FARÓIS - PARTE 2 DE 2 - CRUZ E SOUSA
Luxúrias de virgens mortas
Das tumbas rasgam as portas.
(SEGUE ABAIXO A PARTE FINAL DESTA OBRA)
Andam torvos pesadelos
Arrepiando os cabelos.
Coalha nos lodos abjetos
O sangue roxo dos fetos.
Há rios maus, amarelos
De presságio de flagelos.
Das vesgas concupiscências
Saem vis fosforescências.
Os remorsos contorcidos
Mordem os ares pungidos.
A alma cobarde de Judas
Recebe expressões comudas.
Negras aves de rapina
Mostram a garra assassina.
[Linha 2350 de 4636 - Parte 2 de 2]
Sob o céu que nos oprime
Languescem formas de crime.
Com os mais sinistros furores,
Saem gemidos das flores.
Caveiras! Que horror medonho!
Parecem visões de um sonho!
A morte com Sancho Panca,
Grotesca e trágica dança.
E como um símbolo eterno,
Ritmos dos Ritmos do inferno.
No lago morto, ondulando,
Dentre o luar noctivagando,
O corvo hediondo crocita
Da sombra d'Iago maldita!
índice
RESSURREIÇÃO
Alma! Que tu não chores e não gemas,
Teu amor voltou agora.
Ei-lo que chega das mansões extremas,
Lá onde a loucura mora!
Veio mesmo mais belo e estranho, acaso,
Desses lívidos países,
Mágica flor a rebentar de um vaso
Com prodigiosas raízes.
[Linha 2400 de 4636 - Parte 2 de 2]
Veio transfigurada e mais formosa
Essa ingênua natureza,
Mais ágil, mais delgada, mais nervosa,
Das essências da Beleza.
Certo neblinamento de saudade
Mórbida envolve-a de leve...
E essa diluente espiritualidade
Certos mistérios descreve.
O meu Amor voltou de aéreas curvas,
Das paragens mais funestas...
Veio de percorrer torvas e turvas
E funambulescas festas.
As festas turvas e funambulescas
Da exótica Fantasia,
Por plagas cabalísticas, dantescas,
De estranha selvageria.
Onde carrascos de tremendo aspecto
Como astros monstros circulam
E as meigas almas de sonhar inquieto
Barbaramente estrangulam.
Ele andou pelas plagas da loucura,
O meu Amor abençoado,
Banhado na poesia da Ternura,
No meu Afeto banhado.
Andou! Mas afinal de tudo veio
Mais transfigurado e belo,
Repousar no meu seio o próprio seio
Que eu de lágrimas estréio.
De lágrimas de encanto e ardentes beijos,
Para matar, triunfante,
A sede ideal de místico desejo
De quando ele andou errante.
E lágrimas, que enfim, caem ainda
Com os mais acres dos sabores
[Linha 2450 de 4636 - Parte 2 de 2]
E se transformam (maravilha infinda!)
Em maravilhas de flores!
Ah! que feliz um coração que escuta
As origens de que é feito!
E que não é nenhuma pedra bruta
Mumificada no peito!
Ah! que feliz um coração que sente
Ah! tudo vivendo intenso
No mais profundo borbulhar latente
Do seu fundo foco imenso!
Sim! eu agora posso ter deveras
Ironias sacrossantas...
Posso os braços te abrir, Luz das esferas,
Que das trevas te levantas.
Posso mesmo já rir de tudo, tudo
Que me devora e me oprime.
Voltou-me o antigo sentimento mudo
Do teu olhar que redime.
Já não te sinto morta na minh'alma
Como em câmara mortuária,
Naquela estranha e tenebrosa calma
De solidão funerária.
Já não te sinto mais embalsamada
No meu carinho profundo,
Nas mortalhas da Graça amortalhada,
Como ave voando do mundo.
Não! não te sinto mortalmente envolta
Na névoa que tudo encerra...
Doce espectro do pó, da poeira solta
Deflorada pela terra.
Não sinto mais o teu sorrir macabro
De desdenhosa caveira.
Agora o coração e os olhos abro
Para a Natureza inteira!
[Linha 2500 de 4636 - Parte 2 de 2]
Negros pavores sepulcrais e frios
Além morreram com o vento...
Ah! como estou desafogado em rios
De rejuvenescimento!
Deus existe no esplendor d'algum Sonho,
Lá em alguma estrela esquiva.
Só ele escuta o soluçar medonho
E torna a Dor menos viva.
Ah! foi com Deus que tu chegaste, é certo,
Com a sua graça espontânea
Que emigraste das plagas do Deserto
Nu, sem sombra e sol, da Insânia!
No entanto como que volúpias vagas
Desses horrores amargos,
Talvez recordação daquelas plagas
Dão-te esquisitos letargos...
Porém tu, afinal, ressuscitaste
E tudo em mim ressuscita.
E o meu Amor, que repurificaste,
Canta na paz infinita!
índice
ENLEVO
Da doçura da Noite, da doçura
De um tenro coração que vem sorrindo,
Seus segredos recônditos abrindo
Pela primeira vez, a luz mais pura.
Da doçura celeste, da ternura
De um Bem consolador que vai fugindo
Pelos extremos do horizonte infindo,
[Linha 2550 de 4636 - Parte 2 de 2]
Deixando-nos somente a Desventura.
Da doçura inocente, imaculada
De uma carícia virginal da Infância,
Nessa de rosas fresca madrugada.
Era assim tua cândida fragrância,
Arcanjo ideal de auréola delicada,
Visão consoladora da Distância...
índice
PIEDOSA
A Nestor Vitor
Não sei por que, magoada Flor sem glória,
A tua voz de trêmula meiguice
Desperta em mim a mocidade flórea
De sentimentos que não tem velhice.
Guslas de um céu remotamente mudo
Gemem plangentes nessa voz que voa
E através dela, abençoando tudo,
Um luar de perdões desabotoa.
Vejo-te então sublimemente triste
E excelsa e doce, num anseio lento,
Vagando como um ser que não existe,
Transfigurada pelo Sofrimento.
Mas, não sei como, vejo-te por brumas,
Além da de ouro constelada Porta,
Na ondulação das lívidas espumas,
Morta, já morta, muito morta, morta...
E sinto logo esse supremo e sábio
Travo da dor, se morta te antevejo,
Essa macabra contração de lábio
[Linha 2600 de 4636 - Parte 2 de 2]
Que morde e tantaliza o meu desejo.
Fico sempre a cismar, se tu morresses
Que angustia fina me laceraria,
Que músicas de céus saudosos, desses
Céus infinitos sobre mim fluiria...
Que anjos brancos soberbos, deslumbrantes,
Resplandecentes nos broqueis das vestes,
Claros e altos voariam flamejantes
Para buscar-te, dos Azuis Celestes.
Sim! Sim! Pois então tanta e atroz fadiga,
Tanta e tamanha dor convulsa e cega
Há de ficar sem doce luz amiga,
Da lágrima dos céus, que tudo rega?!
As batalhas cruéis do sacrifício,
As transfigurações dos teus calvários,
Essas virtudes, rolarão com o vício
Pelos mesmos abismos tumultuários?!
Toda a obscura pureza dos teus feitos,
A tua alma mais simples do que a água,
Essa bondade, todos os eleitos
Sentimentos que tens de flor da Mágoa;
Nada se salvará jamais, mais nada
Se salvará, no instante derradeiro?!
Ó interrogação desesperada,
Errante, errante pelo mundo inteiro!
Nada se salvará da essência viva
Que tudo purifica e refloresce;
De tanta fé, de tanta luz altiva
De tanta abnegação, de tanta prece?!
Nada se salvará, piedosa e pobre
Flor desdenhada pelo Mal ufano,
Só o meu coração e verso nobre
Hão de abrigar-te do desprezo humano.
[Linha 2650 de 4636 - Parte 2 de 2]
Na transcendência do teu ser, tão alta,
Vejo dos céus como que os dons, a esmola,
O indefinido que de ti ressalta
Me prende, me arrebata e me consola.
E sinto que a tua alma desprendida
Do terrestre, do negro labirinto
Melhor há de adorar-me na outra
Vida Melhor sentindo tudo quanto eu sinto.
Porque não é por sentimento vago,
Nem por simples e vã literatura,
Nem por caprichos de um estilo mago
Que sinto tanto a tua essência pura.
Não é por transitória veleidade
E para que o mundo reconheça,
Que sinto a tua cândida Piedade,
As auréolas de Luz dessa cabeça.
Não é para que o mundo te proclame
Maravilha das mártires, das santas
Que eu digo sempre ao meu Amor que te ame
Mesmo através de tantas ânsias, tantas.
Nem é também para que o mundo creia
Na humilde limpidez da tua alma justa,
Que o mundo, vil e vão, desdenha e odeia
Toda a humildade, toda a crença augusta.
Mas sinto porque te amo e te acompanho
Pelas montanhas de onde sóis saudosos
Clarões e sombras de um mistério estranho
Espalham, como adeuses carinhosos.
Sinto que te acompanho, que te sigo
Tranqüilo, calmo desses vãos rumores
E que tu vais embalada comigo,
Na mesma rede de carinho e dores.
Sinto os segredos do teu corpo amado,
[Linha 2700 de 4636 - Parte 2 de 2]
Toda a graça floral, a graça breve,
Todo o composto lânguido, alquebrado
Do teu perfil de áureo crescente leve.
Sinto-te as linhas imortais do flanco,
E as ondas vaporosas dos teus passos
E todo o sonho castamente branco
Da volúpia celeste desses braços.
Sinto a muda expressão da tua boca
Feita num doce e doloroso corte
De beijo dado na veemência louca
Dos céus do gozo entre o estertor da morte.
Sinto-te as nobres mãos afagadoras,
Riquezas raras de um valor secreto
E mãos cujas carícias redentoras
São as carícias do supremo Afeto.
Sinto os teus olhos fluidos, de onde emerge
Uma graça, uma paz, tamanho encanto,
Tão brando e triste, que a minha alma asperge
Em suavíssimos bálsamos de pranto.
Uns olhos tão etéreos, tão profundos,
De tanta e tão sutil delicadeza
Que parecem viver lá n'outros mundos,
Longe da contingente Natureza.
Olhos que sempre no tremendo choque
Dos sofrimentos íntimos, latentes,
Tem esse toque amigo, o velho toque
Original das lágrimas ardentes.
Ah! sÓ eu vejo e sinto esse desvelo
Que transfigura e faz o teu martírio,
O sentimento amargurado e belo
Que e já, talvez, quase mortal delírio...
Sinto que a mesma chama nos abraça,
Que um perfume eternal, casto, esquisito,
Circula e vive com divina graça
[Linha 2750 de 4636 - Parte 2 de 2]
Dentro do nosso trêmulo Infinito.
E tudo quanto me sensibiliza,
Fere, magoa, dilacera, punge,
Tudo no teu olhar se cristaliza,
No teu olhar, no teu olhar que unge.
Sinto por ti o mais febril e intenso
Carinho quase louco, doentio...
Carinho singular, curioso, imenso,
Que deixa na alma um resplendor sombrio.
E e de tal forma esse carinho raro,
De tal encanto e tão sagrada essência,
De tal Piedade e tal Perdão preclaro,
Que canta na estrelada Refulgência.
Ah! nunca saberás quanto exotismo
De sentimento me alanceia e pulsa,
Vibra violinos de sonambulismo
Nest'alma ora serena, ora convulsa!
Tens luz de lua e tens gorjeios de ave
No mundo virginal dos meus sentidos,
E és sonho, sombra de Angelus suave
Nos nossos mútuos e comuns gemidos.
E sonho, sombra de Angelus, tão brandos,
Imortalmente tão indefiníveis
Que todos os terrores execrandos
Cobrem-se para nós de íris sensíveis.
É assim que eu te sinto, erma, sozinha,
Frágil, piedosa, nos singelos brilhos
Erguendo aos braços, nobremente minha,
Os dolentes troféus dos nossos filhos.
Erguendo-os como cálices amargos
De um vinho ideal de já mortas quimeras,
Para além destes céus mudos e largos
Na ampla misericórdia das Esferas!
[Linha 2800 de 4636 - Parte 2 de 2]
índice
AUSÊNCIA MISTERIOSA
Uma hora só que o teu perfil se afasta,
Um instante sequer, um só minuto
Desta casa que amo -- vago luto
Envolve logo esta morada casta.
Tua presença delicada basta
Para tudo tornar claro e impoluto...
Na tua ausência, da Saudade escuto
O pranto que me prende e que me arrasta...
Secretas e sutis melancolias
Recuadas na Noite dos meus dias
Vêm para mim, lentas, se aproximando.
E em toda casa, nos objetos, erra
Um sentimento que não é da Terra
E que eu mudo e sozinho vou sonhando...
índice
MEU FILHO
Ah! quanto sentimento! ah! quanto sentimento!
Sob a guarda piedosa e muda das Esferas
Dorme, calmo, embalado pela voz do vento,
Frágil e pequenino e tenro como as heras.
Ao mesmo tempo suave e ao mesmo tempo estranho
O aspecto do meu fiIho assim meigo dormindo...
Vem dele tal frescura e tal sonho tamanho
[Linha 2850 de 4636 - Parte 2 de 2]
Que eu nem mesmo já sei tudo que vou sentindo.
Minh'alma fica presa e se debate ansiosa,
Em vão soluça e clama, eternamente presa
No segredo fatal dessa flor caprichosa,
Do meu filho, a dormir, na paz da Natureza.
Minh'alma se debate e vai gemendo aflita
No fundo turbilhão de grandes ânsias mudas:
Que esse tão pobre ser, de ternura infinita,
Mais tarde irá tragar os venenos de Judas!
Dar-lhe eu beijos, apenas, dar-lhe, apenas, beijos,
Carinhos dar-lhe sempre, efêmeros, aéreos,
O que vale tudo isso para outros desejos,
O que vale tudo isso para outros mistérios?!
De sua doce mãe que em prantos o abençoa
Com o mais profundo amor, arcangelicamente,
De sua doce mãe, tão límpida, tão boa,
O que vale esse amor, todo esse amor veemente?!
O longo sacrifício extremo que ela faça,
As vigílias sem nome, as orações sem termo,
Quando as garras cruéis e horríveis da Desgraça
De sadio que ele é, fazem-no fraco e enfermo?!
Tudo isso, ah! Tudo isso, ah! quanto vale tudo isso
Se outras preocupações mais fundas me laceram,
Se a graça de seu riso e a graça do seu viço
São as flores mortais que meu tormento geram?!
Por que tantas prisões, por que tantas cadeias
Quando a alma quer voar nos paramos liberta?
Ah! Céus! Quem me revela essas Origens cheias
De tanto desespero e tanta luz incerta!
Quem me revela, pois, todo o tesouro imenso
Desse imenso Aspirar tio entranhado, extremo!
Quem descobre, afinal, as causas do que eu penso,
As causas do que eu sofro, as causas do que eu gemo!
[Linha 2900 de 4636 - Parte 2 de 2]
Pois então hei de ter um afeto profundo,
Um grande sentimento, um sentimento insano
E hei de vê-lo rolar, nos turbilhões do mundo,
Para a vala comum do eterno Desengano?!
Pois esse filho meu que ali no berço dorme,
Ele mesmo tão casto e tão sereno e doce
Vem para ser na Vida o vão fantasma enorme
Das dilacerações que eu na minh'alma trouxe?!
Ah! Vida! Vida! Vida! Incendiada tragédia,
Transfigurado Horror, Sonho transfigurado,
Macabras contorções de lúgubre comédia
Que um cérebro de louco houvesse imaginado!
Meu filho que eu adoro e cubro de carinhos,
Que do mundo vilão ternamente defendo,
Há de mais tarde errar por tremedais e espinhos
Sem que o possa acudir no suplicio tremendo.
Que eu vagarei por fim nos mundos invisíveis,
Nas diluentes visões dos largos Infinitos,
Sem nunca mais ouvir os clamores horríveis,
A mágoa dos seus ais e os ecos dos seus gritos.
Vendo-o no berço assim, sinto muda agonia,
Um misto de ansiedade, um misto de tortura.
Subo e pairo dos céus na estrelada harmonia
E desço e entro do Inferno a furna hórrida, escura.
E sinto sede intensa e intensa febre, tanto,
Tanto Azul, tanto abismo atroz que me deslumbra.
Velha saudade ideal, monja de amargo Encanto,
Desce por sobre mim sua estranha penumbra.
Tu não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,
Do tormentoso Horror, tu nada sabes, nada...
O teu caminho e claro, é matinal de brilho,
Não conheces a sombra e os golpes da emboscada.
Nesse ambiente de amor onde dormes teu sono
[Linha 2950 de 4636 - Parte 2 de 2]
Não sentes nem sequer o mais ligeiro espectro...
Mas, ah! eu vejo bem, sinistra, sobre o trono,
A Dor, a eterna Dor, agitando o seu cetro!
índice
VISÃO GUIADORA
Ó alma silenciosa e compassiva
Que conversas com os Anjos da Tristeza,
Ó delicada e lânguida beleza
Nas cadeias das lágrimas cativa.
Frágil, nervosa timidez lasciva,
Graça magoada, doce sutileza
De sombra e luz e da delicadeza
Dolorosa de música aflitiva.
Alma de acerbo, amargurado exílio,
Perdida pelos céus num vago idílio
Com as almas e visões dos desolados.
Ó tu que és boa e porque és boa és bela,
Da Fé e da Esperança eterna estrela
Todo o caminho dos desamparados.
índice
LITANIA DOS POBRES
Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.
São espectros implacáveis
[Linha 3000 de 4636 - Parte 2 de 2]
Os rotos, os miseráveis.
São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.
São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.
As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear nas portas.
Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.
Faróis a noite apagados
Por ventos desesperados.
Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos Espaços.
Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.
Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.
Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do Esquecimento.
Perdidas na correnteza
Das culpas da Natureza.
Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!
Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.
[Linha 3050 de 4636 - Parte 2 de 2]
Imagens dos deletérios,
Imponderáveis mistérios.
Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.
Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos Destinos!
O pobres! o vosso bando
É tremendo, é formidando!
Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo...
Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.
Nos areiais e nas serras
Em hostes como as de guerras.
Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.
Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.
Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.
Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.
Perde-se além na poeira,
[Linha 3100 de 4636 - Parte 2 de 2]
Das Esferas na cegueira.
Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.
Como torres formidandas
De torturas miserandas.
E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.
E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.
E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.
E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.
Ó Pobres de ocultas chagas
Lá das mais longínquas plagas!
Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.
Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.
Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho...
Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.
Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.
[Linha 3150 de 4636 - Parte 2 de 2]
De torpores, d'indolências
E graças e quint'essências.
Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.
Vem nimbadas de magia,
De morna melancolia!
Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.
Balanceadas no letargo
Dos sopros que vem do largo...
Radiantes d'ilusionismos,
Segredos, orientalismos.
Que como em águas de lagos
Bóiam nelas cisnes vagos...
Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.
E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.
Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.
Que vestes a pompa ardente
Do velho Sonho dolente.
Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.
[Linha 3200 de 4636 - Parte 2 de 2]
índice
SPLEEN DE DEUSES
Oh! Dá-me o teu sinistro Inferno
Dos desesperos tétricos, violentos,
Onde rugem e bramem como os ventos
Anátemas da Dor, no fogo eterno...
Dá-me o teu fascinante, o teu falerno
Dos falernos das lágrimas sangrentos
Vinhos profundos, venenosos, lentos
Matando o gozo nesse horror do Averno.
Assim o Deus dos Páramos clamava
Ao Demônio soturno, e o rebelado,
Capricórnio Satã, ao Deus bradava.
Se és Deus-e já de mim tens triunfado,
Para lavar o Mal do Inferno e a bava
Dá-me o tédio senil do céu fechado...
índice
DIVINA
Eu não busco saber o inevitável
Das espirais da tua vi matéria.
Não quero cogitar da paz funérea
Que envolve todo o ser inconsolável.
Bem sei que no teu circulo maleável
De vida transitória e mágoa seria
Há manchas dessa orgânica miséria
Do mundo contingente , imponderável .
[Linha 3250 de 4636 - Parte 2 de 2]
Mas o que eu amo no teu ser obscuro
E o evangélico mistério puro
Do sacrifício que te torna heroína.
São certos raios da tu'alma ansiosa
E certa luz misericordiosa,
E certa auréola que te fez divina!
índice
CABELOS
I
Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos...
Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.
Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia...
Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!
índice
OLHOS
[Linha 3300 de 4636 - Parte 2 de 2]
II
A Grécia d'Arte, a estranha claridade
D'aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.
Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,
Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d'ouro,
Odisséias e deuses e galeras...
Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!...
índice
BOCA
III
Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Boca de pompa grega, purpureada,
Da majestade de um damasco assírio.
Boca para deleites e delírio
Da volúpia carnal e alucinada,
Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,
Boca de Ofélia morta sobre o lago,
Dentre a auréola de luz do sonho vago
E os faunos leves do luar inquietos...
[Linha 3350 de 4636 - Parte 2 de 2]
Estranha boca virginal, cheirosa,
Boca de mirra e incensos, milagrosa
Nos filtros e nos tóxicos secretos...
índice
SEIOS
IV
Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Das negras mancenilhas tentadoras,
Dos vagos narcotismos venenosos.
Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras
Nas paragens fatais, aterradoras
Do Tédio, nos desertos tenebrosos...
Seios de aroma embriagador e langue,
Da aurora de ouro do esplendor do sangue,
A alma de sensações tantalizando.
Ó seios virginais, tálamos vivos
Onde do amor nos êxtases lascivos
Velhos faunos febris dormem sonhando...
índice
MÃOS
V
Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
[Linha 3400 de 4636 - Parte 2 de 2]
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.
Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.
Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.
Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!
índice
PÉS
VI
Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
Como os pés de Jesus, rotos em chaga,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga
Do mistério sagrado de um afeto.
Pés que o fluido magnético, secreto
Da morte maculou de estranha e maga
Sensação esquisita que propaga
Um frio n'alma, doloroso e inquieto...
Pés que bocas febris e apaixonadas
Purificaram, quentes, inflamadas,
Com o beijo dos adeuses soluçantes.
Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos
[Linha 3450 de 4636 - Parte 2 de 2]
Geram fascinações dilacerantes!
índice
CORPO
VII
Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.
As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.
Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...
E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!
índice
CANÇÃO NEGRA
A Nestor Vitor
Ó boca em tromba retorcida
Cuspindo injúrias para o Céu,
Aberta e pútrida ferida
Em tudo pondo igual labéu.
[Linha 3500 de 4636 - Parte 2 de 2]
Ó boca em chamas, boca em chamas,
Da mais sinistra e negra voz,
Que clamas, clamas, clamas, clamas,
Num cataclismo estranho, atroz.
Ó boca em chagas, boca em chagas,
Somente anátemas a rir,
De tantas pragas, tantas pragas
Em catadupas a rugir.
Ó bocas de uivos e pedradas,
Visão histérica do Mal,
Cortando como mil facadas
Dum golpe só, transcendental.
Sublime boca sem pecado,
Cuspindo embora a lama e o pus,
Tudo a deixar transfigurado,
O lodo a transformar em luz.
Boca de ventos inclemente
De universais revoluções,
Alevantando as hostes quentes,
Os sanguinários batalhões.
Abençoada a canção velha
Que os lábios teus cantam assim
Na tua face que se engelha,
Da cor de lívido marfim.
Parece a furna do Castigo
Jorrando pragas na canção,
A tua boca de mendigo,
Tão tosco como o teu bordão.
Boca fatal de torvos trenos!
Da onipotência do bom Deus,
Louvados sejam tais venenos,
Purificantes como os teus!
Tudo precisa um ferro em brasa
[Linha 3550 de 4636 - Parte 2 de 2]
Para este mundo transformar...
Nos teus Anátemas põe asa
E vai no mundo praguejar!
Ó boca ideal de rudes trovas,
Do mais sangrento resplendor,
Vai reflorir todas as covas,
O facho a erguer da luz do Amor.
Nas vãs misérias deste mundo
Dos exorcismos cospe o fel...
Que as tuas pragas rasguem fundo
O coração desta Babel.
Mendigo estranho! Em toda a parte
Vai com teus gritos, com teus ais,
Como o simbólico estandarte
Das tredas convulsões mortais!
Resume todos esses travos
Que a terra fazem languescer.
Das mãos e pés arranca os cravos
Das cruzes mil de cada Ser.
A terra é mãe! -- mas ébria e louca
Tem germens bons e germens vis...
Bendita seja a negra boca
Que tão malditas coisas diz!
índice
A IRONIA DOS VERMES
Eu imagino que és uma princesa
Morta na flor da castidade branca...
Que teu cortejo sepulcral arranca
Por tanta pompa espasmos de surpresa.
[Linha 3600 de 4636 - Parte 2 de 2]
Que tu vais por um coche conduzida,
Por esquadrões flamívomos guardada,
Como carnal e virgem madrugada,
Bela das belas, sem mais sol, sem vida.
Que da Corte os luzidos Dignitários
Com seus aspectos marciais, bizarros,
Seguem-te após nos fagulhantes, carros
E a excelsa cauda dos cortejos vários.
Que a tropa toda forma nos caminhos
Por onde irás passar indiferente;
Que há no semblante vão de toda a gente
Curiosidades que parecem vinhos.
Que os potentes canhões roucos atroam
O espaço claro de uma tarde suave,
E que tu vais, Lírio dos lírios e ave
Do Amor, por entre os sons que te coroam.
Que nas flores, nas sedas, nos veludos,
E nos cristais do féretro radiante
Nos damascos do Oriente, na faiscante
Onda de tudo há longos prantos mudos.
Que do silêncio azul da imensidade,
Do perdão infinito dos Espaços
Tudo te dá os beijos e os abraços
Do seu adeus a tua Majestade.
Que de todas as coisas como Verbo
De saudades sem termo e de amargura,
Sai um adeus a tua formosura,
Num desolado sentimento acerbo.
Que o teu corpo de luz, teu corpo amado,
Envolto em finas e cheirosas vestes,
Sob o carinho das Mansões celestes
Ficará pela Morte encarcerado.
Que o teu séquito é tal, tal a coorte,
Tal o sol dos brasões, por toda a parte,
[Linha 3650 de 4636 - Parte 2 de 2]
Que em vez da horrenda Morte suplantar-te
Crê-se que és tu que suplantaste a Morte.
Mas dos faustos mortais a regia trompa,
Os grandes ouropéis, a real Quermesse,
Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que hás de afinal apodrecer com pompa.
Como que foram feitos de luxúria
E gozo ideal teus funerais luxuosos
Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebéia fúria.
Para que eles ao menos vendo as belas
Magnificências do teu corpo exausto
Mordam-te com cuidados e cautelas
Para o teu corpo apodrecer com fausto.
Para que possa apodrecer nas frias
Geleiras sepulcrais d'esquecimentos,
Nos mais augustos apodrecimentos,
Entre constelações e pedrarias.
Mas ah! quanta ironia atroz, funérea,
Imaginária e cândida Princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!
índice
INÊS
Tem teu nome a estranha graça
De uma galga verde, estranha.
Certo langor te adelgaça,
Certo encanto te acompanha.
És velada, quebradiça
[Linha 3700 de 4636 - Parte 2 de 2]
Como teu nome é velado.
Certa flor curiosa viça
No teu corpo edenizado.
Chamam-te a Inês dos quebrantos,
A galga verde, a felina,
Amaranto de amarantos,
Das franzinas a franzina.
Teus olhos, langues aquários
Adormentados de cisma,
Vivem mudos, solitários
Como uma treva que abisma.
Tua boca, vivo cravo
Sangüíneo, púrpuro, ardente,
De certa forma tem travo
Embora veladamente.
És lírio de velho outono,
Meiga Inês, e de tal sorte
Que já vives no abandono,
Meio enevoada da morte.
Teu beijo, do rosmaninho
Tem o sainete amargoso...
Lembra a saudade de um vinho
Secreto, mas venenoso.
Por um mistério indizível
Não te é dado amar na terra.
Vem de longe o Indefinível
Que os teus silêncios encerra!
Deus fechou-te a sete chaves
O coração lá no fundo...
Mas deu-te as asas das aves
Para irradiares no mundo.
índice
[Linha 3750 de 4636 - Parte 2 de 2]
HUMILDADE SECRETA
Fico parado, em êxtase suspenso,
Às vezes, quando vou considerando
Na humildade simpática, no brando
Mistério simples do teu ser imenso.
Tudo o que aspiro, tudo quanto penso
D'estrelas que andam dentro em mim cantando,
Ah! tudo ao teu fenômeno vai dando
Um céu de azul mais carregado e denso.
De onde não sei tanta simplicidade,
Tanta secreta e límpida humildade
Vem ao teu ser como os encantos raros.
Nos teus olhos tu alma transparece...
E de tal sorte que o bom Deus parece
Viver sonhando nos teus olhos claros.
índice
FLOR PERIGOSA
Ah! quem, trêmulo e pálido, medita
No teu perfil de áspide triste, triste,
Não sabe em quanto abismo essa infinita
Tristeza amarga singular consiste.
Tens todo o encanto de uma flor, o encanto
Secreto de uma flor de vago aroma...
Mas não sei que de morno e de quebranto
Vem, lasso e langue, dessa negra coma.
És das origens mais desconhecidas,
[Linha 3800 de 4636 - Parte 2 de 2]
De uma longínqua e nebulosa infância.
A visão das visões indefinidas,
De atra, sinistra mórbida elegância.
Como flor, entretanto, és bem amarga!
Pólens celestes o teu ser inundam,
Mas ninguém sabe a onda nervosa e larga
Dos insetos mortais que te circundam.
Quem teu aroma de mulher aspira
Fica entre ânsias de túmulo fechado...
Sente vertigens de vulcão, delira
E morre, sutilmente envenenado.
Teu olhar de fulgências e de treva,
Onde as volúpias a pecar se ajustam,
Guarda um mistério que envilece e eleva,
Causa delíquios e emoções que assustam.
És flor, mas como flor és perigosa,
Do mais sombrio e tétrico perigo...
Fenômenos fatais de luz ansiosa
Vão pelas noites segredar contigo.
Vão segredar que és feia e que és estranha
Sendo feia, mas sendo extravagante,
De enorme, de esquisita, de tamanha
Influência de eclipse radiante...
Sei! não nasceste sob a luz que ondeia
Na beleza e nos astros da saúde;
Mas sendo assim, morbidamente feia,
O teu ser feia torna-se virtude.
És feia e doente, surges desse misto,
Da exótica, da insana, da funesta
Auréola ideal dos martírios de Cristo
Naquela Dor absurdamente mesta.
Vens de lá, vens de 1á -- fundos remotos
Adelgaçando como os véus de um rio...
Abrindo do magoado e velho lótus
[Linha 3850 de 4636 - Parte 2 de 2]
Do sentimento, todo o sol doentio...
Mas quem quiser saber o quanto encerra
Teu ser, de mais profundo e mais nevoento,
Venha aspirar-te no teu vaso -- a Terra --
Ó perigosa flor do esquecimento!
índice
METEMPSICOSE
Agora, já que apodreceu a argila
Do teu corpo divino e sacrossanto;
Que embalsamaram de magoado pranto
A tua carne, na mudez tranqüila,
Agora, que nos Céus, talvez, se asila
Aquela graça e luminoso encanto
De virginal e pálido amaranto
Entre a Harmonia que nos Céus desfila.
Que da morte o estupor macabro e feio
Congelou as magnólias do teu seio,
Por entre catalépticas visões...
Surge, Bela das Belas, na Beleza
Do transcendentalismo da Pureza,
Nas brancas, imortais Ressurreições!
índice
OS MONGES
Montanhas e montanhas e montanhas
[Linha 3900 de 4636 - Parte 2 de 2]
Ei-los que vão galgando.
As sombras vãs das figuras estranhas
Na Terra projetando.
Habitam nas mansões do Imponderável
Esses graves ascetas;
Ocultando, talvez, no Inconsolável
Amarguras inquietas.
Como os reis Magos, trazem lá do Oriente
As alfaias preciosas,
Mas alfaias, surpreendentemente,
As mais miraculosas.
Nem incensos, nem mirras e nem ouros,
Nem mirras nem incensos,
Outros mais raros, mágicos tesouros
Sobre todos, imensos.
Pelos longínquos, sáfaros caminhos
Que vivem percorrendo,
A Dor, como atros, venenosos vinhos,
Os vai deliqüescendo.
São os monges sombrios, solitários,
Como esses vagos rios
Que passam nas florestas tumultuários,
Solitários, sombrios.
São monges das florestas encantadas,
Dos ignotos tumultos,
Almas na Terra desassossegadas,
Desconsolados vultos.
São os monges da Graça e do Mistério,
Faróis da Eternidade
Iluminando todo o Azul sidéreo
Da sagrada Saudade.
-- Onde e quando acharão o seu descanso
Eles que há tanto vagam?
Em que dia terão esse remanso
[Linha 3950 de 4636 - Parte 2 de 2]
Os seus pés que se chagam?
Quando caminham nas Regiões nevoentas,
Da lua nos quebrantos,
As suas sombras vagarosas, lentas
Ganham certos encantos...
Ficam nimbados pela luz da lua
Os seus perfis tristonhos...
Sob a dolência peregrina e crua
Dos tantálicos sonhos.
As Ilusões são seus mantos sangüíneos
De símbolos de dores,
De signos, de solenes vaticínios,
De nirvânicas flores.
Benditos monges imortais, benditos
Que etéreas harpas tangem!
Que rasgam d'alto a baixo os Infinitos,
Infinitos abrangem.
Deixai-os ir com os seus troféus bizarros
De humano Sentimento,
Arrebatados pelos ígneos carros
Do augusto Pensamento.
Que os leve a graça das errantes almas,
-- Grandes asas de tudo --
Entre as Hosanas, o verdor das palmas,
Entre o Mistério mudo!
Não importa saber que rumo trazem
Nem se é longo esse rumo...
Eles no Indefinido se comprazem,
São dele a chama e o fumo.
Deixai-os ir pela Amplidão a fora,
Nos Silêncios da esfera,
Nos esplendores da eternal Aurora
Coroados de Quimera!
[Linha 4000 de 4636 - Parte 2 de 2]
Deixai-os ir pela Amplidão, deixai-os,
No segredo profundo,
Por entre fluidos de celestes raios
Transfigurando o mundo.
Que só os astros do Azul cintilam
Pela sidérea rede
Saibam que os monges, lívidos, desfilam
Devorados de sede...
Que ninguém mais possa saber as ânsias
Nem sentir a Dolência
Que vindo das incógnitas Distancias
E dos monges a essência!
Monges, ó monges da divina Graça,
Lá da graça divina,
Deu-vos o Amor toda a imortal couraça
Dessa Fé que alucina.
No meio de anjos que vos-abençoam
Corações estremecem...
E tudo eternamente vos perdoam
Os que não vos esquecem.
Toda a misericórdia dos espaços
Vos oscule, surpresa...
E abri, serenos, largamente, os braços
A toda a Natureza!
índice
TRISTEZA DO INFINITO
Anda em mim, soturnamente,
Uma tristeza ociosa
Sem objetivo, latente,
Vaga, indecisa, medrosa.
[Linha 4050 de 4636 - Parte 2 de 2]
Como ave torva e sem rumo,
Ondula, vagueia, oscila
E sobe em nuvens de fumo
E na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo,
Fico nela meditando
E meditando, por tudo
E em toda a parte sonhando.
Tristeza de não sei donde,
De não sei quando nem como...
Flor mortal, que dentro esconde
Sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas,
Esparsas, indefinidas...
Como almas vagas, desertas
No rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte,
Diversa de outras tristezas,
Nem da vida nem da morte
Gerada nas correntezas...
Tristeza de outros espaços,
De outros céus, de outras esferas,
De outros límpidos abraços,
De outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam
Com volúpias tão sombrias
Que as nossas almas alagam
De estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fundo,
Sem origens prolongadas,
Sem saudades deste mundo,
Sem noites, sem alvoradas.
[Linha 4100 de 4636 - Parte 2 de 2]
Que principiam no sonho
E acabam na Realidade,
Através do mar tristonho
Desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível,
Abstrata, como se fosse
A grande alma do Sensível
Magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável,
Abismo, mistério aflito,
Torturante, formidável...
Ah! tristeza do Infinito!
índice
LUAR DE LÁGRIMAS
I
Nos estrelados, límpidos caminhos
Dos Céus, que um luar criva de prata e de ouro,
Abrem-se róseos e cheirosos ninhos,
E há muitas messes do bom trigo louro.
Os astros cantam meigas cavatinas,
E na frescura as almas claras gozam
Alvoradas eternal, cristalinas,
E os Dons supremos, divinais esposam.
Lá, a florescência dos Desejos
Tem sempre um novo e original perfume,
Tudo rejuvenesce dentre harpejos
E dentre palmas verdes se resume.
As próprias mocidades e as infâncias
Das coisas tem um esplendor infindo
E as imortalidades e as distancias
[Linha 4150 de 4636 - Parte 2 de 2]
Estão sempre florindo e reflorindo.
Tudo aÍ se consola e transfigura
Num Relicário de viver perfeito,
E em cada uma alma peregrina e pura
Alvora o sentimento mais eleito.
Tudo aí vive e sonha o imaculado
Sonho esquisito e azul das quint'essências,
Tudo é sutil e cândido, estrelado,
Embalsamado de eternais essências.
Lá as Horas são águias, voam, voam
Com grandes asas resplandecedoras...
E harpas augustas finamente soam
As Aleluias glorificadoras.
Forasteiros de todos os matizes
Sentem ali felicidades castas
E os que essas libações gozam felizes
Deixam da terra as vastidões nefastas.
Anjos excelsos e contemplativos,
Soberbos e solenes, soberanos,
Com aspectos grandíloquos, altivos,
Sonham sorrindo, angelicais e ufanos.
Lá não existe a convulsão da Vida
Nem os tremendos, trágicos abrolhos.
Há por tudo a doçura indefinida
Dos azuis melancólicos de uns olhos.
Véus brancos de Visões resplandecentes
Miraculosamente se adelgaçam...
E recordando essas Visões diluentes
Dolências beethovínicas perpassam.
Há magos e arcangélicos poderes
Para que as existências se transformem...
E os mais egrégios e completos seres
Sonos sagrados, impolutos dormem...
[Linha 4200 de 4636 - Parte 2 de 2]
E lá que vagam, que plangentes erram,
Lá que devem vagar, decerto, flóreas,
Puras, as Almas que eu perdi, que encerram
O meu Amor nas Urnas ilusórias.
Hosanas de perdão e de bondade
De celestial misericórdia santa
Abençoam toda essa claridade
Que na harmonia das Esferas canta.
Preces ardentes como ardentes sarças
Sobem no meio das divinas messes.
Lembra o vôo das pombas e das garças
A leve ondulação de tantas preces.
E quem penetra nesse ideal Domínio,
Por entre os raios das estrelas belas,
Todo o celeste e singular escrínio,
Todo o escrínio das lágrimas vê nelas.
E absorto, penetrando os Céus tão calmos,
Céus de constelações que maravilham,
Não sabe, acaso, se com os brilhos almos,
São estrelas ou lágrimas que brilham.
Mas ah! das Almas esse azul letargo,
Esse eterno, imortal Isolamento,
Tudo se envolve num luar amargo
De Saudade, de Dor, de Esquecimento!
Tudo se envolve nas neblinas densas
De outras recordações, de outras lembranças,
No doce luar das lágrimas imensas
Das mais inconsoláveis esperanças.
II
Ó mortos meus, ó desabados mortos!
Chego de viajar todos os portos.
Volto de ver inóspitas paragens,
As mais profundas regiões selvagens.
[Linha 4250 de 4636 - Parte 2 de 2]
Andei errando por funestas tendas
Onde das almas escutei as lendas.
E tornei a voltar por uma estrada
Erma, na solidão, abandonada.
Caminhos maus, atalhos infinitos
Por onde só ouvi ânsias e gritos.
por toda a parte a rir o incêndio e a peste
Debaixo da Ilusão do Azul celeste.
Era também luar, luar lutuoso
Pelas estradas onde errei saudoso...
Era também luar, o luar das penas,
Brando luar das Ilusões terrenas.
Era um luar de triste morbideza
Amortalhando toda a natureza.
E eu em vão busquei, Mortos queridos,
Por entre os meus tristíssimos gemidos.
Em vão pedi os filtros dos segredos
Da vossa morte, a voz dos arvoredos.
Em vão fui perguntar ao Mar que e cego
A lei do Mar do Sonho onde navego.
Ao Mar que e cego, que não vê quem morre
Nas suas ondas, onde o sol escorre...
Em vão fui perguntar ao Mar antigo
Qual era o vosso desolado abrigo.
Em vão vos procurei cheio de chagas,
[Linha 4300 de 4636 - Parte 2 de 2]
Por estradas insólitas e vagas.
Em vão andei mil noites por desertos,
Com passos, espectrais, dúbios, incertos.
Em vão clamei pelo luar a fora,
Pelos ocasos, pelo albor da aurora.
Em vão corri nos areiais terríveis
E por curvas de montes impassíveis.
Só um luar, só um luar de morte
Vagava igual a mim, com a mesma sorte.
Só um luar sempre calado e dútil,
Para a minha aflição, acerbo e inútil.
Um luar de silêncio formidável
Sempre me acompanhando, impenetrável.
Só um luar de mortos e de mortas
Para sempre a fechar-me as vossas portas.
E eu, já purgado dos terrestres
Crimes, Sem achar nunca essas portas sublimes.
Sempre fechado a chave de mistério
O vosso exílio pelo Azul sidéreo.
Só um luar de trêmulos martírios
A iluminar-me com clarões de círios.
Só um luar de desespero horrendo
Ah! sempre me pungindo e me vencendo.
Só um luar de lágrimas sem termos
Sempre me perseguindo pelos ermos.
[Linha 4350 de 4636 - Parte 2 de 2]
E eu caminhando cheio de abandono
Sem atingir o vosso claro trono.
Sozinho para longe caminhando
Sem o vosso carinho venerando.
Percorrendo o deserto mais sombrio
E de abandono a tiritar de frio...
Ó Sombras meigas, ó Refúgios ternos
Ah! como penetrei tantos Infernos!
Como eu desci sem vós negras escarpas,
A Almas do meu ser, Ó Almas de harpas!
Como senti todo esse abismo ignaro
Sem nenhuma de vós por meu amparo.
Sem a benção gozar, serena e doce,
Que o vosso Ser aos meus cuidados trouxe.
Sem ter ao pe de mim o astral cruzeiro
Do vosso grande amor alvissareiro.
Por isso, ó sombras, sombras impolutas,
Eu ando a perguntar as formas brutas.
E ao vento e ao mar e aos temporais que ululam
Onde é que esses perfis se crepusculam.
Caminho, a perguntar, em vão, a tudo,
E só vejo um luar soturno e mudo.
Só contemplo um luar de sacrifícios,
De angústias, de tormentas, de cilícios.
E sem ninguém, ninguém que me responda
[Linha 4400 de 4636 - Parte 2 de 2]
Tudo a minh'alma nos abismos sonda.
Tudo, sedenta, quer saber, sedenta
Na febre da Ilusão que mais aumenta.
Tudo, mas tudo quer saber, não cessa
De perscrutar e a perscrutar começa.
De novo sobe e desce escadarias
D'estrelas, de mistérios, de harmonias.
Sobe e não cansa, sobe sempre, austera,
Pelas escadarias da Quimera.
Volta, circula, abrindo as asas volta
E os vôos de águia nas Estrelas solta.
Cada vez mais os vôos no alto apruma
Para as etéreas amplidões da Bruma.
E tanta forca na ascensão desprende
Da envergadura, a proporção que ascende...
Tamanho impulso, colossal, tamanho
Ganha na Altura, no Esplendor estranho.
Tanto os esforços em subir concentra,
Em tantas zonas de Prodígios entra.
Nas duas asas tal vigor supremo
Leva, através de todo o Azul extremo,
Que parece cem águias de atras garras
Com asas gigantescas e bizarras.
Cem águias soberanas, poderosas
Levantando as cabeças fabulosas.
[Linha 4450 de 4636 - Parte 2 de 2]
E voa, voa, voa, voa imersa
Na grande luz dos Paramos dispersa.
E voa, voa, voa, voa, voa
Nas Esferas sem fim perdida a toa.
Ate que exausta da fadiga e sonho
Nessa vertigem, nesse errar medonho.
Ate que tonta de abranger Espaços,
Da Luz nos fulgidíssimos abraços.
Depois de voar a tão sutis Encantos,
Vendo que as Ilusões a abandonaram,
Chora o luar das lágrimas, os prantos
Que pelos Astros se cristalizaram!
índice
ÉBRIOS E CEGOS
Fim de tarde sombria.
Torvo e pressago todo o céu nevoento.
Densamente chovia.
Na estrada o lodo e pelo espaço o vento.
Monótonos gemidos
Do vento, mornos, lânguidos, sensíveis:
Plangentes ais perdidos
De solitários seres invisíveis...
Dois secretos mendigos
Vinham, bambos, os dois, de braço dado,
Como estranhos amigos
Que se houvessem nos tempos encontrado.
[Linha 4500 de 4636 - Parte 2 de 2]
Parecia que a bruma
Crepuscular os envolvia, absortos
Numa visão, nalguma
Visão fatal de vivos ou de mortos.
E de ambos o andar lasso
Tinha talvez algum sonambulismo,
Como através do espaço
Duas sombras volteando num abismo.
Era tateante, vago
De ambos o andar, aquele andar tateante
De ondulação de lago,
Tardo, arrastado, trêmulo, oscilante.
E tardo, lento, tardo,
Mais tardo cada vez, mais vagaroso,
No torvo aspecto pardo
Da tarde, mais o andar era brumoso.
Bamboleando no lodo,
Como que juntos resvalando aéreos,
Todo o mistério, todo
Se desvendava desses dois mistérios:
Ambos ébrios e cegos,
No caos da embriaguez e da cegueira,
Vinham cruzando pegos
De braço dado, a sua vida inteira.
Ninguém diria, entanto,
O sentimento trágico, tremendo,
A convulsão de pranto
Que aquelas almas iam turvescendo.
Ninguém sabia, certos,
Quantos os desesperos mais agudos
Dos mendigos desertos,
Ébrios e cegos, caminhando mudos.
Ninguém lembrava as ânsias
Daqueles dois estados meio gêmeos,
[Linha 4550 de 4636 - Parte 2 de 2]
Presos nas inconstâncias
De sofrimentos quase que boêmios.
Ninguém diria nunca,
Ébrios e cegos, todos dois tateando,
A que atroz espelunca
Tinham, sem vista, ido beber, bambeando.
Que negro álcool profundo
Turvou-lhes a cabeça e que sudário
Mais pesado que o mundo
Pôs-lhes nos olhos tal horror mortuário.
E em tudo, em tudo aquilo,
Naqueles sentimentos tão estranhos.
De tamanho sigilo,
Como esses entes vis eram tamanhos!
Que tão fundas cavernas,
Aquelas duas dores enjaularam,
Miseráveis e eternas
Nos horríveis destinos que as geraram.
Que medonho mar largo,
Sem lei, sem rumo, sem visão, sem norte,
Que absurdo tédio amargo
De almas que apostam duelar com a morte!
Nas suas naturezas,
Entre si tão opostas, tão diversas,
Monstruosas grandezas
Medravam, já unidas, já dispersas.
Onde a noite acabava
Da cegueira feral de atros espasmos,
A embriaguez começava
Rasgada de ridículos sarcasmos.
E bêbadas, sem vista,
Na mais que trovejante tempestade,
Caminhando a conquista
Do desdém das esmolas sem piedade,
[Linha 4600 de 4636 - Parte 2 de 2]
Lá iam, juntas, bambas,
-- acorrentadas convulsões atrozes --,
Ambas as vidas, ambas
Já meio alucinadas e ferozes.
E entre a chuva e entre a lama
E soluços e lágrimas secretas,
Presas na mesma trama,
Turvas, flutuavam, trêmulas, inquietas.
Mas ah! torpe matéria!
Se as atritassem, como pedras brutas,
Que chispas de miséria
Romperiam de tais almas corruptas!
Tão grande, tanta treva,
Tão terrível, tão trágica, tão triste,
Os sentidos subleva,
Cava outro horror, fora do horror que existe.
Pois do sinistro sonho
Da embriaguez e da cegueira enorme,
Erguia-se, medonho,
Da loucura o fantasma desconforme.
...
FIM - FIM - FIM
...
Faróis - Parte 1 de 2 - Cruz e Sousa
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Faróis - Parte 1 de 2 - Cruz e Sousa
http://publicadosbrasil.blogspot.com/2018/06/farois-parte-2-de-2-cruz-e-sousa.html
Literatura Clássica Brasileira - LIVROS ONLINE - http://bit.ly/2ne9ngz
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