FARÓIS - PARTE 1 DE 2 - CRUZ E SOUSA
Obra póstuma Faróis de Cruz e Sousa, composta por poemas em verso e organizada pelo amigo Nestor Victor que nos comentários a esta edição diz: Cruz e Souza confiou-me antes de partir para a estação do Sitio, onde três dias depois faleceu, todos aqueles de seus manuscritos que ele destinava á publicação. Esta é uma obra póstuma publicada em 1900.
(SEGUE ABAIXO A OBRA COMPLETA DIVIDIDA EM 2 PARTES)
Faróis, Cruz e Sousa
Índice
RECOLTA DE ESTRELAS
RECORDA!
CANÇÃO DO BÊBADO
A FLOR DO DIABO
AS ESTRELAS
PANDEMONIUM
ENVELHECER
FLORES DA LUA
TÉDIO
LÍRIO ASTRAL
SEM ESPERANÇA
CAVEIRA
RÉQUIEM DO SOL
ESQUECIMENTO
VIOLÕES QUE CHORAM...
OLHOS DO SONHO
ENCLAUSURADA
MÚSICA DA MORTE...
MONJA NEGRA
INEXORÁVEL
[Linha 50 de 4636 - Parte 1 de 2]
RÉQUIEM
VISÃO
PRESSAGO
RESSURREIÇÃO
ENLEVO
PIEDOSA
AUSÊNCIA MISTERIOSA
MEU FILHO
VISÃO GUIADORA
LITANIA DOS POBRES
SPLEEN DE DEUSES
DIVINA
CABELOS
OLHOS
BOCA
SEIOS
MÃOS
PÉS
CORPO
CANÇÃO NEGRA
A IRONIA DOS VERMES
INÊS
HUMILDADE SECRETA
FLOR PERIGOSA
METEMPSICOSE
[Linha 100 de 4636 - Parte 1 de 2]
OS MONGES
TRISTEZA DO INFINITO
LUAR DE LÁGRIMAS
ÉBRIOS E CEGOS
RECOLTA DE ESTRELAS
(1 out. 1895)
A Tibúrcio de Freitas
Filho meu, de nome escrito
Da minh'alma no Infinito.
Escrito a estrelas e sangue
No farol da lua langue...
Das tuas asas serenas
Faz manto para estas penes.
Dá-me a esmola de um carinho
Como a luz de um claro vinho.
Com tua mão pequenina
Caminhos em flor me ensina.
Com teu riso fresco e suave
Oh! Dá-me do encanto a chave.
Do teu florão de Inocência
Dá-me as roses da Clemência.
Como outro Jesus bambino,
Esclarece-me o Destino.
Traz luz ao mundano pego
Onde sigo, mudo e cego...
[Linha 150 de 4636 - Parte 1 de 2]
Com teus enleios e graça
Nos meus cuidados perpassa.
Este peito acende, inflama
Na mais sacrossanta chama.
Faz brotar nevados lírios
Das cruzes dos meus martírios.
Dá-me um sol de estranho brilho,
Flor das lágrimas, meu filho.
Rebento triste, orvalhado
Com tanto pranto chorado.
Filho das ânsias, das ânsias,
Das misteriosas fragrâncias,
Filho de aromas secretos
E de desejos inquietos.
De suspiros anelantes
E impaciências clamantes.
Filho meu, tesouro mago
De todo esse afeto vago...
Filho meu, torre mais alta
De onde o meu amor se exalta.
Ânfora azul, de onde o incenso
dos sonhos se eleva denso.
Constelação flamejada
De toda esta vida ansiada.
[Linha 200 de 4636 - Parte 1 de 2]
Crisol onde lento, lento
Purifico o Sentimento.
Íris curioso onde giro
E alucinado deliro.
Signo dos signos extremos
Destes tormentos supremos.
Orbita de astros onde pairo
E em febre de luz desvairo.
Vertigem, vertigem viva
Da paixão mais convulsiva.
Traz-me unção, traz-me concórdia
E paz e misericórdia.
Do teu sorriso a frescura
Rios de ouro abra, na Altura.
Abra, acenda labaredas,
Iluminando-me as quedas.
Flor noturna da luxúria
Brotada de haste purpúrea.
Dos teus olhos dadivosos
Escorram óleos preciosos...
Óleos cândidos, dos mundos
Maravilhosos, profundos.
Óleos virgens se derramem
E o meu viver embalsamem.
Embalsamem de eloqüentes,
Celestes dons prefulgentes.
[Linha 250 de 4636 - Parte 1 de 2]
Para que eu possa com calma
Erguer os castelos da alma.
Para que eu durma tranqüilo
Lá no sepulcral Sigilo.
Ó meu Filho, ó meu eleito
Deslumbramento perfeito.
Traz novo esplendor ao facho
Com que altos Mistérios acho
Meu Filho, frágil e terno,
Socorre-me do atro Inferno.
Onde vibram gládios duros
Por ergástulos escuros.
E cruzam flamíneas, fortes,
Negras vidas, negras mortes.
Onde tecem Satanases
Sete círculos vorazes...
índice
RECORDA!
Quando a onda dos desejos inquietantes,
Que do peito transborda,
Morrer, enfim, nas amplidões distantes,
Recorda-te, recorda...
Revive dessa música já finda
[Linha 300 de 4636 - Parte 1 de 2]
Que nas estrelas dorme.
Volta-te ao mundo sedutor ainda
Da ilusão multiforme!
Volta, recorda eternamente, volta
Aos faróis da Esperança,
Do Sonho estranho as grandes asas solta
À celeste Bonança.
Recorda mágoas, lágrimas e risos
E soluços e anseios...
Revive dos nevoeiros indecisos
E dos vãos devaneios.
Revive! Goza! Desolado, embora,
Sorrindo e soluçando,
Erguendo os véus de já passada aurora,
Recordando e sonhando...
Cada alma tem seu íntimo recato
Numa estrela perdida
E cada coração intemerato
Tem na estrela uma vida.
Aplica o ouvido a correnteza fria
Dos golfões da matéria
E recorda de que lama sombria
E composta a miséria.
Recorda! Sonha! Nas estrelas erra,
Beduíno do Espaço
Aos sonhos brancos, que não são da Terra,
Dá, sorrindo, o teu braço...
Dá o teu braço, pelos céus sorrindo
E recordando parte
E hás de entender os claros céus, sentindo
Que andas a recordar-te.
Bate a porta dos Astros solitários
Dos eternos Fulgores,
Em busca desses mortos visionários,
[Linha 350 de 4636 - Parte 1 de 2]
Almas de sonhadores.
Ah! volta a infância dos primeiros beijos,
Dos momentos sidéreos,
Volta a sede dos últimos desejos,
Dos primeiros mistérios!
Ah! volta aos desenganos primitivos,
Volta a essência dos anos,
Volta aos espectros tristemente vivos,
Ah! volta aos desenganos!
Volta aos serenos, flóridos oásis,
Volta aos hinos profundos,
Volta as eflorescências dos Lilazes,
Volta, volta a esses mundos!
Fique na Sombra e no Silêncio d'alma
Todo o teu ser dolente,
Para tranqüilo, com ternura e calma,
Recordar docemente...
Na Sombra então e no Silêncio denso,
Como em mágicas plagas,
Faz acender o alampadário imenso
Das recordações vagas...
Pousa a cabeça, meigamente pousa
Nesse augusto Quebranto
E nem da Terra a mais ligeira cousa
Te desperte do Encanto.
Para o Amor, para a Dor e para o Sonho
Nas Esferas transborda...
E entre um soluço e um segredo risonho
Recorda-te, recorda...
índice
[Linha 400 de 4636 - Parte 1 de 2]
CANÇÃO DO BÊBADO
Na lama e na noite triste
Aquele bêbado ri!
Tu'alma velha onde existe?
Quem se recorda de ti?
Por onde andam teus gemidos,
Os teus noctâmbulos ais?
Entre os bêbados perdidos
Quem sabe do teu -- jamais?
Por que é que ficas à lua
Contemplativo, a vagar?
Onde a tua noiva nua
Foi tão depressa a enterrar?
Que flores de graça doente
Tua fronte vem florir
Que ficas amargamente
Bêbado, bêbado a rir?
Que vês tu nessas jornadas?
Onde está o teu jardim
E o teu palácio de fadas,
Meu sonâmbulo arlequim?
De onde trazes essa bruma,
Toda essa névoa glacial
De flor de lânguida espuma,
Regada de óleo mortal?
Que soluço extravagante,
Que negro, soturno fel
Põe no teu ser doudejante
A confusão da Babel?
Ah! das lágrimas insanas
Que ao vinho misturas bem,
Que de visões sobre-humanas
Tu'alma e teus olhos tem!
[Linha 450 de 4636 - Parte 1 de 2]
Boca abismada de vinho,
Olhos de pranto a correr,
Bendito seja o carinho
Que já te faça morrer!
Sim! Bendita a cova estreita
Mais larga que o mundo vão,
Que possa conter direita
A noite do teu caixão!
índice
A FLOR DO DIABO
Branca e floral como um jasmim-do-Cabo
Maravilhosa ressurgiu um dia
A fatal Criação do fuIvo Diabo,
Eleita do pecado e da Harmonia.
Mais do que tudo tinha um ar funesto,
Embora tão radiante e fabulosa.
Havia sutilezas no seu gesto
De recordar uma serpente airosa.
Branca, surgindo das vermelhas chamas
Do Inferno inquisitor, corrupto e langue,
Ela lembrava, Flor de excelsas famas,
A Via-Láctea sobre um mar de sangue.
Foi num momento de saudade e tédio,
De grande tédio e singular Saudade,
Que o Diabo, já das culpas sem remédio,
Para formar a egrégia majestade,
Gerou, da poeira quente das areias
Das praias infinitas do Desejo,
Essa langue sereia das sereias,
[Linha 500 de 4636 - Parte 1 de 2]
Desencantada com o calor de um beijo.
Sobre galpões de sonho os seus palácios
Tinham bizarros e galhardos luxos.
Mais grave de eloqüência que os Horácios,
Vivia a vida dos perfeitos bruxos.
Sono e preguiça, mais preguiça e sono,
Luxúrias de nababo e mais luxúrias,
Moles coxins de lânguido abandono
Por entre estranhas florações purpúreas.
Às vezes, sob o luar, nos rios mortos,
Na vaga ondulação dos lagos frios,
Boiavam diabos de chavelhos tortos,
E de vultos macabros, fugidios.
A lua dava sensações inquietas
As paisagens avérnicas em torno
E alguns demônios com perfis de ascetas
Dormiam no luar um sono morno...
Foi por horas de Cisma, horas etéreas
De magia secreta e triste, quando
Nas lagoas letíficas, sidéreas,
O cadáver da lua vai boiando...
Foi numa dessas noites taciturnas
Que o velho Diabo, sábio dentre os sábios,
Desencantado o seu poder das furnas,
Com o riso augusto a flamejar nos lábios,
Formou a flor de encantos esquisitos
E de essências esdrúxulas e finas,
Pondo nela oscilantes infinitos
De vaidades e graças femininas.
E deu-lhe a quint'essência dos aromas,
Sonoras harpas de alma, extravagancias,
Pureza hostial e púbere de pomas,
Toda a melancolia das distancias...
[Linha 550 de 4636 - Parte 1 de 2]
Para haver mais requinte e haver mais viva,
Doce beleza e original carícia,
Deu-lhe uns toques ligeiros de ave esquiva
E uma auréola secreta de malícia.
Mas hoje o Diabo já senil, já fóssil,
Da sua Criação desiludido,
Perdida a antiga ingenuidade dócil,
Chora um pranto noturno de Vencido.
Como do fundo de vitrais, de frescos
De góticas capelas isoladas,
Chora e sonha com mundos pitorescos,
Na nostalgia das Regiões Sonhadas.
índice
AS ESTRELAS
Lá, nas celestes regiões distantes,
No fundo melancólico da Esfera,
Nos caminhos da eterna Primavera
Do amor, eis as estrelas palpitantes.
Quantos mistérios andarão errantes,
Quantas almas em busca da Quimera,
Lá, das estrelas nessa paz austera
Soluçarão, nos altos céus radiantes.
Finas flores de pérolas e prata,
Das estrelas serenas se desata
Toda a caudal das ilusões insanas.
Quem sabe, pelos tempos esquecidos,
Se as estrelas não são os ais perdidos
Das primitivas legiões humanas?!
[Linha 600 de 4636 - Parte 1 de 2]
índice
PANDEMONIUM
A Maurício Jubim
Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia.
Aflito, aflito, amargamente aflito,
Num gesto estranho que parece um grito.
E ondula e ondula e palpitando vaga,
Como profunda, como velha chaga.
E paira sobre ergástulos e abismos
Que abrem as bocas cheias de exorcismos.
Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,
Segue-te atrás uma visão vermelha.
Uma visão gerada do teu sangue
Quando no Horror te debateste exangue,
Uma visão que é tua sombra pura
rodando na mais trágica tortura.
A sombra dos supremos sofrimentos
Que te abalaram como negros ventos.
E a sombra as tuas voltas acompanha
Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.
E o teu perfil no vácuo perpassando
Vê rubros caracteres flamejando.
[Linha 650 de 4636 - Parte 1 de 2]
Vê rubros caracteres singulares
De todos os festins de Baltazares.
Por toda a parte escrito em fogo eterno:
Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!
E os emissários espectrais das mortes
Abrindo as grandes asas flamifortes...
E o teu perfil oscila, treme, ondula,
Pelos abismos eternais circula...
Circula e vai gemendo e vai gemendo
E suspirando outro suspiro horrendo.
E a sombra rubra que te vai seguindo
Também parece ir soluçando e rindo.
Ir soluçando, de um soluço cavo
Que dos venenos traz o torvo travo.
Ir soluçando e rindo entre vorazes
Satanismos diabólicos, mordazes.
E eu já nem sei se e realidade ou sonho
Do teu perfil o divagar medonho.
Não sei se e sonho ou realidade todo
Esse acordar de chamas e de lodo.
Tal é a poeira extrema confundida
Da morte a raios de ouro de outra Vida.
Tais são as convulsões do último arranco
Presas a um sonho celestial e branco.
Tais são os vagos círculos inquietos
Dos teus giros de lágrimas secretos.
[Linha 700 de 4636 - Parte 1 de 2]
Mas, de repente, eis que te reconheço,
Sinto da tua vida o amargo preço.
Eis que te reconheço escravizada,
Divina Mãe, na Dor acorrentada.
Que reconheço a tua boca presa
Pela mordaça de uma sede acesa
Presa, fechada pela atroz mordaça
Dos fundos desesperos da Desgraça.
Eis que lembro os teus olhos visionários
Cheios do fel de bárbaros Calvários.
E o teu perfil asas abrir parece
Para outra Luz onde ninguém padece...
Com doçuras feéricas e meigas
De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas.
E o teu perfil forma um saudoso vulto
Como de Santa sem altar, sem culto.
Forma um vulto saudoso e peregrino
De força que voltou ao seu destino.
De ser humano que sofrendo tanto
Purificou-se nos Azuis do Encanto.
Subiu, subiu e mergulhou sozinho,
Desamparado, no fetal caminho.
Que lá chegou transfigurado e aéreo,
Com os aromas das flores do Mistério.
[Linha 750 de 4636 - Parte 1 de 2]
Que lá chegou e as mortas portas mudas
Fez abalar de imprecações agudas...
E vai e vai o teu perfil ansioso,
De ondulações fantásticas, brumoso.
E vai perdido e vai perdido, errante,
Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante.
Vai suspirando, num suspiro vivo
Que palpita nas sombras incisivo...
Um suspiro profundo, tão profundo
Que arrasta em si toda a paixão do mundo.
Suspiro de martírio, de ansiedade,
De alívio, de mistério, de saudade.
Suspiro imenso, aterrador e que erra
Por tudo e tudo eternamente aterra...
O pandemonium de suspiros soltos
Dos condenados corações revoltos.
Suspiro dos suspiros ansiados
Que rasgam peitos de dilacerados.
E mudo e pasmo e compungido e absorto,
Vendo o teu lento e doloroso giro,
Fico a cismar qual é o rio morto
Onde vai divagar esse suspiro.
índice
ENVELHECER
[Linha 800 de 4636 - Parte 1 de 2]
Flor de indolência, fina e melindrosa,
Cativante sereia da esperança,
Cedo tiveste a crença dolorosa
De quanto a vida é velha e como cansa...
Na lânguida, na morna morbideza
Do teu amargo e triste celibato,
Tu te fechaste para a Natureza
Como a lua no célico recato.
No fundo delicado dos teus seios
Foste esconder os sentimentos vagos,
E todos os dolentes devaneios
Das estrelas sonhando a flor dos lagos.
Todas as altas celas de ouro e prata
De teu claustro de Virgem sem afeto
Fecharam sobre tu'alma timorata
Austeras portas, com fragor secreto.
No entanto, havia no teu corpo ondeante
As delícias sutis de um céu fugace...
E era talvez o encanto mais picante
A graça aldeã do teu nariz rapace.
Teus olhos tinham certa magoa nobre
E certo fundo de doirado abismo
E a malícia que logo se descobre
Em olhos de felino narcotismo.
Mas na boca trazias todo o oculto
Toque sombrio de ironia grave...
E como que as belezas do teu vulto
Abriam asas peregrinas de ave.
Tinhas na boca esse elixir ardente
Da volúpia mortal dos gozos e essa
Chama de boca, feita unicamente
Para no gozo envelhecer depressa.
E envelheceste tanto, muito cedo,
[Linha 850 de 4636 - Parte 1 de 2]
Sumiu-se tão depressa o teu encanto,
Foi tão falaz o sedutor segredo
Do teu carnal e lânguido quebranto!
Envelheceste para os vãos idílios,
Para os estranhos estremecimentos,
Para os brilhos iriantes dos teus cílios
E para os sepulcrais esquecimentos.
Envelheceste para os vãos amores,
E para os olhos, para as mãos que abrias
Como dois talismãs de brancas flores
E de leves e doces harmonias...
Presa, sem ar, sem sol, crepusculada
No celibato que não tem perfume
De todo envelheceste abandonada,
Já como um ser que não provoca ciúme.
Envelhecer é reduzir a vida
A sentimentos de tristeza austera,
Enclausurá-la numa grave ermida
De luto e de silêncio sem quimera.
E envelhecer na juventude flórea,
Do celibato emurchecido lírio
E ficar sob os pálios da ilusória
Melancolia, como a luz de um círio...
Envelhecer assim, virgem e forte,
E cerrar contra o mundo a rósea porta
Do Amor e apenas esperar a Morte,
A alma já muda, há muito tempo morta.
Envelheces de tédio, de cansaço,
D'ilusões e de cismas e de penes,
Como envelhece no celeste espaço
O turbilhão das estrelas serenas.
O Amor os corações fez interditos
Ao teu magoado coração cativo
E apagou-te os sublimes infinitos
[Linha 900 de 4636 - Parte 1 de 2]
Do seu clarão fecundador e vivo.
Hoje envelheces na clausura imensa,
Dentro de um sonho pálido feneces.
Tua beleza veste névoa densa,
Em surdinas e sombras envelheces.
De pranto e luar, num desolado misto,
Cai a noite na tua puberdade
E como a Rediviva do Imprevisto,
Erras e sonhas pela Eternidade!
índice
FLORES DA LUA
Brancuras imortais da Lua Nova
Frios de nostalgia e sonolência...
Sonhos brancos da Lua e viva essência
Dos fantasmas noctívagos da Cova.
Da noite a tarda e taciturna trova
Soluça, numa tremula dormência...
Na mais branda, mais leve florescência
Tudo em Visões e Imagens se renova.
Mistérios virginais dormem no Espaço,
Dormem o sono das profundas seivas,
Monótono, infinito, estranho e lasso...
E das Origens na luxúria forte
Abrem nos astros, nas sidéreas leivas
Flores amargas do palor da Morte.
índice
[Linha 950 de 4636 - Parte 1 de 2]
TÉDIO
Vala comum de corpos que apodrecem,
E esverdeada gangrene
Cobrindo vastidões que fosforescem
Sobre a esfera terrena.
Bocejo torvo de desejos turvos,
Languescente bocejo
De velhos diabos de chavelhos curvos
Rugindo de desejo.
Sangue coalhado, congelado, frio,
Espasmado nas veias...
Pesadelo sinistro de algum rio
De sinistras sereias...
Alma sem rumo, a modorrar de sono,
Mole, túrbida, lassa...
Monotonias lúbricas de um mono
Dançando numa praça...
Mudas epilepsias, mudas, mudas,
Mudas epilepsias,
Masturbações mentais, fundas, agudas,
Negras nevrostenias.
Flores sangrentas do soturno vício
Que as almas queima e morde...
Música estranha de fetal suplício,
Vago, mórbido acorde...
Noite cerrada para o Pensamento
Nebuloso degredo
Onde em cavo clangor surdo do vento
Rouco pragueja o medo.
Plaga vencida por tremendas pragas,
Devorada por pestes,
Esboroada pelas rubras chagas
[Linha 1000 de 4636 - Parte 1 de 2]
Dos incêndios celestes.
Sabor de sangue, Lágrimas e terra
Revolvida de fresco,
Guerra sombria dos sentidos, guerra,
Tantalismo dantesco.
Silêncio carregado e fundo e denso
Como um poço secreto,
Dobre pesado, carrilhão imenso
Do segredo inquieto...
Florescência do Mal, hediondo parto
Tenebroso do crime,
Pandemonium feral de ventre farto
Do Nirvana sublime.
Delírio contorcido, convulsivo
De felinas serpentes,
No silamento e no mover lascivo
Das caudas e dos dentes.
Porco lúgubre, lúbrico, trevoso
Do tábido pecado,
Fuçando colossal, formidoloso
Nos lodos do passado.
Ritmos de forças e de graças mortas,
Melancólico exílio,
Difusão de um mistério que abre portas
Para um secreto idílio...
Ócio das almas ou requinte delas,
Quint'essências, velhices
De luas de nevroses amarelas,
Venenosas meiguices.
Insônia morna e doente dos Espaços,
Letargia funérea,
Vermes, abutres a correr pedaços
Da carne deletéria.
[Linha 1050 de 4636 - Parte 1 de 2]
Um misto de saudade e de tortura,
De lama, de Ódio e de asco,
Carnaval infernal da Sepultura,
Risada do carrasco.
Ó tédio amargo, ó tédio dos suspiros,
Ó tédio d'ansiedades!
Quanta vez eu não subo nos teus giros
Fundas eternidades!
Quanta vez envolvido do teu luto
Nos sudários profundos
Eu, calado, a tremer, ao longe, escuto
Desmoronarem mundos!
Os teus soluços, todo o grande pranto,
Taciturnos gemidos,
Fazem gerar flores de amargo encanto
Nos corações doridos.
Tédio! que pões nas almas olvidadas
Ondulações de abismo
E sombras vesgas, lívidas, paradas,
No mais feroz mutismo!
Tédio do Réquiem do Universo inteiro,
Morbus negro, nefando,
Sentimento fatal e derradeiro
Das estrelas gelando...
O Tédio! Rei da Morte! Rei boêmio!
Ó Fantasma enfadonho!
És o sol negro, o criador, o gêmeo,
Velho irmão do meu sonho!
índice
LÍRIO ASTRAL
[Linha 1100 de 4636 - Parte 1 de 2]
Lírio astral, ó lírio branco
Ó lírio astral,
No meu derradeiro arranco
Sê cordial!
Perfuma de graça leve
O meu final
Com o doce perfume breve,
Ó lírio astral!
Dá-me esse óleo sacrossanto
Toda a caudal
Do óleo casto do teu pranto,
Ó lírio astral!
Traz-me o alivio dos alívios,
Ó virginal,
Ó lírio dos lírios níveos,
Ó Lírio astral!
Dentre as sonatas da lua
Celestial,
Lírio, vem, Lírio, flutua,
Ó Lírio astral!
Dos raios das noites de ouro,
Do Roseiral,
Do constelado tesouro,
Ó lírio astral!
Desprende o fino perfume
Etereal
E vem do celeste fume,
Ó lírio astral!
Da maviosa suavidade
Do céu floral
Traz a meiga claridade,
Ó lírio astral!
[Linha 1150 de 4636 - Parte 1 de 2]
Que bendita e sempre pura
E divinal
Seja-me a tua frescura,
Ó lírio astral!
Que ela, enfim, me transfigure,
Na hora fatal
E os meus sentidos apure,
Ó lírio astral!
Que tudo que me é avaro
De luz vital,
Nessa hora se tome claro,
Ó lírio astral!
Que portas de astros, rasgadas
Num céu lirial,
Eu veja desassombradas,
Ó lírio astral!
Que eu possa, tranqüilo, vê-las,
Limpo do mal,
Essas mil portas de estrelas
Ó lírio astral!
E penetrar nelas, calmo,
Na paz mortal,
Como um davídico salmo,
O lírio astral!
Vento velho que soluça
Meu Sonho ideal,
No Infinito se debruça,
Ó lírio astral!
Por isso, lá, no Momento,
Na hora fetal,
Perfuma esse velho vento
Ó lírio astral!
Traz a graça do Infinito,
Graça imortal,
[Linha 1200 de 4636 - Parte 1 de 2]
Ao velho Sonho proscrito,
Ó lírio astral!
Adoça-me o derradeiro
Sonho feral
O lírio do astral Cruzeiro
Ó lírio astral!
Se, o Lírio, ó doce Lírio
De luz boreal
Na morte o meu claro círio,
Ó lírio astral!
Perfuma, Lírio, perfume,
Na hora glacial,
Meu Sonho de Sol, de Bruma,
Ó lírio astral!
Que eu suba na tua essência
Sacramental
Para a excelsa Transcendência,
Ó lírio astral!
E lá, nas Messes divinas,
Paire, eternal,
Nas Esferas cristalinas,
Ó lírio astral!
índice
SEM ESPERANÇA
Ó cândidos fantasmas da Esperança,
Meigos espectros do meu vão Destino,
Volvei a mim nas leves ondas do Hino
Sacramental de Bem-aventurança.
Nas veredas da vida a alma não cansa
[Linha 1250 de 4636 - Parte 1 de 2]
De vos buscar pelo Vergel divino
Do céu sempre estrelado e diamantino
Onde toda a alma no Perdão descansa.
Na volúpia da dor que me transporta,
Que este meu ser transfunde nos Espaços,
Sinto-te longe, ó Esperança morta.
E em vão alongo os vacilantes passos
À procura febril da tua porta,
Da ventura celeste dos teus braços.
índice
CAVEIRA
I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!
II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!
III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!
índice
[Linha 1300 de 4636 - Parte 1 de 2]
RÉQUIEM DO SOL
Águia triste do Tédio, sol cansado,
Velho guerreiro das batalhas fortes!
Das ilusões as trêmulas coortes
Buscam a luz do teu clarão magoado...
A tremenda avalanche do Passado
Que arrebatou tantos milhões de mortes
Passa em tropel de trágicos Mavortes
Sobre o teu coração ensangüentado...
Do alto dominas vastidões supremas
Águia do Tédio presa nas algemas
Da Legenda imortal que tudo engelha...
Mas lá, na Eternidade, de onde habitas,
Vagam finas tristezas infinitas,
Todo o mistério da beleza velha!
índice
ESQUECIMENTO
Ó Estrelas tranqüilas, esquecidas
No seio das Esferas,
Velhos bilhões de lágrimas, de vidas,
Refulgentes Quimeras.
Astros que recordais infâncias de ouro,
Castidades serenas,
Irradiações de mágico tesouro,
Aromas de açucenas.
Rosas de luz do céu resplandecente
Ó Estrelas divinas,
Sereias brancas da região do Oriente
Ó Visões peregrinas!
[Linha 1350 de 4636 - Parte 1 de 2]
Aves de ninhos de frouxéis de prata
Que cantais no Infinito
As Letras da Canção intemerata
Do Mistério bendito.
Turíbulos de graça e encantamento
Das sidérias umbelas,
Desvendai-me as Mansões do Esquecimento
Radiantes sentinelas.
Dizei que palidez de mortos lírios
Há por estas estradas
E se terminam todos os martírios
Nas brumas encantadas.
Se nessas brumas encantadas choram
Os anseios da Terra,
Se os lírios mortos que há por lá se auroram
De púrpuras de guerra.
Se as que há por cá titânicas cegueiras,
Atordoadas vitórias
Embebedam os seres nas poncheiras
E no gozo das glórias!
O céu é o berço das estrelas brancas
Que dormem de cansaço...
E das almas olímpicas e francas
O ridente regaço...
Só ele sabe, o claro céu tranqüilo
Dos grandes resplendores,
Qual é das almas o eternal sigilo,
Qual o cunho das cores.
Só ele sabe, o céu das quint'essências,
O Esquecimento ignoto
Que tudo envolve nas letais diluências
De um ocaso remoto...
[Linha 1400 de 4636 - Parte 1 de 2]
O Esquecimento é flor, sutil, celeste,
De palidez risonha.
A alma das coisas languemente veste
De um véu, como quem sonha.
Tudo no esquecimento se adelgaça...
E nas zonas de tudo
Na candura de tudo, extremo, passa
Certo mistério mudo.
Como que o coração fica cantando
Porque, trêmulo, esquece,
Vivendo a vida de quem vai sonhando
E no sonho estremece...
Como que o coração fica sorrindo
De um modo grave e triste,
Languidamente a meditar, sentindo
Que o esquecimento existe.
Sentindo que um encanto etéreo e mago,
Mas um lívido encanto,
Põe nos semblantes um luar mais vago,
Enche tudo de pranto.
Que um concerto de suplicas de magoa,
De martírios secretos,
Vai os olhos tornando rasos d'água
E turvando os objetos...
Que um soluço cruel, desesperado
Na garganta rebenta...
Enquanto o Esquecimento alucinado
Move a sombra nevoenta!
O rio roxo e triste, Ó rio morto,
O rio roxo, amargo...
Rio de vãs melancolias de Horto
Caídas do céu largo!
Rio do esquecimento tenebroso,
Amargamente frio,
[Linha 1450 de 4636 - Parte 1 de 2]
Amargamente sepulcral, lutuoso,
Amargamente rio!
Quanta dor nessas ondas que tu levas,
Nessas ondas que arrastas,
Quanto suplício nessas tuas trevas,
Quantas lágrimas castas!
Ó meu verso, ó meu verso, ó meu orgulho,
Meu tormento e meu vinho,
Minha sagrada embriaguez e arrulho
De aves formando ninho.
Verso que me acompanhas no Perigo
Como lança preclara,
Que este peito defende do inimigo
Por estrada tão rara!
O meu verso, ó meu verso soluçante,
Meu segredo e meu guia,
Tem dó de mim lá no supremo instante
Da suprema agonia.
Não te esqueças de mim, meu verso insano,
Meu verso solitário,
Minha terra, meu céu, meu vasto oceano,
Meu templo, meu sacrário.
Embora o esquecimento vão dissolva
Tudo, sempre, no mundo,
Verso! que ao menos o meu ser se envolva
No teu amor profundo!
Esquecer e andar entre destroços
Que além se multiplicam,
Sem reparar na lividez dos ossos
Nem nas cinzas que ficam...
É caminhar por entre pesadelos,
Sonâmbulo perfeito,
Coberto de nevoeiros e de gelos,
Com certa ânsia no peito.
[Linha 1500 de 4636 - Parte 1 de 2]
Esquecer é não ter lágrimas puras,
Nem asas para beijos
Que voem procurando sepulturas
E queixas e desejos!
Esquecimento! eclipse de horas mortas.
Relógio mudo, incerto,
Casa vazia... de cerradas portas,
Grande vácuo, deserto.
Cinza que cai nas almas, que as consome,
Que apaga toda a flama,
Infinito crepúsculo sem nome,
Voz morta a voz que a chama.
Harpa da noite, irmã do Imponderável,
De sons langues e enfermos,
Que Deus com o seu mistério formidável
Faz calar pelos ermos.
Solidão de uma plaga extrema e nua,
Onde trágica e densa
Chora seus lírios virginais a lua
Lividamente imensa.
Silêncio dos silêncios sugestivos,
Grito sem eco, eterno
Sudário dos Azuis contemplativos,
Florescência do Inferno.
Esquecimento! Fluido estranho, de ânsias,
De negra majestade,
Soluço nebuloso das Distancias
Enchendo a Eternidade!
índice
[Linha 1550 de 4636 - Parte 1 de 2]
VIOLÕES QUE CHORAM...
(jan. I897)
Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.
Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.
Sutis palpitações a luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...
E sons soturnos, suspiradas magoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
[Linha 1600 de 4636 - Parte 1 de 2]
Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho
Almas que se abismaram no mistério.
Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
Finas, diluídas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar a flor de espumas.
Oh! languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ânsia esquisita
E de gritos felinos de ciúmes!
Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lágrimas sonoras!
Quando uma voz, em trêmolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta
Soturna e singular da lua cheia.
Quando as estrelas mágicas florescem,
E no silêncio astral da Imensidade
Por lagos encantados adormecem
As pálidas ninféias da Saudade!
Como me embala toda essa pungência,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem asas brancas de clemência
As harmonias dos Violões que falam!
Que graça ideal, amargamente triste,
Nos lânguidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
Nas visões melodiosas dessa graça.
[Linha 1650 de 4636 - Parte 1 de 2]
Que céu, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses ritmos trêmulos e indecisos...
Que anelos sexuais de monjas belas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recôndito das celas,
Por entre as ânsias dilaceradoras...
Quanta plebéia castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpétuos turbilhões de chama.
Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas.
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias aspérrimas e agudas.
Véus neblinosos, longos véus de viúvas
Enclausuradas nos ferais desterros
Errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
Sob abóbadas lúgubres de enterros;
Velhinhas quedas e velhinhos quedos
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos
Sepulcros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sozinhos;
E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lívidos defuntos...
E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de Sonambulismos e letargos.
Fantasmas de galés de anos profundos
Na prisão celular atormentados,
[Linha 1700 de 4636 - Parte 1 de 2]
Sentindo nos violões os velhos mundos
Da lembrança fiel de áureos passados;
Meigos perfis de tísicos dolentes
Que eu vi dentre os vilões errar gemendo,
Prostituídos de outrora, nas serpentes
Dos vícios infernais desfalecendo;
Tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo níveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando alivio;
Corpos frágeis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues
Na degenerescência dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;
Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporais o temporal supremo;
Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, cândidos, felizes.
Ébrios antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miséria humana,
Têm nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Bíblia fatal da dor insana.
Enxovalhados, tábidos palhaços
De carapuças, máscaras e gestos
Lentos e lassos, lúbricos, devassos,
Lembrando a florescência dos incestos;
Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridículo das vidas,
Caricaturas tétricas e errantes
Dos malditos, dos réus, dos suicidas;
[Linha 1750 de 4636 - Parte 1 de 2]
Toda essa labiríntica nevrose
Das virgens nos românticos enleios;
Os ocasos do Amor, toda a clorose
Que ocultamente lhes lacera os seios;
Toda a mórbida música plebéia
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, mole e morna melopéia
Das valsas alanceadas, convulsivas;
Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!
índice
OLHOS DO SONHO
(jan. 1897)
Certa noite soturna, solitária,
Vi uns olhos estranhos que surgiam
Do fundo horror da terra funerária
Onde as visões sonâmbulas dormiam...
Nunca da terra neste leito raso
Com meus olhos mortais, alucinados...
Nunca tais olhos divisei acaso
Outros olhos eu vi transfigurados.
A luz que os revestia e alimentava
Tinha o fulgor das ardentias vagas,
Um demônio noctâmbulo espiava
De dentro deles como de ígneas plagas.
E os olhos caminhavam pela treva
Maravilhosos e fosforescentes...
[Linha 1800 de 4636 - Parte 1 de 2]
Enquanto eu ia como um ser que leva
Pesadelos fantásticos, trementes.
Na treva só os olhos, muito abertos,
Seguiam para mim com majestade,
Um sentimento de cruéis desertos
Me apunhalava com atrocidade.
Só os olhos eu via, só os olhos
Nas cavernas da treva destacando:
Faróis de augúrio nos ferais escolhos,
Sempre, tenazes, para mim olhando...
Sempre tenazes para mim, tenazes,
Sem pavor e sem medo, resolutos,
Olhos de tigres e chacais vorazes
No instante dos assaltos mais astutos.
Só os olhos eu via! -- o corpo todo
Se confundia com o negror em volta...
Ó alucinações fundas do lodo
Carnal, surgindo em tenebrosa escolta!
E os olhos me seguiam sem descanso,
Suma perseguição de atras voragens,
Nos narcotismos dos venenos mansos,
Como dois mudos e sinistros pajens.
E nessa noite, em todo meu percurso,
Nas voltas vagas, vãs e vacilantes
Do meu caminho, esses dois olhos de urso
Lá estavam tenazes e constantes.
Lá estavam eles, fixamente eles,
Quietos, tranqüilos, calmos e medonhos...
Ah! quem jamais penetrará naqueles
Olhos estranhos dos eternos sonhos!
índice
[Linha 1850 de 4636 - Parte 1 de 2]
ENCLAUSURADA
Ó Monja dos estranhos sacrifícios,
Meu amor imortal, Ave de garras
E asas gloriosas, triunfais, bizarras,
Alquebradas ao peso dos cilícios.
Reclusa flor que os mais revéis flagícios
Abalaram com as trágicas fanfarras,
Quando em formas exóticas de jarras
Teu corpo tinha a embriaguez dos vícios.
Para onde foste, ó graça das mulheres,
Graça viçosa dos vergéis de Ceres
Sem que o meu pensamento te persiga?!
Por onde eternamente enclausuraste
Aquela ideal delicadeza de haste,
De esbelta e fina ateniense antiga?!
índice
MÚSICA DA MORTE...
A musica da Morte, a nebulosa,
Estranha, imensa musica sombria,
Passa a tremer pela minh'alma e fria
Gela, fica a tremer, maravilhosa...
Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
Letes sinistro e torvo da agonia,
Recresce a lancinante sinfonia,
Sobe, numa volúpia dolorosa...
Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
Tremenda, absurda, imponderada e larga,
[Linha 1900 de 4636 - Parte 1 de 2]
De pavores e trevas alucina...
E alucinando e em trevas delirando,
Como um Ópio letal, vertiginando,
Os meus nervos, letárgica, fascina...
índice
MONJA NEGRA
É teu esse espaço, e teu todo o Infinito
Transcendente Visão das lágrimas nascida,
Bendito o teu sentir, para sempre bendito
Todo o teu divagar na Esfera indefinida!
Através de teu luto as estrelas meditam
Maravilhosamente e vaporosamente;
Como olhos celestiais dos Arcanjos nos fitam
Lá do fundo negror do teu luto plangente.
Almas sem rumo já, corações sem destino
Vão em busca de ti, por vastidões incertas...
E no teu sonho astral, mago e luciferino,
Encontram para o amor grandes portas abertas.
Cândida Flor que aroma e tudo purifica,
Trazes sempre contigo as sutis virgindades
E uma caudal preciosa, interminável, rica,
De raras sugestões e curiosidades.
As belezas do mito, as grinaldas de louro,
Os priscos ouropéis, os símbolos já vagos,
Tudo forma o painel de um velho fundo de ouro
De onde surges enfim como as visões dos lagos.
Certa graça cristã, certo excelso abandono
De Deusa que emigrou de regiões de outrora,
Certo aéreo sentir de esquecimento e outono,
[Linha 1950 de 4636 - Parte 1 de 2]
Trazem-te as emoções de quem medita e chora.
És o imenso crisol, és o crisol profundo
Onde se cristalizam todas as belezas,
És o néctar da Fé, de que eu melhor me inundo.
Ó néctar divinal das místicas purezas.
Ó Monja soluçante! Ó Monja soluçante,
Ó Monja do Perdão, da paz e da clemência,
Leva para bem longe este Desejo errante,
Desta febre letal toda secreta essência.
Nos teus golfos de Além, nos lagos taciturnos,
Nos pélagos sem fim, vorazes e medonhos,
Abafa para sempre os soluços noturnos,
E as dilacerações dos formidáveis Sonhos!
Não sei que Anjo fatal, que Satã fugitivo,
Que gênios infernais, magnéticos, sombrios,
Deram-te as amplidões e o sentimento vivo
Do mistério com todos os seus calafrios...
A lua vem te dar mais trágica amargura,
E mais desolação e mais melancolia,
E as estrelas, do céu na Eucaristia pura,
Têm a mágoa velada da Virgem Maria.
Ah! Noite original, noite desconsolada
Monja da solidão, espiritual e augusta,
Onde fica o teu reino, a região vedada,
A região secreta, a região vetusta?!
Almas dos que não tem o Refúgio supremo
De altas contemplações, dos mais altos mistérios,
Vinde sentir da Noite o Isolamento extremo,
Os fluidos imortais, angelicais, etéreos.
Vinde ver como são mais castos e mais belos,
Mais puros que os do dia os noturnos vapores:
Por toda a parte no ar levantam-se castelos
E nos parques do céu há quermesses de amores.
[Linha 2000 de 4636 - Parte 1 de 2]
Volúpias, seduções, encantos feiticeiros
Andam a embalsamar teu seio tenebroso
E as águias da Ilusão, de vôos altaneiros,
Crivam de asas triunfais o horizonte onduloso.
Cavaleiros do Ideal, de erguida lança em riste,
Sonham, a percorrer teus velhos Paços cavos...
E esse nobre esplendor de majestade triste
Recebe outros lauréis mais bizarros e bravos.
Convulsivas paixões, convulsivas nevroses,
Recordações senis nos teus aspectos vagam,
Mil alucinações, mortas apoteoses
E mil filtros sutis que mornamente embriagam.
O grande Monja negra e transfiguradora,
Magia sem igual dos paramos eternos,
Quem assim te criou, selvagem Sonhadora,
Da carícia de céus e do negror d'infernos?
Quem auréolas te deu assim miraculosas
E todo o estranho assombro e todo o estranho medo,
Quem pôs na tua treva ondulações nervosas,
E mudez e silêncio e sombras e segredo?
Mas ah! quanto consolo andar errando, errando,
Perdido no teu Bem, perdido nos teus braços,
Nos noivados da Morte andar além sonhando,
Na unção sacramental dos teus negros Espaços!
Que glorioso troféu andar assim perdido
Na larga vastidão do mudo firmamento,
Na noite virginal ocultamente ungido,
Nas transfigurações do humano sentimento!
Faz descer sobre mim os brandos véus da calma,
Sinfonia da Dor, ó Sinfonia muda,
Voz de todo o meu Sonho, ó noiva da minh'alma,
Fantasma inspirador das Religiões de Buda.
O negra Monja triste, ó grande Soberana,
[Linha 2050 de 4636 - Parte 1 de 2]
Tentadora Visão que me seduzes tanto,
Abençoa meu ser no teu doce Nirvana,
No teu Sepulcro ideal de desolado encanto!
Hóstia negra e feral da comunhão dos mortos,
Noite criadora, mãe dos gnomos, dos vampiros,
Passageira senil dos encantados portos,
Ó cego sem bordão da torre dos suspiros...
Abençoa meu ser, unge-o dos óleos castos,
Enche-o de turbilhões de sonâmbulas aves,
Para eu me difundir nos teus Sacrários vastos,
Para me consolar com os teus Silêncios graves.
índice
INEXORÁVEL
Ó meu Amor, que já morreste,
Ó meu Amor, que morta estas!
Lá nessa cova a que desceste,
Ó meu Amor, que já morreste,
Ah! nunca mais floresceras?!
Ao teu esquálido esqueleto,
Que tinha outrora de uma flor
A graça e o encanto do amuleto;
Ao teu esquálido esqueleto
Não voltará novo esplendor?!
E ah! o teu crânio sem cabelos,
Sinistro, seco, estéril, nu...
(Belas madeixas dos meus zelos!)
E ah! o teu crânio sem cabelos
Há de ficar como estás tu?!
O teu nariz de asa redonda,
De linhas límpidas, sutis
Oh! há de ser na lama hedionda
[Linha 2100 de 4636 - Parte 1 de 2]
O teu nariz de asa redonda
Comido pelos vermes vis?!
Os teus dois olhos -- dois encantos --
De tudo, enfim, maravilhar,
Sacrário augusto dos teus prantos,
Os teus dois olhos -- dois encantos --
Em dois buracos vão ficar?!
A tua boca perfumosa
O céu do néctar sensual
Tão casta, fresca e luminosa,
A tua boca perfumosa
Vai ter o cancro sepulcral?!
As tuas mãos de nívea seda,
De veias cândidas e azuis
Vão se extinguir na noite treda
As tuas mãos de nívea seda,
Lá nesses lúgubres pauis?!
As tuas tentadoras pomas
Cheias de um magnífico elixir
De quentes, cálidos aromas
As tuas tentadoras pomas
Ah! nunca mais hão de florir?!
A essência virgem da beleza,
O gesto, o andar, o sol da voz
Que Iluminava de pureza,
A essência virgem da beleza
Tudo acabou no horror atroz?!
Na funda treva dessa cova,
Na inexorável podridão
Já te apagaste, Estrela nova,
Na funda treva dessa cova
Na negra Transfiguração!
índice
[Linha 2150 de 4636 - Parte 1 de 2]
RÉQUIEM
Como os salmos dos Evangelhos celestiais,
Os sonhos que eu amei hão de acabar,
Quando o meu corpo, trêmulo, dos velhos
Nos gelados outonos penetrar.
O rosto encarquilhado e as mãos já frias,
Engelhadas, convulsas, a tremer,
Apenas viverei das nostalgias
Que fazem para sempre envelhecer.
Por meus olhos sem brilho e fatigados
Como sombras de outrora, passarão
As ilusões de uns olhos constelados
Que da Vida dourarão-me a Ilusão.
Mas tudo, enfim, as bocas perfumosas,
O mar, o campo e tudo quanto amei,
As auroras, o sol, pássaros, rosas,
Tudo rirá do estado a que cheguei.
Do brilho das estrelas cristalinas
Virá um riso irônico de dor,
E da minh'alma subirão neblinas,
Incensos vagos, cânticos de amor.
Por toda parte o amargo escárnio fundo,
Sem já mais nada para mim florir,
As risadas vandálicas do mundo
Secos desdéns por toda a parte a rir.
Que hão de ser vãos esforços da memória
Para lembrar os tempos virginais,
As rugas da matéria transitória
Hão de 1á estar como a dizer: -- jamais!
E hei de subir transfigurado e lento
Altas montanhas cheias de visões,
Onde gelaram, num luar, nevoento,
[Linha 2200 de 4636 - Parte 1 de 2]
Tantos e solitários corações.
Recordarei as íntimas ternuras,
De seres raros, porém mortos já,
E de mim, do que fui, pelas torturas
Deste viver pouco me lembrará.
O mundo clamará sinistramente
Daquele que a velhice alquebra e alui...
Mas ah! por mais que clame toda a gente
Nunca dirá o que de certo eu fui.
E os dias frios e ermos da Existência
Cairão num crepúsculo mortal,
Na soluçante, mística plangência
Dos órgãos de uma estranha catedral.
Para me ungir no derradeiro e ansioso
Olhar que a extrema comoção traduz,
Sob o celeste pálio majestoso
Hão de passar os Viáticos da luz.
índice
VISÃO
Noiva de Satanás, Arte maldita,
Mago Fruto letal e proibido,
Sonâmbula do Além, do Indefinido
Das profundas paixões, Dor infinita.
Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Das Ilusões tantálico gemido,
Virgem da Noite, do luar dorido,
Com toda a tua Dor oh! sê bendita!
Seja bendito esse clarão eterno
De sol, de sangue, de veneno e inferno,
[Linha 2250 de 4636 - Parte 1 de 2]
De guerra e amor e ocasos de saudade...
Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!
índice
PRESSAGO
Nas águas daquele lago
Dormita a sombra de Iago...
Um véu de luar funéreo
Cobre tudo de mistério...
Há um lívido abandono
Do luar no estranho sono.
Transfiguração enorme
Encobre o luar que dorme...
Dá meia-noite na ermida,
Como o último ai de uma vida.
São badaladas nevoentas,
Sonolentas, sonolentas...
Do céu no estrelado luxo
Passa o fantasma de um bruxo.
No mar tenebroso e tetro
Vaga de um naufrago o espectro.
Como fantásticos signos,
[Linha 2300 de 4636 - Parte 1 de 2]
Erram demônios malignos.
Na brancura das ossadas
Gemem as almas penadas
Lobisomens, feiticeiras
Gargalham no luar das eiras.
Os vultos dos enforcados
Uivam nos ventos irados.
Os sinos das torres frias
Soluçam hipocondrias.
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Faróis - Parte 1 de 2 - Cruz e Sousa
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Faróis - Parte 1 de 2 - Cruz e Sousa
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