quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Dom Casmurro - P3de4 - Machado de Assis


Dom Casmurro - P3de4 - Machado de Assis

Dom Casmurro  - Machado de Assis


Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci às suas reflexões foi, logo no primeiro sábado, quando eu fui à casa dela, e, após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora.

--Hoje não fique aqui mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo. É natural que D. Glória queira estar com você muito tempo, ou todo, se puder.


Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia deixar de citar um terceiro exemplo, mas os exemplos

não se fizeram senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão seria um crime. Foi à minha terceira ou quarta vinda à casa. Minha mãe, depois que lhe respondi às mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam, os estudos, as relações, a disciplina, e se me doía alguma cousa, e se dormia bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cansar a paciência de um filho, concluiu voltando-se para José Dias:

--Sr. José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre?

--Excelentíssima...

--E você, Capitu, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do Pádua que estava na sala, com ela,--você não
acha que
o nosso Bentinho dará um bom padre?

--Acho que sim, senhora, respondeu Capitu cheia de convicção.

Não gostei da convicção. Assim lhe disse, na manhã seguinte, no quintal dela, recordando as palavras da véspera, e
lançando-lhe em rosto, pela primeira vez, a alegria que ela mostrara desde a minha entrada no seminário, quando eu
vivia
curtido de saudades. Capitu fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que
suspeitavam
de nós; também tivera noites desconsoladas, e os dias, em casa dela, foram tão tristes como os meus; podia indagá-lo
do pai
e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que não pensasse mais em mim.

--Com D. Glória e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para que não pareça que a denúncia de José Dias é


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verdadeira. Se parecesse, elas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me recebendo... Para mim, basta
o
nosso juramento de que nos havemos de casar um com outro.

Era isto mesmo, devíamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo tempo gozar toda a liberdade
anterior, e
construir tranqüilos o nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almoço; minha
mãe,
dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia eu de abençoar o povo à missa, contou que, dias antes,
estando
a falar de moças que se casam cedo, Capitu lhe dissera: "Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho,
eu
espero que ele se ordene!" Tio Cosme riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e
olhou
para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer.
Mas
comi mal, estava tão contente com aquela grande dissimulação de Capitu que não vi mais nada, e, logo que almocei,
corri a
referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astúcia. Capitu sorriu de agradecida.

--Você tem razão, Capitu, concluí eu; vamos enganar toda esta gente.

--Não é? disse ela com ingenuidade.

CAPÍTULO LXVI / INTIMIDADE

Capitu ia agora entrando na alma de minha mãe. Viviam o mais do tempo juntas, falando de mim, a propósito do sol
e da
chuva, ou de nada; Capitu ia lá coser, às manhãs; alguma vez ficava para jantar.

Prima Justina não acompanhava a parenta naquelas finezas, mas não tratava de todo mal a minha amiga. Era assaz
sincera
para dizer o mal que sentia de alguém, e não sentia bem de pessoa alguma Talvez do marido, mas o marido era morto;
em
todo caso, não existiria homem capaz de competir com ele na afeição, no trabalho e na honestidade, nas maneiras e
na
agudeza de espírito. Esta opinião, segundo tio Cosme, era póstuma, pois em vida andavam às brigas, e os últimos seis
meses
acabaram separados. Tanto melhor para a justiça dela; o louvor dos mortos é um modo de orar por eles. Também
gostaria
de minha mãe, ou se algum mal pensou dela foi entre si e o travesseiro. Compreende-se que, de aparência, lhe desse a
estima
devida. Não penso que ela aspirasse a algum legado- as pessoas assim dispostas excedem os serviços naturais,
fazem-se
mais risonhas, mais assíduas, multiplicam os cuidados, precedem os fâmulos. Tudo isso era contrário à natureza de
prima
Justina, feita de azedume e de implicância. Como vivesse de favor na casa, explica-se que não desestimasse a dona e
calasse
os seus ressentimentos, ou só dissesse mal dela a Deus e ao Diabo.



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Caso tivesse ressentimentos de minha mãe, não era uma razão mais para detestar Capitu, nem ela precisava de razões
suplementares. Contudo, a intimidade de Capitu fê-la mais aborrecível à minha parenta Se a princípio não a tratava
mal, com
o tempo trocou de maneiras e acabou fugindo-lhe. Capitu, atenta, desde que a não via, indagava dela e ia procurá-la.
Prima
Justina tolerava esses cuidados. A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as
infringir
deslavadamente. Demais, Capitu usava certa magia que cativa, prima Justina acabava sorrindo, inda que azedo mas
a sós
com minha mãe achava alguma palavra ruim que dizer da menina.

Como minha mãe adoecesse de uma febre, que a pôs às portas da morte, quis que Capitu lhe servisse de enfermeira.
Prima
Justina, posto que isto a aliviasse de cuidados penosos, não perdoou à minha amiga a intervenção. Um dia.
perguntou-lhe se
não tinha que fazer em casa, outro dia. rindo, soltou-lhe este epigrama: "Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu
às
mãos lhe há de ir".

CAPÍTULO LXVII / UM PECADO

Já agora não tiro a doente da cama sem contar o que se deu comigo. Ao cabo de cinco dias, minha mãe amanheceu
tão
transtornada que ordenou me mandassem buscar ao seminário. Em vão tio Cosme:

--Mana Glória, você assusta-se sem motivo, a febre passa...

--Não! não! mandem buscá-lo! Posso morrer, e a minha alma não se salva, se Bentinho não estiver ao pé de mim.

--Vamos assustá-lo.

--Pois não lhe digam nada, mas vão buscá-lo, já, já, não se demorem.

Cuidaram fosse delírio- mas, não custando nada trazer-me, José Dias foi incumbido do recado. Entrou tão atordoado
que me
assustou. Contou particularmente ao reitor o que havia, e recebi licença para ir a casa. Na rua, íamos calados, ele não
alterando o passo do costume,-- a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão,--mas
cabisbaixo e
suspirando, eu temendo ler no rosto dele alguma notícia dura e definitiva. Só me falara na doença, como negócio
simples;
mas o chamado, o silêncio, os suspiros podiam dizer alguma cousa mais. O coração batia-me com força, as pernas
bambeavam-me, mais de uma vez cuidei cair...

O anseio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a saber. Era a primeira vez que a morte me
aparecia
assim perto, me envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros. Quanto mais andava aquela Rua dos
Barbonos, mais
me aterrava a idéia de chegar a casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defunto... Oh! eu não poderia
nunca
expor aqui tudo o que senti naqueles terríveis minutos. A rua, por mais que José Dias andasse superlativamente


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devagar,
parecia fugir-me debaixo dos pés, as casas voavam de um e outro lado, e uma corneta que nessa ocasião tocava no
quartel
dos Municipais Permanentes ressoava aos meus ouvidos como a trombeta do juízo final.

Fui, cheguei aos Arcos, entrei na Rua de Mata-cavalos. A casa não era logo ali, mas muito além da dos inválidos, perto
da
do Senado. Três ou quatro vezes, quisera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a boca; mas agora, já nem
tinha tal
desejo. Ia só andando, aceitando o pior, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi
então que
a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com
palavras, mas uma idéia que poderia ser traduzida por elas: "Mamãe defunta, acaba o seminário".

Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito
do
remorso que me ficou. Foi uma sugestão da luxúria e do egoísmo. A piedade filial desmaiou um instante, com a
perspectiva
da liberdade certa, pelo desaparecimento da dívida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centésimo
de um
instante, ainda assim o suficiente para complicar a minha aflição com um remorso.

José Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tão cheio de pena que me pareceu haver-me adivinhado, e eu quis
pedir-lhe
que não dissesse nada a ninguém, que eu ia castigar-me, etc. Mas a pena trazia tanto amor, que não podia ser pesar do
meu
pecado; mas então era sempre a morte de minha mãe... Senti uma angústia grande, um nó na garganta, e não pude
mais,
chorei de uma vez.

--Que é, Bentinho?

--Mamãe...?

--Não! não! Que idéia é essa? O estado dela é gravíssimo, mas não é mal de morte, e Deus pode tudo. Enxugue os
olhos,
que é feio um mocinho da sua idade andar chorando na rua. Não há de ser nada, uma febre... As febres, assim como
dão
com força, assim também se vão embora... Com os dedos, não; onde está o lenço?

Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias uma só me ficasse no coração; foi aquele gravíssimo.
Vi
depois que ele só queria dizer grave, mas o uso do superlativo faz a boca longa, e, por amor do período, José Dias fez
crescer a minha tristeza se achares neste livro algum caso da mesma família, avisa-me, leitor para que o emende na
segunda
edição; nada há mais feio que dal pernas longuíssimas a idéias brevíssimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui andando,
ansioso
agora por chegar a casa, e pedir perdão a minha mãe do ruim pensamento que tive. Enfim, chegamos, entramos, subi
trêmulo
os seis degraus da escada, e daí a pouco, debruçado sobre a cama, ouvia as palavras ternas de minha mãe que me


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apertava
muito as mãos, chamando-me seu filho. Estava queimando os olhos ardiam nos meus, toda ela parecia consumida
por um
vulcão interno. Ajoelhei-me ao pé do leito, mas como este era alto, fiquei longe das suas carícias:

--Não, meu filho, levanta, levanta!

Capitu, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os meus gestos, palavras e lágrimas, segundo me disse
depois;
mas não suspeitou naturalmente todas as causas da minha aflição. Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a
minha
mãe, logo que ela ficasse boa, mas esta idéia não me mordia, era uma veleidade pura, uma ação que eu não faria
nunca, por
mais que o pecado me doesse Então levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas
espirituais, e
pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria dous mil padre-nossos. Padre que me
lês,
perdoa este recurso; foi a última vez que o empreguei A crise em que me achava, não menos que o costume e a fé,
explica
tudo. Eram mais dous mil; onde iam os antigos? Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas cândidas e
verdadeiras tais
promessas são como a moeda fiduciária,--ainda que o devedor as não pague, valem a soma que dizem.

CAPÍTULO LXVIII / ADIEMOS A VIRTUDE

Poucos teriam animo de confessar aquele meu pensamento da Rua de Mata-cavalos. Eu confessarei tudo o que
importar à
minha história. Montaigne escreveu de si: ce ne sont pas mes gestes que j'escris, c'est moi, c'est mon essence. Ora, há só
um
modo de escrever a própria essência, é contá-la toda, o bem e o mal. Tal faço eu, à medida que me vai lembrando e
convidando à construção ou reconstrução de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um pecado, diria com muito
gosto
alguma bela ação contemporânea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor oportunidade.

Nem perderás em esperar, meu amigo; ao contrário, acode-me agora que... Não só as belas ações são belas em
qualquer
ocasião como são também possíveis e prováveis, pela teoria que tenho dos pecados e das virtudes, não menos simples
que
clara. Reduz-se a isto que cada pessoa nasce com certo número deles e delas, aliados por matrimônio para se
compensarem
na vida. Quando um de tais cônjuges é mais forte que o outro, ele só guia o indivíduo, sem que este, por não haver
praticado
tal virtude ou cometido tal pecado se possa dizer isento de um ou de outro; mas a regra é dar-se a prática simultânea
dos
dous, com vantagem do portador de ambos, e alguma vez com resplendor maior da terra e do céu. ç pena que eu não
possa
fundamentar isto com um ou mais casos estranhos; falta-me tempo.

Pelo que me toca, é certo que nasci com alguns daqueles casais, e naturalmente ainda os possuo. Já me sucedeu, aqui
no


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Engenho Novo, por estar uma noite com muita dor de cabeça, desejar que o trem da Central estourasse longe dos
meus
ouvidos e interrompesse a linha por muitas horas, ainda que morresse alguém; e no dia seguinte perdi o trem da mesma
estrada, por ter ido dar a minha bengala a um cego que não trazia bordão. Voilà mes gestes, voilà mon essence.

CAPÍTULO LXIX / A MISSA

Um dos gestos que melhor exprimem a minha essência foi a devoção com que corri no domingo próximo a ouvir missa
em S.
Antônio dos Pobres. O agregado quis ir comigo, e principiou a vestir-se, mas era tão lento nos suspensórios e nas
presilhas,
que não pude esperar por ele. Demais, eu queria estar só. Sentia necessidade de evitar qualquer conversação que me
desviasse o pensamento do fim a que ia, e era reconciliar-me com Deus, depois do que se passou no Capítulo LXVII.
Nem
era só pedir-lhe perdão do pecado, era também agradecer o restabelecimento de minha mãe, e, visto que digo tudo,
fazê-lo
renunciar ao pagamento da minha promessa. Jeová, posto que divino, ou por isso mesmo, é um Rothschild muito mais
humano, e não faz moratórias, perdoa as dívidas integralmente, uma vez que o devedor queira deveras emendar a
vida e
cortar nas despesas. Ora, eu não queria outra cousa; dali em diante não faria mais promessas que não pudesse pagar, e
pagaria logo as que fizesse.

Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saúde de minha mãe; depois pedi perdão do pecado e revelação da
dívida,
e recebi a bênção final do oficiante como um ato solene de reconciliação. No fim, lembrou-me que a Igreja
estabeleceu no
confessionário um cartório seguro, e na confissão o mais autêntico dos instrumentos para o ajuste de contas morais
entre o
homem e Deus. Mas a minha incorrigível timidez me fechou essa porta certa; receei não achar palavras com que dizer
ao
confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a publicá-lo.

CAPÍTULO LXX / DEPOIS DA MISSA

Rezei anda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a porta. A gente não era muita, mas a igreja também
não é
grande, e não pude sair logo, logo, mas devagar. Havia homens e mulheres, velhos e moços, sedas e chitas, e
provavelmente
olhos feios e belos, mas eu não vi uns nem outros. Ia na direção da porta, com a onda, ouvindo as saudações e os
cochichos.
No adro, onde se fez claro, parei e olhei para todos. Vi então uma moça e um homem, que saíam da igreja e pararam;
e a
moça olhava para mim falando ao homem, e o homem olhava para mim, ouvindo a moça. E chegaram-me estas
palavras:

--Mas que queres?

--Queria saber dela; papai pergunte.

Era sinhazinha Sancha, a companheira de colégio de Capitu que queria notícias de minha mãe. O pai veio a mim;


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disse-lhe
que estava restabelecida. Depois saímos, mostrou-me a casa dele, e, como eu vinha na mesma direção, viemos juntos.
Gurgel era homem de quarenta anos ou pouco mais, com propensão a engrossar o ventre; era muito obsequioso;
chegando à
porta da casa, quis por força que eu fosse almoçar com ele.

-- Obrigado; mamãe espera-me. [

-- Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e ira mais tarde.

--Venho outro dia.

Sinhazinha Sancha, voltada para o pai, ouvia e esperava. Não ela feia; só se lhe podia notar a semelhança do nariz,
que
também acabava grosso, mas há feições que tiram a graça de uns para dá-la a outros. Vestia simples. Gurgel era viúvo
e
morria pela filha. Como eu recusasse o almoço, quis que descansasse alguns minutos. Não pude recusar e subi. Quis
saber a
minha idade, os meus estudos, a minha fé, e dava-me conselhos para o caso de vir a ser padre; disse me o número do
armazém, Rua da Quitanda. Enfim, despedi-me veio ao patamar da escada; a filha deu-me recomendações para
Capitu e
para minha mãe. Da rua olhei para cima; o pai estava à janela e fez-me um gesto largo de despedida.

CAPÍTULO LXXI / VISITA DE ESCOBAR

Em casa, tinham já mentido dizendo a minha mãe que eu voltara e estava mudando de roupa.

"A missa das oito já há de ter acabado... Bentinho devia está de volta... Teria acontecido alguma cousa, mano
Cosme?...
Mandem ver..." Assim falava ela, de minuto a minuto, mas eu entrei e comigo a tranqüilidade.

Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da saúde de minha mãe. Nunca me visitara até ali, nem as
nossas relações estavam Já tão estreitas, como vieram a ser depois- mas sabendo a razão da minha saída, três dias
antes,
aproveitou o domingo para ir ter comigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que não,
respirou.

--Tive receio, disse ele.

--Os outros souberam?

--Parece que sim: alguns souberam.

Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o agregado disse-lhe que vira uma vez o pai no Rio de Janeiro. Escobar era
muito polido e, conquanto falasse mais do que veio a falar depois ainda assim não era tanto como os rapazes da
nossa idade;
naquele dia achei-o um pouco mais expansivo que de costume. Tio Cosme quis que jantasse conosco. Escobar refletiu
um
instante e acabou dizendo que o correspondente do pai esperava por ele. Eu, lembrando-me das palavras do Gurgel,
repeti-as:


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--Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois.

--Tanto incômodo!

--Incômodo nenhum, interveio tio Cosme.

Escobar aceitou e jantou. Notei que os movimentos rápidos que tinha e dominava na aula, também os dominava
agora, na
sala como na mesa. A hora que passou comigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros que possuía.
Gostou
muito do retrato de meu pai; depois de alguns instantes de contemplação, virou-se e disse-me:

--Vê-se que era um coração puro!

Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcíssimos; assim os definiu José Dias, depois que ele saiu, e
mantenho
esta palavra, apesar dos quarenta anos que traz em cima de si. Nisto não houve exageração do agrado. A cara rapada
mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouso baixa, vindo a risca do cabelo quase em cima da
sobrancelha
esquerda- mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.
Realmente,
era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e delgado. Tinha o sestro de sacudir o ombro direito,
de
quando em quando e veio a perdê-lo, desde que um de nós lhe notou um dia no seminário; primeiro exemplo que vi de
que
um homem pode corrigir-se muito bem dos defeitos miúdos.

Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus amigos agradassem a todos. Em casa, ficaram
querendo
bem a Escobar; a mesma prima Justina achou que era um moço muito apreciável, apesar... Apesar de quê?
perguntou-lhe
José Dias, vendo que ela não acabava a frase. Não teve resposta, nem podia tê-la; prima Justina provavelmente não
viu
defeito claro ou importante no nosso hóspede; o apesar era uma espécie de ressalva para algum que lhe viesse a
descobrir
um dia.; ou então foi obra de uso velho, que levou a restringir, onde não achara restrição.

Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui levá-lo à porta, onde esperamos a passagem de um ônibus. Disse-me
que o
armazém do correspondente era na Rua dos Pescadores, e ficava aberto até às nove horas: ele é que se não queria
demorar
fora. Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à
porta, a
ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.

--Que amigo é esse tamanho? perguntou alguém de uma janela ao pé.

Não é preciso dizer que era Capitu. São cousas que se adivinham na vida, como nos livros, sejam romances, sejam
histórias


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verdadeiras. Era Capitu, que nos espreitara desde algum tempo, por dentro da veneziana, e agora abrira inteiramente a
janela, e aparecera. Viu as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.

--É o Escobar, disse eu indo pôr-me embaixo da janela, a olhar para cima.

CAPÍTULO LX / UMA REFORMA DRAMÁTICA

Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino,
como
todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai,
apagam-se
as luzes, e os espectadores vão dormir. Nesse gênero há porventura alguma cousa que reformar, e eu proporia, como
ensaio,
que as peças começassem pelo fim. Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à
ação
lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as cenas iniciais da ameaça dos turcos, as explicações de Otelo
e
Desdêmona, e o bom conselho do fino lago: "Mete dinheiro na bolsa." Desta maneira, o espectador, por um lado,
acharia no
teatro a charada habitual que os periódicos lhe dão, por que os últimos atos explicam o desfecho do primeiro, espécie
de:
conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor:

Ela amou o que me afligira,

Eu amei a piedade dela.

CAPÍTULO LXXIII / O CONTRA-REGRA

O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em
cena,
dá-lhes as cartas e outros objetos, e executa dentro os sinais correspondentes ao diálogo, uma trovoada, um carro, um
tiro.
Quando eu era moça representou-se aí, em não sei que teatro, um drama que acabar pelo juízo final. O principal
personagem
era Asaverus, que no último quadro concluía um monólogo por esta exclamação: "Ouço a trombeta do arcanjo!" Não
se
ouviu trombeta nenhuma. Asaverus, envergonhado, repetiu a palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra,
mas ainda
nada. Então caminhou para o fundo, disfarçadamente trágico, mas efetivamente com o fim de falar ao bastidor, e
dizer em
voz surda: "O pisão! o pisão! o pisão!" O público ouviu esta palavra e desatou a rir, até que, quando a trombeta soou
deveras, e Asaverus bradou pela terceira vez que era a do arcanjo, um gaiato da platéia corrigiu cá de baixo: "Não,
senhor, é
o pistão do arcanjo"

Assim se explicam a minha estada debaixo da janela de Capitu e a passagem de um cavaleiro, um dandy, como então
dizíamos. Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, rédea na mão esquerda a direita à cinta, botas de verniz,
figura e
postura esbeltas: a cara não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam atrás; todos iam às


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suas
namoradas. Era uso do tempo namorar a cavalo. Relê Alencar: "Porque um estudante (dizia um dos seus personagens
de
teatro de 1858) não pode estar sem estas duas cousas, um cavalo e uma namorada." Relê Alvares de Azevedo. Uma
das
suas poesias é destinada a contar (1851) que residia em Catumbi, e, para ver a namorada no Catete, alugara um
cavalo por
três mil-réis... Três mil-réis! tudo se perde na noite dos tempos!

Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era a trombeta do juízo final e soou a tempo; assim faz o
Destino.
que é o seu próprio contra-regra. O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado,
o
lado de Capitu e olhou para Capitu, e Capitu para ele; o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando
para
trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. A rigor, era natural admirar as belas figuras; mas aquele sujeito
costumava passar ali, às tardes; morava no antigo Campo da Aclamação, e depois... e depois... Vão lá raciocinar com
um
coração de brasa, como era o meu! Nem disse nada a Capitu; saí da rua à pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando
dei
por mim, estava na sala de visitas.

CAPÍTULO LXXIV / A PRESILHA

Na sala de visitas, tio Cosme e José Dias conversavam, um sentado, outro andando e parando. A vista de José Dias
lembrou-me o que ele me dissera no seminário: "Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança que case
com ela..."
Era certamente alusão ao cavaleiro. Tal recordação agravou a impressão que eu trazia da rua; mas não seria essa
palavra,
inconscientemente guardada, que me dispôs a crer na malícia dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em José
Dias
pela gola, levá-lo ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou por hipótese; mas José Dias, que parara ao
ver-me
entrar, continuou a andar e a falar. Eu, impaciente, queria ir à casa ao pé, imaginava que Capitu saísse da janela
assustada e
não tardasse a aparecer, para indagar e explicar... E os dous falavam, até que tio Cosme ergueu-se para ir ver a doente,
e
José Dias veio ter comigo, ao vão da outra janela.

Há um instante tinha eu desejo de lhe perguntar o que havia entre Capitu e os peraltas do bairro; agora, imaginando
que vinha
justamente dizer-mo, fiquei com medo de ouvi-lo. Quis tapar-lhe a boca. José Dias viu no meu rosto algum sinal
diferente da
expressão habitual, e perguntou-me com interesse:

--Que é, Bentinho?

Para não fitá-lo, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que uma das presilhas das calças do agregado estava
desabotoada, e, como ele insistisse em saber o que é que eu tinha, respondi apontando com o dedo:



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--Olhe a presilha, abotoe a presilha.

José Dias inclinou-se, eu saí correndo.

CAPÍTULO LXXV / O DESESPERO

Escapei ao agregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto dela, mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu
quarto, e
entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os
soluços
com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-me já
ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que
desprezo, muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes,
como
se a tivesse entre eles.

Da cama ouvi a voz dela, que viera passar o resto da tarde com minha mãe, e naturalmente comigo, como das outras
vezes;
mas, por maior que fosse o abalo que me deu, não me fez sair do quarto e Capitu ria alto, falava alto, como se me
avisasse;
eu continuei surdo, a sós comigo e o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço,
enterrá-las
bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue...

CAPÍTULO LXXVI / EXPLICAÇÃO

Ao fim de algum tempo, estava sossegado, mas abatido. Como me achasse estirado na cama, com os olhos no tecto,
lembrou-me a recomendação que minha mãe fazia de me não deitar depois do jantar para evitar alguma congestão.
Ergui-me
de golpe, mas não saí do quarto. Capitu ria agora menos e falava mais baixo; estaria aflita E com a minha reclusão,
mas nem
por isso me abalou.

Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor, estava diferente. A minha dor agora complicava-se do
receio
de haver ido além do que convinha, deixando de examinar o negócio. Posto que a cabeça me doesse um pouco,
simulei
maior incômodo, com o fim de não ir ao seminário e falar a Capitu. Podia estar zangada comigo, podia não querer-me
agora
e preferir o cavaleiro. Quis resolver tudo, ouvi-la e julgá-la; podia ser que tivesse defesa e explicação.

Tinha ambas as cousas. Quando soube a causa da minha reclusão da véspera, disse-me que era grande injúria que lhe
fazia;
não podia crer que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a julgasse que pudesse crer... E aqui
romperam-lhe
lágrimas, e fez um gesto de separação; mas eu acudi de pronto, peguei-lhe das mãos e beijei as com tanta alma e calor
que as
senti estremecer. Enxugou os olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por eles e pelas lágrimas; depois suspirou,
depois
abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como os outros que ali passavam às tardes, a


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cavalo ou a
pé. Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular.

--E que poderia haver, se ele vai casar? concluiu.

--Vai casar?

Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da Rua dos Barbonos. Esta razão quadrou-me mais que tudo, e ela o
sentiu no
meu gesto; nem por isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação, deixaria de ir mais à janela.

--Não! não! não! não lhe peço isto!

Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, à primeira suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido
entre
nós Aceitei a ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir; era a primeira suspeita e a última.

CAPÍTULO LXXVII / PRAZER DAS DORES VELHAS

Contando aquela crise do meu amor adolescente, sinto uma cousa que não sei se explico bem, e é que as dores
daquela
quadra, a tal ponto se espiritualizaram com o tempo que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo
é claro
na vida ou nos livros A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo que ele me
lembra outros que não quisera lembrar por nada.

CAPÍTULO LXXVIII / SEGREDO POR SEGREDO

De resto, naquele mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar a alguém o que se passava entre mim e Capitu.
Não
referi tudo, mas só uma parte, e foi Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminário, na quarta-feira, achei-o
inquieto;
disse-me que era sua intenção ir ver-me, se eu me demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com interesse o que
é
que tivera, e se estava bom de todo.

--Estou.

Ouvia, espetando-me os olhos. Três dias depois disse que me estavam achando muito distraído; era bom disfarçar o
mais
que pudesse. Ele, à sua parte, tinha razões para andar distraído também, mas buscava ficar atento.

--Então parece-lhe?...

--Sim, você às vezes está que não ouve nada. olhando para ontem; disfarce, Santiago.

--Tenho motivos...

--Creio; ninguém se distrai à toa.



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--Escobar...

Hesitei; ele esperou.

--Que é?

--Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui ao seminário você é a pessoa que mais me tem entrado
no
coração, e lá fora, a não ser a gente da família, não tenho propriamente um amigo.

--Se eu disser a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perde a graça; parece que estou repetindo. Mas a verdade é que
não
tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro e creio que já notaram, mas eu não me importo com isso.

Comovido, senti que a voz se me precipitava da garganta.

--Escobar, você é capaz de guardar um segredo?

--Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso. ..

--Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço sério, e faço de conta que me confesso a um padre.

--Se precisa de absolvição, está absolvido.

--Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, e esperam; mas eu não posso ser padre.

--Nem eu, Santiago.

--Nem você?

--Segredo por segredo; também eu tenho o propósito de não acabar o curso; meu desejo é o comércio, mas não diga
nada,
absolutamente nada- fica só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou religioso, mas o comércio é a minha
paixão.

--Só isso?

--Que mais há de ser?

Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidência, tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei
porém
que disse "uma pessoa..." com reticência. Uma pessoa?... Não foi preciso mais para que ele entendesse. Uma pessoa
devia
ser uma moça. Nem cuides que pasmou de me ver namorado; achou até natural e espetou-me outra vez os olhos.
Então
contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para ter o gosto de repisar o assunto Escobar escutava com
interesse;
no fim da nossa conversação declarou-me que era segredo enterrado em cemitério. Deu-me de conselhos que não me
fizesse
padre. Não podia levar para a igreja um coração que não era do céu, mas da terra; seria um mau padre, nem seria


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padre. Ao
contrário, Deus protegia os sinceros; uma vez que eu só podia servi-lo no mundo, aí me cumpria ficar.

Não calculas o prazer que me deu a confidência que lhe fiz. Era como que uma felicidade mais. Aquele coração moço
que
me ouvia e me dava razão, trazia a este mundo um aspecto extraordinário. Era um grande e belo mundo, a vida uma
carreira
excelente, e eu nem mais nem menos um mimoso do céu; eis a minha sensação. Nota que eu não lhe disse tudo, nem o
melhor; não lhe referi o Capítulo do penteado, por exemplo, nem outros assim; mas o contado era multo.

Que voltamos ao assunto, não é preciso dizê-lo. Voltamos uma e muitas vezes: eu louvava as qualidades morais de
Capitu,
matéria adequada à admiração de um seminarista, a simpleza, a modéstia. O amor do trabalho e os costumes
religiosos. Não
lhe tocava nas graças físicas, nem ele me perguntava por elas; apenas insinuei a conveniência de a conhecer de vista.

--Agora não é possível, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de casa; Capitu vai passar uns dias com uma amiga da
Rua
dos Inválidos. Quando ela vier, você irá lá; mas pode ir antes, pode ir sempre; por que não foi ontem jantar comigo?

--Você não me convidou.

-- Pois precisa convidar? Lá em casa todos ficaram gostando muito de você.

--Também eu fiquei gostando de todos, mas é possível fazer distinção, confesso-lhe que sua mãe é uma senhora
adorável.

--Não é verdade? retorqui cheio de alvoroço.

CAPÍTULO LXXIX / VAMOS AO CAPÍTULO

Com efeito, gostei de ouvi-lo falar assim. Sabes a opinião que eu tinha de minha mãe. Ainda agora, depois de
interromper
esta linha para mirar-lhe o retrato que pende da parede, acho que trazia no rosto impressa aquela qualidade. Nem de
outro
modo se explica a opinião de Escobar, que apenas trocara com ela quatro palavras Uma só bastava a penetrar-lhe a
essência
íntima; sim, sim, minha mãe era adorável. Por mais que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não
queria, não
podia deixar de sentir que era adorável, como uma santa.

E porventura era certo que me obrigava à carreira eclesiástica? Aqui chego a um ponto, que esperei viesse depois tanto
que
já pesquisava em que altura lhe daria um Capítulo. Realmente, não cabia dizer agora o que só mais tarde presumi
descobrir,
mas, uma vez que toquei no ponto, melhor é acabar com ele. É grave e complexo, delicado e sutil, um destes em que o
autor
tem de atender ao filho, e o filho há de ouvir o autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a
verdade. Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a santa mais adorável, sem prejuízo (ao contrário!)
da


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parte humana e terrestre que havia nela. Basta de prefácio ao Capítulo; vamos ao Capítulo.

CAPÍTULO LXXX / VENHAMOS AO CAPÍTULO

Venhamos ao Capítulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, das suas práticas religiosas, e da fé pura que as
animava. Nem ignoras que a minha carreira eclesiástica era objeto de promessa feita quando fui concebido. Tudo está
contado oportunamente. Outorgam, sabes que para o fim de apertar o vínculo moral da obrigação, confiou os seus
projetos e
motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com
alegria, no
mais íntimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a mamar. Meu pai, se vivesse, é
possível que alterasse os planos, e, como tinha a vocação da política, é provável que me encaminhasse somente à
política,
embora os dous ofícios não fossem nem sejam inconciliáveis, e mais de um padre entre na luta dos partidos e no
governo dos
homens. Mas meu pai morrera sem saber nada, e ela ficou diante do contrato, como única devedora.

Um dos aforismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na páscoa, a quaresma é curta. A nossa quaresma não
foi
mais longa que as outras, e minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, começou a adiar a minha
entrada no
seminário. É o que se chama, comercialmente falando, reformar uma letra. O credor era arquimilionário, não dependia
daquela quantia para comer, e consentiu nas transferências de pagamento, sem sequer agravar a taxa do juro. Um dia.
porém, um dos familiares que serviam de endossantes da letra, falou da necessidade de entregar o preço ajustado; está
num
dos Capítulos primeiros. Minha mãe concordou e recolhi-me a S. José.

Ora, nesse mesmo Capítulo, verteu ela umas lágrimas, que enxugou sem explicar, e que nenhum dos presentes nem tio
Cosme, nem prima Justina, nem o agregado José Dias entendeu absolutamente: eu, que estava atrás da porta, não as
entendi
mais que eles. Bem examinadas, apesar da distancia, vê-se que eram saudades prévias, a mágoa da separação, -- e
pode ser
também (é o princípio do ponto), pode ser que arrependimento da promessa. Católica e devota, sentia muito bem que
as
promessas se cumprem; a questão é se é oportuno e adequado fazê-las todas, e naturalmente inclinava-se à negativa.
Por
que é que Deus a puniria, negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, sem necessidade
de lhe
dedicar ab ovo. Era um raciocínio tardio: devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma
conclusão
primeira; mas, não bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o seminário.

Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé velava com os seus grandes olhos ingênuos. Minha
mãe
faria, st pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus anos para conservar-me consigo, fora do clero, casado
e
pai: é o que presumo, assim como suponho que rejeitou tal idéia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti
sempre na
corrente da vida ordinária.



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Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-se-lhe
necessária.
Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto anunciá-lo), a
esperança de
que o nosso amor, tornando-me absolutamente incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por Deus
nem
pelo Diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Neste caso, eu romperia o
contrato
sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, tendo confiado a alguém a
importância
de uma dívida para levá-la ao credor o portador guardasse o dinheiro consigo e não levasse nada. Na vida comum, o
ato de
terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro.

Hás de ter tido conflitos parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o céu e a terra, por
modo idêntico ou análogo. O céu e a terra acabam conciliando-se; eles são quase irmãos gêmeos, tendo o céu sido
feito no
segundo dia e a terra no terceiro. Como Abraão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o
holocausto, o fogo e o cutelo. E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutelo e levantou-o ao alto. No
momento de
fazê-lo cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: "Não faças mal algum a teu filho; conheci que
temes a
Deus". Tal seria a esperança secreta de minha mãe.

Capitu era naturalmente o anjo da Escritura. A verdade é que minha mãe não podia tê-la agora longe de si. A afeição
crescente era manifesta por atos extraordinários. Capitu passou a ser a flor da casa, o sol das manhãs, o frescor das
tardes, a
lua das noites; lá vivia horas e horas, ouvindo, falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o coração, revolvia-lhe
os olhos,
e o meu nome era entre ambas como a senha da vida futura.

CAPÍTULO LXXXI / UMA PALAVRA

Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma palavra de minha mãe. Agora se entenderá
que ela
me dissesse, no primeiro sábado, quando eu cheguei a casa, e soube que Capitu estava na Rua dos Inválidos, com
sinhazinha
Gurgel:

--Por que não vais vê-la? Não me disseste que o pai de Sancha te ofereceu a casa?

--Ofereceu.

--Pois então? Mas é se queres. Capitu devia ter voltado hoje para acabar um trabalho comigo; certamente a amiga
pediu-lhe
que dormisse lá.

--Talvez ficassem namorando, insinuou prima Justina.

Não a matei por não ter à mão ferro nem corda, pistola nem punhal- mas os olhos que lhe deitei, se pudessem matar,


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teriam
suprido tudo. Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os dentes, como armas de
ataque, e
as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao primeiro efeito. Um mover deles faria parar ou cair
um
inimigo ou um rival, exerceriam vingança pronta, com este acréscimo que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos
matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a vítima. Prima Justina escapou aos meus; eu e que não escapei
ao
efeito da insinuação, e no domingo, às onze horas, corri à Rua dos Inválidos.

O pai de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava enferma- caíra na véspera com uma febre, que se ia
agravando. Como ele queria muito à filha, pensava já vê-la morta, e anunciou-me que se mataria também. Eis aqui
um
Capítulo fúnebre como um cemitério, mortes, suicídios e assassinatos. Eu ansiava por um raio de luz clara e céu azul.
Foi
Capitu que os trouxe à porta da sala, vindo dizer ao pai de Sancha que a filha o mandara chamar.

--Está pior? perguntou Gurgel assustado.

--Não, senhor, mas quer falar-lhe.

--Fique aqui um bocadinho, disse-lhe ele; e voltando-se para mim: E a enfermeira de Sancha, que não quer outra; eu já
volto.

Capitu trazia sinais de fadiga e comoção, mas tão depressa me viu, ficou toda outra, a mocinha de sempre, fresca e
lepida,
não menos que espantada. Custou-lhe a crer que fosse eu. Falou-me, quis que lhe falasse, e efetivamente conversamos
por
alguns minutos, mas são tão baixo e abafado que nem as paredes ouviram, elas que têm ouvidos. De resto, se elas
ouviram
algo, nada entenderam, nem elas nem os móveis, que estavam tão tristes como o dono.

CAPÍTULO LXXXII / O CANAPÉ

Deles, só o canapé pareceu haver compreendido a nossa situação moral, visto que nos ofereceu os serviços da sua
palhinha,
com tal insistência que os aceitamos e nos sentamos. Data daí a opinião particular que tenho do canapé. Ele faz aliar
a
intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dous homens sentados nele podem debater o destino de
um
império, e duas mulheres a graça de um vestido- mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis naturais
dirão outra
cousa que não seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitu e eu. Vagamente lembra-me que lhe perguntei se a
demora ali
seria grande...

--Não sei- a febre parece que cede... mas...

Também me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita à Rua dos inválidos, com a pura verdade, isto é, a
conselho


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de minha mãe.

--Conselho dela? murmurou Capitu.

E acrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente -- Seremos felizes!

Repeti estas palavras, com os simples dedos, apertando os dela. O canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os
seus
serviço às nossas mãos presas e às nossas cabeças juntas ou quase juntas.

CAPÍTULO LXXXIII / O RETRATO

Gurgel tornou à sala e disse a Capitu que a filha chamava por ela. Eu levantei-me depressa e não achei compostura;
metia os
olhos pelas cadeiras. Ao contrário, Capitu ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre aumentará.

--Não, disse ele.

Nem sobressalto nem nada, nenhum ar de mistério da parte de Capitu; voltou-se para mim, e disse-me que levasse
lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que até breve, estendeu-me a mão e enfiou pelo corredor. Todas as
minhas
invejas foram com ela. Como era possível que Capitu se governasse tão facilmente e eu não?

--Está uma moça, observou Gurgel olhando também para ela.

Murmurei que sim. Na verdade, Capitu ia crescendo às carreiras as formas arredondavam-se e avigoravam-se com
grande
intensidade moralmente a mesma cousa. Era mulher por dentro e por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por
todos os
lados, e desde os pés até à cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez
que
vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a boca outro império. Gurgel,
voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça, perguntou-me se Capitu era parecida com o
retrato.

Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provável do meu interlocutor, desde que a
matéria não
me agrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo
que
sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa.
Também
achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao gênio, era um, pareciam irmãs.

-- Finalmente, até a amizade que ela tem a Sanchinha- a mãe não era mais amiga dela... Na vida há dessas
semelhanças
assim esquisitas.

CAPÍTULO LXXXIV / CHAMADO

No saguão e na rua, examinei ainda comigo se efetivamente ele teria desconfiado alguma cousa, mas achei que não e


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pus-me
a andar. Ia satisfeito com a visita, com a alegria de Capitu, com os louvores de Gurgel, a tal ponto que não acudi logo
a uma
voz que me chamava:

--Sr. Bentinho! Sr. Bentinho!

Só depois que a voz cresceu e o dono dela chegou à porta é que eu parei e vi o que era e onde estava. Estava já na Rua
de
Matacavalos. A casa era uma loja de louça, escassa e pobre: tinha as portas meio cerradas, e a pessoa que me
chamava era
um pobre homem grisalho e mal vestido.

--Sr. Bentinho, disse-me ele chorando; sabe que meu filho Manduca morreu?

--Morreu?

--Morreu há meia hora, enterra-se amanhã. Mandei recado a sua mãe agora mesmo, e ela fez-me a caridade de
mandar
algumas flores para botar no caixão. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que morresse, coitado, mas apesar
de tudo
sempre dói. Que vida que ele teve!... Um dia destes ainda se lembrou do senhor, e perguntou se estava no seminário...
Quer
vê-lo? Entre, ande vê-lo...

Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto. Quis responder que não, que não queria ver o
Manduca, e fiz até um gesto para fugir. Não era medo; noutra ocasião pode ser até que entrasse com facilidade e
curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver um defunto ao voltar de uma namorada... Há cousas que se não ajustam
nem
combinam. A simples notícia era já uma turvação grande. As minhas idéias de ouro perderam toda a cor e o metal
para se
trocarem em cinza escura e feia, e não distingui mais nada. Penso que cheguei a dizer que tinha pressa, mas
provavelmente
não falei por palavras claras, nem sequer humanas, porque ele, encostado ao portal, abria-me espaço com o gesto, e
eu, sem
alma para entrar nem fugir, deixei ao corpo fazer o que pudesse, e o corpo acabou entrando.

Não culpo ao homem; para ele, a cousa mais importante do momento era o filho. Mas também não me culpem a
mim; para
mim, a cousa mais importante era Capitu. O mal foi que os dous casos se conjugassem na mesma tarde, e que a morte
de um
viesse meter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse
algumas
horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Por que morrer
exatamente há
meia hora? Toda hora é apropriada ao óbito; morre-se muito bem às seis ou sete horas da tarde.

CAPÍTULO LXXXV / O DEFUNTO

Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A loja era escura, e o interior da casa menos luz tinha,


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agora
que as janelas da área estavam cerradas. A um canto da sala de jantar vi a mãe chorando; à porta da alcova duas
crianças
olhavam espantadas para dentro, com o dedo na boca. O cadáver jazia na cama; a cama...

Suspendamos a pena e vamos à janela espairecer a memória. Realmente, o quadro era feio, já pela morte, já pelo
defunto,
que era horrível... Isto aqui, sim, é outra cousa. Tudo o que vejo lá fora respira vida, a cabra que rumina ao pé de uma
carroça, a galinha que marisca no chão da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a
palmeira que
investe para o céu, e finalmente aquela torre de igreja, apesar de não ter músculos nem folhagem. Um rapaz, que ali no
beco
empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto também se chame Manduca.

Verdade é que o outro Manduca era mais velho. Teria dezoito ou dezenove anos, mas tanto lhe darias quinze como
vinte e
dous, a cara não permitia trazer a idade à vista antes a escondia nas dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus
parentes
são mortos, se existe algum não é em tal evidência que se vexe ou doa. Diga-se tudo, Manduca padecia de uma cruel
enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio- morto pareceu-me horrível. Quando eu vi, estendido na cama, o
triste
corpo daquele meu vizinho, fiquei apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão oculta me compeliu a olhar outra
vez, ainda
que de fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto.

--Padeceu muito! suspirou o pai.

--Coitado de Manduca! soluçava a mãe.

Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me O pai perguntou-me se lhe faria o favor de ir ao
enterro;
respondi com a verdade, que não sabia, faria o que minha mãe quisesse. E rápido saí, atravessei a loja, e saltei à rua.

CAPÍTULO LXXXVI / AMAI, RAPAZES!

Era tão perto, que antes de três minutos me achei em casa. Parei no corredor, a tomar fôlego- buscava esquecer o
defunto,
pálido e disforme, e o mais que não disse para não dar a estas páginas um aspecto repugnante, mas podes imaginá-lo.
Tudo
arredei da vista, em poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e mais na vida e na cara fresca e lépida de
Capitu...
Amai, rapazes! e, principalmente, amai moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao mal, aroma ao infecto, trocam a
morte
pela vida... Amai, rapazes!

CAPÍTULO LXXXVII / A SEGE

Chegara ao último degrau, e uma idéia me entrou no cérebro, como se estivesse a esperar por mim, entre as grades da
cancela. Ouvi de memória as palavras do pai de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro no dia seguinte. Parei no
degrau.


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Refleti um instante; sim, podia ir ao enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro...

Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o gosto da condução. Em pequeno, lembra-me que
ia
assim muita vez com minha mãe às visitas de amizade ou de cerimônia e à missa, se chovia. Era uma velha sege de
meu pai,
que ela conservou o mais que pôde. O cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via à porta,
vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo:

--Pai João vai levar nhonhô!

E era raro que eu não lhe recomendasse:

--João, demora muito as bestas; vai devagar.

--Nhã Glória não gosta.

--Mas demora!

Fica entendido que era para saborear a sege, não pela vaidade, porque ela não permitia ver as pessoas que iam dentro.
Era
uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os
lados
quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para fora.

--Senta, Bentinho!

--Deixa espiar, mamãe!

E em pé, quando era mais pequeno, metia a cara no vidro, e via o cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na
mula
da esquerda, e segurando a rédea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido. Tudo incômodo, as botas, o
chicote
e as mulas, mas ele gostava e eu também. Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou fechadas, com gente
ou
sem ela, e na rua as pessoas que iam e vinham, ou atravessavam diante da sege, com grandes pernadas ou passos
miúdos.
Quando havia impedimento de gente ou de animais, a sege parava, e então o espetáculo era particularmente
interessante; as
pessoas paradas na calçada ou à porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si, naturalmente sobre quem
iria
dentro. Quando fui crescendo em idade imaginei que adivinhavam e diziam: "É aquela senhora da Rua de
Mata-cavalos, que
tem um filho, Bentinho..."

A sege ia tanto com a vida recôndita de minha mãe, que quando já não havia nenhuma outra, continuamos a andar
nela, e era
conhecida na rua e no bairro pela "sege antiga." Afinal minha mãe consentiu em deixá-la, sem a vender logo; só abriu
mão
dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razão de a guardar inútil foi exclusivamente sentimental; era


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a
lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pai era conservado como um pedaço dele, um resto da pessoa, a
mesma
alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho também do carrancismo que ela confessava aos amigos. Minha mãe
exprimia
bem a fidelidade aos velhos hábitos, velhas maneiras, velhas idéias, velhas modas. Tinha o seu museu de relíquias,
pentes
desusados, um trecho de mantilha; umas moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo, a si
mesma se queria fazer velha; mas já deixei dito que, neste ponto, não alcançava tudo o que queria.

CAPÍTULO LXXXVIII / UM PRETEXTO HONESTO

Não, a idéia de ir ao enterro não vinha da lembrança do carro e suas doçuras. A origem era outra: era porque,
acompanhando o enterro no dia seguinte, não iria ao seminário, e podia fazer outra visita a Capitu, um tanto mais
demorada.
Bis aí o que era. A lembrança do carro podia vir acessoriamente depois, mas a principal e imediata foi aquela. Voltaria
à Rua
dos Inválidos, a pretexto de saber de sinhazinha Gurgel. Contava que tudo me saísse como naquele dia. Gurgel aflito,
Capitu
comigo no canapé, as mãos presas, o penteado...

--Vou pedir a mamãe.

Abri a cancela. Antes de transpô-la, assim como ouvira da memória a palavra do pai do morto, ouvi agora a da mãe, e
repeti
a meia voz:

--Coitado de Manduca!

Minha Mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro.

--Perder um dia de seminário

Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente pobre... Tudo o que me lembrou dizer, disse.
Prima
Justina opinou pela negativa.

--Você acha que não deve ir? perguntou-lhe minha mãe.

--Acho que não. Que amizade é essa que eu nunca vi?

Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao agregado, este sol riu, e disse-me que o motivo escondido da prima era
provavelmente não dar ao enterro "o lustre da minha pessoa". Fosse o que fosse, fiquei amuado; no dia seguinte,
pensando
no motivo, não me desagradou; mais tarde achei-lhe um sabor particular.

CAPÍTULO XC / A POLÊMICA

No dia seguinte, passei pela casa do defunto, sem entrar nem parar --ou, se parei, foi só um instante, ainda mais breve
que


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este em que vo-lo digo. Se me não engano, andei até mais depressa, receando que me chamassem como na véspera.
Uma
vez que não ia ao enterro antes longe que próximo. Fui andando e pensando no pobre-diabo.

Não éramos amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade que intimidade podia haver entre a doença dele e a
minha
saúde? Tivemos relações breves e distantes. Fui pensando nelas, recordando algumas. Reduziam-se todas a uma
polêmica,
entre nós, dous anos antes, a propósito... Mal podeis crer a que propósito foi. Foi a guerra da Criméia.

Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. Ao domingo, sobre a tarde, o pai enfiava-lhe
uma
camisola escura, e trazia-o para o fundo da loja, donde ele espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era todo
o seu
recreio. Foi ali que o vi uma vez, e não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos
queriam
apertar-se; o aspecto não atraía decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda vez que o vi ali, como
falássemos
da guerra da Criméia, que então ardia e andava nos jornais, Manduca disse que os aliados haviam de vencer, e eu
respondi
que não.

--Pois veremos, tornou ele. Só se a justiça não vencer neste mundo, o que é impossível, e a justiça está com os aliados.

--Não, senhor, a razão é dos russos.

Naturalmente, íamos com o que nos diziam os jornais da cidade transcrevendo os de fora, mas pode ser também que
cada
um de nós tivesse a opinião do seu temperamento. Fui sempre um tanto moscovita nas minhas idéias. Defendi o direito
da
Rússia, Manduca fez o mesmo ao dos aliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocamos outra vez no
assunto.
Então Manduca propôs que trocássemos a argumentação por escrito, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de
papel
contendo a exposição e defesa do direito dos aliados, e da integridade da Turquia, concluindo por esta frase profética:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Li-a e meti-me a refutá-la. Não me recorda um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse conhecê-los,
agora
que o século está a expirar; mas a idéia que me ficou deles é que eram irrespondíveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu
papel.
Fizeram-me entrar na alcova, onde ele jazia estirado na cama, mal coberto por uma colcha de retalhos. Ou gosto da
polêmica ou qualquer outra causa que não alcanço, não me deixou sentir toda a repugnância que saía da cama e do
doente, e
o prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte, por mais nojosa que tivesse então a cara, o
sorriso
que a acendeu dissimulou o mal físico. A convicção com que me recebeu o papel e disse que ia ler e responderia é que
não
tem palavras nossas nem alheias que a digam de todo e com verdade; não era exaltada, não era ruidosa, não tinha


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gestos,
nem a moléstia os permitiria, era simples, grande, profunda, um gozo infinito de vitória, antes de saber os meus
argumentos.
Tinha já papel, pena e tinta ao pé da cama. Dias depois recebi a réplica; não me lembra se trazia cousas novas ou não;
o
calor é que crescia, e o final era o mesmo:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Trepliquei, e daí continuou por algum tempo uma polêmica ardente, em que nenhum de nós cedia, defendendo cada
um os
seus clientes com força e brio. Manduca era mais longo e pronto que eu. Naturalmente a mim sobravam mil cousas
que
distraíam, o estudo, os recreios, a família, e a própria saúde, que me chamava a outros exercícios. Manduca, salvo o
palmo
de rua ao domingo de tarde, tinha só esta guerra, assunto da cidade e do mundo, mas que ninguém ia tratar com ele. O
acaso
dera-lhe em mim um adversário; ele, que tinha gosto à escrita, deitou-se ao debate, como a um remédio novo e radical.
As
horas tristes e compridas eram agora breves e alegres; os olhos desaprenderam de chorar, se porventura choravam
antes.
Senti esta mudança dele nas próprias maneiras do pai e da mãe.

--Não imagina como ele anda agora, depois que o senhor lhe escreve aqueles papéis, dizia-me o dono da loja, uma vez,
à
porta da rua. Fala e ri muito. Logo que eu mando o caixeiro levar-lhe os papéis dele, entra a indagar da resposta, e se
demorará muito, e que pergunte ao moleque, quando passar. Enquanto espera, relê jornais e toma notas. Mas
também,
apenas recebe os seus papéis, atira-se a lê-los, e começa logo a escrever a resposta. Há ocasiões em que não come ou
come mal; tanto que eu queria pedir-lhe uma cousa, é que não os mande à hora do almoço ou de jantar...

Fui eu que cansei primeiro. Comecei a demorar as respostas, até que não dei mais nenhuma- ele ainda teimou duas ou
três
vezes depois do meu silêncio, mas não recebendo contestação alguma, por fadiga também ou por não aborrecer,
acabou de
todo com as suas apologias. A última como a primeira, como todas, afirmava a mesma predição eterna:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Não entraram, efetivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas a predição será eterna? Não chegarão a
entrar
algum dia? Problema difícil. O próprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou três anos de dissolução, tão certo é
que a
natureza, como a história, não se faz brincando. A vida dele resistiu como a Turquia se afinal cedeu foi porque lhe
faltou uma
aliança como a anglo-francesa, não se podendo considerar tal o simples acordo da medicina e da farmácia. Morreu
afinal,
como os Estados morrem; r nosso caso particular, a questão é saber, não se a Turquia morre porque a morte não
poupa a
ninguém, mas se os russos entrara algum dia em Constantinopla; essa era a questão para o meu vizinho leproso,


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debaixo da
triste, rota e infecta colcha de retalhos...

CAPÍTULO XCI / ACHADO QUE CONSOLA

É claro que as reflexões que aí deixo não foram feitas então, a caminho do seminário, mas agora no gabinete do
Engenho
Novo Então não fiz propriamente nenhuma, a não ser esta: que servi de alívio um dia ao meu vizinho Manduca. Hoje
pensando melhor, acho que não só servi de alívio, mas até lhe dei felicidade. E o achado consola-me; já agora não
esquecerei mais que dei dous ou três meses de felicidade a um pobre-diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É
alguma
cousa na liquidação da minha vida. Se há no outro mundo tal ou qual prêmio para as virtudes sem intenção, esta
pagará um
ou dous dos meus muitos pecados. Quanto ao Manduca, não creio que fosse pecado opinar contra a Rússia, mas, se
era, ele
estará purgando há quarenta anos a felicidade que alcançou em dous ou três meses,--donde concluirá (já tarde) que
era
ainda melhor haver gemido somente, sem opinar cousa nenhuma.

CAPÍTULO XCII / O DIABO NÃO É TÃO FEIO COMO SE PINTA

Manduca enterrou-se sem mim. A muitos outros aconteceu a mesma cousa, sem que eu sentisse nada, mas este caso
afligiu-me particular mente pela razão já dita. Também senti não sei que melancolia ao recordar a primeira polêmica
da vida,
o gosto com que ele recebia os meus papéis e se propunha a refutá-los, não contando o gosto do carro... Mas o tempo
apagou depressa todas essas saudades e ressurreições. Nem foi só ele; duas pessoas vieram ajudá-lo, Capitu, cuja
imagem
dormiu comigo na mesma noite, e outra que direi no Capítulo que vem. O resto deste Capítulo é só para pedir que, se
alguém
tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o
Diabo
não é tão feio como se pinta. Quero dizer...

Quero dizer que o meu vizinho de Mata-cavalos, temperando o mal com a opinião anti-russa, dava à podridão das
suas
carnes um reflexo espiritual que as consolava. Há consolação maiores, decerto e uma das mais excelentes é não
padecer esse
nem outro mal algumas a natureza é tão divina que se diverte com tais contrastes, e aos mais nojentos ou mais aflitos
acena
com uma flor. E talvez saia assim a flor mais bela, o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro
superior, hão
mister de estrume de porco. Não examinei, mas deve ser verdade.

CAPÍTULO XCIII / UM AMIGO POR UM DEFUNTO

Quanto à outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu colega Escobar que no domingo, antes do meio-dia,
veio ter a
Mata-cavalos. Um amigo supria assim um defunto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a
minha mão
entre as suas, como se me não visse desde longos meses.


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--Você janta comigo, Escobar?

--Vim para isto mesmo.

Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e ele respondeu com muita polidez, ainda que um tanto atado,
como se
carecesse de palavra pronta. Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo
em
todos os instantes. O que ele disse, em resumo, foi que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada
educação;
no seminário todos me queriam bem, nem podia deixar de ser assim, acrescentou. Insistia na educação, nos bons
exemplos,
"na doce e rara mãe" que o céu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.

Todos ficaram gostando dele. Eu estava tão contente como se Escobar fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe
dous
superlativos, tio Cosme dous capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro
domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não
escapava nada.

--São os olhos dele, expliquei.

--Nem eu digo que sejam de outro.

--São olhos refletidos, opinou tio Cosme.

--Seguramente, acudiu José Dias; entretanto, pode ser que a senhora D. Justina tenha alguma razão. A verdade é que
uma
cousa não impede outra, e a reflexão casa-se muito bem à curiosidade natura. Parece curioso, isso parece, mas...

--A mim parece-me um mocinho muito sério, disse minha mãe.

--Justamente! confirmou José Dias, para não discordar dela.

Quando eu referi a Escobar aquela opinião de minha mãe (sem lhe contar as outras naturalmente) vi que o prazer dele
foi
extraordinário. Agradeceu, dizendo que eram bondades, e elogiou também minha mãe, senhora grave, distinta e moça,
muito
moça... Que idade teria?

--Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.

--Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta- está muito moça e bonita. Também a alguém
há de
você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela. Enviuvou há muitos anos?

Contei-lhe o que sabia da vida dela e de meu pai. Escobar escutava atento, perguntando mais, pedindo explicação das
passagens omissas ou só escuras. Quando eu lhe disse que não me lembrava nada da roça, tão pequenino viera,
contou-me


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duas ou três reminiscências dos seus três anos de idade, ainda agora frescas. E não contávamos voltar

--Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai passando, é de lá. Tomás!

--Nhonhô!

Estávamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço; chegou-se a nós e esperou.

--É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?

-- Está socando milho, sim, senhor.

--Você ainda se lembra da roça, Tomás?

--Alembra, sim, senhor.

-- Bem, vá-se embora.

Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele José, aquele outro Damião...

--Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.

Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos
nomes,
distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda ou de nação como Pedro Benguela,
Antônio
Moçambique...

-- E estão todos aqui em casa? perguntou ele.

--Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados Não era possível ter todos em casa. Nem são todos os
da
rosa: a maior parte ficou lá.

-- O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver, em casa da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é
naturalmente grande.

--Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz porém que há de morrer aqui. As outras estão
alugadas. Algumas são bem grandes, como a da Rua da Quitanda...

--Conheço essa, é bonita.

--Tem também no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Catete...

--Não lhe hão de faltar tectos, concluiu ele sorrindo com simpatia.

Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e
fazendo
reflexões a propósito do asseio; depois continuamos. Quais foram as reflexões não me lembra agora; lembra-me só
que as


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achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a
natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo. Escobar confessou esse acordo do
interno com
o externo, por palavras tão finas e altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral que se ajusta à
física,
tornou a falar de minha mãe, "um anjo dobrado", disse ele.

CAPÍTULO XCIV / IDÉIAS ARITMÉTICAS

Não digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia só elogiar é pensar, sabia também calcular depressa e bem. Era das
cabeças
aritméticas de Holmes (2 + 2 = 4). Não se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. A divisão
que foi
sempre uma das operações difíceis para mim, era para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para
cima, e
sussurrava as denominações dos algarismos: estava pronto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal
que o
fazia amar os próprios sinais das somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais
conceituosos
que as vinte e cinco letras do alfabeto.

--Há letras inúteis e letras dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso prestam o d e o t? Têm quase o mesmo som. O
mesmo digo do b e do p, o mesmo do s, do c e do z, o mesmo do k e do g, etc. São trapalhices caligráficas. Veja os
algarismos: não há dous que façam o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a beleza com que um 4 e um 7 formam
esta
cousa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por igual número, dá 484, e assim por diante. Mas
onde
a perfeição é maior é no emprego do zero. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal negativo é
justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dous 00, é 500. Assim, o que não vale nada faz valer muito,
cousa
que não fazem as letras dobradas, pois eu tanto aprovo com um p como com dous pp.

Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais blasfêmias, mas não ousava refutá-lo. Contudo, um dia.
proferi
algumas palavras de defesa, ao que ele respondeu que era um preconceito, e acrescentou que as idéias aritméticas
podiam ir
ao infinito, com a vantagem que eram mais fáceis de menear. Assim que, eu não era capaz de resolver de momento
um
problema filosófico ou lingüístico, ao passo que ele podia somar. em três minutos, quaisquer quantias.

--Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me
o
número das casas de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma total em dous, em um minuto,
enforque-me!

Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os algarismos das casas e dos aluguéis. Escobar
pegou
o papel, passou-os pelos olhos a fim de os decorar. e enquanto eu fitava o relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as
pálpebras, e sussurrava... Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto bradava-me:



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--Dá tudo 1:070$000 mensais.

Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e que os aluguéis variavam de uma para outra, indo
de
70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu gastaria três ou quatro minutos, --e havia de ser no papel,--fê-lo Escobar
de
cor, brincando. Olhava-me triunfalmente, e perguntava se não era exato. Eu, só por lhe mostrar que sim, tirei do bolso
o
papelinho que levava com a soma total, e mostrei-lho; era aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.

--Isto prova que as idéias aritméticas são mais simples, e portanto mais naturais. A natureza é simples. A arte é
atrapalhada.

Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio;
outros
seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou.

--A modéstia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos podem estimar-se com moderação.

Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propôs-me viver separados. Interrompi-o dizendo
que
não inveja, tanto pior para eles.

--Quebremos-lhe a castanha na boca!

-- Mas...

-- Fiquemos ainda mais amigos que até aqui.

Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, decerto, se não é
efeito das
longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes...

CAPÍTULO XCV / O PAPA

A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe quis ficar atrás. Na primeira semana disse-me
este em
casa:

--Agora é certo que você vai sair já do seminário.

--Como?

--Espere até amanhã. Vou jogar com eles que me chamaram, amanhã, lá no quarto, no quintal, ou na rua, indo à
missa,
conto-lhe o que há. A idéia é tão santa que não está mal no santuário. Amanha, Bentinho.

-- Mas é cousa certa?

--Certíssima!


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No dia seguinte revelou-me o mistério. Ao primeiro aspecto confesso que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de
grandeza e
de espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não menos que isto. Minha mãe, ao parecer dele,
estava
arrependida do que fizera, e desejaria ver-me cá fora, mas entendia que o vínculo moral da promessa a prendia
indissoluvelmente. Cumpria rompê-lo, e para tanto valia a Escritura, com o poder de desligar dado aos apóstolos.
Assim que,
ele e eu iríamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me parecia?

-- Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão. Pode ser um bom remédio.

--É o único, Bentinho, é o único! Vou já hoje conversar com D. Glória, expondo-lhe tudo, e podemos partir daqui a
dous
meses, ou antes...

-- Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...

-- Oh! Bentinho! interrompeu o agregado. Pensar em quê? Você o que quer... Digo? Não se amofina com o seu velho?
Você o que quer é consultar a uma pessoa.

Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu neguei a pés juntos que quisesse consultar ninguém. E
que
pessoa, o reitor? Não era natural que lhe confiasse tal assunto. Não, nem reitor, nem professor, nem ninguém; era só o
tempo
de refletir, uma semana, no domingo daria a resposta, e desde já lhe dizia que a idéia não me parecia má.

-- Não?

--Pois resolvamos hoje mesmo.

--Não se vai a Roma brincando.

--Quem tem boca vai a Roma, e boca no nosso caso é a moeda. Ora, você pode muito bem gastar consigo... Comigo,
não;
um par de calças, três camisas e o pão diário, não preciso mais. Serei como S. Paulo, que vivia do ofício enquanto ia
pregando a palavra divina. Pois eu vou, não pregá-la, mas buscá-la. Levaremos cartas do internúncio e do bispo,
cartas para
o nosso ministro, cartas de capuchinhos... Bem sei a objeção que se pode opor a esta idéia; dirão que é dado pedir a
dispensa cá de longe; mas, além do mais que não digo, basta refletir que é muito mais solene e bonito ver entrar no
Vaticano,
e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do favor, o levita prometido, que vai pedir para sua mãe terníssima e
dulcíssima a dispensa de Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apóstolos; Sua Santidade, com
o
sorriso evangélico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda ao
santíssimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na terra seja igualmente
amado
no céu...

Não digo mais, porque é preciso acabar o capítulo, e ele não acabou o discurso. Falou a todos os meus sentimentos de


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católico e de namorado. Vi a alma aliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e
ele
conosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu só geograficamente sabia onde ficava; espiritualmente,
também, mas a distancia que estaria da vontade de Capitu é que não. Eis o ponto essencial. Se Capitu achasse longe,
não
iria- mas era preciso ouvi-la, e assim também a Escobar, que me daria um bom conselho.

CAPÍTULO XCVI / UM SUBSTITUTO

Expus a Capitu a idéia de José Dias. Ouviu-me atentamente. e acabou triste.

--Você indo, disse ela, esquece-me inteiramente.

--Nunca!

--Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Itália principalmente. Não é de lá que vêm as cantoras? Você
esquece-me,
Bentinho. E não haverá outro meio? D. Glória está morta para que você saia do seminário.

--Sim, mas julga-se presa pela promessa.

Capitu não achava outra idéia, nem acabava de adotar esta. De caminho, pediu-me que, se acaso fosse a Roma,
jurasse que
no fim de seis meses estaria de volta.

--Juro.

--Por Deus?

--Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis meses estarei de volta.

Mas se o papa não tiver ainda soltado a você? Mando dizer isso mesmo.

E se você mentir?

Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse Capitu meteu o negócio à bulha, rindo e
chamando-me
disfarçado Depois, declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim não consentiu logo; ia ver se não
haveria
outra cousa. e eu que visse também por meu lado.

Quando voltei ao seminário, contei tudo ao meu amigo Escobar que me ouviu com igual atenção e acabou com a
mesma
tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quase me comeram de contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um
clarão,
um reflexo de idéia e ouvi-lhe dizer com volubilidade:

--Não, Bentinho, não é preciso isso. Há melhor, --não dizia melhor, porque o Santo Padre vale sempre mais que
tudo,--mas
ha cousa que produz o mesmo efeito.


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-- Que é?

--Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ela
pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que
você...

--Entendo, entendo, é isso mesmo.

--Não acha? continuou ele. Consulte sobre isto o protonotário: ele lhe dirá se não é a mesma cousa, ou eu mesmo
consulto,
se quer e se ele hesitar, fala-se ao Sr. bispo.

Eu, refletindo:

--Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se perdendo o padre.

Escobar observou que, pelo lado econômico, a questão era fácil minha mãe gastaria o mesmo que comigo, e um órfão
não
precisaria grandes comodidades. Citou a soma dos aluguéis das casas, ... 1.070$000, além dos escravos...

--Não há outra cousa, disse eu.

--E saímos juntos.

--Você também?

--Também eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O próprio latim não é preciso; para que no
comércio?

--In hoc signo vinces, disse eu rindo.

Sentia-me pilhérico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo gostar da resposta. Depois ficamos a
cuidar de nós mesmos, cada um com os seus olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim. quando tornei de
longe,
e agradeci de novo o plano lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me contentíssimo.

-- Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religião c a liberdade fazem boa companhia.

CAPÍTULO XCVII / A SAÍDA

Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou cedendo, depois que o Padre Cabral, tendo
consultado o bispo. voltou a dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminário no fim to ano.

Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e
chego
quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas,
capítulo
sobre capítulo, pousa emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por
anos, e


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assim chegaremos ao fim. Um dos sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos
dezessete
anos. Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a
metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não diria mal. O
que
essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a
análise das
minhas emoções daquele tempo é que entrava no meu plano. Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já,
debaixo
do recolhimento casto, uns assomos de petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças
que na
rua ou da janela não me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais
perto a
minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.

CAPÍTULO XCVIII / CINCO ANOS

Venceu a razão; fui-me aos estudos.

Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dous era bacharel em Direito.

Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; ainda assim os cabelos brancos vinham de má
vontade, aos poucos e espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Já
não
andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava
mais
idosa. José Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha graduação, e descer comigo a
serra,
lépido e viçoso, como se o bacharel fosse ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que
quis
dar demissão da vida.

Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro anos em uma das primeiras casas do Rio de
Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele afagara a idéia de convidar minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal
idéia
houve, cumpre não esquecer a grande diferença de idade. Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus
primeiros
tentamens comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que
pôde,
não sem este remoque: "D. Glória é medrosa e não tem ambição."

A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me
muito no
nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a
ambos nós,
como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de
respeito de criança. Venceu Escobar posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das
outras.
Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou,--adivinha com quem,--casou com a boa Sancha a
amiga


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de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a "sua cunhadinha." Assim se
formam as
afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.

CAPÍTULO XCIX / O FILHO É A CARA DO PAI

Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o
evangelho
de São João, e dizendo ao ver-nos abraçados:

-- Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!

Minha mãe, entre lágrimas:

-- Mano Cosme, é a cara do pai, não é?

--Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E
diga-me
agora mana Glória, não foi melhor que ele não teimasse em ser padres Veja se este peralta daria um padre capaz.

--Como vai o meu substituto?

--Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Hás de ir ver a ordenação; eu também, se o meu senhor
coração
consentir. É bom que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.

--Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Olha,
Bentinho,
olha bem para mim. Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais. O bigode é que desfaz um pouco...

--Sim, mana Glória, o bigode realmente... mas é muito parecido.

E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever Tio Cosme, para alegrá-la, chamava-me doutor, José
Dias
também, e todos em casa, a prima, os escravos, as visitas, Pádua, a filha, e ela mesma repetiam-me o título.

CAPÍTULO C / "TU SERÁS FELIZ, BENTINHO"

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na glória.
Via o
casamento e a carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. Uma fada invisível desceu ali, e me
disse em
voz igualmente macia e cálida: "Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz."

--E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitando-me.

--Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também. espanta

--Ouviu o quê?



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--Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?

--É boa! Você mesmo é que está dizendo...

Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos,
meteram-se
no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima
das
feiticeiras da Escócia: "Tu serás rei, Macbeth!" -- "Tu serás feliz, Bentinho!" Ao cabo, é a mesma predição, pela mesma
toada universal e eterna. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias:

-- Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali está, que não é favor de ninguém. A
distinção que
tirou em todas as matérias é prova disso; já lhe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios.
Demais, a felicidade não é só a glória, é também outra cousa... Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre
José
Dias está aí para um canto, é caju chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é
moço
muito distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho também sabe amar...

--Mas que é?

--Que há de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquela intimidade de vizinhos tinha de acabar nisto, que é
verdadeiramente
uma bênção do céu, porque ela é um anjo, é um anjíssimo... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a
perfeição daquela moça. Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não
vi que
essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce... Por que é que não me
contou
também o que outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e aprovado?

--Mamãe aprova deveras?

--Pois então? Temos falado sobre isso, e ela fez-me o favor de pedir a minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe
disse
em termos claros e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia desejar melhor nora para si, boa, discreta,
prendada,
amiga da gente... e uma dona de casa, que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo. Pádua,
agora
que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e entregá-lo à filha. A filha é que distribui o dinheiro, paga as
contas,
faz o rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a viu o ano passado. E quanto à formosura
você sabe
melhor que ninguém...

--Mas, deveras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento?

--Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitu não daria uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em
nora.
D. Glória não negou e até deu um ar de riso.


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--Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitu.

--Você sabe que elas se dão muito, e por isso é que sua prima anda cada vez mais amuada. Talvez agora case mais
depressa.

--Prima Justina?

--Não sabe? São contos, naturalmente; mas enfim, o Doutor João da Costa enviuvou há poucos meses, e dizem (não
sei, o
protonotário é que me contou) dizem que os dous andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si, casando-se.
Há de
ver que não ha nada, mas não é fora de propósito, contanto ela sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos...
Só se
ela é um cemitério, comentou rindo; e logo sério: Digo isto por gracejo...

Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me repetia mas já então sem palavras: "Tu serás feliz,
Bentinho!"
E a voz de Capitu me disse a mesma cousa, com termos diversos, e assim também a de Escobar, os quais ambos me
confirmaram a notícia de José Dias pela sua própria impressão. Enfim, minha mãe, algumas semanas depois, quando
lhe fui
pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redação própria de mãe: "Tu serás
feliz, meu
filho!

CAPÍTULO CII/ NO CÉU

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte;
casemo-nos.
Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho
de
noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas
daqui
a muitos séculos. Foi grande fineza e não foi única. S. Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele,
fez-nos
entrar, e depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: "As mulheres sejam
sujeitas a
seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está
escondido no coração... Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais
fracos, e herdeiras convosco da graça da vida..." Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do
cântico, tão
concertadamente, que desmentiriam a hipótese do tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no céu. A
música ia
com o texto, como se houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner. Depois, visitamos uma parte
daquele
lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.

Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho, nada mais natural a um ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e
Escritura. A verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por
exemplo:


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"Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado." Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que estava
por
tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria
sempre
as mais finas rendas deste mundo.

CAPÍTULO CII / DE CASADA

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O pêndulo
iria de
um lado para outro mas nenhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.

De quando em quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos em relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas
isso
mesmo era um modo de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os anos
da
adolescência, a denúncia que está nos primeiros capítulos, e ríamos de José Dias que conspirou a nossa desunião, e
acabou
festejando o nosso consórcio. Uma ou outra vez, falávamos em descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de
chuva ou
de sol, e nós esperávamos um dia encoberto, que teimava em não vir.

Não obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por descer. Concordava em ficar, mas ia falando do pai e
de
minha mãe, da falta de notícias nossas, disto e daquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se já
estava
aborrecida de mim.

--Eu?

--Parece.

--Você há de ser sempre criança, disse ela fechando-me a cara entre as mãos e chegando muito os olhos aos meus.
Então eu
esperei tantos anos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque é realmente assim, creio que eles
podem estar desejosos de, ver-nos e imaginar alguma doença, e, confesso, pela minha parte, que queria ver papai.

--Pois vamos amanhã.

--Não; há de ser com tempo encoberto, redargüiu rindo.

Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciência continuou, e descemos com sol.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o
braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo
estado.
Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando
eu me
vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma cousa. Inventava passeios para que
me


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vissem, me confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns
perguntavam:
"Quem são?" e um sabido explicava: "Este é o Doutor Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina,
depois
de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Mata-cavalos." E ambos os dous: "A uma
mocetona!"

CAPÍTULO CIII / A FELICIDADE TEM BOA ALMA

Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a única pessoa cá de baixo que nos visitou na Tijuca, levando
abraços dos
nossos e palavras suas, mas palavras que eram músicas verdadeiras; não as ponho aqui para ir poupando papel, mas
foram
deliciosas. Um dia. comparou-nos a aves criadas em dous vãos de telhados contíguos. Imagina o resto, as aves
emplumando
as asas e subindo ao céu, e o céu agora mais largo para poder contê-las também. Nenhum de nós riu, ambos
escutávamos
comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... A felicidade tem boa alça.

CAPÍTULO CIV / AS PIRÂMIDES

José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os jantares da Glória com os almoços de Mata-cavalos.
Tudo
corria bem.

Ao fim de dous anos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, é
verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas a saúde de minha mãe era boa; a nossa excelente.

Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando. Escobar contribuíra muito para as minhas
estréias
no foro. Interveio com um advogado célebre para que me admitisse à sua banca, e arranjou-me algumas procurações,
tudo
espontaneamente.

Demais, as nossas relações de família estavam previamente feitas; Sancha e Capitu continuavam depois de casadas a
amizade
da escola, Escobar e eu a do seminário. Eles moravam em Andaraí, aonde que riam que fôssemos muitas vezes, e, não
podendo ser tantas como desejávamos, íamos lá jantar alguns domingos, ou eles vinham fazê-lo conosco. Jantar é
pouco,
íamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para gozarmos o dia compridamente, e só nos separávamos às
nove, dez
e onze horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naqueles dias de Andaraí e da Glória, sinto que a vida e o
resto
não sejam tão rijos como as Pirâmides.

Escobar e a mulher viviam felizes, tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de
teatro,
não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como
eu um
dia dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:


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--Homem, deixa lá. Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem
no
céu.

--Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.

--Virá, se for necessário.

Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedi-lo. Já não era como
em
criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da casa.

CAPÍTULO CV / OS BRAÇOS

No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros tempos, quando íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da gaiola. Arranjava-se com graça e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras moças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que prometi não comprar.


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