.
- Estás muito bonita hoje!
- Deveras? disse ela sorrindo. Pois estou hoje como sempre, e é singular
que o digas hoje...
- Não; realmente hoje estás mais bonita do que costumas, a ponto que
sou capaz de ter ciúmes...
- Qual! disse Augusta com um sorriso irônico.
Vasconcelos coçou a cabeça, tirou o relógio, deu-lhe corda; depois
entrou a puxar as barbas, pegou numa folha, leu dois ou três anúncios, atirou a
folha ao chão, e afinal, depois de um silêncio já prolongado, Vasconcelos achou
melhor atacar a praça de frente.
103
- Tenho pensado ultimamente em Adelaide, disse ele.
- Ah! por quê?
- Está moça...
- Moça! exclamou Augusta, é uma criança...
- Está mais velha do que tu quando te casaste...
Augusta franziu ligeiramente a testa.
- Mas então... disse ela.
- Então é que desejo fazê-la feliz, e feliz pelo casamento. Um rapaz,
digno dela a todos os respeitos, pediu-ma há dias, e eu disse-lhe que sim. Em


[Linha 3000 de 6063 - Parte 2 de 4]


sabendo quem é, aprovarás a escolha; é o Gomes. Casamo-la, não?
- Não! respondeu Augusta.
- Como, não?
- Adelaide é uma criança; não tem juízo nem idade própria... Casar-se-á
quando for tempo.
- Quando for tempo? Estás certa se o noivo esperará até que seja tempo?
- Paciência, disse Augusta.
- Tens alguma coisa que notar no Gomes?
- Nada. É um moço distinto; mas não convém a Adelaide.
Vasconcelos hesitava em continuar; parecia-lhe que nada se podia
arranjar; mas a idéia da fortuna deu-lhe forças, e ele perguntou:
- Por quê?
- Estás certo de que ele convenha a Adelaide? perguntou Augusta,
eludindo a pergunta ao marido.
- Afirmo que convém.
- Convenha ou não, a pequena não deve casar já.
- E se ela amasse?...
- Que importa isso? esperaria!
- Entretanto, Augusta, não podemos prescindir deste casamento... É uma
necessidade fatal.
- Fatal? não compreendo.
104
- Vou explicar-me. O Gomes tem uma boa fortuna.
- Também nós temos uma...
- É o teu engano, interrompeu Vasconcelos.
- Como assim?
Vasconcelos continuou:
- Mais tarde ou mais cedo havias de sabê-lo, e eu estimo ter esta ocasião
de dizer-te toda a verdade. A verdade é que, se não estamos pobres, estamos
arruinados.
Augusta ouviu estas palavras com os olhos espantados. Quando ele
acabou, disse:
- Não é possível!




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03 - Jogando NES OnLine - http://bit.ly/1M4IdTh
04 - 1.185 jogos de Mega Drive - http://bit.ly/1GSTaj2
05 - Ler Scans e Quadrinhos Digitais - Um mundo DIGITAL - http://bit.ly/2cYfdkS
06 - Poeira das Estrelas - Documentário - http://bit.ly/2eLj1ni
07 - Retrô - Relembre as caixas de videogames e jogos lançados no Brasil - http://bit.ly/2hDNdEi
08 - Cachorro-quente no espetinho - Lanche da tarde - http://bit.ly/2lwFSEJ
09 - Coleção Saiba Mais - Completa - http://bit.ly/2lBVIyO
10 - Compilação de 4226 Postagens - 16/02/2017 - http://bit.ly/2lZYwoQ
11 - Literatura Clássica Brasileira - http://bit.ly/2ne9ngz
12 - As 5564 Cidades do Brasil - http://bit.ly/2mykDTg

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