quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Dom Casmurro - P4de4 - Machado de Assis


Dom Casmurro - P4de4 - Machado de Assis

Dom Casmurro  - Machado de Assis




No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros tempos, quando íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da gaiola. Arranjava-se com graça e modéstia. Embora gostasse de jóias,como as outras moças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que prometi não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo.


A nossa vida era mais ou menos plácida. Quando não estávamos com a família ou com amigos, ou se não íamos a algum espetáculo ou serão particular (e estes eram raros) passávamos as noites à nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. As vezes, eu contava a Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco.

Não sabendo piano, aprendeu depois de casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas casas de

amizade. Na Glória era uma das nossas recreações; também cantava, mas pouco e raro, por não ter voz;

um dia  chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o alvitre. De dançar gostava, e

enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que... Os braços merecem um período.

Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade,

nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda

no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me

encheram de desvane acontecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais

que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. lá não foi assim no segundo baile;

nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e

que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o

apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios, concordou logo comigo.

--Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas;


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o contrário parece-me indecente.

--Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitu já me chamou assim.

Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar.

Ela sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao

baile; a outros
foi, mas
levou-os meio vestidos de escumilha ou não sei que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o

cendal de
Camões.

CAPÍTULO CVI / DEZ LIBRAS ESTERLINAS

Eu já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro mas também de cousas usadas,

dessas que se
guardam
por tradição, por lembrança ou por saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas

pretas que se
cruzavam no peito do pé e princípio da perna, os últimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para

casa, e
tirava-os
de longe em longe da gaveta da cômoda, com outras velharias, dizendo-me que eram pedaços de criança.

Minha mãe,
que
tinha o mesmo gênio, gostava de ouvir falar e fazer assim. Quanto às puras economias de dinheiro, direi

um caso, e
basta.

Foi justamente por ocasião de uma lição de astronomia, à Praia da Glória. Sabes que alguma vez a fiz

cochilar um
pouco.
Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes.

--Você não me ouve, Capitu.

--Eu? Ouço perfeitamente.

--O que é que eu dizia?

--Você...você falava de Sírius.

--Qual Sírius, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírius.

--Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.

Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da palavra, não o sentido. Fiquei sério, e o

ímpeto que
me deu
foi deixar a sala, Capitu, ao percebê-lo, fez-se a mais mimosa das criaturas, começou-me na mão,

confessou-me que
estivera
contando, isto é, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava. Tratava-se de uma

conversão
de
papel em ouro. A princípio supus que era um recurso para desenfadar-me, mas daí a pouco estava eu

mesmo
calculando
também, já então com papel e lápis, sobre o joelho, e dava a diferença que ela buscava.



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-- Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim.

Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha. Ergueu-se, foi ao quarto e

voltou com
dez
libras esterlinas, na mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despesas.

-- Tudo isto?

--Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde arranjar, em alguns meses, concluiu

fazendo tinir o
ouro
na mão.

-- Quem foi o corretor?

-- O seu amigo Escobar.

--Como é que ele não me disse nada?

--Foi hoje mesmo.

-- Ele esteve cá?

--Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse.

Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente comemorativo, mas Capitu deteve-me. Ao

contrário,
consultou-me sobre o que havíamos de fazer daquelas libras.

--São suas, respondi.

--São nossas, emendou.

--Pois você guarde-as.

No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazém, e ri-me do segredo de ambos. Escobar sorriu e disse-

me que estava
para
ir ao meu escritório contar-me tudo. A cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitu) tinha-lhe falado

naquilo por
ocasião
da nossa última visita a Andaraí, e disse-lhe a razão do segredo.

--Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada:

"Como é que Capitu pode economizar, agora que tudo está tão caro?"--"Não sei, filha; sei que arranjou

dez libras."

--Vê se ela aprende também.

--Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas também não poupada; o que lhe dou chega, mas só chega.

Eu, depois de alguns instantes de reflexão:

--Capitu é um anjo!


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Escobar concordou de cabeça, mas sem entusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo da

mulher. Assim
pensarias m também, tão certo é que as virtudes das pessoas próximas nos dão te ou qual vaidade,

orgulho ou
consolação.

CAPÍTULO CVII / CIÚMES DO MAR

Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras de Capitu; mas não é por isso que

torno a ela, é
para
que não cuides que a vaidade de professor é que me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter

ciúmes do mar.
Não,
meu amigo. Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não

fora ou
acima dela.
É sabido que as distrações de uma pessoa podem ser culpadas, metade culpadas, um terço, um quinto,

um décimo de
culpadas, pois que em matéria de culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta

para fixar
outros que
os recordem e se deleitem com a imaginação deles. Não é mister pecado efetivo e mortal, nem papel

trocado, simples
palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miúdo e leve. Um anônimo ou anônima que passe na esquina

da rua faz
com que
metamos Sírius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferença que há de um a outro na distancia e no

tamanho, mas a
astronomia tem dessas confusões. Foi isto que me fez empalidecer, calar e querer fugir da sala para

voltar, Deus sabe
quando; provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano

ou à janela,
continuando a lição interrompida:

--Marte está a distancia de...

Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com

pouco
derrubaria
tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e as estrelas.

A verdade é que fiquei mais amigo de Capitu, se era possível, ela ainda mais meiga, o ar mais brando, as

noites mais
claras, e
Deus mais Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que fizeram isto, nem o sentimento

de economia
que
revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitu empregou para o fim de descobrir-me um dia o

cuidado de
todos
os dias. Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais

próximas, e as
nossas
conversações mais íntimas.

CAPÍTULO CVIII / UM FILHO

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse, amarelo e magro, mas um

filho, um
filho
próprio da minha pessoa. Quando íamos a Andaraí e víamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente

Capituzinha,
por
diferençá-la de minha mulher, visto que lhe deram o mesmo nome à pia, ficávamos cheios de invejas. A

pequena era
graciosa
e gorducha, faladeira e curiosa. Os pais, como os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da

menina, e nós,
quando


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voltávamos à noite para a Glória, vínhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo mentalmente ao

céu que no-las
matasse...

...As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que viesse ao mundo o fruto delas. Não

era escasso nem
feio,
como eu já pedia, mas um rapagão robusto e lindo.

A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la; nunca a tive igual, nem creio que a possa haver

idêntica, ou que de
longe
ou de perto se pareça com ela. Foi uma vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha,

nem em
casa para
não afligir Capitu convalescente. Também não caía, porque há um deus para os pais novos. Fora, vivia

com o espírito
no
menino; em casa, com os olhos a observá-lo, a mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu

estava tão
inteiramente nele, e várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante.

Talvez perdi
algumas
causas no toro por descuido.

Capitu não era menos terna para ele e para mim. Dávamos as mãos um ao outro, e, quando não

olhávamos para o
nosso
filho, conversávamos de nós, do nosso passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto e mistério

eram as de
amamentação. Quando eu via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquela união da natureza para

a nutrição
e vida de
um ser que não fora nada, mas que o nosso destino afirmou que seria, e a nossa constância e o nosso

amor fizeram
que
chegasse a ser. ficava que não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o que

dissesse me saísse
escuro. Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a dedicação da minha mãe e de Sancha, que

também foi
passar
com Capitu os primeiros dias e noites. Quis rejeitar o obséquio de Sancha; respondeu me que eu não

tinha nada com
isso;
também Capitu, em solteira, fora tratá-la à Rua dos Inválidos.

--Não se lembra que o senhor foi lá vê-la?

--Lembra-me; mas Escobar...

--Eu virei jantar com vocês, e às noites sigo para Andaraí; oito dias, e está tudo passado. Bem se vê que

você é pai de
primeira viagem.

--Também você- onde está a segunda?

Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há

tal linguagem,
mas
deve haver. Escobar cumpriu o que disse; jantava conosco, e ia-se à noite. Sobre tarde descíamos à praia

ou íamos ao
Passeio Público, fazendo ele os seus cálculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho médico, advogado,

negociante,
meti-o
em várias universidades e bancos, e até aceitei a hipótese de ser poeta. A possibilidade de político foi

consultada, e cri
que
me saísse orador, e grande orador.



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--Pode ser, redargüia Escobar; ninguém diria o que veio a se Demóstenes.

Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o futuro. Chegou a falar da

hipótese de
casar o
pequeno com a filha. A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-

lhe isto, e na
total
ausência de palavras com que ali assinei o pacto, estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo

coração, que batia
com
grande força. Aceitei a lembrança, e propus que os encaminhássemos a este fim, pela educação igual e

comum, pela
infância
unida e correta.

Era minha idéia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e seria minha mãe. Mas a

primeira
parte se
trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao ver a criança, disse-lhe entre outros carinhos:

--Anda, toma a bênção a teu padrinho, velhaco.

E, voltando-se para mim:

--Não desisto do favor; e há de ser depressa o batizado, antes que a minha doença me leve de vez.

Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me compreendesse e desculpasse; riu-se e não

se magoou. Fez
mais, quis que o almoço do batizado fosse na chácara dele, e foi. Eu ainda tentei espaçar a cerimônia a

ver se tio
Cosme
sucumbia primeiro à doença, mas parece que esta era mais de aborrecer que de matar. Não houve

remédio senão levar
o
menino à pia, onde se lhe deu o nome de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta

de compadrio.

CAPÍTULO CIX / UM FILHO ÚNICO

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda gerado; quando acabou era cristão e

católico. Este outro
é
destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos cinco anos, um rapagão bonito, com os seus olhos claros,

já inquietos,
como se
quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase todas.

Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum outro veio, certo nem incerto, morto nem vivo, um

só e único,
imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos que nos tirou, e que sustos nos meteram as crises dos

dentes e outras, a
menor
febrícula, toda a existência comum das crianças. A tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, cousa que

não era
necessário
dizer, mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.

CAPÍTULO CX / RASGOS DA INFÂNCIA

O resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm menos, e fazem-se ainda assim completas

e acabadas.

Aos cinco e seis anos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos da Praia da Glória- ao contrário,
adivinhavam-se nele


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todas as vocações possíveis, desde vadio até apóstolo. Vadio é aqui posto no bom sentido, no sentido de

homem que
pensa
e cala; metia-se às vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim também, agitava-

se todo e
instava por
ir persuadir às vizinhas que os doces que eu lhe trazia eram doces deveras; não o fazia antes de farto

deles, mas
também os
apóstolos não levam a boa doutrina senão depois de a terem toda no coração. Escobar, bom negociante,

opinava que
a
causa principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar implicitamente as vizinhas a igual

apostolado, quando os
pais lhe
trouxessem doces; e ria-se da própria graça, e anunciava-me que o fana seu sócio.

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe tirasse ao piano o pregão do

preto das cocadas
de
Matacavalos...

--Não me lembra.

--Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce, às tardes...

--Lembra-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada.

-- Nem das palavras?

--Nem das palavras.

A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada de

tamanho
esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infância e adolescência haverá

olvidado algumas,
mas nem
tudo fica na cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela não esperava;

corri aos meus
papéis velhos. Em S. Paulo, quando estudante, pedi a um professor de música que me transcrevesse a

toada do
pregão; ele o
fez com prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o papelinho; fui procurá-lo. Daí a pouco

interrompi
um
romance que ela tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lho- ela teclou as dezesseis notas.

Capitu achou à toada um sabor particular, quase delicioso- contou ao filho a história do pregão, e assim o

cantava e
teclava.
Ezequiel aproveitou a música para pedir-me que desmentisse o texto dando-lhe algum dinheiro.

Fazia de médico de militar, de ator e bailarino. Nunca lhe dei oratórios; mas cavalos de pau e espada à

cinta eram com
ele.
Já não falo dos batalhões que passavam na rua, e que ele corria a ver; todas as crianças o fazem. O que

nem todas
fazem é
ter os olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ansias de gosto com que assistia à passagem da tropa e

ouvia tocar a
marcha
dos tambores.

-- Olha, papai! olha!



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--Estou vendo, meu filho!

-- Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os soldados!

Um dia amanheceu tocando corneta com a mão- dei-lhe uma cornetinha de metal. Comprei-lhe

soldadinhos de
chumbo,
gravuras de batalhas que ele mirava por muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça de

artilharia, um soldado
caído,
outro de espada alçada, e todos os seus amores iam para o de espada alçada. Um dia (ingênua idade!),

perguntou-me
impaciente:

-- Mas, papai, por que é que ele não deixa cair a espada de uma vez?

-- Meu filho, é porque é pintado.

-- Mas então por que é que ele se pintou?

Ri-me do engano e expliquei-lhe que não era o soldado que se tinha pintado no papel, mas o gravador, e

tive de
explicar
também o que era gravador e o que era gravura: as curiosidades de Capitu, em suma.

Tais são os principais rasgos da infância: mais um e acabo o capítulo Um dia. na chácara de Escobar,

deu com um
gato que
tinha um rato atravessado na boca. O gato nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel não

disse nada,
deteve-se, acocorou-se, e ficou olhando. Ao vê-lo assim atento, perguntamos-lhe de longe o que era; fez-

nos sinal que
nos
calássemos. Escobar concluiu:

--Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-me a casa, que é o diabo.

Vamos ver
Capitu
quis também ver o filho; acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um rato, lance banal, sem interesse

nem graça.
A única
circunstancia particular era estar o rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o

instante foi curto. O
gato,
logo que sentiu mais gente, dispôs-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos de cima, fez-nos outro

sinal de silêncio; e
o
silêncio não podia ser maior. Ia dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por

significar a
totalidade do silêncio, mas também porque havia naquela ação do gato e do rato alguma cousa que

prendia com
ritual. O
único rumor eram os últimos guinchos do rato, aliás frouxíssimos- as pernas mal se lhe moviam e

desordenadamente.
Um
tanto aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o gato fugiu. 0s outros nem tiveram tempo de

atalhar-me,
Ezequiel
ficou abatido.

--Ora, papai!

--Que foi? A esta hora o rato está comido.

--Pois sim, mas eu queria ver.


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Os dous riram-se; eu mesmo achei-lhe graça.

CAPÍTULO CXI / CONTADO DEPRESSA

Achei-lhe graça, e não lhe nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos sucessos ocorridos, e da tal

ou qual
simpatia ao
rato que acho em mim; teve graça. Não me pesa dizê-lo; os que amam a natureza como ela quer ser

amada, sem
repúdio
parcial nem exclusões injustas, não acham nela nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei

em os fazer
viver
juntos, mas vi que são incompatíveis. Em verdade, um rói-me os livros, outro o queijo; mas não é muito

que eu lhes
perdoe,
se já perdoei a um cachorro que me levou o descanso em piores circunstancias. Contarei o caso

depressa.

Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé dela, e três cães na rua latiam

toda a noite.
Procurei
o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então resolvi matá-los; comprei

veneno, mandei
fazer três
bolas de carne, e eu mesmo inseri nelas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente. nem a

enfermeira podiam
dormir,
com a bulha dos cães. Quando eles me viram, afastaram-se, dous desceram para o lado da Praia do

Flamengo, um
ficou a
curta distancia, como que esperando. Fui-me a ele, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O

diabo ainda latiu,
mas
fiado nos sinais de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como eu continuasse, ele veio a

mim, devagar,
mexendo a cauda, que é o seu modo de rir deles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia deitar-

lhe uma delas,
quando
aquele riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei

como, tocado
de
pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor pode parecer que foi o cheiro da carne que remeteu o cão ao

silêncio. Não
digo
que não; eu cuido que ele não me quis atribuir perfídia ao gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se

livrou.

Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, suponho, mas não as recusaria também. O que

faria com
certeza
era ir atrás dos cães, a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a pau. Capitu

morria por
aquele
batalhador futuro.

--Não sai a nós, que gostamos da paz, disse-me ela um dia. mas papai em moço era assim também;

mamãe é que
contava.

--Sim não sairá maricas, repliquei, eu só lhe descubro um defeitozinho gosta de imitar os outros.

--Imitar como?

--Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um jeito

dos pés de
Escobar e
dos olhos...


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Capitu deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era preciso emendá-lo. Agora

reparava que
realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe que era só imitar por imitar, como sucede a muitas pessoas

grandes, que
tomam
as maneiras dos outros; e para que não fosse mais longe...

--Também não vamos mortificá-lo. Sempre há tempo de corrigi-lo.

--Há, vou ver. Você também não era assim, quando se zangava com alguém...

--Quando me zangava, concordo; vingança de menino.

--Sim, mas eu não gosto de imitações em casa.

--E naquele tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face.

A resposta de Capitu foi um riso doce de escárnio, um desses risos que não se descrevem, e apenas se

pintarão, depois
estirou os braços e atirou-mos sobre os ombros, tão cheios de graça que pareciam (velha imagem!) um

colar de flores.
Eu fiz
o mesmo aos meus, e senti não haver ali um escultor que nos transferisse a atitude a um pedaço de

mármore. Só
brilharia o
artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo saem bem, ninguém quer saber de modelo, mas da

obra, e a obra é
que
fica. Não importa; nós saberíamos que éramos nós.

CAPÍTULO CXIII / EMBARGOS DE TERCEIRO

Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela, não continuei a sê-lo apesar

do filho e dos
anos.
Sim. senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma

insistência
qualquer;
muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de

valsa, qualquer
homem,
moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. É certo que Capitu gostava de ser vista, e o meio

mais próprio
a tal
fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver também, e não há ver sem mostrar que se vê.

A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por não achar da minha parte
correspondência aos
seus afetos que me explicou daquela maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam

também, não
muitos, e
não digo nada sobre eles, tendo aliás confessado a princípio as minhas aventuras vindouras, mas eram

ainda
vindouras.
Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que

tinha a
Capitu. A
minha própria mãe não queria mais que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem

trabalhava que não
fosse
pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de

ator, e uma
estréia de
ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse. Era tarde para mandar o

camarote a


[Linha 6200 de 7623 - Parte 4 de 4]


Escobar, saí,
mas voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.

--Vinha falar-te, disse-me ele.

Expliquei-lhe que tinha saído para o teatro donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.

--Doente de quê? perguntou Escobar.

--Queixava-se da cabeça e do estômago.

--Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...

Eram uns embargos de terceiro; ocorrera um incidente importante, e, tendo ele jantado na cidade, não

quis ir para casa
sem
dizer-me o que era, mas já agora falaria depois...

--Não, falemos já, sobe; ela pode estar melhor. Se estiver pior, desces.

Capitu estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas

agravara o
padecimento
para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar que mentia, para me não meter

medo, mas
jurou
que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse:

--A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos.

CAPÍTULO CXIV / EM QUE SE EXPLICA O EXPLICADO

Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou explicado, mas não bem explicado.

Viste que eu
pedi
(cap. CX) a um professor de música de S. Paulo que me escrevesse a toada daquele pregão de doces de

Mata-cavalos.
Em
si, a matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto mais dous; mas há matérias tais que

trazem
ensinamentos
interessantes, senão agradáveis. Expliquemos o explicado.

Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em momento de grande ternura, e o

tabelião divino
sabe as
cousas que se juram em tais momentos, ele que as registra nos livros eternos.

--Você jura?

--Juro, disse ela estendendo tragicamente o braço.

Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminário. Quando fui para S. Paulo, querendo

um dia
relembrar a
toada, vi que a ia perdendo inteiramente; consegui recordá-la e corri ao professor, que me fez o obséquio

de a escrever
no
pedacinho de papel.


[Linha 6250 de 7623 - Parte 4 de 4]



Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas hás de crer que quando corri aos papéis velhos,

naquela noite da
Glória,
também não me lembrava já da toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o

meu pecado;
esquecer, qualquer esquece.

Ao certo, ninguém sabe se há de manter ou não um juramento. Cousas futuras! Portanto, a nossa

constituição política,
transferindo o juramento à afirmação simples, é profundamente moral. Acabou com um pecado terrível.

Faltar ao
compromisso é sempre infidelidade, mas a alguém que tenha mais temor a Deus que aos homens não

lhe importará
mentir,
uma vez ou outra, desde que não mete a alma no purgatório. Não confudam purgatório com inferno, que é

o eterno
naufrágio. Purgatório é uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo

curto. Mas os
prazos renovam-se, até que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam todos os pecados grandes e

pequenos.

CAPÍTULO CXV / DÚVIDAS SOBRE DÚVIDAS

Vamos agora aos embargos... E por que iremos aos embargos? Deus sabe o que custa escrevê-los,

quanto mais
contá-los.
Da circunstancia nova que Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não valia

nada.

--Nada?

--Quase nada.

--Então vale alguma cousa.

-- Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você vai tomar comigo.

--É tarde para tomar chá.

--Tomaremos depressa.

Tomamos depressa. Durante ele, Escobar olhava para mim descer fiado, como se cuidasse que eu

recusava a
circunstancia
nova para forrar-me a escrevê-la, mas tal suspeita não ia com a nossa amizade.

Quando ele saiu, referi as minhas dúvidas a Capitu; ela as desfez com a arte fina que possuía, um jeito

uma graça
toda sua,
capaz de dissipar as mesmas tristezas de Olímpio.

--Seria o negócio dos embargos, concluiu; e ele que veio até aqui. a esta hora, é que está impressionado

com a
demanda.

--Tens razão.

Palavra puxa palavra, falei de outras dúvidas. Eu era então um poço delas; coaxavam dentro de mim,

como
verdadeiras rãs,
a ponto de me tirarem o sono algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e

arredia com
ela.
Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu.


[Linha 6300 de 7623 - Parte 4 de 4]



--Já disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãezinha tem ciúmes de você; logo que eles passem e as

saudades
aumentem, ela torna a ser o que era. Em lhe faltando o neto...

--Mas eu tenho notado que já é fria também com Ezequiel Quando ele vai comigo, mamãe não lhe faz as

mesmas
graças.

--Quem sabe se não anda doente?

--Vamos nós jantar com ela amanhã?

--Vamos... Não... Pois vamos.

Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os seus cabelos brancos não o

fossem todos
nem
totalmente, e o rosto estivesse comparativamente fresco- era uma espécie de mocidade qüinquagenária

ou de
ancianidade
viçosa, à escolha... Mas nada de melancolias; não quero falar dos olhos molhados, à entrada e à saída.

Pouco entrou
na
conversação. Também não era diferente da costumada. José Dias falou do casamento e suas belezas, da

política, da
Europa
e da homeopatia, tio Cosme das suas moléstias, prima Justina da vizinhança, ou de José Dias, quando

este saía da
sala.

Quando voltamos, à noite, viemos por ali a pé, falando das minhas dúvidas. Capitu novamente me

aconselhou que
esperássemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava,

recrudescia de ternura.
Dali
em diante foi cada vez mais doce comigo; não me ia esperar à janela, para não espertar-me os ciúmes,

mas quando eu
subia,
via no alto da escada, entre as grades da cancela, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha

como toda a
nossa
infância. Ezequiel às vezes estava com ela; nós o havíamos acostumado a ver o ósculo da chegada e da

saída. e ele
enchia-me a cara de beijos.

CAPÍTULO CXVI / FILHO DO HOMEM

Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado. Não havia nada, nem podia

haver cousa
nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que ele ouvia "à bela e virtuosa Capitu."

--Agora, quando os ouço, entro também no coro, mas a princípio ficava envergonhadíssimo. Para quem

chegou, como
eu, a
arrenegar deste casamento, era duro confessar que ele foi uma verdadeira bênção do céu. Que digna

senhora nos saiu
a
criança travessa de Mata-cavalos. O pai é que nos separou um pouco, enquanto não nos conhecíamos,

mas tudo
acabou em
bem. Pois, sim, senhor, quando D. Glória elogia a sua nora e comadre...

--Então mamãe?...

--Perfeitamente!


[Linha 6350 de 7623 - Parte 4 de 4]



--Mas, por que é que não nos visita há tanto tempo?

--Creio que tem andado mais achacada dos seus reumatismos. Este ano tem feito muito frio... Imagine a

aflição dela,
que
andava o dia inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que lá tem o seu mal...

Quis observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza quando íamos nós a

Mata-cavalos;
mas não
estendi tão longe a intimidade do agregado. José Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim

chamava a
Ezequiel) e
fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo bíblico (estivera na véspera a folhear o livro de

Ezequiel, como
soube
depois) e perguntava-lhe: "Como vai isso, filho do homem?" "Dize-me, filho do homem, onde estão os

teus
brinquedos?"
"Queres comer doce, filho do homem?"

--Que filho do homem é esse? perguntou-lhe Capitu agastada.

--São os modos de dizer da Bíblia.

--Pois eu não gosto deles, replicou ela com aspereza.

--Tem razão, Capitu, concordou o agregado. Você não imagina como a Bíblia é cheia de expressões cruas

e grosseiras.
Eu
falava assim para variar... Tu como vais, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua?

--Não, atalhou Capitu; já lhe vou tirando esse costume de imitar os outros.

--Mas tem muita graça; a mim, quando ele copia os meus gestos, parece-me que sou eu mesmo,

pequenino. Outro dia
chegou a fazer um gesto de D. Glória, tão bem que ela lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu

ando?

--Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer.

Eu mesmo achava feio tal sestro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das

mãos e pés de
Escobar,
ultimamente, até apanhara o modo de voltar a cabeça deste, quando falava, e o de deixá-la cair, quando

ria. Capitu
ralhava.
Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começamos a falar de outra cousa, saltou ao meio da

sala, dizendo
a José
Dias:

--O senhor anda assim.

Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguém. A primeira pessoa que fechou a cara, que o repreendeu

e chamou a
si foi
Capitu.

--Não quero isso, ouviu?



[Linha 6400 de 7623 - Parte 4 de 4]


CAPÍTULO CXVII / AMIGOS PRÓXIMOS

Já então Escobar deixara Andaraí e comprara uma casa no Flamengo, casa que ainda ali vi, há dias,

quando me deu
na gana
experimentar se as sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizê-lo bem, porque

os sonos,
quando são
pesados, confundem vivos e defuntos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas pode ser que

fosse do mar,
meio
agitado. Enfim, passei, acendi um charuto, e dei por mim no Catete, tinha subido pela Rua da Princesa,

uma rua
antiga... o
ruas antigas! ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso dizer que no

mau sentido, no
sentido de velho e acabado.

Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo número. Não digo que

número é para
não
irem indagar e cavar a história. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois,

por um modo
que
hei de contar. Enquanto viveu, uma vez que estávamos tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só

casa- eu vivia
na dele,
ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho de uso próprio e

particular.
Fazia-me
pensar nas duas casas de Mata-cavalos, com o seu muro de permeio.

Um historiador da nossa língua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei bárbaro algumas

palavras mansas,
quando
os portugueses lhe propunham estabelecer ali ao pé uma fortaleza, dizia o rei que os bons amigos

deviam ficar longe
uns dos
outros, não perto, para se não zangarem como as águas do mar que batiam furiosas no rochedo que eles

viam dali.
Que a
sombra do escritor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ela seja verdadeira.

Provavelmente
foi o
mesmo escritor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita.

Eu creio que
o mar
então batia na pedra, como é seu costume, desde Ulisses e antes. Agora que a comparação seja

verdadeira é que não.
Seguramente há inimigos contíguos, mas também há amigos de perto e do peito. E o escritor esquecia

(salvo se ainda
não era
do seu tempo) esquecia o adágio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podíamos ter os corações

agora mais
perto.
As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passávamos as noites cá ou lá conversando,

jogando ou
mirando o
mar. Os dous pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Glória.

Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e Capitu, acharam todos que

sim, e
Sancha
acrescentou que até já se iam parecendo. Eu expliquei:

--Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças que se freqüentam muito acabam

parecendo-se
umas com


[Linha 6450 de 7623 - Parte 4 de 4]


as outras. Opinei de cabeça, como me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia

ser. O certo é
que
eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados.

CAPÍTULO CXVIII / A MÃO DE SANCHA

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura muito tempo.

Esta
segunda parte
não acha crentes fáceis, ao contrário, a idéia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento

de que é feito,
dificilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquelas

construções
quase
eternas.

O nosso castelo era sólido, mas um domingo... Na véspera tínhamos passado a noite no Flamengo, não

só os dous
casais
inseparáveis, como ainda o agregado e prima Justina. Foi então que Escobar, falando-me à janela,

disse-me que
fôssemos lá
jantar no dia seguinte; precisávamos falar de um projeto em família, um projeto para os quatro.

--Para os quatro? Uma contradança.

--Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã.

Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janela. Quando o marido saiu, veio ter

comigo.
Perguntou-me de que é que faláramos- disse-lhe que de um projeto que eu não sabia qual fosse, ela

pediu-me segredo e
revelou-me o que era: uma viagem à Europa dali a dous anos. Disse isto de costas para dentro, quase

suspirando. O
mar
batia com grande força na praia; havia ressaca.

--Vamos todos? perguntei por fim.

--Vamos.

Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças às relações dela e Capitu, não

se me daria
beijá-la na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraterais, pareciam

quentes e
intimativos,
diziam outra cousa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar,

pensativo. A noite
era
clara.

Dali mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e

ficaram
diante uns
dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhum passavam. Tal se dá na rua entre

dous teimosos. A
cautela
desligou-nos eu tornei a voltar-me para fora. E assim posto entrei a cavar na memória se alguma vez

olhara para ela
com a
mesma expressão, e fiquei incerto. Tive um certeza só, é que um dia pensei nela, como se pensa na bela

desconhecida
que
passa; mas então dar-se-ia que ela adivinhando... Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fora,

e ela me
fugisse


[Linha 6500 de 7623 - Parte 4 de 4]


outrora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencível... Invencível; esta palavra foi como

uma bênção
de padre
à missa, que a gente recebe e repete em si mesma.

--O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.

--Você entra no mar amanhã?

--Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora

bravia. É preciso
nadar
bem, como eu, e ter estes pulmões disse ele batendo no peito, e estes braços; apalpa.

Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-

la; era jarretar
a
verdade. Nem só os apalpei com essa idéia, mas ainda senti outra cousa, achei-os mais grossos e fortes

que os meus, e
tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar.

Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e

demorou-se mais
que de
costume

A modéstia pedia então, como agora, que eu visse naquele gesto de Sancha uma sanção ao projeto do

marido e um
agradecimento. Assim devia ser. mas o fluido particular que me correu todo o corpo desviou de mim a

conclusão que
deixo
escrita. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de

vertigem e de
pecado.
Passou depressa no relógio do tempo; quando cheguei o relógio ao ouvido, trabalhavam só os minutos

da virtude e da
razão.

-- ...Uma senhora deliciosíssima, concluiu José Dias um discurso que vinha fazendo.

--Deliciosíssima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me: Realmente, uma bela noite!

--Como devem ser todas as daquela casa, continuou o agregado. Cá fora, não, cá fora o mar está

zangado; escute.

Ouvia-se o mar forte,--como já se ouvia de casa,--a ressaca era grande e, a distancia, viam-se crescer as

ondas. Capitu
e
prima Justina, que iam adiante, detiveram-se numa das voltas da praia, e fomos conversando os quatro,

mas eu
conversava
mal. Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos. Agora

achava-lhes isto,
agora
aquilo. Os instantes do Daho intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando

alternativamente a
minha
perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós à porta. Prima Justina dormiu em nossa

casa; iria embora,
no dia
seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei mais que de

costume.

O retrato de Escobar, que eu tinha ali, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a própria pessoa.

Combati
sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo, rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me

desleal.
Demais,


[Linha 6550 de 7623 - Parte 4 de 4]


quem me afirmava que houvesse alguma intenção daquela espécie no gesto da despedida e nos

anteriores? Tudo
podia
ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitu eram tão amigas que seria um prazer mais para

elas irem
juntas.
Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação

fulgurante,
destinada a
morrer com a noite e o sono? Há remorsos que não nascem de outro pecado, nem têm maior duração.

Agarrei-me a
esta
hipótese que se conciliava com a mão de Sancha, que eu sentia de memória dentro da minha mão, quente

e
demorada,
apertada e apertando...

Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a atração. A timidez pode ser que fosse outra causa

daquela crise;
não é
só o céu que dá as nossas virtudes, a timidez também, não contando o acaso, mas o acaso é um mero

acidente; a
melhor
origem delas é o céu. Entretanto, como a timidez vem do céu, que nos dá a compleicão, a virtude, filha

dela, é,
genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim refletiria se pudesse, mas a princípio vaguei à toa.

Paixão não era
nem
insinuação. Capricho seria ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de

Escobar pareceu
falar-me- vi-lhe a atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me.

CAPÍTULO CXIX / NÃO FAÇA ISSO, QUERIDA!

A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa

de hoje,
quer
fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo.

CAPÍTULO CXX / OS AUTOS

Na manhã seguinte acordei livre das abominações da véspera; chamei-lhes alucinações, tomei café,

percorri os jornais
e fui
estudar uns autos. Capitu e prima Justina saíram para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha

desapareceu
inteiramente no meio das alegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, alegações falsas,

inadmissíveis, sem
apoio na
lei nem nas praxes. Vi que era fácil ganhar a demanda- consultei Dalloz, Pereira e Sousa...

Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bela fotografia tirada um ano antes. Estava de pé,

sobrecasaca
abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida ao peito, o olhar ao longe para a

esquerda do
espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita

embaixo,
não nas
costas do cartão: "Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70." Estas palavras

fortaleceram-me os
pensamentos daquela manhã, e espancaram de todo as recordações da véspera. Naquele tempo a minha

vista era
boa; eu
podia lê-las do lugar em que estava. Tornei aos autos.

CAPÍTULO CXXI / A CATÁSTROFE

No melhor deles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram palmas, golpes na

cancela, vozes,
acudiram


[Linha 6600 de 7623 - Parte 4 de 4]


todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava

--Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo.

Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitu e corri ao Flamengo.

Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar meteu-se a na dar, como usava fazer, arriscou-se um

pouco mais
fora que
de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe

o cadáver.

CAPÍTULO CXXII / O ENTERRO

A Viúva... Poupo-vos as lágrimas da viúva, as minhas, as da outra gente. Saí de lá cerca de onze horas;

Capitu e prima
Justina esperavam-me, uma com o parecer abatido e estúpido, outra enfastiada apenas.

--Vão fazer companhia à pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro.

Assim fizemos. Quis que o enterro fosse pomposo, e a afluência dos amigos foi numerosa. Praia, ruas,

Praça da Glória,
tudo
eram carros, muitos deles particulares. A casa não sendo grande, não podiam lá caber todos, muitos

estavam na praia,
falando do desastre, apontando o lugar em que Escobar falecera, ouvindo referir a chegada do morto.

José Dias ouviu
também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens, mas havendo acordo em

que o
passivo devia
ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar, um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco-

estávamos em
março de 1871. Nunca me esqueceu o mês nem o ano.

Como eu houvesse resolvido falar no cemitério, escrevi algumas linhas e mostrei-as em casa a José

Dias, que as achou
realmente dignas do morto e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as

palavras, e
confirmou a
primeira opinião; no Flamengo espalhou a notícia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me:

--Então, vamos ouvi-lo?

--Quatro palavras.

Poucas mais seriam. Tinha-as escrito com receio de que a emoção me impedisse de improvisar. No

tílburi em que andei
uma
ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as relações de Escobar, as nossas

simpatias, a
nossa
amizade, começada, continuada e nunca interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para

sempre duas
criaturas
que prometiam ficar por muito tempo unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro

aventurou duas
ou três
perguntas sobre a minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu ofício. Chegando a

casa, deitei
aquelas
emoções ao papel; tal seria o discurso.

CAPÍTULO CXXIII / OLHOS DE RESSACA

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero

daquele lance


[Linha 6650 de 7623 - Parte 4 de 4]


consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a

viúva, parecia
vencer-se
a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou

alguns
instantes para
o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e

caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente

que estava
na sala.
Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento

houve em
que os
olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e

abertos, como
a vaga
do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.

CAPÍTULO CXXIV / O DISCURSO

--Vamos, são horas...

Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechamo-lo, e eu peguei numa das argolas; rompeu o

alarido final.
Palavra que, quando cheguei à porta, vi o sol claro, tudo gente e carros, as cabeças descobertas, tive um

daqueles meus
impulsos que nunca chegavam à execução: foi atirar à rua caixão, defunto e tudo. No carro disse a José

Dias que se
calasse.
No cemitério tive de repetir a cerimônia da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o féretro à cova. O

que isto me
custou
imagina. Descido o cadáver à cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro,

mas o que não
sabes
nem pode saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro estranho, é a crise que me tomou

quando vi todos
os
olhos em mim, os pés quietos, as orelhas atentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silêncio, um

sussurro vago,
algumas
vozes interrogativas, sinais, e alguém, José Dias, que me dizia ao ouvido:

--Então, fale.

Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso anunciado. Maquinalmente, meti a mão no

bolso, saquei o
papel
e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar cm vez de sair, as

mãos
tremiam-me. Não
era só a emoção nova que me fazia assim, era o próprio texto, as memórias do amigo, as saudades

confessadas, os
louvores
à pessoa e aos seus méritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo,

temendo que me
adivinhassem a verdade, forcejava por escondê-la bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto geral

foi de
compreensão c de aprovação. As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam:

"Muito bonito!
muito
bem! magnífico!" José Dias achou que a eloqüência estivera na altura da piedade. Um homem, que me

pareceu
jornalista,
pediu-me licença para levar o manuscrito e imprimi-lo. Só a minha grande turvação recusaria um

obséquio tão
simples.

CAPÍTULO CXXV / UMA COMPARAÇÃO


[Linha 6700 de 7623 - Parte 4 de 4]



Príamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que

relata isto, e
é um
bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em verso, e até mau verso.

Compara tu a
situação de
Príamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera, defunto, aqueles olhos...

É
impossível que
algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor efeito, ou quando menos igual. Nem digas que

nos faltam
Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Príamos

procuram a
sombra
e o silêncio. As lágrimas, se as têm, são enxugadas atrás da porta, para que as caras apareçam limpas e

serenas, os
discursos
são antes de alegria que de melancolia, e tudo passa como se Aquiles não matasse Heitor.

CAPÍTULO CXXVI / CISMANDO

Pouco depois de sair do cemitério, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fora, sem

embargo dos
esforços de
José Dias para impedi-lo.

--Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dá-lo a imprimir, fica já destruído de

uma vez.
Não
presta, não vale nada.

José Dias demonstrou longamente o contrário, depois elogiou o enterro, e por último fez o panegírico do

morto, uma
grande
alma, espírito ativo, coração reto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantíssima que Deus lhe dera...

Neste ponto do discurso, deixei-o falar sozinho e peguei a cismar comigo. O que cismei foi tão escuro e

confuso que
não me
deixou tomar pé. No Catete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao

Flamengo e as
levasse
para casa; eu iria a pé.

-- Mas...

--Vou fazer uma visita.

A razão disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro

andaria mais
depressa que as pernas- estas iriam pausadas ou não, podia afrouxar o passo. parar, arrepiar caminho, e

deixar que a
cabeça
cismasse à vontade. Fui andando e cismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na véspera e o

desespero
daquele dia;
eram inconciliáveis. A viúva era realmente amantíssima. Assim se desvaneceu de todo a ilusão da minha

vaidade.
Não seria o
mesmo caso de Capitu. Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de

pessoas que devia
natural
mente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vai por ordem lógica e

dedutiva, tinha
sido
antes uma barafunda de idéias e sensações, graças aos solavancos do carro e às interrupções de José

Dias. Agora,


[Linha 6750 de 7623 - Parte 4 de 4]


porém,
raciocinava e evocava claro e bem. Concluí de mim para mim que era a antiga paixão que me ofuscava

ainda e me
fazia
desvairar como sempre.

Quando cheguei a esta conclusão final, chegava também à porta de casa, mas voltei para trás, e subi

outra vez a Rua
do
Catete. Eram as dúvidas que me afligiam ou a necessidade de afligir Capitu com a minha grande demora?

Ponhamos
que
eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti sossegar, e endireitei para casa. Batiam oito

horas numa
padaria.

CAPÍTULO CXXVII / O BARBEIRO

Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rebeca e não tocava inteiramente

mal. Na
ocasião em
que ia passando, executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvi-lo (tudo são pretextos a um

coração agoniado),
ele
viu-me, e continuou a tocar. Não atendeu a um freguês, e logo a outro, que ali foram, a despeito da hora e

de ser
domingo,
confiar-lhe as caras à navalha. Perdeu-os sem perder uma nota- ia tocando para mim. Esta consideração

fez-me
chegar
francamente à porta da loja, voltado para ele. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o

interior da casa,
vi
apontar uma moça trigueira, vestido claro, flor no cabelo. Era a mulher dele, creio que me descobriu de

dentro, e veio
agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizê-lo com

os olhos.
Quanto ao
marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver fregueses, grudava a face ao

instrumento, passava a
alma ao
arco, e tocava, tocava...

Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei pelo corredor

e subi as
escadas
sem estrépito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da

minha vida, ou
por
esta máxima, que os compiladores podem tirar daqui e inserir nos compêndios de escola. A máxima é

que a gente
esquece
devagar as boas ações que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu

duas barbas
naquela
noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um traunseunte. Supõe agora que este, em

vez de ir-se
embora, como eu fui, ficava à porta a ouvi-lo e a enamorar-lhe a mulher, então é que ele, todo arco, todo

rebeca,
tocaria
desesperadamente. Divina arte!

CAPÍTULO CXXVIII / PUNHADO DE SUCESSOS

Como ia dizendo, subi as escadas sem estrépito, empurrei a cancela, que estava apenas encostada, e

dei com prima
Justina e
José Dias jogando cartas na saleta próxima. Capitu levantou-se do canapé e veio a mim. O rosto dela era

agora sereno
e


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puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falamos do desastre e da viúva. Capitu censurou a

imprudência de
Escobar, e
não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficara com Sancha

aquela noite.

--Tem lá muita gente; ainda assim ofereci-me, mas não quis. Também lhe disse que era melhor vir para

cá, e passar
aqui uns
dias conosco.

--Também não quis?

--Também não.

--Entretanto, a vista do mar há de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José Dias, e não sei como

poderá...

-- Mas passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina.

E como em torno desta idéia começássemos uma troca de palavras, Capitu saiu para ir ver se o filho

dormia. Ao
passar pelo
espelho, concertou os cabelos tão demoradamente que pareceria afetação, se não soubéssemos que ela

era muito
amiga de
si. Quando tornou, trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo, pensara na

filhinha de Sancha,
e na
aflição da viúva. E, sem se lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-

me que, se
quisesse
pensar nela, era preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a frase "lindíssima", e

perguntou a Capitu por
que é
que não fazia versos. Tentei meter o caso à bulha, e assim acabamos a noite.

No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quisesse dá-lo a imprimir, mas era

lembrança do
finado.
Pensei em recompô-lo, mas só achei frases soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Também

pensei em fazer
outro,
mas era já difícil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemitério. Quanto a

recolher os
pedacinhos
de papel deitados à rua, era tarde; estariam já varridos.

Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim, um pássaro,

o álbum de
Capitu,
duas paisagens do Paraná e outras. Também ele as possuía de minha mão. Vivemos assim a trocar

memórias e
regalos, ora
em dia de anos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornais do dia:

davam notícia
do
desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negócios deste, as qualidades pessoais, a simpatia do

comércio, e
também
falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Tudo isso foi na segunda-feira. Na terça-feira foi aberto

o
testamento, que
me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro lugar cabia a mulher. Não me deixava nada, mas as

palavras que me
escrevera em carta separada eram sublimes de amizade e estima. Capitu desta vez chorou muito; mas

compôs-se
depressa.



[Linha 6850 de 7623 - Parte 4 de 4]


Testamento, inventário, tudo andou quase tão depressa como aqui vai dito. Ao cabo de pouco tempo,

Sancha
retirou-se
para a casa dos parentes no Paraná.

CAPÍTULO CXXIX / A D. SANCHA

D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-

lo; melhor será
queimá-lo, para lhe não dar tentação e abri-lo outra vez. Se, apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é

sua; não
respondo
pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquele sábado, esse acabou, uma vez

que os
acontecimentos, e eu com eles, desmentimos a minha ilusão; mas o que agora a alcançar, esse é

indelével. Não, amiga
minha,
não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma cousa, e é ainda o melhor

que se pode
fazer
depois da mocidade. Um dia. iremos daqui até à porta do céu, onde nos encontraremos renovados, como

as plantas
novas,
come piante novelle,

Rinovellate di novelle fronde.

O resto em Dante.

CAPÍTULO CXXX / UM DIA...

Por enquanto, um dia Capitu quis saber o que é que me fazia andar calado e aborrecido. E propôs-me a

Europa,
Minas,
Petrópolis, uma série de bailes, mil desses remédios aconselhados aos melancólicos. Eu não sabia que

lhe respondesse;
recusei as diversões. Como insistisses repliquei-lhe que os meus negócios andavam mal. Capitu sorriu

para animar-me.
E que
tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá as jóias, os objetos de algum valor seriam

vendidos, e
iríamos
residir em algum beco. Viveríamos sossegados e esquecidos; depois tornaríamos à tona da água. A

ternura com que
me disse
isto era de comover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe secamente que não era preciso vender

nada. Deixei-me
estar
calado e aborrecido. Ela propôs-me jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Mata-cavalos;

e, como eu
não
aceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a ausência, peguei do

chapéu e saí.

...Perdão, mas este capítulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, ocorrido poucas

semanas
antes,
dous meses depois da partida de Sancha. Vou escrevê-lo; podia antepô-lo a este antes de mandar o livro

ao prelo, mas
custa muito alterar o número das páginas; vai assim mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim.

Demais, é
curto.

CAPÍTULO CXXXI / ANTERIOR AO ANTERIOR

Foi o caso que a minha vida era outra vez doce e plácida, a banca do advogado rendia-me bastante,

Capitu estava
mais bela,
Ezequiel ia crescendo. Começava o ano de 1872.


[Linha 6900 de 7623 - Parte 4 de 4]



--Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma expressão esquisita? perguntou-me Capitu. Só vi duas

pessoas
assim, um
amigo de papai e o defunto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papai, não

precisa revirar os
olhos, assim, assim...

Era depois de jantar, estávamos ainda à mesa, Capitu brincava com o filho, ou ele com ela, ou um com

outro, porque,
em
verdade, queriam-se muito, mas é também certo que ele me queria ainda mais a mim. Aproximei-me de

Ezequiel,
achei que
Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não

haveria mais que
meia
dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu

nada, olhou
espantado
para ela e para mim, e afinal saltou-me ao colo:

--Vamos passear, papai?

--Logo, meu filho.

Capitu, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na beleza, os olhos

de Ezequiel
saíam
aos da mãe, Capitu sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher alguma,

provavelmente porque
não
gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou

aquele adágio
que
quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha meia dúzia de gestos únicos na terra. Aquele entrou-me

pela alma
dentro.
Assim fica explicado que eu corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este

outro incidente
não é
radicalmente necessário à compreensão do capítulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de

Ezequiel.

CAPÍTULO CXXXII / O DEBUXO E O COLORIDO

Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o

tempo. Eram
como um
debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar,

falar quase,
até
que a família pêndula o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era.

O costume
valeu
muito contra o efeito da mudança; mas a mudança fez-se, não à maneira de teatro, fez-se como a manhã

que aponta
vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem

abrir as janelas; a
luz
coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a princípio e não toda, depois fui lendo

melhor.
Fugia-lhe, é
certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os

olhos. Quando
novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.

Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa,

receber-me na
escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume. Todas essas ações

eram


[Linha 6950 de 7623 - Parte 4 de 4]


repulsivas; eu
tolerava-as e praticava as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse

dissimular ao
mundo, não
podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém. Quando nem mãe nem filho estavam

comigo o meu
desespero
era grande, e eu jurava matá-los a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte

todos os
minutos da
vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a criaturinha que me

queria e
esperava,
ficava desarmado e diferia o castigo de um dia para outro.

O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miúdo e

repetido, e já tão
tarde
que não se poderá dizê-lo sem falha nem canseira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos

temporais eram
agora
contínuos e terríveis.

Antes de descoberta aquela má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; não tardava que o céu se

fizesse azul,
o sol
claro e o mar chão, por onde abríamos novamente as velas que nos levavam às ilhas e costas mais

belas do universo,
até que
outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos à capa, esperávamos outra bonança, que não era

tardia nem dúbia,
antes
total, próxima e firme.

Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço

Escobar. Cheiram
também aos olhos de ressaca de Capitu. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquela parte

da minha
vida,
como um marujo contaria o seu naufrágio.

Já entre nós só faltava dizer a palavra última; nós a líamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e

decisiva, e
sempre que
Ezequiel vinha para nós não fazia mais que separar-nos. Capitu propôs metê-lo em um colégio, donde só

viesse aos
sábados;
custou muito ao menino aceitar esta situação.

--Quero ir com papai! Papai há de ir comigo! bradava ele.

Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda-feira. Era no antigo Largo da Lapa, perto da

nossa casa.
Levei-o a
pé, pela mão, como levara o ataúde do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo,

se voltaria
para
casa, e quando, e se eu iria vê-lo...

--Vou.

--Papai não vai!

--Vou sim.



[Linha 7000 de 7623 - Parte 4 de 4]


--Jura, papai!

--Pois sim.

--Papai não diz que jura.

--Pois juro.

E lá o levei e deixei. A ausência temporária não atalhou o mal, e toda a arte fina de Capitu para fazê-lo

atenuar, ao
menos, foi
como se não fosse; eu sentia-me cada vez pior. A mesma situação nova agravou a minha paixão.

Ezequiel vivia agora
mais
fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou

porque o tempo
fosse
andando e completando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de

pouco, já me
parecia a mesma. Aos sábados, buscava não andar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo;

mas não
escapava
ao domingo, no gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos. Ezequiel entrava turbulento,

expansivo, cheio de
riso e
de amor, porque o demo do pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora

uma aversão
que mal
podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir inteiramente esta disposição moral,

cuidava de me
não
fazer encontradiço com ele, ou só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o

gabinete, ora
saía ao
domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto.

CAPÍTULO CXXXIII / UMA IDÉIA

Um dia--era uma sexta-feira,--não pude mais. Certa idéia, que negrejava em mim, abriu as asas e entrou a

batê-las de
um
lado para outro, como fazem as idéias que querem sair. O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas

também pode ter
sido
propósito; fui educado no terror daquele dia. ouvi cantar baladas, em casa, vindas da roça e da antiga

metrópole, nas
quais a
sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não havendo almanaques no cérebro, é provável que a idéia

não batesse
as asas
senão pela necessidade que sentia de vir ao ar e à vida. A vida é tão bela que a mesma idéia da morte

precisa de vir
primeiro
a ela, antes de se ver cumprida. Já me vais entendendo; lê agora outro capítulo.

CAPÍTULO CXXXIV / O DIA DE SÁBADO

A idéia saiu finalmente do cérebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a sacudisse de mim.

Também nenhuma
noite
me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas horas.

Saí, supondo deixar a idéia em casa; ela veio comigo. Cá fora tinha a mesma cor escura, as mesmas

asas trépidas, e
posto
avoasse com elas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse as cousas

externas, mas via-as


[Linha 7050 de 7623 - Parte 4 de 4]


através dela, com a cor mais pálida que de costume, e sem se demorarem nada.

Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma substancia, que não

digo, para não
espertar
o desejo de prová-la. A farmácia faliu, é verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando

me achei com
a
morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o

prêmio da
loteria
gasta-se, e a morte não se gasta. Fui a casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita.

Ou de verdade
ou
por ilusão, tudo ali me pareceu melhor nesse dia. minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do

coração, prima
Justina da
língua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projeto. Que era preciso para viver? Nunca mais

deixar
aquela casa
ou prender aquela hora a mim mesmo...

CAPÍTULO CXXXV / OTELO

Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca;

sabia apenas o
assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço. --um simples

lenço!--e aqui
dou
matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação

de que um
lenço
bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços

perderam-se. hoje são
precisos os próprios lençóis; alguma vez nem lençóis há e valem só as camisas. Tais eram as idéias

que me iam
passando pela
cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia. Nos

intervalos não me
levantava da cadeira- não queria expor-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quase

todas nos
camarotes,
enquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se alguma daquelas não teria amado

alguém
que jazesse
agora no cemitério, e vinham outras incoerências, até que o pano subia e continuava a peça. O último ato

mostrou-me
que
não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e

a fúria do
mouro, e
a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.

--E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; -- que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão

culpada como
Capitu?
E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso

e vasto, que a
consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extinção...

Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade um quase nada, mas o bastante para ir até à manhã.

Vi as últimas
horas
da noite e as primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras

carroças, os
primeiros
ruídos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais voltar. As

ruas que eu
andava
como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a contemplar o mar da Glória, nem a serra dos órgãos,

nem a
fortaleza de


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Santa Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias comuns da semana, mas era

já numerosa e
ia a
algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada.

Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante pé, e meti-me no gabinete, iam dar seis horas.

Tirei o veneno do
bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a última, dirigida a Capitu. Nenhuma das

outras era
para ela;
senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte.

Escrevi dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e difuso. O segundo continha só o necessário,

claro e breve.
Não
lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da

necessidade
de
morrer.

CAPÍTULO CXXXVI / A XÍCARA DE CAFÉ

O meu plano foi esperar o café, dissolver nele a droga e ingeri-la. Até lá, não tendo esquecido de todo a

minha história
romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão

comigo; mas um
tomo
truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco

tempo, e para
em
tudo imitá-lo, estirei-me no canapé. Nem era só imitá-lo nisso; tinha necessidade de incutir em mim a

coragem dele,
assim
como ele precisara dos sentimentos do filósofo, para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorância

é não ter este
remédio à última hora. Há muita gente que se mata sem ele, e nobremente expira, mas estou que muita

mais gente
poria termo
aos seus dias, se pudesse achar essa espécie de cocaína moral dos bons livros. Entretanto, querendo

fugir a qualquer
suspeita
de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de Plutarco, nem ser dada

a notícia
nas
gazetas com a da cor das calças que eu então vestia, assentei de pô-lo novamente no seu lugar, antes de

beber o
veneno.

O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficara a xícara. Já a casa estava

em
rumores; era
tempo de acabar comigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda

assim tive
animo de
despejar a substancia na xícara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memória em Desdêmona

inocente; o
espetáculo
da véspera vinha intrometer-se na realidade da manhã. Mas a fotografia de Escobar deu-me o animo que

me ia
faltando; lá
estava ele, com a mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe...

"Acabemos com isto", pensei.

Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitu e o filho saíssem para a missa;

beberia depois; era
melhor.
Assim disposto, entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a

mim bradando:



[Linha 7150 de 7623 - Parte 4 de 4]


--Papai! papai!

Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havê-lo inteiramente esquecido, mas crê que foi

belo e trágico.
Efetivamente, a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os

joelhos,
esticou-se na
ponta dos pés, como que rendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me:

--Papai! papai!

CAPÍTULO CXXXVII / SEGUNDO IMPULSO

Se eu não olhasse para Ezequiel, é provável que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu

primeiro
ímpeto foi
correr ao café e bebê-lo. Cheguei a pegar na xícara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume,

e a vista
dele,
como o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui;- mas vá lá, diga-se tudo. Chamem me

embora
assassino; não
serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a

Ezequiel se já
tomara
café.

--Já, papai; vou à missa com mamãe.

--Toma outra xícara, meia xícara só.

--E papai?

-- Eu mando vir mais; anda, bebe!

Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair

pela goela
abaixo,
caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me

fez recuar.
Pus a
xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doudamente a cabeça do menino.

--Papai! papai! exclamava Ezequiel.

--Não, não, eu não sou teu pai!

CAPÍTULO CXXXVIII / CAPITU QUE ENTRA

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de

teatro, e é tão
natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa, e Capitu não saía sem falar-me. Era já

um falar
seco e
breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um

daqueles
silêncios, a
que, sem mentir, se pode chamar de um século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu

recompôs-se;
disse ao


[Linha 7200 de 7623 - Parte 4 de 4]


filho que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse...

--Não há que explicar, disse eu.

--Há tudo, não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?

--Não ouviu o que lhe disse?

Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo claramente mas

confessá-lo seria
perder a
esperança do silêncio e da reconciliação por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. Sem

lhe contar o
episódio do café, repeti-lhe as palavras do final do capítulo.

--O quê? perguntou ela como se ouvira mal.

--Que não é meu filho.

Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que

fariam
duvidar as
primeiras testemunhas de vista do nosso foro. Já ouvi que as há para vários casos, questão de preço; eu

não creio,
tanto mais
que a pessoa que me contou isto acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas

alugadas, a minha
era
verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela. Assim que, sem atender à

linguagem de
Capitu,
aos seus gestos, à dor que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal

resolução que a
fizeram
afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ela:

--Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto você que era tão cioso dos menores

gestos, nunca
revelou
a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga,-- continuou vendo que eu não

respondia nada, --
diga
tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção?

Ande,
Bentinho,
fale! fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

--Há cousas que se não dizem.

--Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada.

Pedi-lhe
ainda
uma vez que não teimasse.

--Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe

desde já a
nossa
separação: não posso mais!

--A separação é cousa decidida, redargüi pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por

meias palavras ou


[Linha 7250 de 7623 - Parte 4 de 4]


em
silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso

dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mas pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar

de rir, de um
riso
que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:

--Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra cousa

mais que a
plena
justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com

desdém, e
murmurou:

--Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural-

apesar do
seminário não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.

CAPÍTULO CXXXIX / A FOTOGRAFIA

Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado;

mas a
entrada
repentina de Ezequiel, gritando:--"Mamãe! mamãe! é hora da missa!" restituiu-me à consciência da

realidade. Capitu e
eu,
involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão

dela fez-se
confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso

pequeno
Ezequiel.
De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.

CAPÍTULO CXL / VOLTA DA IGREJA

Ficando só, era natural pegar do café e bebê-lo. Pois, não, senhor; tinha perdido o gosto à morte. A morte

era uma
solução;
eu acabava de achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta à

reparação, se
devesse
havê-la. Não disse perdão, mas reparação, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do ato, rejeitei a

morte, e esperei
o
regresso de Capitu. Este foi mais demorado que de costume; cheguei a temer que ela houvesse ido à

casa de minha
mãe, mas
não foi.

--Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitu ao voltar da igreja; ouvi dentro de mim que

a nossa
separação
é indispensável, e estou às suas ordens.

Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera.

Contava com a
minha
debilidade ou com a própria incerteza em que eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo.

Acaso haveria
em
mim um homem novo, um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam?

Nesse caso era um
homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e faríamos o que eu pensasse. Em verdade vos

digo que tudo


[Linha 7300 de 7623 - Parte 4 de 4]


estava
pensado e feito.

No intervalo, evocara as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa dele o retrato da mulher,

parecido
com
Capitu. Hás de lembrar-te delas; se não, relê o capítulo, cujo número não ponho aqui, por não me lembrar

já qual seja,
mas
não fica longe. Reduzem-se a dizer que há tais semelhanças inexplicáveis... Pelo dia adiante, e nos

outros dias,
Ezequiel ia ter
comigo ao gabinete, e as feições do pequeno davam idéia clara das do outro, ou eu ia atentando mais

nelas. De
envolta,
lembravam-me episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha

cegueira não pôs
malícia, e
a que faltou o meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me

fez rir, uma
palavra
dela sonhando, todas essas reminiscências vieram vindo agora, em tal atropêlo que me atordoaram... E

por que os não
esganei um dia. quando desviei os olhos da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no fio

telegráfico? Dentro, as
minhas
outras andorinhas estavam trepadas no ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se

desenfiaram logo,
dizendo-me uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fora, e acharam-lhe

graça; Escobar
declarou que, para ele, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem à

mesa do jantar
cozidas. "Nunca comi os ninhos delas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os inventaram." E

ficamos a tratar
dos
chins e dos clássicos que falaram deles, enquanto Capitu, confessando que a aborrecíamos, foi a outros

cuidados.
Agora
lembrava-me tudo o que então me pareceu nada.

CAPÍTULO CXLI / A SOLUÇÃO

Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem

velho;
paramos na
Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua

materna a
Ezequiel,
que aprenderia o resto nas escolas do país. Assim regulada a vida, tornei ao Brasil.

Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e

sequidão. As dela
eram
submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um

ano depois,
mas não
a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam

notícias, e eu
dava-lhes,
como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto

mesmo, e
enganar a
opinião. Um dia, finalmente...

CAPÍTULO CXLII / UMA SANTA

Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse

vontade; ficava de
companhia a tio Cosme, quase inválido e a minha mãe, que envelheceu depressa. Também ele estava

velho, posto
que rijo. Ia


[Linha 7350 de 7623 - Parte 4 de 4]


a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de lenço, os próprios olhos que

enxugava eram tais
que
me comoviam também. A última vez não foi a bordo.

--Venha...

--Não posso.

--Está com medo?

--Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais; creio que vou para a outra Europa, a

eterna...

Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemitério de S. João Batista uma sepultura sem

nome, com
esta
única indicação: Uma santa. É aí. Fiz fazer essa inscrição com alguma dificuldade. O escultor achou-a

esquisita, o
administrador do cemitério consultou o vigário da paróquia; este ponderou-me que as santas es tão no

altar e no céu.

-- Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquela sepultura está uma canonizada. A minha idéia é

dar com tal
palavra
uma definição terrena de todas as virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é assim que, sendo a

modéstia uma
delas,
desejo conservá-la póstuma, não lhe escrevendo o nome.

--Todavia, o nome, a filiação, as datas...

-- Quem se importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu acabar?

-- Quer dizer que era uma santa senhora, não?

--Justamente. O protonotário Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o que lhe digo.

--Nem eu contesto a verdade, hesito só, na fórmula. Conheceu então o protonotário?

-- Conheci-o. Era um padre-modelo.

-- Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário.

--E possuía algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre ouvi que era insigne parceiro ao

gamão...

--Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigário. Um dado de mestre!

--Então, parece-lhe...?

--Uma vez que não há outro sentido, nem poderia havê-lo, sim, senhor, admite-se...

José Dias assistiu a estas diligências, com grande melancolia. No fim, quando saímos, disse mal do

padre, chamou-lhe
meticuloso. Só lhe achava desculpa por não ter conhecido minha mãe, nem ele nem os outros homens do

cemitério.

--Não a conheceram; se a conhecessem mandariam esculpir santíssima.



[Linha 7400 de 7623 - Parte 4 de 4]


CAPÍTULO CXLIII / O ÚLTIMO SUPERLATIVO

Não foi o último superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a pena escrever aqui, até que veio o

último, o
melhor
deles, o mais doce, o que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então morava comigo; posto que minha

mãe lhe
deixasse
uma pequena lembrança, veio dizer-me que, com legado ou sem ele, não se separaria de mim. Talvez a

esperança dele
fosse
enterrar-me. Correspondia-se com Capitu, a que pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel; mas

Capitu ia adiando
a
remessa de correio a correio, até que ele não pediu mais nada, a não ser o coração do jovem estudante;

pedia-lhe
também
que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do pai e do avô, "destinado pelo céu a amar o

mesmo sangue."
Era
assim que ele preparava os cuidados da terceira geração; mas a morte veio antes de Ezequiel. A doença

foi rápida.
Mandei
chamar um médico homeopata.

--Não, Bentinho, disse ele- basta um alopata; em todas as escolas se morre. Demais, foram idéias da

mocidade, que o
tempo levou; converto-me à fé de meus pais. A alopatia é o catolicismo da medicina...

Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o céu estava lindo, e pediu que

abríssemos a janela.

--Não, o ar pode fazer-lhe mal.

--Que mal? Ar é vida.

Abrimos a janela. Realmente, estava um céu azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para fora; após

alguns
instantes,
deixou cair a cabeça, murmurando: Lindíssimo! Foi a última palavra que proferiu neste mundo. Pobre

José Dias! Por
que hei
de negar que chorei por ele?

CAPÍTULO CXLIV / UMA PERGUNTA TARDIA

Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste mundo, mas não é provável.

Tenho-me
feito
esquecer. Moro longe e saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta

casa do Engenho
Novo, conquanto reproduza a de Mata-cavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de

comparação e de
reflexão
que de sentimento. Já disse isto mesmo.

Hão de perguntar-me por que razão, tendo a própria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a

demolissem e
vim
reproduzi-la nesta. A pergunta devia ser feita a princípio, mas aqui vai a resposta. A razão é que, logo que

minha mãe
morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, e toda a casa me

desconheceu.
No
quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina

era a
mesma que
eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora um ar de ponto de

interrogação;


[Linha 7450 de 7623 - Parte 4 de 4]


naturalmente
pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei

nenhum. Ao
contrário,
a ramagem começou a sussurrar alguma cousa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das

manhãs novas.
Ao pé
dessa música sonora e jovial, ouvi também o grunhir dos porcos, espécie de troça concentrada e

filosófica.

Tudo me era estranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o

Engenho Novo,
lembrou-me fazer esta reprodução por explicações que dei ao arquiteto, segundo contei em tempo.

CAPÍTULO CXLV / O REGRESSO

Ora, foi já nesta casa que um dia. estando a vestir-me para almoçar, recebi um cartão com este nome:

EZEQUIEL A. DE SANTIAGO

--A pessoa está aí? perguntei ao criado.

--Sim senhor, ficou esperando.

Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou que

cumpria ter certo
alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe,--creio que ainda não disse que estava morta e

enterrada.
Estava; lá
repousa na velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, com ares de pai, um pai

entre manso e
crespo, metade Dom Casmurro Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de

Massinissa,
pintado na
parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa.

Conhece-me pelos
retratos
e correu para mim. Não me mexi; era nem mas nem menos o meu antigo c jovem companheiro do

seminário de José,
um
pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores que eram vivas, o mesmo rosto do meu

amigo. Trajava à
moderna
naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o

próprio, o exato, o
verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai. Vestia de luto pela mãe; eu também

estava de preto.
Sentamo-nos.

--Papai não faz diferença dos últimos retratos, disse-me ele

A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado. Expliquei-lhe que realmente pouco diferia do

que era, e
comecei
um interrogatório para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava

animação à cara
dele, e o
meu colega do seminário ia ressurgindo cada vez mais do cemitério. Ei-lo aqui. diante de mim, com igual

riso e maior
respeito; total, o mesmo obséquio e a mesma graça. Ansiava por ver-me. A mãe falava muito em mim,

louvando-me
extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.

-- Morreu bonita, concluiu.

--Vamos almoçar.



[Linha 7500 de 7623 - Parte 4 de 4]


Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de aborrecimento, é verdade; a

princípio doeu-me
que
Ezequiel não fosse realmente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem saído à

mãe, eu
acabava
crendo tudo, tanto mais facilmente quando que ele parecia haver-me deixado na véspera evocava a

meninice, cenas e
palavras, a ida para o colégio...

--Papai ainda se lembra quando me levou para o colégio? perguntou rindo.

--Pois não hei de lembrar-me?

--Era na Lapa; eu ia desesperado, e papai não parava, dava-me cada puxão, e eu com as perninhas...

Sim, senhor,
aceito.

Estendeu o copo ao vinho que eu lhe oferecia, bebeu um gole, e continuou a comer. Escobar comia assim

também,
com a
cara metida no prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era

a sua
paixão.
Falava da antiguidade com amor, contava o Egito e os seus milhares de séculos, sem se perder nos

algarismos; tinha a
cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não

gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete

falava e ria, e o
defunto
falava e ria por ele.

Não havendo remédio senão ficar com ele, fiz-me pai deveras. A idéia de que pudesse ter visto alguma

fotografia de
Escobar, que Capitu por descuido levasse consigo, não me acudiu, nem se acudisse, persistiria. Ezequiel

cria em mim
como
na mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nele a minha própria pessoa. Prima Justina quis vê-lo, mas

estando enferma,
pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquela parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de

verificar no
moço
o debuxo que porventura houvesse achado no menino. Seria um regalo último; atalhei-o a tempo.

--Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vê-la, qualquer emoção pode trazer-lhe a morte.

Iremos vê-la,
quando
ficar melhor.

Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ela descansa no Senhor ou como quer que seja.

Ezequiel viu-lhe a
cara
no caixão e não a conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os anos e a morte. No caminho para o

cemitério, iam-lhe
lembrando uma porção de cousas, alguma rua, alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim

acontecia
sempre
que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações que ia recebendo das ruas e das casas.

Admirava-se
que
muitas destas fossem as mesmas que ele deixara, como se as casas morressem meninas.

Ao cabo de seis meses, Ezequiel falou-me em uma viagem à Grécia, ao Egito, e à Palestina, viagem

científica,
promessa feita
a alguns amigos.



[Linha 7550 de 7623 - Parte 4 de 4]


--De que sexo? perguntei rindo.

Sorria vexado, e respondeu-me que as mulheres eram criaturas tão da moda e do dia que nunca haviam

de entender
uma
ruína de trinta séculos. Eram dous colegas da universidade. Prometi-lhe recursos, e dei-lhe logo os

primeiros dinheiros
precisos. Como disse que uma das conseqüências dos amores furtivos do pai era pagar eu as

arqueologias do filho;
antes lhe
pagasse a lepra... Quando esta idéia me atravessou o cérebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei

no rapaz e quis
apertá-lo ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que ele

me deitou
foram
ternos e agradecidos.

CAPÍTULO CXLVI / NÃO HOUVE LEPRA

Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses

depois, Ezequiel
morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dous amigos da

universidade lhe
levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: "Tu eras perfeito nos teus

caminhos."
Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto

do dinheiro que
ele
levava; pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.

Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, achei que era exato, mas tinha ainda um

complemento:
"Tu eras
perfeito nos teus caminhos, desde o dia da tua criação." Parei e perguntei calado: "Quando seria o dia da

criação de
Ezequiel?" Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar

de tudo,
jantei bem
e fui ao teatro.

CAPÍTULO CXLVII / A EXPOSIÇÃO RETROSPECTIVA

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor

lívida e
solitária. Não
lhe dei essa cor ou descor. Vivi o melhor que pude, sem me faltarem amigas que me consolassem da

primeira.
Caprichos de
pouca dura, é verdade. Elas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição

retrospectiva, e, ou se
fartam
de vê-la, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro à porta e cocheiro de libré. As

outras iam
modestamente, calcante pede, e, se chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as metia dentro, com

grandes
despedidas, e maiores recomendações.

-- Levas o catálogo?

-- Levo; até amanhã.

--Até amanhã.

Não voltavam mais. Eu ficava à porta, esperando, ia até à esquina, espiava, consultava o relógio, e não

via nada nem
ninguém. Então, se aparecia outra visita, dava-lhe o braço, entrávamos, mostrava-lhe as paisagens, os

quadros
históricos ou
de gênero, uma aquarela, um pastel, uma gouache, e também esta cansava, e ia embora com o catálogo

na mão...


[Linha 7600 de 7623 - Parte 4 de 4]



CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO?

Agora , por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração?

Talvez porque
nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este

propriamente o resto do
livro. O
resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada

naquela por
efeito
de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como

no seu cap. IX,
vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que

aprender de ti".
Mas eu
creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma

estava
dentro da
outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a

saber, que a minha
primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que

acabassem
juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à "História dos Subúrbios.


                                              FIM - - - FIM - - - FIM 


Dom Casmurro  - Parte 1 de 4 - Machado de Assis
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/09/dom-casmurro-p1de4-machado-de-assis.html


Dom Casmurro  - Parte 2 de 4 - Machado de Assis
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/09/dom-casmurro-p2de4-machado-de-assis.html


Dom Casmurro  - Parte 3 de 4 - Machado de Assis
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/09/dom-casmurro-p3de4-machado-de-assis.html


Dom Casmurro  - Parte 4 de 4 - Machado de Assis
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