sábado, 18 de agosto de 2018

Inocência - Parte 2 de 4 - Visconde de Taunay


Inocência - Parte 2 de 4 - Visconde de Taunay
     

     
         - É verdade? indagou Pereira, olhando para Meyer.
     
        Este esbugalhou mais os olhos e confirmou tudo com um sinal gutural que ecoou em toda a sala.
     
        -Ele o que tem, continuou José é que é muito teimoso. Eu lhe digo, sempre: Mochu, isto de viajar de noite é uma tolice e uma canseira à-toa... Qual! pensa lá no seu bestunto que assim é melhor. Também a gente anda por estas estradas afora como se fosse alma do outro mundo a penar... algum currupira... ou boitatá ... Cruzes!
     

        -Pois, Sr. Mala, disse Pereira, tome posse desta sala, e faça de conta que é sua... Se quiser uma
rede...
     
        -Muito obrigado, muito obrigado! . minha cama é canastra. Não se incomode...
     
        -Amanhã então conversaremos, concluiu Pereira, esfregando as mãos de contente.
     
        Prometia-lhe na verdade a companhia boas ocasiões de dar largas à volubilidade,

sobretudo com o
tal José Pinho, filho da Corte do Rio de Janeiro e, pelo que parecia, tagarela de grande força.
     
        -Assim, pois, disse Pereira, durmam bem o restante da noite.
     
        E abriu a porta para se retirar.
     
        -Ui! exclamou ele olhando para o céu. Doutor, já passa muito da meia-noite... Com a breca,

o
Cruzeiro está virando de uma vez. . .
     
        Cirino, que tornara a deitar-se, com presteza calçou as botas e tomou uns papeizinhos que

de
antemão preparara e pusera a um canto da mesa.
     
        -Não faz mal, disse, já estou com tudo pronto e em tempo havemos de dar o remédio. Vá o

Sr.
deitar um pouco de café num pires e acorde sua filha, caso esteja dormindo, como é muito

natural depois do
suador.
     
        Saiu então Pereira, levando a vela e, acompanhado de Cirino, deu volta à casa para buscar

a entrada
dos aposentos interiores.
     
        Ficaram, pois, o alemão e seu criado em completa escuridão; ambos, porém, já estirados a

fio
comprido, um em cima das canastras tendo por travesseiro roliça maleta, outro sobre o ligal

aberto e
estendido no meio do aposento.
     
        -O Mochu, perguntou José, que mastigava qualquer coisa, está já ferrado?
     
        -Ferrado? replicou Meyer levantando a cabeça. Que é isto agora?
     
        -Pergunto se já pegou no sono?
     
        -Pois, Juque, se eu falo, como é que posso estar dormindo?
     
        -Então não quer petiscar?
     


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        -Comer, não é?
     
        -Esta visto.
     
        -Oh! Se tivesse!... Pensava agora nisso...
     
        -Pois eu estou manducando... Quer um bocadinho?
     
        -Que é que vóce me da?
     
        -Rapadura com farinha de milho... Está deveras de patente!... Gostoso como tudo...
     
        -Então, Juque, passe-me um pouco.
     
        Levantou-se o ofertante com toda a boa vontade e às apalpadelas começou a procurar a

cama do
patrão, o que só conseguiu depois de ter esbarrado na mesa e numas cangalhas velhas

atiradas a um canto da
sala.
     
        Afinal agarrou num dos pés do naturalista, a quem entregou uma nesga de rapadura e uns

restos de
farinha embrulhados em papel, pitança mais que sóbria, que foi devorada com satisfação pelo

bom do
saxônio.
     

       IX - O MEDICAMENTO
     
         Não tendes que labutar com doente muito grave, e eis o serviço que de vós esporo...
       
         (Hoffmann, A Porta Entaipada).
       
         Quem me poderá dizer por que me parece tão duro o leito?.. Por que passei esta noite que

se me figurou tão longa, sem gozar um
momento de sossego?... Surge a verdade: em meu seio penetraram as agudas setas do amor.
       
          (Ovídio, Elegia n).
       
        Quando Cirino entrou no quarto de Inocência, já estava ela acordada. Sentara-se o pai à

cabeceira
da cama, a cujos pés se acocorara Tico, o anuo, sobre uma grande pele de onça.
     
        -Então, perguntou o médico tomando o pulso à mimosa doente, como se sente?
     
        -Melhor, respondeu ela.
     
        -Suou bastante?
     
        -Ensopei três camisas.
     
        -Muito bem... Agora a senhora esta com a pele fresquinha que mete gosto. Isto de sezões,

não e
nada, se a gente acode a tempo e o sangue não tem maus humores. Mas quando tomam conta

do corpo, nem
o demo com elas pode. Que é do café? pediu ele em seguida a Pereira.
     
        -Já vem já... Homem, vou eu mesmo buscá-lo, lá à cozinha. A Maria Conga está ficando

uma


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verdadeira lesma. Venha para
     
        Levantando-se então da cadeira, indicou-a a Cirino, a quem fez sentar antes de sair.
     
        Ficou este, pois, ao lado da menina e, como sobre o lindo rosto batesse de chapa a luz

colocada
numa prateleira da parede, pôs-se a contemplá-la com enleio e vagar, ao passo que da sua

parte o anão lhe
deitava olhares inquietos e algo sombrios.
     
        Pousara Inocência a cabeça no travesseiro e, para ocultar a perturbação de se ver tão de

perto
observada, fingia dormir. Pelo menos tinha as grandes pálpebras cerradas e o rosto sereno;

mas arfava-lhe
apressado o peito e, de vez em quando, fugaz rubor lhe tingia as faces descoradas.
     
        Pereira tardava; e Cirino com os olhos fixos, a fisionomia meditativa e um pouco de

palidez, que
denunciava a intima comoção, não se fartava de admirar a beleza da gentil doente.
     
        Uma vez, entreabriu os olhos e a medo atirou um olhar que se cruzou com o do mancebo,

olhar
rápido, instantâneo, mas que lhe repercutiu direito ao coração e lhe fez estremecer o corpo todo.
     
        Sem saber por que, batia-lhe o queixo e um arrepio de frio lhe circulava nas velas.
     
        -Sente mais febre? perguntou Cirino muito baixinho.
     
        -Não sei, foi a resposta, e resposta demorada.
     
        -Deixe-me ver o seu pulso.
     
        E tomando-lhe a mão, apertou-a com ardor entre as suas, retendo-a, apesar dos ligeiros

esforços
que para a retrair, empregou ela por vezes.
     
        Nisto, entrou Pereira. Inocência fechou com presteza os olhos e Cirino voltou-se

rapidamente,
levando um dedo aos lábios para recomendar silêncio.
     
        -Está dormindo, avisou com voz sumida.
     
        -Ora, disse Pereira no mesmo tom, a tal Maria Conga deixou entornar a cafeteira, de

maneiras que
precisei fazer outra porção. Demorei muito?
     
        -Não, respondeu Cirino com toda a sinceridade.
     
        -Mas agora, observou Pereira, é mister acordar a pequerrucha.
     
        -Não há outro remédio.
     
        Chegou-se o pai à cama e, com todo o carinho, chamou: Nocência! Nocência!
        E como não a visse despertar logo, sacudiu-a com brandura ate que ela abrisse uns olhos
espantados.
     
        -Apre! Que sono! disse o bondoso velho. Num instante que fui lá dentro?!... Vamos, são

horas de
tomar a mezinha.
     


[Linha 1800 de 6572 - Parte 2 de 4]


        Deitara Cirino sulfato de quinina no café e diluía-o vagarosamente.
     
        -Olhe, dona, aconselhou ele, beba de um só trago e chupe, logo depois, uns gomos de

limão-doce.
     
        -Então é muito mau? choramingou a doente.
     
        -É amargo; mas num gole mecê toma isto.
     
        -Papai, recalcitrou a moça, não quero... eu não quero.
     
        -Ora, filhinha do meu coração, não se canhe; e preciso... Amanhã há de você sentir-se boa;

não é
doutor?
     
        -Com certeza, se tomar esta poção, assegurou Cirino.
     
        -Depois, quando eu u lá à vila, hei de trazer para você uma coisa bonita... uns lavrados,

Ouviu?
        -Nhor-sim.
     
        -Ande, Tico, acrescentou o mineiro voltando-se para o anão, vai depressa buscar limão-

doce; na
cozinha há um meio cascado.
     
        -Tome, dona, implorou por seu turno Cirino, aproximando o pires da boca da formosa
medicanda.
     
        Levantou uns olhos súplices e, agarrando resolutamerte o remédio, bebeu-o todo de um

jacto.
     
        Depois deu um suspiro de enjôo e ficou com os lábios entreabertos, à espera que o

adocicado sumo
do limão lhe tirasse o amargor do medicamento.
     
        -Então, exclamou Pereira, era maior o medo que a coisa em si! Você tomou a dose numa
relancina.
     
        -Amanhã de manhã, ou melhor, hoje de madrugada, temos que engolir outra dose,. declarou
Cirino. Depois, a dona, poderá levantar-se.
     
        -Ainda outra? protestou Inocência com gesto de amuo.
     
        -Nhã-sim; é de toda a percisão, replicou o amoroso médico, modificando pela suavidade da

voz
a dureza das prescrições.
     
        -Decerto, corroborou também Pereira.
     
        -Depois deve mecê deixar de comer carne fresca, ervas, ovos ou farinha de milho por um

mês
inteiro, e de provar leite por muito tempo. Há de sustentar-se só de carne-de-sol bem seca, com

arroz quase
sem sal e por cima tomará café com muito pouco doce.
     
        -Fica ao meu cuidado, asseverou Pereira, olhar para o rejume .
     
        -Agora, durma bem e não se assuste de lhe aparecer zoeira nos ouvidos e ate de se sentir

mouca.
Isto é da mezinha; pelo contrário, é muito bom sinal.


[Linha 1850 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        -Estes doutores sabem tudo, murmurou Pereira, dando ligeiro estalo com a língua.
     
        Não se descuidou Cirino, antes de se retirar, de novamente tomar o pulso e, à conta de

procurar a
artéria, assentou toda a mão no punho da donzela, envolvendo-lhe o braço e apertando-o

docemente.
     
        Saiu-se mal de tudo isso; porque, se tratava da cura de alguém, para si arranjava

enfermidade e bem
grave.
     
        Com efeito, de volta à sala dos hóspedes, não pode mais conciliar o sono e, sem que

houvesse
conseguido fruir um só momento de descanso, viu ralar a aurora. Parecia-lhe que o peito ardia

todo em
chamas a subirem-lhe às faces, abrasando-lhe o pensamento.
     
        Aquele venusto rosto que contemplara a sós; aqueles formosos olhos, cujo brilho a furto
percebera, aquele colo alabastrino que a medo se descobrira, aquelas indecisas curvas de um

corpo
adorável, todo aquele conjunto harmonioso e encantador que vira à luz de frouxa vela,

fatalmente o
lançavam nesse pélago semeado de tormentos que se chama paixão!
     
        Efeitos de tão temível mal já ia o mísero sentindo. Inquieto se revolvia (fato virgem!) no

duro leito,
ao passo que a respiração isocrônica e ruidosa do companheiro de hospedagem, o alemão

Meyer, respondia
ao sonoro ressonar do gárrulo José Pinho.

       X-A CARTA DE RECOMENDAÇÃO
     
         Aquele bom velho, cuja benévola hospitalidade não tinha limites, Julgara do seu dever

tratar do melhor modo possível a Waverley,
tosse ele o último camponês saxônio... Mas o título de amigo de Fergus fê-lo considerar como

precioso depósito, merecedor de toda a sua
solicitude e da mal" atenta obsequiosidade.
       
          (Walter Scott, Waverley)
     
        Quando Meyer abriu os olhos, já achou Cirino de pé, arranjando uma canastrinha.
     
        -Oh! exclamou ele em tom de louvor, o Sr. madruga muito.
     
        -É verdade, replicou o outro, um tanto melancólico.
     
        -E Juque ainda dorme!... Este Juque parece mais um tatu do que um homem... Todo o dia o

estou
acordando...
     
        E juntando o feito ao dito, foi o pachorrento amo sacudir o criado. Depois de se espreguiçar

à
vontade, sentou-se este no couro em que dormira, e pôs-se a esfregar com todo o vagar os

olhos papudos
ainda cheios de sono.
     
        -Deus esteja com vossuncês, disse ele entre dois bocejos. Ora, Mochu, o Sr. acordou-me

no
melhor do sono. Estava sonhando que voltara para o Rio de Janeiro e ia acompanhando uma

música pelo
Largo do Rocio afora. Conhece o Largo do Rocio? perguntou a Cirino.
     
        -Não, respondeu-lhe este.
     
        -Xi! Que largo! Hem, Mochu?


[Linha 1900 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        E novo bocejo cortou-lhes a descrição da louvada praça.
     
        -Juque, exclamou Meyer coçando a barba com ar alegre, o dia hoje está claro e bonito.

Havemos
de apanhar pelo menos umas doze borboletas novas.
     
        -E quanto me dá Mochu, se eu agarro vinte e cinco?
     
        -Vinte e cinco? repetiu o alemão com alguma dúvida.
     
        -Sim, vinte e cinco... e até  mais, vinte e seis. Diga, quanto me dá?
     
        -Oh! eu dou a vóce dois mil-réis.
     
        -Está dito, fecho o negócio. Eu cá sou assim, pão pão, queijo queijo; tão certo como

chamar-me
José Pinho, seu criado, carioca de nascimento e batizado na Freguesia da Lagoa, lá para as

bandas do Broco,
e...
     
        -Agora, interrompeu Meyer, vá buscar água para lavar a cara, e tire sabão e pente na

canastra.
     
        -Olhe, Sr. doutor, continuou o camarada sentado sempre e voltando-se para o lado de

Cirino, esta
minha vida é levada de seiscentos mil diabos. Nós saímos do Rio já há mais de dois anos; não

é, Mochu?
     
        -Vinte e três meses, retificou Meyer.
     
        -Pois bem; desde esse tempo estamos a viajar como se fosse penitencia de confissão. E

não é só
isso, não, senhor. Todos os dias ando pelo menos nove léguas correndo aqui e acolá, dando

voltas, caindo,
atrás dos bichos voadores...
     
        - Juque! tentou atalhar Meyer, olhe...
     
        -Pois é o que lhe digo, prosseguiu José Pinho. Tenho hoje uma raiva daquelas porcarias

todas...
Nem sei por que, Nosso Senhor Jesus Cristo foi criar esta súcia de criaturas sem préstimo...

Enfim, Ele é
quem sabe. . . Quanto a mim, se pudesse, atacava fogo em todas as lagartas, porque da lagarta

é que nascem
esses anicetos, que estão enchendo mundos... Mas, veja, Sr. doutor, lá na terra deste homem,-

(coitado, é
bem bonzinho e me estima muito) ! - valem esses bichos mais do que ouro em pó... Também, se

o Mochu
não gostasse de mim, havéra de ser muito ingrato... Outro como eu não encontra mais, não,

senhor... Tenha
a santa paciência .. não, senhor, isto é o que lhe posso afiançar.
     
        No meio desse fluxo de palavras, Meyer fora em pessoa procurar na canastra o pente e o

sabão.
     
        Mostrando os objetos ao falador, ordenou com energia:
     
        -Cale a boca, Juque, cale a boca, tagarela! Vá buscar água já; senão... não levo vóce ao

mato hoje.
     
        Levantou-se de pronto José Pinho e meio a resmungar saiu, tomando uma das canastras.
     
        -Esse camarada, disse Meyer depois de algum silêncio e para explicar o seu

procedimento, é uma
pessoa muito boa... fiel e inteligente. Mas... fala demais. É-me precioso, porque apanha

borboletas com
muito talento e jeito.


[Linha 1950 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        Entrando José Pinho e ouvindo o final do elogio, depôs, com ar de grave importância, a

bacia no
chão.
     
        Diante dela, e depois de tirar do nariz os óculos, colocou-se logo Meyer, ou antes

acocorou-se e,
em relação ao tronco, tão compridas eram as suas pernas, que, inclinado por sobre a água, lhe

ficava a
cabeça à altura dos joelhos.
     
        Levou a ablução uns largos minutos e foi com os cabelos grudados ao casco e escorrendo

água que
ele se levantou, justamente quando entrava Pereira.
     
        Nesse momento, assumira o tipo daquele homem proporções do mais pasmoso grotesco;
entretanto, tão vária 6 a apreciação de cada um, tão caprichoso o julgamento individual, que o

mineiro,
acercando-se de Cirino, disse baixinho:
     
        - Vosmecê já reparou, amigo, como este estranja é figura bonita? Tão arco! e que olhos que
tem!... As mulheres hão de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Sr. Mala,

continuou
interpelando em voz alta o seu espécime de beleza masculina, que tal, passou aqui a noite?
     
        -Oh! Sr. Pereira!... Desculpe, se o não vi... Estava sem óculos. Já lhe respondo... espere um
bocadinho.
     
        E ainda todo molhado, correu a tomar os óculos, que assentou em cima dos salientes

lúzios.
     
        -Agora, muito bem... Dormi, meu bom amigo, como quem não tem pecados...
     
        -Então, observou Cirino, quase mau grado seu, tenho-os eu; porque, da meia-noite para cá,

não
pude mais pregar olho...
     
        -Isto e volta de algum namoro, replicou Pereira, batendo-lhe com força no ombro e rindo-se.
     
        Cirino descorou ligeiramente.
     
        - Sim, vosmecê é moço... deixou lá por Minas algum rabicho, e de vez em quando o

coração lhe
comicha... Está na idade...
     
        -Pode muito bem ser, apoiou Meyer com gravidade.
     
        -Não é? insistiu Pereira. Ora, confesse... não lhe fica mal... Isso 6 volta de enguiço...
     
        -Juro-lhes, balbuciou Cirino.
     
        -Oh! se é, confirmou José Pinho, que julgou dever meter o bedelho na conversa, eu no Rio

de
Janeiro... Negócio de salas, é de por um homem tonto. Não lhes conto nada, mas uma vez...
     
        Voltou-se o alemão para ele com calma, e, interrompendo-o:
     
        -Juque, vá ver onde estão burrinhos e não bote sua colher, quando gente branca está

falando com
o seu patrão.
     


[Linha 2000 de 6572 - Parte 2 de 4]


        E, como o camarada quisesse retorquir:
     
        -Ande, ande, verberou sempre sereno, discussão nunca serviu para nada.
     
        Deu José meia dúzia de muxoxos abafados e foi embora, praguejando entre dentes.
     
        Novamente supôs Meyer dever desculpá-lo.
     
        -Bom homem, disse, bom homem... porém fala terrivelmente!
     
        -Mas agora me conte, perguntou Pereira com ar de quem queria certificar-se de coisa posta

muito
em dúvida, deveras o senhor anda palmeando estes sertões para fisgar anicetos?
     
        -Pois não, respondeu Meyer com algum entusiasmo; na minha terra valem muito dinheiro

para
estudos, museus e coleções. Estou viajando por conta de meu governo, e já mandei bastantes

caixas todas
cheias... E muito precioso!
     
        -Ora, vejam só, exclamou Pereira. Quem havéra de dizer que até com isso se pode bichar!

Cruz!
Um homem destes, um doutor, andar correndo atrás de vaga-lumes e voadores do mato, como

menino às
voltas com cigarras! Muito se aprende neste mundo! E quer o senhor saber uma coisa? Se eu

não tivesse
família, era capaz de ir com vosmecê por esses fundões afora, porque sempre gostei de lidar

com pessoas de
qualidade e instrução... Eu sou assim... Quem me conhece, bem sabe. Homem de repentes...

Vem-me cá
uma idéia muito estrambótica às vezes, mas embirro e acabou-se; porque, se há alguém

esturrado e teimoso,
é este seu criado... Quando empaco, empaco de uma boa vez... Fosse no tempo de solteiro, e eu

me botava
com o senhor a catar toda essa bicharada dos sertões. Era capaz de ir dar com os ossos lá na

sua terra... Não
me olhe pasmado, não... Isso lá eu era... Nem que tivesse de passar canseiras como ninguém...

O caso era
meter-se-me a tenção nos cascos... Dito e feito; acabou-se.. Fossem buscar o remédio onde

quisessem... mas
duvido que o achassem.
     
        -Como vai a doente? perguntou distraidamente Cirino, cortando aquela catadupa de

palavras.
     
        -Ora estou muito contente. Já tomou nova dose, e parece quase boa. Está com outra feição.

O Sr.
fez um milagre...
     
        -Abaixo de Deus e da Virgem puríssima, concordou Cirino com toda a modéstia.
     
        -O Sr. não cura? perguntou Pereira a Meyer.
     
        -No senhor. Sou doutor em filosofia pela universidade de Iena, onde...
     
        -Isso é  nome de bicho? atalhou o mineiro.
     
        -No senhor. É uma cidade.
     
        -Ninguém diria... Pois, Sr. Mata, continuou Pereira apontando para Cirino, ali está um com

quem
moléstias não brincam.
     
        -Ah! rouquejou o alemão abrindo ainda mais os olhos. Estimo muito conhecê-lo como
notabilidade... Nestes lugares aqui 6 muito raro...
     


[Linha 2050 de 6572 - Parte 2 de 4]


        -Se é.! exclamou Pereira. Felizmente passou  por cá nem de propósito, para pôr de pé a

menina...
uma filha minha... Caiu-me a talho de foice e...
     
        Não pôde Cirino furtar-se a um movimento de vanglória. Com ar grave interrompeu:
     
        -Não fale nisso, Sr. Pereira; o caso era simples. Febre das enchentes... não vale quase

nada. Vi
logo o que era de urgência; um simples suador, duas ou três doses de sulfato de quinina... e

ficou tudo
sanado... E simplicíssimo... O estômago não estava sujo... não havia necessidade de

vomitório...
     
        Ouvira Meyer estas indicações terapêuticas com os olhos muito fitos em quem as dava:

depois,
voltando-se para Pereira, disse com um aprobatório aceno de cabeça:
     
        -Pom médico! Com médico!
     
        Desse momento em diante, votou Cirino ao alemão a mais decidida da simpatia; e Pereira,
presenciando o congraçamento daqueles dois homens, de si pára si ilustres e incontestáveis

sabichões,
sentiu-se feliz por abrigá-los a um tempo em sua humilde vivenda.
     
        -Então, disse o mineiro voltando à questão das borboletas, com o que seu governo paga-

lhe bem,
não Sr. Maia?
     
        -Suficientemente... demais, todas as autoridades deste belo pais muito me ajudam. Tenho

muitos
ofícios... cartas de recomendação. Olhe, quer ver? Juque, Juque! chamou Meyer, sem reparar

que o criado
há muito se fora do quarto, dê-me... É verdade, foi levar os burrinhos à água. .. Não faz mal...

Mostro-lhe já
tudo...
     
        -E, procurando entre as cargas uma malinha coberta de pano impermeável, abriu-a e tirou

um
maço de cartas cuidadosamente numeradas, com fitas de diversas cores.
     
        -Isto é para Miranda, em Mato Grosso. Isto para Coxim, Cuiabá... para Poconé,

Diamantina... isto
são cartas cujos donos não encontrei, e que hão de voltar para as pessoas que as escreveram.
     
        -E são muitas? perguntou Pereira.
     
        - Três ou quatro. Vejamos... uma é para o Sr. João Manuel Quaresma, no Pitangui; esta,

para o Sr.
Martinho dos Santos Perreira, em Piumi...
     
        -Que é? perguntou o mineiro levantando-se de um pulo e mostrando muita admiração. Leia

outra
vez... leia por favor...
     
        Meyer obedeceu.
     
        -Mas este nome é o meu! exclamou Pereira. Esta carta então é para mim...
     
        -Hu, hu! gaguejou o alemão boquiaberto. É muito currioso isto!
     
        -Sou eu, sou eu mesmo! continuou o mineiro abrindo os diques à volubilidade. Está claro,
claríssimo!... Quando me escreveram, pensavam que eu ainda morava lá em Piumi. Pois, se

nunca contei a
ninguém em que buraqueira me vim meter... Abra a carta sem susto... Oh! Senhora Sant'Ana, que

dia hoje!
Quem diria? Uma carta! Uma carta nestas alturas! Pode ler, Sr. Maia... Estou doido por saber

quem se deu ao


[Linha 2100 de 6572 - Parte 2 de 4]


trabalho de me escrever... Martinho dos Santos Pereira, de Piumi... sou eu! Que dúvida: não há

dois. Veja só
o nome... pelo amor de Deus, o nome de quem me direge a carta.
     
        Rompeu o alemão com alguma dúvida e escrúpulo o selo; correndo com os olhos a lauda

escrita,
procurou a assinatura e pausadamente leu "Francisco dos Santos Pereira".
     
        -Gentes! bradou o mineiro no auge da alegria, meu irmão... o Chiquinho!... E eu que o fazia

morto
e enterrado!... Nosso Senhor o conserve por muitos anos!... O Chiquinho!... Já se viu coisa

ansim?... Como
se anda neste mundo, hem, Sr. Cirino? Quem havéra de dizer que este homem, que aqui chegou

ontem por
acaso e alta noite, havia de trazer na canastra uma carta de um irmão que não vejo há mais de

quarenta
anos?!... Ora esta!... São voltas deste mundo... As pedras se encontram... Foi em 1819... não, em

20... Mas
depressa... leia a carta.. vamos ver o que me diz o Chiquinho... Da família passava por ser o de

mais juízo;
também era o mais velho de todos nós... O Roberto, o caçula... Seja o senhor muito bem-vindo

nesta casa...
Depois de tantos anos, trazer-me noticias da minha gente!
     
        Cortou Meyer aquele movimento de efusão que prometia ir longe, começando a ler com

todo o
vagar ou, melhor, a soletrar a carta, cujos garranchos, que não letras, por vezes se viu obrigado

a encostar aos
olhos para poder decifrar.
     
        "Martinho, dizia a despretensiosa epístola, dirijo-te estas mal traçadas linhas só para

saber da tua
saúde e dizer que o portador desta um senhor de muita leitura e vai para os sertões brutos,

viajando e
estudando países e povos. Veio-me do Rio de Janeiro muito recomendado. Peço que o

agasalhes, não como
a um transuente qualquer, mas como se fosse eu em pessoa, teu irmão mais velho e chefe da

nossa família
... "
     
        -Pobre mano! exclamou Pereira meio choroso.
     
        "E homem, continuou Meyer, de bastante criação. Adeus, Martinho. Eu estou estabelecido

na Mata
do Rio, numa fazendola. Tenho cinco filhos, três machos e duas famílias, estas casadas, e que

me deram
netos; já faz bastante tempo. Não estou muito quebrado de forças. H§ mais de oito anos que não

tenho
notícias tuas. Soube que o Roberto tinha morrido no Paranan..."
     
        -Roberto?... Coitado do Roberto! atalhou Pereira com voz angustiosa.
     
     
        E repentinamente, representando-lhe a memória os tempos da infância, arrasaram-se-lhe

os olhos
de lágrimas.
     
        "Sem mais aquela concluiu Meyer, adeus. Felicidade e saúde. Teu irmão, Francisco dos

Santos
Pereira".
     
        -Deveras, disse o mineiro depois de breve silêncio, adiantando-se para o alemão e
apresentando-lhe a destra aberta, o Sr. me deu um fartão de alegria. Toque nesta mão e, quando

ela se
levantar para bulir num só cabelo de sua cabeça ou de alguém da sua família qualquer que seja

o agravo que
me possam fazer, seja ela logo cortada por Deus, que nos está ouvindo.
     
        -Obrigado, Sr. Pereira, respondeu com animação o outro, retribuindo o aperto de mão e
corroborando-o com um concerto de garganta.
     
        -Sim, senhor, continuou o mineiro. Esta carta vale, para mim, mais que uma letra do

Imperador


[Linha 2150 de 6572 - Parte 2 de 4]


que governa o Brasil. É o que lhe digo, Sr. Maia...
     
        -Meyer, corrigiu o alemão apoiando com força na última sílaba, Meyer.
     
        -Ah! é verdade. É preciso traduzir Meyer, Meyer. Agora já atinei com a coisa. Mas como ia

lhe
dizendo, esta casa é sua. Meu irmão, o meu irmão mais velho deu-me ordem que eu o

recebesse como se
fosse ele mesmo em pessoa, o Chico;... acabou-se.
     
        O Sr. é como se fosse dos meus. Não há que ver, 6 o que ele quer. Entendi logo; o mais 6

ser multo
bronco e, com o favor de Deus, não me tenho nesta conta. O Sr. ponha e disponha de mim, da

minha tulha,
das minhas terras, meus escravos, gado... tudo o que aqui achar. Parta e reparta.. Quem está

falando aqui,
não 6 mais dono de coisa nenhuma;... é o Sr.... Meu irmão me escreveu, 6 escusado pensar que

não sei
respeitar a vontade de meus superiores e parentes. É como se recebesse uma ordem do punho

do Sr. D.
Pedro n, filho de D. Pedro I, que pinchou os emboabas para fora desta terra do Brasil e levantou

o Império
nos campos do Ipiranga, lá para os lados de São Paulo de Piratininga, onde houve em seu

tempo colégio de
padres e fradaria grossa, e donde os mamalucos saiam para ir por esses mundos afora bater

índios brabos e
caçar onças, botando bandeiras até na costa do Paraguai e no Salto do Paraná, tanto assim que

deram nas
reduções e trouxeram de lá uma imundície de gente amarrada, por sinal que muitos amolaram a

canela em
caminho, e só chegaram uns cento e tantos, tão magros que...
     
        Enfiava Pereira todas estas frases com surpreendedora rapidez, ao passo que Meyer o

contemplava
extático, à espera que a torrente de palavras lhe desse tempo e ocasião de exprimir algum

vocábulo de
agradecimento.
     
        Só, porem, minutos depois, e a custo, 6 que ele pronunciou um áspero e retumbante:
     
        -Obrigado!
     
        E acrescentou em seguida:
     
        -Mas o senhor fala que nem cachoeira. E não cansa?
     
        -Qual! replicou o mineiro com ufania. A gente da minha terra é de seu natural calada; eu,

não;
mesmo porque fui criado em povoados de muita civilidade...
     
        Tomando esse novo tema, começou novamente a discorrer, mostrando visível

contentamento por
achar na estimável pessoa do Sr. Guilherme Tembel Meyer um ouvinte de força, incapaz de

pestanejar e cuja
fixidez de olhos era prova evidente de que tomava interesse por todos os assuntos possíveis

de conversação.
     

       XI-O ALMOÇO
     
         Comam e bebam: nada de cerimônias comigo. Minhas casa e franca; eu também. Façam

provisão de alegria e de mim disponham sem
constrangimento.
       
         (Plauto. Miles Gloriosus).
     
        Levantou-se de repente Cirino da marquesa em que se sentara.
     
        -Tenho vontade de amanhã seguir viagem...


[Linha 2200 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        -Quê, doutor? protestou Pereira. Partir já? isso nunca... Vosmecê ainda não curou de todo

minha
filha. Pago-lhe todos os prejuízos da sua estada aqui... se for preciso.
     
        -Oh! Sr. Pereira, reclamou por seu turno o jovem, isso quase me ofende...
     
        -Desculpe-me, e muito; mas, antes de duas semanas, não o deixo sair daqui.
     
        -Porém...
     
        -Doentes não lhe hão de faltar. A minha rancharia vai ser visitada como se fosse casa de

presepe,
e o Sr. não poderá dar vazão aos que o vierem procurar. Olhe, hoje mesmo mandei avisar o

Coelho, e daqui
a pouco está ele cá, rente como pão quente. Atrás do primeiro, virá uma chusma dos meus

pecados... Então
quer deixar Nocência como ainda esta?...
     
        -Verdade é, balbuciou Cirino.
     
        -Pois então? Nem pensar nisso é bom. Deixe tudo por minha conta; vosmecê há de aqui

arranjar
os seus negócios.
     
        -Já que o senhor o diz... Eu tinha receio de vexá-lo. Uma vez que até cá venham doentes...
     
        -Hão de vir, esteja sossegado...
     
        -Ficarei, decidiu Cirino, quanto tempo for do seu agrado.
     
        -Ora, muito que bem, exclamou Pereira esfregando as mãos com sincera satisfação, estou

como
quero. Quanto ao Sr. Maia.., Meyer, quero dizer, este há de criar raízes nesta casa...
     
     
        -Isso também não: tenho tempo marcado pelo meu governo...
     
        -Bem, bem; mas em todo caso, fará uma boa temporada conosco. É pena que o Manecão

não
chegue, porque apressávamos o casório, e arranjávamos uma festança como nunca se viu

nestes matarrões...
Mas estou aqui a dar com a língua nos dentes, sem pensar que os nossos estômagos ainda

esperam sua
matula. O almoço não pode tardar; é um pulo só... Se consentem vou ver 1á dentro.
     
        Ao dizer estas palavras, saiu da sala, voltando pouco depois acompanhado de Maria, a

velha
escrava que trazia a toalha da mesa e a competente cuia de farinha.
     
        - Á mesa! gritou Pereira. Almoço hoje com vosmecês. Sr. Meyer, o senhor comerá dora em

diante
comigo e com a menina, lá no interior da casa; ouviu?
     
        E, voltou-se para Cirino.
     
        -Bem sabe, explicou logo,  como se fosse o Chiquinho.
     
        Depois de pronta a mesa, sentaram-se os três alegremente.
     
        -Olhe, Sr. Meyer, disse o mineiro servindo o alemão, isto e feijão-cavalo e do melhor.

Misture-o


[Linha 2250 de 6572 - Parte 2 de 4]


com arroz e ervas; deite-lhe uns salpicos de farinha...
     
        Começou o naturalista a mastigar com a lentidão de um animal ruminante, interrompendo

de vez
em quando o moroso exercício para exclamar:
     
        -Delicioso, com efeito! Muito delicioso.
     
        Comia Cirino pouco e em silêncio.
     
        -Na Alemanha, observou Meyer contemplando um grão de feijão, a maior fava não chega a

este
tamanho. Aqui a fava de lá teria polegada e meia pelo menos. Um almoço, assim, havia de

custar na Saxônia
dois táleres, ou pelo câmbio que deixei no Rio de Janeiro, dois mil e quinhentos réis...
     
        Interrompeu-o Pereira com gesto cômico.
     
        -Dois mil e quinhentos? Ora, que terra essa! Como é que se chama?
     
        - Sac-sônia, respondeu o alemão com gravidade.
     
        -Saco-sonha! exclamou Pereira. Não conheço... Mas, então lá muita gente há de andar a

morrer de
fome...
     
        -Pelos últimos cálculos, replicou Meyer com várias pausas durante as quais introduzia

enormes
colheradas da mistura que lhe aconselhara o anfitrião, 6 sabido que em Londres morrem no

inverno oito
pessoas à míngua, em Berlim cinco, em Viena quatro, em Pequim dose, em Iedo sete, em...
     
        -Salta! atalhou Pereira exultando de prazer, então viva cá o nosso Brasil! Nele ninguém se

lembra
até de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vai-se no mato, e fura-se mel de jataí e

manduri, ou
chupa-se miolo de macaubeira. Isto é cá por estas bandas; porque nas cidades, basta estender

a mão, logo
chovem esmolas... Assim é que entendo uma terra... o mais é desgraça e consumição . . .
     
        -Decerto! corroborou o alemão, o Brasil é um país muito fértil e muito rico. Dá café para

meio
inundo beber e ainda há de dar para todo o globo, quando tiver mais gente... mais população...
     
        -Bem eu sempre digo, acudiu Pereira tocando no ombro de Cirino e deitando-lhe uns olhos

de
triunfo. Lá fora é que nos conhecem, nos fazem justiça... Não acha,  patrício? Homem, agora

reparo
...vosmecê está tão calado!... meio casmurro, que é isso? sempre aquele negócio?
     
        De fato, Cirino, depois que ouvirá o convite a Meyer para conviver no interior da casa de

Pereira,
tornara-se sombrio, inquieto, meditabundo. O corpo ali estava, mas a sua imaginação vigiava

zelosa o
quartinho onde repousava aquela menina febricitante, tão bela na sua fraqueza e palidez

enferma.
     
        -Se são mulheres, ponderou Pereira, deixe-se disso; não há maior asneira... É fazenda que

não
falta.
     
        No meio dos exercícios mandibulares, julgou Meyer que o seu hospedeiro considerava o

sexo
feminino do ponto de vista meramente estatístico e acreditou conveniente assentar melhor a

idéia, um tanto
vagamente aventada.
     
        -Na raça eslava, disse dogmaticamente, a proporção 6 de duas mulheres para um homem;

na


[Linha 2300 de 6572 - Parte 2 de 4]


germânica, há aproximadamente número equivalente, na latina de dois homens para uma

mulher. Na
França, a proporção para o lado masculino é de...
     
        -Mas o senhor contou? interrompeu Pereira. Deixe-lhe dizer uma coisa: eu cá não engulo

araras...
     
        -Ni eu, afirmou Meyer com alguma surpresa e energia, nem sei como o senhor me vem

falar
nessas aves agora. . . Se as considera como caça, deve saber que os trepadores têm a carne

dura, preta e...
     
        Riu-se Pereira do equívoco e, explicando-o, continuou a discutir com o seu interlocutor, que

não
discrepava uma linha dos seus princípios de método e escrupulosa polidez.
     
        -Pode o senhor falar um ano inteiro, disse o mineiro para concluir; mas quanto a mim, não
entendo patavina das suas contas e jigajogas. Quem me tira da tabuada, bota-me no mato... E

agora, vamos
agradecer a Deus Nosso Senhor Jesus Cristo o ter-nos dado esta comida, ainda que insuficiente

e mal
temperada.
     
        E, unindo o exemplo à palavra, levantou-se e, de mãos postas ao peito, orou em voz baixa

com
unção, no que foi imitado pelos dois hóspedes.
     
        -Esteja convosco o Senhor, disse ao terminar, em voz alta, persignando - se.
     
        -Amém, responderam Cirino e Meyer.
     
        -Agora, anunciou o mineiro saindo da mesa, vou dar um giro pela minha roga, onde estão

na
capina três negros cangueiros, um dos quais é  o meu fazendeiro; depois, hei de visitar uns

conhecidos meus,
avisando-os da sua chegada, doutor. Ah! acrescentou todo desfeito em amável sorriso, falta-lhe

mostrar
minha filha, Sr. Meyer.
     
        -Sua filha! exclamou o alemão. Então tem filhos?
     
        -Sim, senhor. Não se lembra que o seu vulto é o do mano Chiquinho? Pois então? Que

maior
prova lhe posso dar de confiança e amizade?... Não é verdade, Sr. Cirino?
     
        -Sem dúvida, balbuciou a custo o mancebo.
     
        -Minha filha chama-se Nocência e só hoje é que se levantou da cama... Esteve doentinha...

Assim
mesmo, não sei se as maleitas a deixaram... O corpo é às vezes caroável dessas malditas e...
     
        -Isto está ao meu cuidado, atalhou Cirino com alguma pressa. Ainda ao meio-dia há de

tomar
quina...
     
        -Vosmecê faça o que for melhor... Quer vir, Sr. Meyer?
     
        -Pois não! pois não! respondeu amavelmente o alemão.
     
        - É a única pessoa da família que tenho aqui, além de um marmanjão que está agora na

carreira
por essas estradas, agenciando a vida . . . Então, vamos! Venha também, continuou ele

voltando-se para
Cirino, um cirurgião é quase de casa.
     
        Saíram, pois, os três. Pereira na frente, seguiu o oitão da direita, e, abrindo uma tranqueira

do


[Linha 2350 de 6572 - Parte 2 de 4]


cercado dos fundos, entrou pela cozinha, onde a velha preta Conga estava lavando pratos e

arrumando louça
numa prateleira.
     

       XII - A APRESENTAÇÃO
     
     
       
         Quem, porém, mostrava mais surpresa o admiração era Sancho Pança. Nunca, em dias de

sua vida, vira perfeição Igual.
       
         (Cervantes, Dom Quixote, CXXIX)
       
         Ao bálsamo, fazem as moscas. que nele morrem, perder a suavidade do perfume. Uma

parvoíce, ainda que pequena e de pouca dura,
da motivo a não se ter em conta nem sabedoria nem glória
       
          (Eclesiástes, X).
     
        Depois de atravessarem um quarto bastante escuro, chegaram os visitantes a sala de

jantar, vasto
aposento ladrilhado, mas sem forro, a um canto do qual estava a filha do mineiro, mais deitada

do que
sentada numa espécie de canapé de taquara.
     
        Tinha os pés sobre uma bonita pele de tamanduá-bandeira, onde se acocorara, conforme o

hábito,
o anão a quem Pereira chamara Tico.
     
        Ao ver chegar tanta gente, abriu a formosa menina uns grandes olhos de espanto; quis toda

enleada
erguer-se, mas não pôde e, corando ligeiramente, teve como que um delíquio de fraqueza.
     
        Aproximara-se logo Cirino com vivacidade.
     
        -A dona, disse ele para Pereira, esta tão fraca que mete do.
     
        Chegou-se o pai juntamente com Meyer e, tomando as mãos da filha, perguntou-lhe com

voz meiga
e inquieta:
     
        -Sente-se pior, meu benzinho?
     
        -Nhor-não, respondeu ela.
     
        -Pois então!... t: preciso não entregar o corpo à moleza... Abra os olhos... Olhe... esta aqui

este
homem (e apontou para Meyer) que é alamão e trouxe uma carta do tio de mecê, o Chico, lá da

Mata do Rio.
Quero mostrar que, para mim, vale tanto como se fosse esse próprio parente tão a nós chegado.

Por isso é
que venho apresentá-lo...
     
        Ela nada articulou.
     
        -Vamos, diga... Tenho muito gosto em lhe conhecer... diga.
     
        Com vagar e acanhamento, repetiu Inocência estas palavras, ao passo que Meyer lhe

estendia a
mão direita, larga como uma barbatana de cetáceo, e franca como o seu coração.
     


[Linha 2400 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
       
     
       
        -Gosto, muito gosto tenho eu, disse ele com três ou quatro sonoros arrancos de garganta.

Só o que
sinto é vê-la doente... Mas o doutor não nos deixará ficar mal; não é, Sr. Cirino?...
     
        E apoiou esta pergunta com um hem? que ecoou por toda a sala.
     
        -A senhora, respondeu o interpelado, precisaria tomar por alguns dias um pouco de bom

vinho do
Porto, em que se pusesse casca de quina do campo... Mas, onde achar agora vinho? Só na Vila

de Sant'Ana
. . .
     
        -Vinho? perguntou Meyer.
     
        -Sim.
     
        -Vinho do Porto?
     
        -Melhor ainda.
     
        -Pois tudo se arranja, na minha canastra tenho uma garrafa do mais superfino e com a

maior
satisfação a ofereço à filha do meu pom amigo o Sr. Pereira.
     
        -Oh! Sr. Meyer, agradeceu este com efusão, não sabe quanto lhe f ico . . .
     
        -Qual! não tem obrigação, não, senhor. Além do mais, sua filha é muito bonita, muito bonita,

e
parece boa deveras... H§ de ter umas cores tão lindas, que eu daria tudo para vê-la com saúde...
     
        Que moça! . . . Muito bela!
     
        Estas palavras que o inocente saxônio pronunciara ex abundantia cordis produziram

extraordinário
abalo nas pessoas que as ouviram.
     
        Tornou-se Pereira pálido, franzindo os sobrolhos e olhando de esguelha para quem tão
imprudentemente elogiava assim, cara a cara, a beleza de sua filha; Inocência enrubesceu que

nem uma
romã; Cirino sentiu um movimento impetuoso, misturado de estranheza e desespero, e, lá da

sua pele de
tamanduá-bandeira, ergueu-se meio apavorado o anão.
     
        Nem reparou Meyer e com a habitual ingenuidade prosseguiu:
     
        -Aqui, no sertão do Brasil, há o mau costume de esconder as mulheres. Viajante não sabe

de todo
se são bonitas, se feias, e nada pode contar nos livros para o conhecimento dos que lêem. Mas,

palavra de
honra, Sr. Pereira, se todas se parecem com esta sua filha, é coisa muito e muito digna de ser

vista e escrita!
Eu...
     
        -O Sr. não quer retirar-se? interrompeu Pereira com modo áspero.
     
        -Pois não! replicou o alemão.
     


[Linha 2450 de 6572 - Parte 2 de 4]


        E como despedida acrescentou, dirigindo-se para Inocência:
        -Chamo-me Guilherme Tembel Meyer, seu humilde criado, e estimo muito conhecê-la por

ser a
senhora filha de um amigo meu e prender a gente com o seu lindo rosto...
     
        Estendeu então a mão, fez um movimento de cabeça, e acompanhou ao mineiro que já ia

saindo,
branco de cólera concentrada.-E que me diz o Sr. deste homem? perguntou a Cirino a meia voz e
puxando-o de parte.
     
        -Reparei muito nos seus modos, respondeu-lhe o outro no mesmo tom.
     
        -Nem sei como me contenha... Estou cego de raiva... Que presente me mandou o Chico!... É

uma
peste, este diabo melado... Vê uma rapariguinha e enche logo as bochechas para lhe dizer meia

dúzia de
pachouchadas e graçolas... Não está má esta!... 1!: um perdido. Nada... Isto não me cheira bem:

vou ficar de
olho nele. . .
     
        -Faz muito bem, apoiou Cirino.
     
        -Vejam só, continuou Pereira retendo o seu interlocutor para deixar Meyer distanciar-se, em

boas
me fui eu meter! . . . Se não fosse a tal carta do mano, o cujo dançava ao som do cacete...

Malcriadaço! Uma
mulher que daqui a dois dias esta para receber marido... Deus nos livre que o Manecão o

ouvisse...
Desancava-o logo, se não o cosesse a facadas... Vejam só, hem?... Sempre 6 gente de outras

terras... Cruz!
Também vi logo... um latagão bonito. .. todo faceiro... havéra por força de ser rufião.
     
        Ouvia-o Cirino em silêncio.
     
        -E mulher, prosseguiu o mineiro com raivosa volubilidade, 6 gente tão levada da breca, que

se
lambe toda de gosto com ditinhos e requebros desta súcia de embromadores. Com elas, digo eu

sempre, não
há que fiar... Má hora me trouxe este alamão... Mil raios o rachem!... E logo o Chico... Tenho

agora que ficar
de alcatéia... meter-me em tocaia e fazer fojos para que o bracaiá não me entre no galinheiro.

Ora que tal!
     
        -Também, breve se vai ele embora, lembrou Cirino a modo de consolo.
     
        -Que o demo o leve quanto antes, replicou Pereira. Já estou todo enfernizado com o tal

homem...
     
        Neste momento, como que de propósito, voltava-se Meyer para os dois:
     
        -Sr. Pereira, disse ele, ficarei em sua casa talvez umas duas semanas. Os burrinhos vão

engordar
no seu pasto e eu hei de fazer compridas viagens nesta sua fazenda, apanhando tudo o que

nela encontrar...
Ouviu?
     
        Reprimiu o interpelado um gesto de viva contrariedade e, levado pelo instinto e dever de
hospitalidade, de pronto respondeu, embora secamente:
     
        -Fique duas semanas, ou dois meses ou dois anos. Já lho disse: a casa é sua, e palavra

de mineiro
não volta atrás. Quem esta aqui, não é o Sr., é meu irmão mais velho.
     
        Agarrando então com força na mão de Cirino, acrescentou em voz surda e angustiada:
        -Olhe, doutor; veja só isto! Que lhe dizia eu?... Ah! meu Meyer, quer se engraçar comigo,

não é?
Mas cá fico... e, uma vez avisado, nem dois, nem três me botam poeira nos olhos... Não é com

essa!
Nocência nasceu filha de pobre, mas, graças a Maria Santíssima, tem ainda pai com braço forte

e muito


[Linha 2500 de 6572 - Parte 2 de 4]


sangue nas veias para defendê-la dos garimpeiros e cruzadores de estrada... Ele que não

brinque com o
Manecão; é homem de cabelinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela-lhe os ossos,

como se fora
veadinho do campo enroscado por sucuri...
     

        Ia, contudo, Meyer, de todo ponto alheio ao temporal provocado por suas inconsideradas
palavras e, sem dúvida, estimulada em suas reminiscências pela vista da menina que acabava

de admirar,
cantarolava entredentes uma velha valsa alemã, dançada talvez com alguma loura patrícia em

épocas
remotas e de menos rigorismo científico.
     

       XIII-DESCONFIANÇAS
       
         Muitas vezes, somos iludidos pela confiança: mas a desconfiança faz que sejamos por

nós mesmos enganados.
       
         (Príncipe de Ligne)
     
        Quando o nosso saxônio entrou na sala em que estavam as suas cargas, vinha tão

contente do
agasalho recebido, da firmeza do tempo, das futuras caçadas de borboletas, que despertou a

atenção do
seu camarada José.
     
        Estava este encostado a uma canastra, a esgaravatar, de faca comprida em punho, a planta

dos
pés, verificando se alguma pedrinha da estrada não se havia incrustado na grossa e já

insensível sola.
     
        -Homem, disse ele com familiaridade, Mochu está hoje muito alegre . . . Viu passarinho

verde
?
     
        -Passarinho verde? perguntou Meyer. Que é isso? Não vi passarinho nenhum... Vi uma

moça
muito bonita...
     
        -Olé... melhor ainda... Conte-me isso... e quem é ela.
     
        -E a filha cá do Sr. Pereira.
     
        -Parabéns! parabéns! exclamou José com toda a indiscrição. Moça bonita é fruta rara por

estas
matarias e brenhas do inferno... Quanto a mim, ainda não botei o olho senão em velhas

corcorócas e
serpentões... Outra coisa é no Rio... Não se lembra Mochu, da procissão de São Jorge?... Aí é

que sai à
rua uma tafularia de deixar a gente tonta de uma vez, de queixo caído. Umas tão alvas!... Outras

cor de
café com leite... crioulas chibantes.
     
        -Juque, repreendeu o alemão revestindo-se de ar severo, não tome confiança com gente

que
não 6 da sua classe...
     
        -Mas eu não disse nada de mau, Mochu, desculpou-se o criado recolhendo-se meio enfiado
ao silencio e voltando ao exame dos pés.
        Quem estava em cima de um braseiro, era Pereira. Decididamente, aquele hóspede o

punha a
perder, proclamando assim com a trombeta da fama que vira Inocência e com ela conversara,

que a
achava do seu gosto... uma rapariga já noiva! Quantas incongruências, que perigos, ó Santos do

Paraíso!
     
        Tornava-se caso de muita prudência. Qualquer passo menos pensado acarretaria

conseqüências


[Linha 2550 de 6572 - Parte 2 de 4]


irremediáveis,
     
        Necessário e penetrar-se a força dos sentimentos que sobressaltavam o mineiro, para bem
aquilatar os transes por que passava e achar natural que seguisse uma linha de proceder toda

de duvida e
vacilações.
     
        Se, de um lado, criava involuntária admiração por Meyer e, rodeando-o, em sua

imaginação, do
prestigio de uma beleza irresistível, via aumentar o seu receio em abrigar tão perigoso sedutor;

do outro,
sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, com a

recomendação
expressa de seu irmão mais velho, assumia caráter quase sagrado. Juntem-se a isto os

preconceitos sobre
o recato doméstico, a responsabilidade de vedar o santuário da família aos olhos de todos, o

amor
extremoso à filha, em quem não depositava, contudo, como mulher que era, confiança alguma,

as
suposições logo ideadas acerca da impressão que naturalmente aquele estrangeiro produzira

no coração
da sua Inocência, já quase pertencendo ela a outrem, e as colisões que previu para manter

inabalável a
sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagônicos-um mundo enfim de

cogitações
e de terrores. E tudo isto revolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se com sombrios traços

de
inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial.
     
        -Por que razão é, perguntou ele a José Pinho para desviar aquela conversa que tanto o
magoava, que vosmecê chama Mochu ao Sr. Meyer?
     
        Sorriu-se o carioca com ar de superioridade e respondeu desembaraçadamente:
     
        -Ah! E um modo de falar...
     
        -Como assim?
     
        -Já lhe ponho tudo em pratos limpos... Vosmecê não lhe chama Sr.?
     
        -Chamo.
     
        -Pois, então?... Eu também lhe chamo assim... mas falo em francês, Mochu quer dizer

senhor,
nessa língua.
     
        -Ah! replicou Pereira dando-se por convencido, então e isso? Pensei que fosse outra

coisa...
     
        -Juque; avisou Meyer que estava a remexer nas canastras, prepare tudo; nós vamos ao

mato
agora mesmo...
     
        -Venha comigo, propôs o mineiro com voz insinuante. Eu lhe apontarei lugares onde há

dessa
bicharia miúda, coisa nunca vista.
     
        -Com muito gosto, concordou o alemão.
     
        E voltando-se para o camarada:
     
        -Ande, Juque, ordenou ele, bote a pita para fora, caixas de folha-de-flandres, clorofórmio,
rede pronta... Depressa homem, depressa!
     
        José Pinho, instigado por estas palavras, entrou a voltear de um lado para o outro, como

que


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atarantado com o excesso de serviço.
     
        -Minhas lentes, pediu o naturalista, o saco para os bichos de casca grossa... Depressa...

Vou
ajudá-lo.
     
        E, por seu turno, começou a tirar das canastras os objetos de que necessitava, enfiando a
tiracolo dois ou três talabartes finos que sustentavam umas caixinhas encouradas. Numa delas,

havia um
copo de prata com a competente corrente noutra, um faqueiro de peças dobradiças e de metal do
príncipe. Também assentou ao flanco uma frasqueira defendida de choques externos por fino

trançado
de vime e que continha aguardente, comprada de fresco na Vila de Sant'Ana do Paranaíba.
     
        Não contente com o peso de todos esses apêndices à sua pessoa, fingiu largo talim com

uma
espécie de patrona de folha-de-flandres e que sustentava um grande facão inglês, um revólver e

uma
espada de caça.
     
     
        Depois de ter vagarosamente arranjado sobre si cada uma destas peças com grande

espanto de
Pereira e até de Cirino, substituiu Meyer os óculos habituais por outros, de vidros afumados,

multo
grandes e convexos, destinados a proteger-lhe amplamente os olhos dos ardores do Sol.

Muniu-se, além
disso, de outro singular meio de preservação: uma rodela ampla de pano branco forrado de

verde que
aumentava as abas do chapéu-do-chile, descansando em parte sobre elas.
     
        Com esse trajo ficou decerto a mais estapafúrdia figura que algum cristão encontrar poderia
naquelas trezentas léguas em derredor; entretanto, Pereira, ofendido com aqueles cuidados de

prevenção
meramente científica, que lá no seu bestunto qualificava de faceirice feminil:
     
        -Veja só, disse ele para Cirino, como este maricas gosta de se enfeitar!... Você não me

engana,
não, Sr. alamão das dúzias...
     
        Mirava-se nesse momento o naturalista, para verificar se lhe faltava alguma coisa.
     
        -Estou pronto, exclamou afinal, e muito desejoso de entrar no mato.
     
        -Ponham-te a tinir os carrapatos, resmoneou Pereira.
     
        -Ah! disse Meyer, e as minhas luvas?... Juque, procure na canastra nº 2, à esquerda, no
segundo canto.
     
        Sacou o camarada umas grandes lavas de lã, brancas, muito largas, já usadas e sujas,

nas quais
o alemão enfiou de um jacto as mãos espalmadas.
     
        -Agora, sim! anunciou ele com satisfação.
     
        E, dando um sonoro e prolongado hum! empunhou a rede de apanhar borboletas.
     
        Depois, levando um dedo à testa:
     
        -Ah! exclamou, e o vinho! Não me ia esquecendo?... O vinho para sua filha, Sr. Pereira, sua
linda filha.
     


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        Encolheu o mineiro com furor os ombros e disse em parte a Cirino:
     
        -Fez-se de esquecido só para falar na menina... Veja bem. Este calunga não me bota areia

nos
olhos.
     
        E acrescentou alto, recebendo a garrafa que o camarada José Pinho tirara de uma das

canastras:
     
        -Agradeço o seu presente, Sr. Meyer, mas se... lhe faz a menor falta .. a menina há de

curar-se
sem isto...
     
        - Não, não, não, não, respondeu o saxônio com uma série de negativas que pareciam não
dever ter fim.
     
        -Neste mundo, rosnou Pereira mais para si do que para ser ouvido, ninguém mete prego

sem
estopa; mas com sertanejos... não se brinca.
     
        Cirino tomara a garrafa.
     
        -Isto, afirmou ele, acaba com certeza a cura.
     
        E, esquivando-se de pronunciar o nome e a qualidade da pessoa de quem estava tratando:
     
        -Ela há de ter hoje algum apetite e poderá levantar-se um pouco, pois já tomou o seu

caldinho.
     
        -Então, ao meio-dia, recomendou Pereira muito baixinho a Cirino, vosmecê mande chamar a
nossa doente e dê-lhe a mezinha. Ouviu? Já avisei lá dentro...
     
        Cirino abanou a cabeça, tomando ar misterioso.
     
        -Eu por mim estarei de olho vivo no bichão... Parece-me suçuarana à espreita de veadinhas
campeiras... Não terá este vinho algum feitiço?
     
        Contestou o outro com energia tal possibilidade.
     
        -Eu sei lá, insistiu Pereira. Estes namoradores são capazes de muita coisa... Nunca ouviu
contar histórias de pirlas e beberagens.. hem? diga-me, nunca?
     
        -Sossegue, Sr. Pereira, acudiu Cirino, hei de examinar o liquido... tenho certeza de que não
haverá novidade.
     
        -Muito que bem .. Então, ao meio-dia em ponto... chame a Maria Conga ou o Tico. Nocência
há de arrastar-se até cá... e o doutor lhe dará a dose...
     
        -Ela sair já? objetou Cirino com admiração. Não, senhor; em tal não consinto... Irei dar-lhe o
remédio... Não me custa nada...
     
        Pereira ficara meio perplexo.
     
        -Não sei...
     


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        E com súbita resolução:
     
        -Pois bem, virei da roga até cá... Se eu não aparecer, então o Sr. dê um pulo e faça-lhe

tomar
a poção... Quanto a este alamão melado, levo-o para longe e não o trago senão bem tarde e tão

moído do
passeio que só há de pensar em dormir.
     
        Com Pereira se dava um fato natural e comezinho nas singularidades do mundo moral.
     
        A medida que as suspeitas sobre as intenções do inocente Meyer iam tomando vulto

exagerado,
nascia ilimitada confiança naquele outro homem que lhe era também desconhecido e que a

princípio lhe
causara tanta prevenção quanto o segundo.
     
        E que as dificuldades e colisões da vida, quando se agravam, tão fundo nos incutem a
necessidade do apoio, das simpatias e dos conselhos de outrem, que qualquer aliado nos

serve, embora
de muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares de ocasião.
     
     

       XIV-REALIDADE
     
         Cordélia.-Há de o tempo desvendar o que hoje esconde a discreta hipocrisia.
       
         (Shakespeare, O Rei Lear, Ato I).
     
        Depois que Cirino viu sumir-se Pereira com os dois companheiros além do laranjal da

casa,
seguindo em direção à roça por uma vereda pedregosa e cheia de seixos rolados, nos quais

iam as patas
dos animais batendo; depois que teve certeza de que ficara só naquela vivenda, entrou em

grande
agitação.
     
        Ora, passeava pelo quarto rápida e inquietantemente; ora, media-o com passo lento em

muitas
direções; ora, enfim, saia para o terreiro e ali, com a cabeça descoberta, ficava a olhar

atentamente para
diversos lados, abrigando com a mão aberta os olhos, dos vivíssimos raios do sol.
     
        Prometia o dia ser muito cálido. Por toda a parte chiavam as estrídulas cigarras, e ao longe

se
ouvia o metálico cacarejar das seriemas nos campos.
     
        Às vezes, encarava Cirino o Sol; depois tapava os olhos deslumbrados e, tomado de

vertigem,
voltava para a sala, onde recomeçava os seus passeios.
     
        Por que, porém, não descansava o mancebo?
     
        Entrando familiarmente pela sala adentro, os bacorinhos se haviam abrigado dos ardores

do dia
e, deitados debaixo de uns jiraus, ressonavam, presa de gostoso sono.
     
        Tudo quanto vivia apetecia a sombra e o repouso. Fora, o Sol reverberava violento em

seus
fulgores, e as sombras das arvores iam cada vez mais diminuindo. Até uma égua com o esguio

e peludo
poldrinho deixara o distante pasto e viera abrigar-se, à proteção da casa, junto à qual parara já

meio a
cochilar.
     
        A enervadora ação do calor estival, juntavam sua influência as monótonas modulações de


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umas chulas e modinhas, cantadas ao som da viola de três cordas pelos camaradas de Cirino,
acomodados no rancho junto ao paiol de milho.
     
        A tudo, entretanto, resistia o jovem, e com ascendente desassossego consultava o seu

relógio de
prata, tirando-o cada instante do bolso.
     
        Passaram-se segundos, minutos e horas. Afinal soltou ele um suspiro de alivio:
     
        -Meio-dia!,.. Cuidei que nunca havia de chegar!...
     
        Saindo todo animado para o terreiro, chamou com voz forte:
     
        -Maria... O Maria Conga!...
     
        Ninguém lhe respondeu. Só do lado da cozinha ladraram uns cães.
     
        Depois de esperar algum tempo, rodeou Cirino toda a casa, como fizera com Pereira e,
encostando-se à cerca que impedia a aproximação do lanço dos fundos, tornou a chamar:
     
        -Ó Maria?... Maria!... Está dormindo, minha velha?
     
        Vendo que os gritos ficavam sem resposta, saltou então o cercado e foi caminhando para a
porta da cozinha, devagar, porém, e como que a medo.
     
        -Ó Maria?!... Minha tia!... Olá! Ó de casa! chamava ele.
     
        Afinal apareceu não a velha escrava, mas o anão Tiro, que pareceu, com imperioso

movimento
de cabeça, indagar a causa daquele intempestivo alarma.
     
        -Que é da Maria Conga? perguntou Cirino chegando-se a ele.
     
        Por meio de moderada gesticulação, mas muito expressivamente, deu Tico a entender que

a
preta fora ao córrego lavar roupa.
     
        -E não há mais ninguém em casa? inquiriu o outro.
     
        Mostrou o anão, com singular expressão de orgulho e despeito, que ali estava . ele e

deitou um
olhar de cólera para o imprudente curioso.
     
        -Bem, replicou Cirino sorrindo-se, vá você então dizer à sinhá dona, que já chegou a hora

de
tomar o remédio. Trago o vinho, e é preciso quanto antes preparar café.
     
        Desapareceu Tico, fazendo um aceno ao intitulado medico para que esperasse fora.
     
        -Ora, exclamou este com aborrecimento e tom de chacota, aqui ao Sol?... Não está má

esta!. ..
E tal o mestre nanica?. . .
     
        Sem mais cerimônia entrou, pois, na casa, penetrando no quarto que ficava entre a

cozinha,
teatro da atividade de Maria Conga e a sala de jantar, onde se dera a apresentação de Meyer a

Inocência.
     


[Linha 2800 de 6572 - Parte 2 de 4]


        Daí a pouco, ouviu passos arrastados e aos seus olhos mostrou-se Inocência embrulhada

em
uma grande manta de algodão de Minas, de variegadas cores, e com os longos e formosos

cabelos caídos
e puxados todos para trás. Os grandes e aveludados olhos orlados de fundas olheiras, e o
quebrantamento do semblante, muita fraqueza denunciavam ainda; entretanto, as cetinosas

faces como
que se apressavam a tomar cores, à semelhança de rosas impacientes de desabrochar e

expandir-se
vivazes e alegres. Ao chegar à porta, não a tranpôs; mas encostando-se à grossa trave que

fazia de
umbral, ali ficou parada, indecisa, com o olhar turbado e esquivo.
     
        - Ao vê-la, deu Cirino com timidez alguns passos ao seu encontro; depois, por seu turno
estacou junto a uma cadeira de comprido espaldar, antigo e sólido traste trazido por Pereira da

sua casa
de Piumi.
     
        Após longa pausa, em que por vezes se cruzaram incertos os olhares perguntou com

esforço:
     
        -Então... minha senhora... como está?... Sente-se melhor?
     
        -Melhor, obrigada, respondeu Inocência com voz aflautada e muito trêmula.
     
        -Comeu já alguma coisa?
     
        -Nhor-sim... uma asa de frango, mas com... bastante vontade.
     
        -Sente o corpo abatido?
     
        - A canseira está passando... ontem muito mais...
     
        A pouco e pouco, fora Cirino recuperando o sangue frio e se aproximando da moça, que

mais
se apegou à umbreira, como que a procurar abrigo e proteção.
     
        De um lado da porta ficou ela: do outro Cirino, ambos tão enleados e cheios de sobressalto

que
davam razão às olhadas de espanto com que os encarava Tico, empertigado bem defronte dos

dois em
suas encurvadas perninhas.
     
        -Pois chegou a hora de tomar o remédio...
     
        -Já, seu doutor? implorou Inocência.
     
        -Nhã-sim.
     
        -Eu não tenho mais nada...
     
        -É para cortar de uma vez as sezões... Olhe, se elas voltassem... era um grande desgosto

para
mim...
     
        -Mas é tão mau, objetou ela.
     
        - Não é bom deveras... mas bem melhor é voltar à saúde...
     
        Com um bocadinho de coragem, a gente engole tudo sem muito custo... Já que lhe amarga
tanto... beberei também um pouco...


[Linha 2850 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        -Oh! não! protestou Inocência.
     
        -É: para lhe mostrar... que quero sentir... o que mecê sente.
     
        Fez-se a menina da cor da pitanga, levantou uns olhos surpresos e voltou logo o rosto para

fugir
dos olhares ardentes de Cirino.
     
        -A mezinha? pediu ela por fim toda comovida.
     
        -Ah! é verdade! exclamou Cirino. Ande, Tico: vá buscar café a cozinha. Lave bem um pires...
percebeu?
     
        O anão fitou o moço com altivez e não se mexeu.
     
        -Você é surdo?
     
        -Não, respondeu Inocência. Tico, às vezes, por manha é que se faz ansim de mouco.
     
        Voltando-se então para o homúnculo, insistiu com voz meiga e carinhosa:
     
        -Vai, Tico; é para mim, ouviu?
     
        Transformou-se repentinamente a fisionomia do anão. Pairou-lhe nos lábios inefável

sorriso,
meneou a cabeça duas ou três vezes com a força de uma afirmação, mas, colérico, enrugou a

testa e
moveu olhos inquietos e duvidosos.
     
        Inocência teve que repetir o recado.
        -Já lhe disse, Tico: vai buscar o café.
     
        A esta quase ordem não ousou ele resistir mas saiu devagarzinho, voltando-se várias

vezes
antes de entrar na cozinha, onde muito pouco se demorou.
     
        Neste entrementes tomara Cirino o pulso de Inocência e, sem pensar no que fazia,

quebrando a
débil resistência da menina, cobrira-lhe de beijos o braço e a mãozinha que havia segurado.
     
        -Meu Deus! balbuciou ela, que é isto?... Olhe, aí vem Tico.
     
        Recuou então o mancebo e, para melhor disfarçar a comoção adiantou-se para o anão que
vinha trazendo na mão direita uma vasilha de folha-de-flandres, e na outra um pires com colher.
     
        -Muito bem, disse ele, ponha tudo em cima da mesa.
     
        E preparando rapidamente o medicamento apresentou-o a Inocência. que sem hesitação o
sorveu todo.
     
        -Deixe-me um pouco, exorou com ternura Cirino, um pouco só... Se é tão mau... sofra eu
também.
     
        -Não, respondeu ela com alguma energia, por que havéra de mecê sofrer?


[Linha 2900 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        E, ou por efeito do inexprimível e desconhecido abalo que experimentara no estado de
debilidade a que chegara, ou por ser aquela a hora em que costumava a febre salteá-la, o certo

é que teve
de encostar-se ou melhor, agarrar-se ao umbral para não cair a fio comprido no chão.
     
        -Oh! exclamou com angústia Cirino, a senhora vai desmaiar.
     
        Transpondo então o limiar da porta, tomou nos braços a pálida donzela, sem relutância
encostou a desfalecida cabeça ao seu ombro e, com o hálito ofegante, aos poucos lhe foi

fazendo voltar
às faces o precioso sangue.
     
        -Estou melhor, balbuciou ela procurando afastar a cabeça de Cirino.
     
        -Não faça de forte à toa, acudiu este. Vamos ate  aquela cadeira.
     
        E, com toda a lentidão e cuidado, foi levando a convalescente até sentá-la,

desembaraçando-a,
depois, dos muitos cabelos que, todos revoltos, lhe haviam invadido o colo e se esparziam

sobre o rosto.
     
        -Quanto cabelo! exclamou Cirino meio risonho.
     
        Com muita atenção seguira Tico as peripécias de toda aquela cena. Ao ver Inocência perder
quase os sentidos, soltou um grito surdo de desespero; depois, foi seguindo-a até a cadeira e,

ajoelhado
diante dela, contemplou-a com inquietação.
     
        Cirino quis aproveitar a ocasião para um. congraçamento.
     
        -Então está com cuidado, Sr. Tico?... Não é nada... sua ama fica boa logo... Não é o que

você
quer?
     
        Ao ouvir esta interpelação, levantou-se o anão e correspondeu ao simpático anúncio do

moço
com um olhar de desprezo e pouco caso, como que a dizer:
     
        -Não se meta comigo, que não quero graças com você, médico de arribação!
     
        -Agora, disse Cirino voltando-se para Inocência, vai mecê beber dois goles deste vinho ..

Vera
logo, que sustância há de sentir dentro do corpo.
     
        Desarrolhou então, com a ponta da comprida faca que tirou do cinto, a garrafa de vinho
oferecida por Meyer, e num caneco de lousa branca apresentou à moça um pouco do ruborante

líquido.
     
        Molhou a doentinha os lábios e gratificou o obsequioso mancebo com um sorriso

encantador.
     
        Decididamente lhe agradava aquele medico: curava do seu corpo enfermo e entendia-lhe

com
a alma. Raros homens que não seu pai e Manecão, além de pretos velhos, tinha até então visto;

mas a ela,
tão ignorante das coisas e do mundo, parecia-lhe que ente algum nem de longe poderia ser

comparado
em elegância e beleza a esse que lhe ficava agora em frente. Depois, que cadela misteriosa de

simpatia a
ia prendendo àquele estranho, simples viajante que via hoje, para, sem duvida, nunca mais

tornar a
vê-lo?
     
        Quem sabe se a meiguice e bondade que lhe dispensava Cirino não eram a causa única

desse


[Linha 2950 de 6572 - Parte 2 de 4]


sentimento novo, desconhecido, que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota

a
florzinha do campo?
     
        A muito obriga a gratidão.
     
        Rápidos correram esses pensamentos pela mente de Inocência, ao passo que as suas

pupilas se
iam erguendo até se fixarem em Cirino, límpidas, grandes, abertas, como que dando entrada

para ele ler
claro o que se lhe passava na alma.
     
        -Sinto-me tão bem, disse ela com metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece
nunca mais hei de ficar mofina.
     
        -Não, não, decerto! exclamou Cirino, nunca mais. Além disso, aqui estou e...
     
        Com a sua chegada, interrompeu Maria Conga, a velha negra, aquele começo de diálogo.

Vinha
da fonte com volumosa trouxa de roupa que entrou a estender em compridos bambus, assentes
horizontalmente sobre forquilhas fincadas no chão.
     
        Despedindo-se, então, Cirino de Inocência:
        -Agora, lhe disse ele risonho e pegando-lhe na mão, sossegue um pouco: depois tome um
caldo e... queira-me bem.
     
        -Gentes! Por que lhe não havéra de querer? perguntou ela com ingenuidade. Mecê nunca

me
fez mal...
     
        -Eu, retrucou Cirino com fogo, fazer-lhe mal? Antes morrer... Sim...dona... da minha alma,
eu...
     
        E, sem concluir, disse repentinamente:
     
        -Adeus!
     
        Depois, com passo lento, foi se retirando e passou diante da janela junto à qual ficara

Inocência
sentada.
     
        -Olhe! recomendou ele recostando-se ao peitoril, cuidado com 0 sereno...
     
        -Nhor-sim...
     
        -Não beba leite...
     
        -Mecê já disse.
     
        -Coma só carne-de-sol...
     
        -Já sei...
     
        -Então, adeus... adeus, menina bonita!
     
        E, a custo, despegou-se daquele lugar, onde quisera ficar, ate que de velhice lhe

fraqueassem as


[Linha 3000 de 6572 - Parte 2 de 4]


pernas.

       XV - HISTÓRIAS DE MEYER
     
         Grande felicidade é ter um filho prudente e instruído; mas, quanto e filhas, e par. todo o pai

carga bom pesada.
       
          (Menandro, Os Primos).
     
        Com a tarde voltaram Meyer, José Pinho e Pereira e, pouco depois pois deles, três

avelhantados
escravos; estes dos trabalhos agrícolas, aqueles de grandes excursões entomológicas.
     
        Vinha o mineiro meio risonho e em altos gritos acordou Cirino, que, deitando-se a dormir,
sonhara todo o tempo com a graciosa doente.
     
        -Olá, amigo! olá, doutor! chamou Pereira com voz retumbante, isso e que é vida, hem?
Enquanto nós trabalhamos, eu e o Mochu do José, você está nessa cama de veludo!...
     
        -É verdade, concordou o moço, apenas os Srs. se foram, estendi as pernas e até agora

enfiei
um sono só...
     
        -E o remédio da menina? perguntou Pereira abaixando a voz.
     
        -Ora, Sr., e eu que me esqueci!... Não faz mal... se ela não teve febre... Ah! espere... agora

me
lembro!... Eu lho dei... estou ainda tonto de sono.
     
        Riu-se Pereira.
     
        -Estes doutores matam a gente, como se tosse cachorro sem dono... Num momento, lhes

passa
da cachola se deram ou não mezinhas e venenos a cristãos. ..
     
        Vendo que Meyer saíra da sala, mudou repentinamente de tom prosseguindo em voz baixa

e
muito rapidamente:
     
        -Então, sabe que o tal alamão levou todo o dia, só querendo puxar conversa sobre a

menina?
     
        -Deveras?
     
        -É o que lhe digo... E... eu com as mãos atadas por aquele oferecimento de levá-lo a comer


dentro!... Nada, nem que desconfie e se arrenegue dos meus modos... não me pisa em quarto de

família.
. . Deus te livre! . . .
     
        Com efeito, à hora da ceia, Meyer manifestou surpresa de comer na mesma sala; não que
tivesse motivo para desejar outro qualquer local; mas, metódico como era, gravara na mente a

promessa
de Pereira e, por delicadeza, supunha dever lembrar-lha.
     
        As desculpas que o mineiro apresentou foram arranjadas de momento e ajudadas
vitoriosamente por Cirino, carregando este com a responsabilidade de haver recomendado à

enferma
muito sossego, quase completa solidão.
     
        De modo muito expansivo se manifestou também o reconhecimento de Pereira.


[Linha 3050 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        -Estou conhecendo, disse ele em aparte e apertando a mão de Cirino, que o doutor é

homem
sério e com quem se pode contar... Deixe estar... o Manecão há de ser amigo seu... Isso há de

sê-lo...
Pessoas de bem devem conhecer-se e estimar-se... Ora, veja o tal cujo... que temível, hem?...

Não faz
mal, há de ter o pago.
     
        Se Pereira se mostrava contrariado e inquieto, muito pelo contrário parecia o naturalista

nadar
em mar de rosas.
     
        -Sr. doutor, declarou ele a Cirino à mesa da ceia, por muitos motivos estou em extremo
contente com a minha estada aqui... Hoje achei mais bichinhos curiosos do que em todas as

zonas por
que tenho andado.
     
        -Vosmecê nem imagina, interrompeu Pereira dirigindo-se para Cirino, o que faz este senhor
quando está dentro do mato. Ainda há de quebrar o pescoço nalgum barranco a que se atire,

pois
caminha com as ventas para o ar... Não sei como não tem ambos os olhos furados... não repara

em galhos
nem em nada... só o que quer e agarrar anicetos... Já o avisei umas poucas de vezes; agora,

sua alma, sua
palma...
     
        Judiciosas eram as advertências do mineiro e bem cabidas; tanto assim que numa das

tardes
seguintes voltou Meyer todo arranhado e com um gilvaz tão grande, que imediatamente deu nas

vistas de
Cirino.
     
        -Que foi isso, Sr. Meyer? perguntou ele com admiração. O Sr. andou por ai afora aos
trambolhões com alguma onça?
     
        -Oh! não é nada, respondeu fleumaticamente o alemão.
     
        -E a sua roupa vem suja de barro... toda rota...
     
        Desatou Pereira a rir.
     
        -Isto são histórias deste homem... Bem lhe dizia eu que mais dia menos dia isso havia de
acontecer. Meu amigo não sabe do ditado: ...Fia-te na Virgem e não corras, veras o tombo que

levas!...
Também foi um dia em que me ri a mais não poder. Tomei um fartão... Imagine vosmecê que o

tal Sr.
Meyer, como já lhe contei, anda pulando dentro da mata como se fosse veado mateiro... O José

Pinho,
que é mitrado, vai sempre pela estrada limpa...
     
        -Preguiçoso, atalhou Meyer a modo de observação.
     
        -Juízo tem ele, prosseguiu o mineiro: mas, como ia dizendo cá, o Sr. com seus arrancos e
saltos parece anta disparada. Em aparecendo bichinho voador, zás-trás que darás lá vai ele

logo sem
olhar para os paus, podendo pisar em cobras e espinhos, com aquela rede na mão, e tanto faz

que
engalfinha sempre algum animalejo... Hoje fui para a roça, e o homem furou o mato, enquanto

José
buscava uma sombrinha e entrou logo a roncar como um perdido...
     
        -Eu, não senhor, protestou José Pinho, que queria ouvir a historia.
     
        -Vóce sim, corroborou Meyer com severidade, preguiçoso!... Ande... dê cá a pita.
     


[Linha 3100 de 6572 - Parte 2 de 4]


        -Pois bem, continuou Pereira, daí a duas horas voltou Mochu neste estado pouco mais ou
menos; mas trazia uma caixa cheia de bichos do mato...
     
        -Oh! perguntou Cirino, e são bonitos?
     
        -Não há mais nada, suspirou Meyer com tom dolente, o trabalho ficou perdido!... Eu tinha
apanhado cinco espécies novas... Uma queda...
     
        -Deixe-me contar o caso, atalhou Pereira. Oh! eu ri-me... ri -me.                                       
               E, para confirmar a asserção, pôs-se novamente a dar gargalhadas, que

foram acompanhadas
por José Pinho e até por Meyer, da parte deste com menos expansão, contudo.
     
        -Apareceu-me o Mochu muito contente com a sua caixa, como se tivesse o rei na barriga.

Era
uma imundície de besouros, cascudos e cigarras, que o Sr. nem pode imaginar... Havia de tudo;

depois,
quando voltamos da roça, enxergou ele num pau podre um aniceto vermelho e foi correndo a

apanhá-lo.
Eu bradei-lhe: - Olhe, que ai tem barranco: a árvore é podre e oca, e vosmecê rola pelo

despenhadeiro,
que nem a sua alma se salva. - Qual! O homem é teimoso, como um cargueiro empacador... Eu
gritava-lhe: -Tome tento, Mochu!-Sem atender a nada, começou a caminhar em cima da cipoada

que
cobria a boca de um percipício, fundo como tudo neste mundo... Quando ia botar a mão no tal

bicho
encarnado, encostou-se ao pau e... zás!... afundou-se, dando um grito esganiçado que parecia

de cotia.
Mal teve tempo de agarrar-se aos cipós e ia ficou entre a vida e a morte, chamando Juque,

Juque!... Eu,
quando vi isso, mandei a toda pressa buscar à roça uma vara comprida e, se ela não chega

logo, o Sr.
Meyer e toda a sua bicharada rolavam de uma vez por aqueles fundões.
     
        -Não, retificou o alemão, bicho rolou; caixa abriu e tudo lá se foi no fundão...
     
        -Pois bem, o Mochu segurou-se com unhas e dentes ao pau e nos puxamos devagarinho,
devagarinho, com um medo, um medo!... Maria Santíssima! . . .
     
        Fazendo breve pausa:
     
        -0 mais engraçado ainda não chegou, avisou o mineiro: Ah! vosmecê vai tomar uma boa

data
de riso. Quando o Mochu ganhou pé em terra,  pôs-se a pular como um cabrito doido, por aqui,

por acolá,
pulo e mais pulo, e gritando como se o estivessem esfolando... Estava .. ah! meu Deus!...

estava cheio de
formigas novatas!
     
        - Sim, exclamou Meyer com desespero, formiga de pau podre!... mein Gott ... Eu rasgo a
roupa... eu pulo... eu gemo... fico nu como quando minha mãe me botou no mundo!... Horrível

Formiga
do diabo! . . . Faz calombo em todo o meu corpo. . . Muita dor!
     
        Com reiteradas e estrondosas gargalhadas acolheram Pereira, Cirino e José Pinho essas
enérgicas imprecações.
     
        -Poderá isso, observou o mineiro, curá-lo da mania de não ouvir os outros que conhecem

as
coisas.
     
        E voltando-se para Cirino:
     
        -Verdade é que o corpo dele... Que corpo, Sr. doutor, tão arvo!... ficou todo empolado que foi
preciso esfregá-lo com folhas de fumo. Depois, tomou um banho no ribeirão...


[Linha 3150 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        -Tudo estava muito bem, observou Meyer, se caixa não abre e atira no buraco meu

trabalho...
     
        -Ora, ficará para amanhã, consolou filosoficamente o camarada.
     
        Pereira, acalmado o frouxo de riso, aproximara-se de Cirino e lhe falava a meia voz:
     
        -Ah! doutor, tive uma vontade de deixar este alamão sumir-se no socavão!...
     
        Se não fosse meu hóspede, enfim, e recomendado de meu mano, palavra de honra

pinchava-o
de uma vez no inferno...
     
        Não sou nenhum pinóia...
     
        -Mas por quê? indagou Cirino simulando admiração...
     
        -O Sr. ainda me pergunta?... Porque o homem não me faz senão falar em Nocência... Outra
vez me disse que ela era muito bonita e mil coisas.. perguntou se estava casada, se não; que

era preciso
casar as mulheres para bem delas. Eu lá sei o que mais?... Isto é um bruto perdido... um

namorador!...
     
        -Qual, Sr. Pereira!...
     
        -É o que lhe digo!... Por acaso sou cobra de duas cabeças(4) que não veja?... Ah! que peso
uma filha! Ah! E então uma menina que já está apalavrada... Isto é uma anarquia! Que diria meu

genro,
o Manecão?...
     
        -Não poderá dizer nada, retrucou o moço. E que diga, não faltará quem queira sua filha...
     
        -Louvado Deus, não decerto! Eu é que não quero que ela ande de mão em mão... Ou casa

com
o Doca ou...
     
        - Ou... o quê? perguntou Cirino com inquietação, mas fingindo pouca curiosidade.
     
        -Ou mato a quem lhe vier transtornar a cabeça .. Comigo ninguém há de tirar farofa!... E não
hei de ter mil cuidados quando vejo este estranja estar com suas macaquices a dar no fraco das

mulheres
?
     
        -Por ora, nada fez ele...
     
        -Por  ora .. só leva a falar na pobre menina, que a Srª Sant'Ana guarde de todo o mal!...
Pudesse eu adivinhar, e macacos me mordam, se punha os olhos em cima de Nocência. Nem

que viesse
com cartas e ordens do Sr. D. Pedro II .
     
        Chamei o José Pinho, prosseguiu ele em voz baixa e dei-lhe uns toques. - Então, disse-lhe

eu,
seu amo é o diabo com mulheres, hem? Ele, que é muito ladino, respondeu-me logo. -Nhor-não.
-Assuntei a embromação.-Qual, você, carioca, tem levado areia nos olhos. - Eu?... não é capaz.-
Então você não tem visto o que faz seu amo? - Tem sido um santo, retrucou o espertalhão. No

Rio, sim.
-Na Corte?-Nhor-sim, na Corte. Ia todas as noites a uma casa de bebidas, assim uma espécie de

venda
de muito luxo e lá estava horas perdidas petiscando e conversando com senhoras muito

bonitas, bem
limpas... algumas com o pescoço e os braços todos à mostra...


[Linha 3200 de 6572 - Parte 2 de 4]


     
        -Contou-lhe isso? atalhou Cirino com alguma dúvida e sobressalto.
     
        - Contou, afirmou Pereira com furor.
     
        Vejam só que homem, hem? É um mequetrefe!... Esta noite e dora em diante, venho dormir
nesta sala a ver se ele se mexe da cama. Ah! se eu pudesse!... caia-lhe de calaboca em cima,

que lhe
deixava as costelas em. lascas.
     
        Acabavam as imprudentes histórias de José Pinho de pôr a ultima pedra no edifício da
desconfiança que tão depressa erigira a imaginação de Pereira em desconceito de Meyer. O que

nelas
havia de verdade, eram apenas algumas horas de lazer, consagradas, durante a estada no Rio

de Janeiro,
pelo naturalista ao consumo de grandes copázios de cerveja no café Stadt Coblenz, e nas quais
entretivera risonhos, bem que inocentes colóquios, com pessoas do sexo amável,

freqüentadoras
daquele estabelecimento e de costumes não lá muito rigorosos.
     

       XVI-O EMPALAMADO
     
         Ao homem não faltam importunações quanto à vossa capacidade, bem a conhecemos.
       
         (Molière, O Médico A Força).
     
        Conforme o prometido, trouxe Pereira a rede para a sala dos li hóspedes e, encetando um

modo
de vigilância muito especial ainda que perfeitamente inútil em relação à pessoa suspeitada,

associou os
sonoros roncos do valente peito à ruidosa respiração de Meyer.
     
        Se, contudo, não tivessem seus olhos a venda da confiança ou, melhor, se o sono não os
acometesse sempre com tamanha imposição,, decerto em breve houvera estranhado a cruel

agitação em
que vivia Cirino e que este não podia mais encobrir.
     
        Na verdade, o modo por que o infeliz mancebo passava as noites era de fazer nascer

suspeitas
no espírito mais indiferente e desprevenido. Ou se revolvia na cama, dando mal abafados

suspiros, ou
então saia para o terreiro, onde se punha a passear e a fumar cigarros de palha uns após

outros, até que os
galos, alcandorados na cumeeira da casa e nas árvores mais próximas, anunciassem as

primeiras barras
do dia.
     
        Desabrida paixão enchia o peito daquele malsinado; dessas paixões repentinas.

explosivas.
irresistíveis, que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda a parte, prendem-na de mil

modos e a
sufocam como as serpentes de Netuno a Laocoonte. Conhecedor como era, dos hábitos do

sertão, do
jugo absoluto dos preconceitos, do respeito fatal à palavra dada, antevia tantas dificuldades,

tamanhos
obstáculos diante de si, que, se de um lado desanimava, do outro mais sentia revoltado o

nascente e já tão
violento afeto.
     
        -Deus me ajudará, pensava consigo mesmo: o que só quero e a amizade de Inocência Há

dias
que não a vejo... se não puder mais vê-la... dou cabo da vida...
     
        Sublevava-se o seu coração, girava-lhe o sangue com vertiginosa rapidez nas velas e

vinha
toldar-lhe a vista, trazendo ondas de rubro calor ao descorado rosto.
     


[Linha 3250 de 6572 - Parte 2 de 4]


        -Nossa Senhora da Abadia, implorava ele puxando os cabelos com desespero, valei-me

neste
apuro em que me acho! Dai-me pelo menos esperanças de que aquela menina poderá um dia

querer-me
bem.., Nada mais desejo... Possa o fogo que me consome abrasar também o seu peito...
     
        Costumava a fervorosa prece dirigida à santa da especial devoção de toda a Província de

Goiás
acalmar um pouco o mancebo, que alquebrado de forças pegava no sono para, instantes depois,

acordar
sobressaltado e cada vez mais abatido.
     
        Também estava sempre de pé quando Pereira costumava saltar da rede.
     
        -Oh! observou ele da primeira vez, isto 6 que se chama madrugar.
     
        -Pois é contra o meu costume, replicou Cirino, todas estas noites tenho passado mal...
     
        -Na verdade vosmecê não está com boa cara...
     
        -Creio que me entraram no corpo as maleitas.
     
        -Essa é que é boa! Então o doutor foi emprestar(') da doente a moléstia?...
     
        Olhe, é preciso por-se forte, porque hoje mesmo há de lhe chegar uma boa maquina de
doentes...
     
        -Melhor...
     
        -Já está tudo espalhado por ai da sua chegada e a romaria não há de tardar.
     
        -Cá a espero...
     
        -Naturalmente virá primeiro o Coelho... t: boa ocasião de pagar a sua divida... Não tenha
receio de puxar mais no preço...
     
        -Daqui mesmo pretendo despachar um próprio para me ver livre dessa obrigação...
     
        -Isso mostra que o Sr.é pessoa de brio... Não 6 como certa gente que conheço...
     
        Ao dizer estas palavras, voltara-se Pereira para Meyer a contemplá-lo atentamente.

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