sábado, 18 de agosto de 2018

Inocência - Parte 3 de 4 - Visconde de Taunay

     
Inocência - Parte 3 de 4 - Visconde de Taunay



     
        Assim, ao almoço, lembrou-se de perguntar entre duas enormes colheradas de feijão:
     
        -Sua filha, Sr. Pereira? Como vai? É melhor?
     
        -É melhor o quê, Mochu? exclamou o pai com modo esquivo.
     
        -A saúde dela é melhor?
     
        -Está melhor; está, está, respondeu Pereira muito secamente. Está boa... vai fazer uma
viagem...

     
        -Viagem, para onde?... Até a vila?
     
        -Homem; Mochu, observou o mineiro um tanto desabrido, vosmecê está que nem mulher
velha, tudo quer saber...
     
        Meyer, nessa repreensão, que lhe causou vexame e alguma admiração, só enxergou

censura
justa a sua curiosidade, falta que confessou com toda a nobreza, embora agravando a situação.
     
        -É verdade, Sr. Pereira, concordou ele. A boa educação não manda o que eu fiz .. mereço,
porém, desculpa, mereço... Sua filha é tão interessante... que me lembro sempre dela... Tenho

comigo
uns presentezinhos...
     
        -Guarde-os, rosnou Pereira abafando a reflexão num acesso de tosse.
     
        E para evitar o prosseguimento de semelhante assunto, deu por finda a refeição,

levantando-se
da mesa.
     
        - Aí  vem o Coelho, doutor, exclamou ele olhando para fora. Xi! como esta amarelo!... Há
tempos que o não via... já parece alma do outro mundo... É do tal em quem falamos... Aperte-o,

porque
é mofino como tudo...
     
        E, interpelando a quem chegava gritou:
        -Bons olhos o vejam!... Se não fosse, amigo Sr. Coelho, ter médico em casa, nunca havéra

de
vê-lo por cá; não é verdade?
     
        -Ora, respondeu o outro com um gemido, ando sempre tão doente. Nem faz gosto viver
assim... Mas qu'é dele, o homem?
     
        -Está aqui...
     
        -Já me disseram que faz milagres. Deixou nome para lá das Parnaíbas... Sabia?
     
        - Lá que tivesse deixado nome, não: mas que 6 cirurgião de patente, tenho certeza, porque,
num abrir e fechar de olhos, me pôs de pé uma pessoa cá de casa.
     
        -Se ele me curar... não sei mesmo como lhe agradecer.
     
        -É pagar-lhe, concluiu Pereira, tratando logo de advogar os interesses do hóspede.


[Linha 3350 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        -Sim, hei de... pagar-lhe, confirmou o outro com alguma hesitação.
     
        -Em todo caso, desça do animal.
     
        Pouco depois, entrava na sala e cumprimentava a Cirino e a Meyer a pessoa a quem o

mineiro
chamara Coelho. Era homem já de idade, muito mais quebrantado por enfermidades que pelos

anos;
tinha a testa enrugada, as bochechas meio inchadas e balofas, os lábios quase brancos e os

olhos
empapuçados.
     
        -Qual dos senhores é o doutor? perguntou ele.
     
        -Sou eu, respondeu Cirino, revestindo-se de convicto ar de importância, enquanto Meyer
apontava para ele, cedendo direitos que talvez pudesse contestar.
     
        Interveio Pereira com amabilidade:
     
        -Sente-se, Sr. Coelho, sente-se. Não se ponha logo a falar de moléstias... Isto não vai de
afogadilho... Descanse um pouco... Olhe, já almoçou?
     
        -O pouco que como, retrucou o outro, já está comido.
     
        -Pois bem, ponha-se primeiro a gosto: depois então, converse com o doutor... Diga-me: que


de novo pela vila?
     
        -Que eu saiba, nada... Também há mais de ano que de lá nenhuma noticia tenho... já não se
me dá do que vai pelo mundo... Quem não goza saúde, perde o gosto de tudo... E mesmo uma
calamidade . . .
     
        Enquanto Coelho, em toada monótona, desfiava outras queixas no mesmo sentido, tirara

Cirino
da canastra o seu Chernoviz e algumas ervas secas que depôs em cima da mesa.
     
        -O senhor, declarou ele voltando-se para o doente, está empalamado..
     
        -É verdade, Sr. doutor.
     
        - Eu, que não sou físico, observou Pereira, diria logo isso...
     
        -Xi, compadre! atalhou Coelho com impaciência e pedindo silêncio.
     
        -O senhor, continuou Cirino com entono, teve maleitas muitos anos afios depois começou a
sentir fastio e o estômago embrulhado; inchou todo e em seguida definhou... Aos poucos, foi

perdendo
a sustância e o talento.
     
        -Tal qual! murmurou Coelho seguindo com cautelosa atenção a marcha do diagnóstico.
     
        -Agora, o Sr. não pode comer que não sinta afrontação, não 6?
     
        -Muita, Sr. doutor.
     


[Linha 3400 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Este homem, disse Pereira para Meyer, leu bastante nos livros . . .                -Veio-lhe

depois
uma canseira, e, quando o Sr. anda, dão-lhe uns suores e tremuras por todo o corpo... O baço

está
ingurgitado e o fígado também... De noite fica o Sr. sem poder tomar respiração, mais sentado

que
deitado... As vezes tosse muito, uma tosse sem escarrar, como quem tem um pigarro seco...
     
        -Tal qual! repetiu o enfermo com unção e quase entusiasmo.
     
        -Pois bem, terminou Cirino, como já lhe disse, o Sr. está empalamado.
     
        -E não há cura? perguntou Coelho meio duvidoso.
     
        -Há, mas o remédio 6 forte
     
        -Contanto que faça bem...
     
        -Muita gente, replicou Cirino, tenho já curado em estado pior que o Sr.; mas, repito, o

remédio
6 violento...
     
        -Tomarei tudo, afirmou Coelho: há anos que faço um horror de mezinhas e de nenhuma

delas
tiro proveito. Vamos ver.
     
        Cirino neste porto mudou o tom de voz e olhando para Pereira:
     
        -O Sr. sabe, observou ele que o meu modo de vida 6 este...
     
        Com um movimento de cabeça aplaudiu o mineiro aquela entrada em matéria.
     
        O mesmo não pensou Coelho, que tartamudeou:
     
        -Ah!... Estou pronto... Sou pobre, muito pobre...
     
        Piscou Pereira um olho com malícia.
     
        -Costumo, continuou Cirino, receber o pagamento em duas ametades. . .
     
        Depois acrescentou, um tanto vexado:
     
        -Se falo nisto agora com esta pressa, 6 porque também tenho precisão urgente de dinheiro.

.
Não acha, Sr. Meyer?
     
        -Pois não, pois não, concordou o alemão: tem todo o direito.
     
        -Meu amigo, corroborou Pereira, o doutor não trabalha para o bispo; tem que ganhar
honradamente a vida.
     
        -Então, como lhe dizia, prosseguiu o outro dirigindo-se para Coelho, o senhor pagar-me-á

no
principio da aplicação e no fim. Assim, não há enganos... Serve-lhe?
     
        -Que remédio! suspirou Coelho. Eu lhe darei... até trinta mil-réis... ou... quarenta...
     


[Linha 3450 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Qual! retorquiu Cirino. O meu preço 6 um só.
     
        -E a quanto monta?
     
        -A cem mil-réis.
     
        -Cem mim réis! exclamou Coelho aterrado.
     
        -Cinqüenta no principio, cinqüenta no fim.
     
        Gemeu o doente lá consigo.
     
        -Ora o que 6 isto para você, compadre? interveio Pereira. Um atilho de milho para quem

tem
tulhas cheias a valer!...
     
        -Nem tanto, nem tanto assim, objetou Coelho.
     
        -Deixe-se de historias, continuou Pereira. Se vosmecê não tivesse bons patacos, eu diria

logo
ao nosso amigo:-Olhe que este 6 dos nossos, não tem onde cair morto - e ele havéra de curar de
graça... não é?
     
        -Decerto, decerto, declarou Cirino com muita prontidão.
     
        -Mas com vosmecê o caso 6 defronte! Doutra maneira, por que razão havia um cirurgião de
andar por estes socavões? Também quer bichar um pouco...
     
        - É muito justo...
     
        -Cinqüenta... mil... réis, balbuciava Coelho; assim de pancada. . .
     
        -Se o médico o cura, disse Meyer intrometendo-se, 6 negócio da China.
     
        Nada dizia Cirino por dignidade própria. Estava folheando o Chernoviz, cujas páginas
mostravam continuo manusear, algumas até enriquecidas de notas e observações à margem.
     
        Assim no artigo opilação ou hipoemia intertropical havia ele escrito ao lado: "E o que se

chama
no sertão moléstia de empalamado". E, no fim abrira grande chave para encerrar esta ousada e
peremptória sentença: "Todos estes remédios de nada servem. Sei de um muito violento, mas

seguro.
Foi-me, há anos, ensinado por Matias Pedroso, curandeiro da Vila do Prata, no sertão da Farinha

Podre,
velho de muita prática e que conhecia todas as raízes e ervas do campo".
     
        -Pois bem, disse Coelho depois de grande hesitação, está o negócio fechado. Mas, olhe

que
entrará no pagamento o preço das mezinhas, e as visitas hão de ser feitas em minha casa...
     
        -Não há duvida, concordou Cirino; irei à sua fazenda todos os dias... Não é longe daqui?
     
        -Nhor-não... duas léguas pequenas, pela estrada.
     
        -Bem. O senhor, em voltando a casa, meta-se logo na cama.
     


[Linha 3500 de 6572 - Parte 3 de 4]


        Coelho fez sinal que sim.
     
        -Amanhã, continuou o moço, deve tomar estes pós que lhe estou mostrando. Divida isto em
duas porções; há de fazer-lhe muito efeito; depois descanse dois ou três dias, se acaso se

sentir muito
fraco; em seguida:
     
        E parando de repente, encarou Coelho alguns instantes:
     
        -O Sr. quer mesmo curar-se?
     
        -Oh! se quero!
     
        -E tem confiança em mim?
     
        -Abaixo de Deus só mecê pode salvar-me.
     
        -Então, tomará às cegas o que eu lhe receitar?
     
        -Até carvão em brasa.
     
        -Olhe bem o que diz . . Não gosto de começar a tratar para depois parar...
     
        -Não tenha esse medo comigo...
     
        Viver como vivo, antes morrer...
     
        -Então, continuou Cirino com pausa, acabados os dias de sossego, há de o senhor engolir

uma
boa data de leite de jaracatiá.
     
        - Jaracatiá?! exclamaram com assombro o doente e Pereira.
     
        -Jarracatiá?! gaguejou por seu turno Meyer, arregalando os olhos, que 6 jarracatiá?
     
        -Mas isso vai queimar as tripas do homem, observou o mineiro.
     
        Cirino replicou um tanto ofendido:
     
        -Não sou nenhum criançola, Sr. Pereira. Sei bem o que estou dizendo. Este remédio 6

segredo
meu, muito forte, muito daninho; mas não é nem uma, nem duas vezes, que com ele tenho

curado
empalamados. A coisa está no modo de dar o leite e na quantidade: por isso, é que não faço

mistério,
avisando contudo que com uma porçãozinha mais do que o preciso, o doente está na cova...
     
        -Salta! atalhou Pereira, tal mezinha não quero eu... antes ficar empalamado.
     
        -Que é jarracatia? tornou a perguntar Meyer.
     
        Coelho abaixou a cabeça e parecia estar refletindo na resolução que havia de abraçar.
     
        Depois, com voz melancólica:
     


[Linha 3550 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -O dito, dito, declarou, aceito tudo o que vosmecê me der. Agora, quanto fizer está bem
feito... Como é que devo tomar o jaracatiá??
     
        -Em tempo lhe direi, replicou Cirino. Fazem-se três cortes no pé da árvore e deixa-se correr

o
primeiro leite: eu mesmo hei de recolher o que for bom. Tenha toda a confiança em que o senhor

ficará
são... Bem sabe, ninguém em negócio de doença, mais do que outro qualquer, pode nunca

dizer: isto há
de ser assim ou assado... Todos estamos nas mãos de Deus. Só Ele pode saber se a moléstia

nos sairá do
corpo ou nos há de atirar à sepultura. Todo o bom cristão conhece isto e deve conformar-se com

a
vontade divina... O que o médico faz 6 ajudar a natureza e dar a mão ao corpo quando ele pode

ainda
levantar-se...
     
        -Justo, justo! apoiou Meyer, então todo empenhado em picar um formoso coleóptero.
     
        -Assim também é que eu entendo, disse o mineiro.
     
        -Mas, o que é jarracatiá, Sr. Pereira? insistiu o alemão.
     
        Voltou-se o interpelado com impaciência:
     
        -E uma árvore, Sr Meyer, árvore grande, de folhas cortadas, que dá umas espécies de
mamõezinhos. Deitam leite muito grosso e queimam os beiços quando a gente não tem cuidado.

E uma
árvore, ouviu? Uma árvore!
     
        -Ah! exclamou o alemão concertando a garganta.
     
        Nesta ocasião sacou Cirino da canastra outros remédios e passou-os a Coelho, dando-lhe
minuciosas informações sobre o modo por que havia de usar deles.
     
        -Tem muito enjôo, quando come? perguntou o curandeiro.
     
        -Muito, Sr. doutor.
     
        -Assim é, mas deixe estar; depois do leite de jaracatiá, volta-lhe a apetência. Nos primeiros
tempos, o senhor só há de beber claras de ovos bem batidas. Depois, ira a pouco e pouco

tomando mais
alimento.
     
        -Deus o onça...
     
        Levantou-se Pereira e, chegando-se à porta, anunciou:
     
        -Ai vem gente... Estou ouvindo passos de animal montado... Sem dúvida e algum pobre
engorovinhado de doença. Isto de moléstias, não faltam no mundo. Também há tanta maldade,

que não
pudera ser por menos.
     
        Depois de ligeira pausa, acrescentou em tom de surpresa e aborrecimento.
     
        -Hi meu Deus!... Nossa Senhora nos socorra... Sabem quem vem chegando?... É o Garcia;

está
com o mal! há mais de dois anos e não quer crer na desgraça... Pobre coitado, sem dúvida vem

comprar
o desengano... Tenho muita pena dessa gente... mas, deveras, não a quero ver em minha

casa... Vamos,
Sr. doutor, despache o Garcia depressa. Com lázaros não se brinca. A Senhora Sant'Ana de tal

nos livre!


[Linha 3600 de 6572 - Parte 3 de 4]


Nem olhar 6 bom.
     
        E, Pereira, voltando-se para dentro, pediu apressadamente:
     
        -Não deixe o homem desapear, doutor: ficava-me depois o desgosto de ter que lhe fazer
alguma má-criação. Pelo amor de Deus vá lá fora... Veja o que ele quer... e dê-lhe boas tardes

da nossa
parte... Olhe, esta chamando... Sala, doutor, saia!
     
        Ouvia-se, com efeito, uma voz perguntar se estava em casa o Sr. Pereira.
     
        Este, vendo que Cirino não se apressava à medida dos seus desejos, ou temendo que o
recém-chegado lhe entrasse na sala, sem demora apareceu à soleira da porta e, com manifesta

sequidão,
respondeu ao humilde cumprimento de chapéu e à meiga saudação que lhe era dirigida.
     

       XVII-O MORFÉTICO
     
     
         O leproso. - Interesse? Ah! nunca inspirei senão compaixão...
       
         O militar  - Quão feliz fora eu se pudesse dar-vos algum consolo!...
       
          ( Xavier de Maistre, O Leproso de Aosta).
       
         Não devo ter sociedade senão comigo mesmo, nenhum amigo, senão Deus.
       
         Generoso  estrangeiro, adeus, se feliz. Adeus para sempre!
       
          (Idem).
     
        A pessoa que chegara, bem que tivesse descavalgado, não se adiantou ao encontro do

dono da
casa. Pelo contrário como que recuou, conservando-se depois imóvel, encostado a um burrinho,

cujas
rédeas segurava.
     
        De seu lugar, perguntou-lhe Pereira com expressão não muito prazenteiro:
     
        -Então, como vai, Sr. Garcia?
     
        - Como hei de ir, respondeu o interpelado. Mal... ou melhor, como sempre.
     
        -Pois esteja na certeza de que muito sinto.
     
        -Está ai o cirurgião? indagou Garcia.
     
        -Não tarda a vir vê-lo ai fora... Olhe, é um instantezinho.
     
        Palavras tão cruéis não pareceram fazer mossa ao desgraçado.
     
        - Esperá-lo-ei com toda a paciência, replicou melancólico.
     


[Linha 3650 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Já sei que volta hoje para casa, afirmou Pereira.
     
        -Volto. Se a noite me pegar em caminho, ficarei no pouso das Perdizes.
     
        -E verdade: lá há uma tapera. Mas o Sr. não tem medo de almas do outro mundo? Dizem

que
o tal rancho velho é mal-assombrado.
       
        -Eu? exclamou o infeliz. Só tenho medo de mim mesmo. Quisesse um defunto vir gracejar

um
pouco comigo, e de agradecido lhe beijava os dedos roídos dos bichos. Olhe, Sr. Pereira,

continuou com
voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal o senhor não me convidar para entrar em sua

casa; não, no
seu caso havia de fazer o mesmo.
     
        Oh! Sr. Garcia! quis protestar Pereira.
     
        -Nada;... digo-lhe isto do coração... Na minha família sempre tivemos nojo de lázaros... Sou

o
primeiro... O Sr. nem imagina... Vivi muitos anos meio desconfiado... A ninguém contei o caso...

De
repente, arrebentou o mal fora. Já não era mais possível enganar nem a um cego... Ah! meu

Deus, quanto
tenho sofrido!...
     
        -Permita Ele, interrompeu Pereira em tom compassivo, que este doutor tenha algum

remédio...
Bem vê... às vezes...
     
        -Curar a morféia? replicou Garcia com sorriso pungente de sarcasmo. Não há esse

pintado...
que em tal pense...
     
        -Então para que quer ver o médico?
     
        - Só para uma coisa... Saber pelos livros que ele tem lido e pelo conhecimento das

moléstias,
se isto pega... É só o que quero... Porque então fujo de minha casa. Desapareço desta terra... e

vou-me
arrastando até tombar nalgum canto por ai... Dizem uns que pega... outros que não... que 6 só

do
sangue... Eu não sei...
     
        É, abanando tristemente a cabeça, apoiou-se ao tosco selim.
     
        Depois, ergueu os olhos para os céus, e exclamou:
     
        -Cumpra-se tudo quanto Deus Nosso Senhor Jesus Cristo houver determinado!... Se o

médico
me desenganar, não quero que a minha gente fique toda... marcada... Irei para São Paulo...
     
        Pereira cortou este doloroso diálogo:
     
        -Está bem, patrício Garcia, disse, vou já mandar-lhe o homem. . . espere um pouco. . .
     
        E, entrando, reiterou o pedido a Cirino, que se demorara a receitar a Coelho umas

beberagens
de velame e pés-de-perdiz, plantas muito abundantes naquelas paragens, de grandes virtudes

diuréticas e
que deveriam ser empregadas um mês depois da aplicação do leite de jaracatiá.
     
        -Ande, doutor, instou Pereira, vá lá fora ver o coitado do outro e despache-o depressa.

Estou
todo enfernizado por vê-lo no meu terreiro.
     


[Linha 3700 de 6572 - Parte 3 de 4]


        Cirino saiu então e, caminhando com lentidão, parou a alguns passos do mal-aventurado
Garcia, cujo rosto repentinamente se contraiu enquanto tirava o chapéu com submissão e

receio.
     
        Vinha então a tarde descendo, e a luz do crepúsculo irradiava por toda a parte, tão

melancólica
e suave que, sem saber por que, a alma de Cirino de repente se confrangeu.
     
        Com assombro o encarava o lázaro. Diante dele se erguera quem lhe ia apontar o caminho

da
eterna proscrição. Dos seus lábios ia cair a sentença última, irremediável, fatal!
         Quanta angústia no olhar daquele homem! Que pensamentos sinistros! Quanta dor!
     
        Também ficara ali atônito, boquiaberto, à espera que a palavra de Cirino lhe quebrasse o
horroroso enleio.
       
        -Então, disse este depois de breve pausa, que me quer o senhor? -Doutor, balbuciou
Garcia... primeiro que tudo quero... pagar-lhe;... trouxe algum... dinheiro... mas, talvez... seja...

pouco.
     
        Interrompeu-o Cirino:
     
        -Não recebo dinheiro para tratar... da sua moléstia.
     
        -Quer isto dizer, replicou com acabrunhamento Garcia, que ela não tem cura... Eu bem

sabia,
mas. . é tão duro ouvir sempre isso!. . Olhe, o meu mal 6 de pouco . . . está em principio. Quem

sabe... se
o Sr. não conhecerá alguma erva?...
     
        - Infelizmente, respondeu Cirino, nem eu, nem ninguém conhece essa planta...
     
        -Enfim!
     
        E Garcia, fechando os olhos como que para concentrar as forças, continuou:
     
        -Ah! doutor, eu sou um pobre homem... velho já cansado... Por que não me velo a morte em
lugar desta podridão que me esta comendo as carnes?... Muito tempo a senti dentro de mim...

Disfarcei,
até ao dia em que minha neta... a filha do meu coração.. a Jacinta. . . ela mesma, mostrou certo

receio de
me abraçar . . Ah! senhor, quanto se sofre nesta vida!
     
        E Garcia parou ofegante, empalidecendo muito.
     
        -Dê-me água, exclamou ele, água... pelo amor de Deus!... Pudesse agora... ser o meu dia...

A
minha garganta... está que nem fogo! . . .
     
        E agarrou-se aos arreios para não cair no chão.
     
        Cirino correu a buscar água.
     
        -Onde há de ser? perguntou Pereira.
     
        -Onde queira, respondeu o outro com pressa, veja que aquele cristão está sofrendo...
     
        -Ah! leve a caneca de louça... Depois a quebraremos...
     


[Linha 3750 de 6572 - Parte 3 de 4]


        Com sofreguidão tomou o lázaro o vaso, bebeu de um trago e pareceu melhorar.
     
        -Foi um vagado, disse reassumindo aos poucos a calma. Mas, como lhe contava, certeza

tinha
eu do mal. Agora, só quero saber uma coisa e vou-me de partida. Esse mal... pega, doutor?
     
        -Pega, afirmou Cirino com tristeza.
     
        -E que me resta fazer?
     
        -Pedir à Senhora Sant'Ana paciência e a Nosso Senhor Jesus Cristo. .                 Garcia

abanava
a cabeça acabrunhado.
     
        ...que o proteja na sua vida de desgraças.
        -Meu Deus, balbuciou o morfético a meia voz, dai-me forças... coragem para que eu faça o
que devo fazer.
     
        E, com súbita resolução:
     
        -Cumpra-se a vontade do Altíssimo! exclamou, enfim. Doutor, obrigado! O pobre lázaro há
de pedir ao Todo-Poderoso que neste mundo e no outro lhe pague as suas palavras de homem

de letras...
Adeus! Eu me vou para as terras de São Paulo... Talvez me junte à gente da minha espécie

Adeus...
     
        E, a custo montando a cavalo, voltou-se para as pessoas que tinham de longe vindo

assistir à
consulta.
     
        - Adeus, disse ele acenando com o chapéu, gente e patrícios. Sr. Pereira, Sr. Coelho, mais
senhores, adeus! Eu me boto de uma feita para lá das Parnaíbas. . .  Este sertão não me vê

mais nunca!,
     
        Acolheu o silêncio essas palavras de eterna despedida.
     
        Garcia então, esporeando com o calcanhar o ventre da cavalgadura, a passo tomou rumo

da
estrada geral e sumiu-se numa das voltas do caminho, quando já vinha a noite estendendo o

seu lúgubre
manto.
     

       XVIII-IDÍLIO
     
         Mas, que luz e essa que ali aparece naquela janela? A janela é o Oriente e Julieta o Sol.

Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja
a pálida lua.
       
         (Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato II).
       
         Entretanto, desde algum tempo, sentia-se Virgínia agitada de mal desconhecido... Em sua

fronte, não pousava mais a serenidade,
nem o sorriso lhe pairava nos lábios... Pensa ela na noite, na solidão, e logo devorador a

abrasa toda.
       
          (B. de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia).
     
        Decorreram sem novidade dias e dias uns após outros; Cirino diagnosticando e curando ou
melhor, receitando; Meyer aumentando cada vez mais a sua bela coleção entomológica, sempre
feitorizado por Pereira, que cautelosamente tratava de mantê-lo no suspeito círculo da sua

apertada


[Linha 3800 de 6572 - Parte 3 de 4]


vigilância.
     
        Confidente de todos os infundados e mal empregados receios era Cirino.
     
        -O alamão, dizia o mineiro, não me deixa pôr pé em ramo verde, mas também trago-o

vigiado
que é um gosto... Se desconfiasse, teria medo até da sua sombra... Estou em brasas... Não sei

por que não
chega o Manecão Doca... Quero arriar a carga no chão... Agora, mais do que nunca, devo casar
Nocência... Estas mulheres botam sal na moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não 6

nada.
     
        -Então espera muito breve o Manecão? perguntou o outro com ansiedade.
     
        -Não pode tardar... por estes dois ou três dias quando muito... Vem de Uberaba e sem

dúvida
por lá arranjou todos os papéis... Dei a certidão do meu casamento... a do batismo da pequena...

e
adiantei dinheiro para as despesas... bem que ele refugasse meio vexado.
     
        - Então está tudo decidido? perguntou Cirino com vivacidade.
     
        -Boa dúvida!... Já lhe tenho dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal... Se até trato

o
Manecão de filho... A honra desta casa 6 também honra dele.
     
        -Mas sua filha?
     
        - Que tem?
     
        -Gosta dele?
     
        -Ora se!. . Um homenzarrão... desempenado. E, quando não gostasse, é vontade minha, e

está
acabado. Para felicidade dela e, como boa filha que 6, não tem que piar... Estou, porém,

certíssimo de
que o noivo lhe faz bater o coração... tomara ver o cujo chegado!
     
        Já nesse tempo, como dissemos, Inocência de todo se restabelecera, ainda que Cirino

tivesse
feito quanto possível render a enfermidade. Mas, quando o rubor da saúde voltou à acetinada

cútis da
sertaneja e 0 vigor ao esbelto corpo, não houve pretexto a que se apegar, e as entrevistas

curtas e graves
de médico foram cortadas, até mesmo para não desviar a atenção de Pereira da pessoa de

Meyer.
     
        Com o coração, pois, partido de dor, declarou que os e eus cuidados e presença se

tornavam
completamente desnecessários.
     
        Seguiram-se então semanas inteiras, sem que pudesse por os ansiosos olhos na formosa
namorada, e por tal modo se exacerbou a sua paixão que, para encobri-la c disfarçar a excitação

nervosa,
a falta de apetite e palidez extrema, teve que recorrer a desculpas de moléstia; caiu realmente

doente.
     
        A incerteza em que se via, sem, pelo menos, saber se o seu afeto era ou não

correspondido,
dava-lhe acessos de violenta angústia, que a desoras tocava às ratas da exasperação.
     
        Uma noite, em que havia luar embaciado por ligeira bruma, tomou a sua aflição tal

violência
que ele decidiu fugir daquele local de sofrimentos e incertezas, logo na manhã seguinte.
     
        Assente uma vez nesta resolução, ergueu-se do leito em que jazia prostrado pelo mais

cruel
desalento e, com algum custo, saiu para o terreiro, abrindo cautelosamente a porta da casa, a

fim de não


[Linha 3850 de 6572 - Parte 3 de 4]


acordar os companheiros de quarto. Uma vez fora, sentou-se num tronco de madeiro e ali ao ar

fresco e
acariciador da madrugada, entrou com mais tranqüilidade a pensar no caso.
     
        Seria uma hora depois de meia-noite.
     
        Estavam os espaços como que iluminados por essa luz serena e fixa que irradia de um

globo
despolido; luz fosca, branda, sem intermitências no brilho, sem cintilações, e difundida

igualmente por
toda a atmosfera.
     
        Haviam j á os galos cantado uma vez, e, ao longe, muito ao longe, de vez em quando, se

ouvia
o clamor das anhumapocas.
     
        Levantou-se de repente Cirino.
     
        Depois de alguma vacilação, deu uma volta por toda a habitação, pulando os cercados, e

tomou
o ramo do frondoso laranjal, a cuja espessa sombra se abrigou por algum tempo. Achegou-se,

em
seguida, à cerca dos fundos da casa e parou no meio do pátio, olhando com assombro para uma

janela
aberta.
     
        Um vulto ali estava!... Era o dela; Inocência.. Não havia duvidar.
     
        A principio, nenhum movimento fez; mas, depois, lentamente se foi retirando e aos poucos
fechou o postigo.
     
        Cirino deu um só pulo e de leve, muito de leve, bateu apressadas pancadas na tábua da

janela.
     
        -Inocência!... Inocência!... chamou com voz sumida, mas ardente e cheia de súplica.
     
        Ninguém lhe respondeu.
     
        -Inocência, implorou o moço, olhe... abra, tenha pena de mim... Eu morro por sua causa...
     
        Depois de breve tempo, que para Cirino pareceu um século, descerrou-se a medo a janela,

e
apareceu a moça toda assustada, sem saber por que razão ali estava nem explicar tudo aquilo.
     
        Parecia-lhe um sonho.
     
        Quis, entretanto, dar qualquer desculpa à situação e, fingindo-se admirada, perguntou muito
baixinho e a balbuciar:
     
        -Que vem... mecê... fazer aqui?... já... estou boa.
     
        Da parte de fora, agarrou-lhe Cirino nas mãos.
     
        -Oh! disse ele com fogo, doente estou eu agora... Sou eu que vou morrer... porque você me
enfeitiçou, e não acho remédio para o meu mal.
     
        -Eu... não, protestou Inocência.
     
        -Sim... você que é uma mulher como nunca vi... Seus olhos me queimaram... Sinto fogo


[Linha 3900 de 6572 - Parte 3 de 4]


dentro de mim... Já não vivo... o que só quero 6 vê-la... 6 amá-la, não conheço mais o que seja

sono e,
nesta semana, fiquei mais velho do que em muitos anos havia de ficar... E tudo, por quê,

Inocência?
     
        -Eu não sei, não, respondeu a pobrezinha com ingenuidade. -Porque eu amo... amo-a, e
sofro como um louco... como um perdido.
     
        -Ué, exclamou ela, pois amor 6 sofrimento?
     
        -Amor é sofrimento, quando a gente não sabe se a paixão é aceita, quando se não vê quem

se
adora; amor é céu, quando se está como eu agora estou,
     
        -E quando a gente está longe, perguntou ela, que se sente?... -Sente-se uma dor, cá dentro,
que parece que se vai morrer.. Tudo causa desgosto: só se pensa na pessoa a quem se quer, a

todas as
horas do dia e da noite no sono, na reza, quando se pede a Nossa Senhora, sempre ela, ela,

ela!... o bem
amado... e...
     
        -Oh! interrompeu a sertaneja com singeleza, então eu amo... -Você? indagou Cirino
sofregamente.
     
        -Se é como... mecê diz...
     
        -É é... eu lhe juro!...
     
        -Então... eu amo, confirmou Inocência.
     
        -E a quem?... Diga: a quem?
        Houve uma pausa, e a custo retrucou ela ladeando a questão:
        -A quem me ama.
     
        -Ah! exclamou o jovem, então 6 a mim... é a mim, com certeza, porque ninguém neste
mundo, ninguém, ouviu? é capaz de amá-la como eu... Nem seu pai... nem sua mãe, se viva

fosse...
Deixe falar seu coração... Se quer ver-me fora deste mundo... diga que não sou eu, diga!...
     
        -E como ia mecê morrer? atalhou ela com receio.
     
        -Não falta pau para me enforcar, nem água para me afogar.
     
        -Deus nos livre! não fale nisso... Mas, por que 6 que mecê gosta tanto de mim? Mecê não é
meu parente, nem primo, longe que seja, nem conhecido sequer... Eu lhe vi apenas pouco

tempo... e
tanto se agradou de mim?
     
        -E com você... não sucede o mesmo? perguntou Cirino.
     
        -Comigo?
     
        -Sim, com você... Por que 6 que está acordada a estas horas? Por que é que não pode
dormir?... que a cama lhe parece um braseiro, como a mim também parece?... Por que pensa em

alguém
a todo o instante? Entretanto, esse alguém não 6 primo seu, longe que seja, nem conhecido

sequer?...
     
        -É verdade, confessou Inocência com doce candura.


[Linha 3950 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        Depois quis emendar a mão:
     
        -Mas, quem lhe disse que vivo pensando em mecê?
     
        -Inocência, implorou o moço, não queira negar, vejo que sou amado . . .
     
        -Sempre amar! observou ela, mais para si do que para quem a ouvia. No ano que já passou

e
por ocasião da Sra. Sant'Ana, aqui vieram umas parentas minhas e caçoaram comigo, porque eu

não as
entendia: tanto assim que uma delas, a Nhã Tuca, me disse: "Deveras, mecê ainda não gostou

de nenhum
moço? E eu respondi: Não assunto o que mecês estão a prosear". Aquilo era certo, e tão

verdade como
estar nosso Deus no paraíso... Hoje...
     
        -E hoje?
     
        -Hoje? repetiu a moça. Quem sabe se não era bem melhor não ter nunca gostado de

ninguém?
     
        -Isso não está na gente. . . É ordem lá de cima. . .
     
        -Enfim, se for destino, que se cumpra.
     
        Conservava-se Inocência ainda um pouco arredada da janela, de modo que Cirino, para lhe
falar baixinho, tinha o corpo inclinado do lado de dentro. Segurava as mãos da namorada e

puxava-a
com doce violência, quando mostrava querer afastar-se.
     
        Era o ardente colóquio dos dois cortado de freqüentes pausas, durante as quais se

embebiam
recíprocos os olhares carregados de paixão.
     
        -Deixa-me ver bem o teu rosto, dizia Cirino a Inocência Para mim, é muito mais belo que a
Lua e tem mais brilho que o Sol.
     
        E, apesar de alguma resistência, fraca embora, mas conscienciosa, que lhe foi oposta,
conseguiu que a formosa rapariga se recostasse ao peitoril da janela.
     
        -Amar, observou ela, deve ser coisa bem feia.
     
        -Por quê?
     
        -Porque estou aqui e sinto tanto fogo no rosto!... Cá dentro me diz um palpite que é pecado
mortal que faço...
     
        -Você tão pura! contestou Cirino.
     
        - Se alguém viesse agora e nos visse, eu morria de vergonha. Sr. Cirino, deixe-me . . . vá-

se
embora! . . . o Sr. me atirou algum quebranto... aquela sua mezinha tinha alguma erva para mim

tomar...
e me virar o juízo...
     
        - Não, atalhou o mancebo com força, eu lhe juro! Pela alma de rainha mãe... o remédio não
tinha nada!
     


[Linha 4000 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Então por que fiquei... ansim, que me não conheço mais?... Se papai aparecesse... não

tinha
o direito de me matar?...
     
        Foi-se-lhe a voz tornando cada vez mais baixa e sumiu-se num golfão de lágrimas.
     
        Atirou-se Cirino de joelhos diante dela.
     
        -Inocência, exclamou, pela salvação de minha alma lhe dou juramento, nada de mau fiz

para
prender o seu coração.. Se você me quer, e porque Deus assim mandou... Sou um rapaz de

bons
costumes . Ate hoje nunca tinha amado mulher alguma... mas não sei como deixar de amar uma

moça
como você... Perdoe-me; se você sofre... eu também padeço muito... perdoe-me...
     
        Alçara o mancebo um pouco a voz.
     
        De repente Inocência estremeceu.
     
        -Não ouviu ruido? perguntou ela com terror.
     
        -Não, respondeu Cirino.
     
        -Alguém acordou lá dentro...
     
        -Pois... então vá ver... o que é... e se não for nada, volte... Aqui a espero, escondido à

sombra
da parede...
     
        Minutos depois, reapareceu a moça.
     
        -Não vi  nada, disse.
     
        - Então foi abusão.
     
        -É melhor que o Sr. se vá embora.
     
        -Não, Inocência tenha pena de mim... Eu não poderei vê-la tão cedo e... preciso conversar...
mesmo para arranjo da nossa vida. . O Manecão não tarda...
     
        -Ah! exclamou ela com sobressalto, então mecê sabe...
     
        -Sei; e desgraçadamente, breve está ele batendo aqui...
     
        -Eu bem dizia que o Sr. me havéra de perder... Antes de o ter visto... casar com aquele
homem, me agradava até... Era uma novidade... porque ele me disse que me levava para a

vila... Mas
agora esta idéia me mete horror! Por que 6 que mecê mexeu comigo? Sou uma pobre menina,

que não
tem mãe desde criancinha... Não há tanta moça nas cidades... nos povoados?... Por que veio

tirar o
sono... a vontade de viver a quem era .. tão alegre... que até hoje não pensou em maldade... e

nunca fez
dano a ninguém?
     
        -E eu? replicou com energia Cirino, pensa então que sou feliz?... Olhe bem uma coisa
Inocência: Digo-lhe isto diante de Deus: ou hei de casar com você... ou dou cabo da vida... Quem
arranjou tudo assim... foi o meu caiporismo... Se eu tivesse passado aqui antes daquele

homem, que


[Linha 4050 de 6572 - Parte 3 de 4]


odeio, que quisera matar... nada impediria que eu fosse hoje o ente mais feliz do mundo!... Mais

feliz
aqui neste sertão, do que o Imperador nos seus paços lá na corte do Rio de Janeiro! Eu já lhe

disse...
culpa não tive...
     
        -Não há nada que nos possa salvar, atalhou a moça.
     
        -Nada?... Talvez...
        Soou nesse momento, e repentinamente, do lado do laranjal um assobio prolongado,
agudíssimo, e uma pedra, arremessada por mão misteriosa e com muita força, sibilou nos ares

e veio
bater na parede com surda pancada, passando rente à cabeça de Cirino.
     
        Deu Inocência abafado grito de terror e fechou rapidamente a janela, ao passo que o

mancebo,
esgueirando-se com celeridade pela sombra, resoluto correu para o ponto donde presumia ter

partido a
pedra.
     
        Não viu ninguém.
     
        Por toda a parte, o ruído misterioso e peculiar a uma noite calma de verão.
     
        Percorreu em todos os sentidos o pomar, e só ouviu a bulha dos seus passos.
     
        Afinal, de cansado, deixou o sitio e cautelosamente se dirigiu para o terreiro da frente.
     
        Quando lá chegou, parou atônito.
     
        O mesmo assobio, prolongado e finíssimo, desta feita talvez mais estridente, feriu-lhe os
ouvidos.
     

       XIX-CÁLCULOS E ESPERANÇAS
       
         Apesar, porém, de jovem, apesar da violência do amor que a prendia a Julião, sabia ela

conter 06 movimentos do coração e
desconfiar de si mesma.
       
          (Walter  Scott, Peveril do Pico)
       
         Lisa. - Contento que tenhas bastante resolução...Lucinda.- Que queres que eu faça contra

autoridade de um pai?Se ele for
inexorável aos meus pedidos?...
       
          (Molière, 0 Amor Medico).
     
        Durante os dias de estada nas terras de Pereira, as quais não  tinham limites nem vizinhos

dali a
muitas léguas, aumentou Meyer a sua interessante coleção com extraordinária variedade de

bichinhos e
sobretudo borboletas.
     
        Tal era a alegria de que se possuíra por esse fausto motivo, que a cada momento a

manifestava
num tom de franqueza capaz de por si 80 convencer o mais descrente dos homens em questão

de
sinceridade.
     
        -Sr. Pereira, dizia o naturalista, afianço-lhe que em parte alguma do Brasil estive ainda tão


[Linha 4100 de 6572 - Parte 3 de 4]


bem como em sua casa.
     
        -Eu te entendo, maroto, rosnava o mineiro.
     
        -Deveras!... Só o que sinto 6 que sua filha não nos aparecesse mais... Sinto muito, na
verdade...
     
        Sorriu-se Pereira com riso amarelo e replicou, apertando os punhos de raiva:
     
        -Mochu sabe. isto são costumes cá da terra. As mulheres não são feitas para...
     
        - Para quê? perguntou Meyer com pausa.
     
        - Para prosearem com qualquer um...
     
        -Que é prosearem?
     
        -É conversar, dar de língua, explicou Cirino.
     
        - Obrigado, doutor, retorquiu Meyer, agradecendo mais aquela indicação filológica que foi
imediatamente enriquecer o seu caderno de notas. Prosear e conversar. Muito bem!. . Pois é

pena, Sr.
Pereira, porque sua filha é uma bonita senhora!
     
        -Nesta arapuca não caio eu, seu tratante... Hei de toda a vida andar com olho em ti,
murmurava o mineiro.
     
        -E pena, confirmava Meyer duas e três vezes .. é pena...
     
        Por certo não era esta a linguagem mais própria para desvanecer as prevenções e receios

de
Pereira; ao invés, mais e mais recrescia a sua vigilância sobre Meyer, o que proporcionava ao

verdadeiro
culpado a liberdade de que carecia para tornar a ver o mal guardado tesouro.
     
        Não foi todavia sem custo a nova conferência.
        Ficara a pobre menina tão impressionada com o final da primeira entrevista, que, por

alguns
dias, mal saia do quarto.
     
        Escrever-lhe Cirino, era de todo inútil, por isso que ela nunca aprendera a ler; e, depois,

qual o
meio de lhe fazer chegar às mãos qualquer papel ou recado?
     
        Sobravam, portanto, razões para que o jovem se ralasse de impaciência e quase

desesperasse da
sorte.
        Passava as noites em claro, metido no laranjal e procurando uma solução a tanta

dificuldade;
atordoavam-no ainda aqueles dois assobios que não podia explicar e sobretudo aquela pedrada

tão bem
dirigida, que por pouco talvez o houvesse estendido por terra.
     
        Numa dessas noites de ansiedade, viu afinal reabrir-se a janela de Inocência
     
        A pobrezinha, abrasada também de amor, queria respirar o ar da noite e beber na viração

do
sertão um pouco de tranqüilidade para sua alma não afeita ao tumultuar dos sentimentos que a

agitavam
e, quem sabe? verificar se por ai não andava rondando aquele que no seio lhe inoculara

tamanho


[Linha 4150 de 6572 - Parte 3 de 4]


desassossego, ímpetos tão desconhecidos e violentos, superiores a todas as suas tentativas

de resistência.
     
        Cirino, rápido como uma seta, rápido como aquela pedra arrojada tão vigorosamente,

achou-se
ao pé da janela e cobriu de beijos as mãos da sua amada.
     
        -O grito? balbuciou ela. Dois gritos... e a pedrada... Que foi?
     
        -Ah! não foi nada, respondeu apressadamente Cirino; foi ver no laranjal... era um macauã O
que pareceu pedrada era um noitibó que frechou para mim e veio dar com a cabeça na parede.
     
        -Deveras? perguntou ela incrédula.
     
        -Deveras. A principio tomei também um grande susto. Depois, verifiquei que não passava

de
miragem. De noite, a gente em tudo vê maravilhas... Para mim, a única que vi era você, minha

vida, meu
anjo do céu...
     
        Com este madrigal encetou Cirino uma conversação como a da primeira noite, como a que
balbuciam duas cândidas almas na eterna e sempre nova declaração de amor, desde que Adão

e Eva a
trocaram. a sombra das maravilhosas árvores do Éden.
     
        Mostrou-se o moço receoso da rivalidade de Meyer. Riu-se ela e gracejou, com espírito e
bondade, da figura do estrangeiro. Com toda a confiança, chegou a idear planos de risonho

futuro:
     
        -Agora, que sei o que é amar, direi a meu pai que já não quero o Manecão, ..
     
        - E se ele insistir?
     
        - Hei de chorar .. chorar muito...
     
        - Lágrimas, muitas vezes, de nada servem.
     
        -Mas tenho cá comigo outro recurso...
     
        - Qual é ? perguntou Cirino.
     
        - Morrer! . . .
     
        -Não! Há outros... hei de dizer-lhe...
     
        Tomou Inocência ar grave e meio ofendido.
     
        -Escute, Cirino, observou ela, nestes dias tenho aprendido muita coisa. Andava neste

mundo
e dele não conhecia maldade alguma... A paixão que tenho por mecê foi como uma luz que

faiscou cá
dentro de mim. Agora começo a enxergar melhor... Ninguém me disse nada; mas parece que a

minha
alma acordou para me avisar do que é bom e do que é mau... Sei que devo de ter medo de mecê

porque
pode botar-me a perder... Não formo juízo como, mas á minha honra e a de toda a minha família

estão
nas suas mãos...
     
        Inocência quis interromper Cirino.
     


[Linha 4200 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Deixe-me falar, deixe contar-lhe o que me enche o peito... Depois ficarei sossegada... Sou
filha dos sertões; nunca morei em povoados, nunca li em livros, nem tive quem me ensinasse

coisa
alguma... Se eu o magoar, desculpe, será sem querer... Lembra-me que, há já um tempão,

pararam aqui
umas mulheres com uns homens e eu perguntei a papal por que é que ele não as mandava

entrar cá para
dentro, como é de costume com famílias... O pai me respondeu: -Não, Nocência,, são mulheres
perdidas, de vida alegre. Fiquei muito assombrada.-Mas, então, melhor, se são alegres hão de
divertir-me.-Aquilo 6 gente airada, sem-vergonha, secundou ele. -Tive tanto dó delas que mecê

não
imagina. Depois fui espiar.. caíam tontas no chão... pitavam e cantavam muito alto com modos

tão feios,
que me fizeram corar por elas! E são os homens que fazem ficar ansim as coitadas!... Antes

morrer...
Parece-me que Nossa Senhora há de ter pena dos que amam... mas desampara com certeza os

que
erram... & não houver outro remédio, temos que nos lembrar que as almas, quando se acaba

tudo neste
mundo, vão, pelos céus cheios de estrelas, passeando como num jardim... Se eu me finasse e

mecê
também, punha-se a minha alma a correr pelos ares, procurando a de mecê procurando,

procurando, e
então nós dois juntinhos íamos viajando ora para aqui, ora para ali, às vezes pelo carreiro de

São Tiago,
as vezes baixando a este ermo a ver onde é que botaram os nossos corpos... Não era tão bom?
     
        Envolvida em sua pureza como num manto de bronze, entregava-se Inocência com
exaltamento e sem reserva a força da paixão. E essa natureza pudica e delicada a tal ponto

dominava a
Cirino que invencível acanhamento o prendia ante a débil donzela, alheia a todos os mistérios

da
existência.
     
        Por isso, ao inflamado mancebo não acudia a idéia de saltar por aquela janela e menos a

de
praticar qualquer ação desrespeitoso. Consumia o tempo em beijos nas mãos da namorada, em
tagarelices de amor, protestos, juras e ilusões de futuro.
     
        -Amanhã, dizia Cirino, hei de, com cuidado, assuntar a seu pai.. falando no seu

casamento...
depois... hei de virar a conversa para mim...
     
        -Papai, observou a menina, é muito bom, muito mesmo. Mas tenho um medo dele! Tem um
gênio meu Deus!...
     
        -Quanto a mim... hei de falar bem claro e explícito... O que quero, é que você me seja
constante.
     
        Mas do sentimento de temor, que sobressaltava Inocência, também participava Cirino. Por

isso,
chegado o dia, não ousava tocar na melindrosa questão, bem que as continuas queixas de

Pereira contra
     
        87
     
        Meyer lhe dessem ensejo mais ou menos favorável para desembaraçadamente encetá-la.

Com
gosto adiava o momento decisivo e esperava perplexo qualquer incidente, que melhor servisse

a seus
planos,
     
        Entretanto, apesar de se acumularem os dias sem que trouxessem modificações naquele

estado
de coisas, doce esperança pairava no fundo do seu coração, consentindo-lhe planos de

venturoso porvir
e feliz desenlace às dúvidas e sofrimentos em que vivia.
     

     
       XX-NOVAS HISTÓRIAS DE MEYER


[Linha 4250 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
         Disse-me Sancho:Cada qual abra bem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na

dança e se lhe deram ensejo, ver-se-ão
maravilhas. Virai-vos em mel, e as moscas vos comerão
       
         (Cervantes, D. Quixote, Cap. XLIX).
     
        Uma ocasião, de volta do trabalho diário, atingiu a habitual irritação Pereira contra Meyer
grande intensidade. Entrara cabisbaixo, sorumbático e fez gesto a Cirino de que precisava

falar-lhe a sós.
Dali a pouco, saindo ambos, caminharam silenciosos pela estrada ate a um regato que ficava a

meio
quarto de légua da casa.
     
        -Que terá este homem hoje? dizia Cirino consigo mesmo. Talvez vá chegando o momento

de
tratar do assunto.
     
        Voltou-se de repente Pereira e, com voz alterada, prorrompeu em exclamações:
     
        -Sabe, doutor, que não posso mais aturar esse alamão?... Aquilo é um mandingueiro, uma
suçuarana, vinda do inferno para me botar a perder!... Meu irmão... meu irmão, que presente me

fez
você! . . .
     
        -Mas, que houve? perguntou Cirino.
     
        -Olhe... se não fosse aquela carta, e a palavra que dei ao maldito... mil raios o partam,
surucucu do diabo! potro melado!... já um bom balázio lhe teria varado os miolos.
     
        -Que novidades há então, Sr. Pereira? tornou a inquirir Cirino.
     
        -Vim mesmo ate aqui para tirar este peso do coração...
     
        -Mas...
     
        -Sabe o senhor que aquele Mochu é pior que um tigre preto?... Parece homem à-toa, um
punga, incapaz de matar uma pulga, não é?... Pois aquilo é uma alma danada... um sedutor...
     
        -Sempre as suas desconfianças! observou Cirino.
     
        -Desconfianças, não: agora, certeza. Pois o que quer dizer o homem  todo o dia... estar a
lembrar-se da menina..- Procurar trazê-la a conversa?-Como está sua filha? pergunta-me ele

sempre.
-Esta boa, de uma vez para todas. E ele, toda a vida a insistir... Isto me põe o sangue a ferver,

mas
vou-lhe respondendo com bom modo... Hoje, saiu-se o cujo de seus cuidados e disse-me como

quem
toma leite com farinha de milho: -Sua filha vai casar?-Vai, respondi-lhe todo trombudo. - Com
quem? Tive vontade de lhe dizer: Não é da tua conta, seu bisbilhoteiro, seu biltre, e atacar-lhe

uma
cabeçada, mas, como é meu hóspede, secundei-lhe enfarruscado: com um homem do sertão que

há de
amolar a faca na pele da barriga do mariola que vier mexer com a mulher dele. O alamão não se

deu por
achado e, com todo o sem-vergonhismo, me retrucou: Pois o senhor faz mal. A sua filha é muito

mimosa
e deveria casar com alguém da cidade.-Então, perdi a paciência: Mochu, lhe disse, cada um

manda em
sua casa como entende: eu na minha, não quero ser anarquizado; ele, quando me viu fulo de

raiva,
pediu-me mil desculpas, contou-me muitas histórias, isto, aquilo, aquilo outro, et coetera e tal,

que era
para bem de minha filha e não sei mais o que, numa língua que pouco entendi...
     


[Linha 4300 de 6572 - Parte 3 de 4]


        - Não fez bem, atalhou Cirino.
     
        -Boa dúvida! Aquilo é uma alma danada... boa para as caldeiras de Pedro Botelho, um

judeu...
enfim, um caçador de anicetos: está dito tudo! . . . Mas ainda não lhe contei o mais. . . Parece

que hoje
estava mesmo com o diabo no corpo... Meteu-se no mato perto da minha roca, onde eu

trabalhava com
os meus cativos, e lá fazia um barulhão a quebrar galhos e romper o cipoal como se fosse anta;

de
repente ouvi uma gritaria muito grande; era o tal Meyer com o camarada José Pinho a berrar

como dois
minhocões. Corri a ver o que era e os achei muito contentes a olhar para uma barboleta grande

já fincada
num pau de pita. 0 alamão pôs-se a pular como um cabrito.
     
        -É novo, me disse ele, é novo! -Novo o que, Mochu?-Este bicho, ninguém o descobriu
antes de mim! É coisa minha... Entendeu? E vou botar-lhe o nome de sua filha!...
     
        Quando ouvi aquilo, fiquei tão passado, que não pude engolir o cuspo da boca... Vejam só...

o
nome de Nocência numa bicharada!. Até parece mangação... Agora, quero saber do doutor o que

devo
fazer... Venho pelo menos desabafar... Não posso meter uma bala naquele patife como bem

merecia...
mas também e demais tê-lo em casa... é demais! Peço-lhe um conselho... Felizmente, sempre o

trago
arredado de casa, e a menina de nada desconfia; do contrário como mulher que é, havéra de me

dar que
fazer... Também não sei por que é que o Manecão não chega... só ele é quem havia de me livrar

destes
apuros... Uma vez que o tal alamão visse a rapariga com o noivo, deixava-a sossegada... Não

acha? Olhe,
palavra de honra, isto ansim não é viver! Fui feito para dizer o que penso, tratar bem a todos. ..

mas estes
modos que tenho agora, só Deus sabe quanto me custam... Até o meu serviço vai sofrendo,

porque
muitas vezes largo a roga e ponho-me a correr atrás dos bichinhos, só para não deixar de olho

o tal
marreco, em lugar de feitorar o trabalho dos negros... O meu fazendeiro é um diabo ruim e já

velho... Ah!
meu irmão, que carga você me pôs em cima das costas! Eu então, que não nasci para esconder

o que
sinto cá dentro!...
     
        E Pereira, de tão atribulado que trazia o espírito deixou-se cair num cômoro de terra.
     
        Cirino, defronte dele, ficara de pé e pensativo.
     
        Afinal, depois de breve dúvida, decidiu tentar fortuna e encetar a grave questão que lhe
importava a felicidade.
     
        -Sr. Pereira, disse bastante comovido, acho que o alemão faz mal em andar batendo língua

em
pessoa da sua família e dou razão às suas inquietações...
     
        -Ah! vosmecê é homem de confiança.
     
        -Mas, continuou o moço a custo e parando em cada palavra, penso que num ponto tem ele
alguma razão... É quando... lhe deu... conselho... que o senhor não casasse sua filha... assim...

sem
perguntar a ela... se... enfim não sei... mas talvez o Manecão lhe não agrade...
     
        Ergueu-se Pereira de um pulo e, aproximando a face, repentinamente incendida de cólera,

junto
ao rosto de Cirino:
     
        -O quê? exclamou com voz de trovão, eu... consultar minha filha? Pedir-lhe licença... para
casá-la?... O senhor está doido?... Ou está mangando comigo... Ai... que também...
     
        E vago lampejo de desconfiança lhe iluminou a chamejante pupila.


[Linha 4350 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        Compreendeu logo Cirino a perigosa situação e, sem demora, tratou de desfazer a má

impressão
que produzira.
     
        -Ah! disse com fingido riso, é verdade... Isto são costumes da cidade... aqui, no sertão, há
outros modos de pensar... Desculpe-me, Sr. Pereira, este Meyer é que está a contundir-me todas

as idéias.
Pois eu julgo... já que pede a minha opinião, que o senhor deve continuar a ter olho no

estrangeiro... e eu
hei de ajudá-lo, quanto estiver nas minhas forças.
     
        -Também agora, disse o mineiro depois de ligeira pausa, não há de ser por muito tempo...


mais de um mês que ele aqui pára e já me... contou que breve segue viagem para
Camapuã....Desenganou-se afinal... O tal meco não chegará ate lá... mas é o mesmo. Um destes

dias, leva
por ai algum tiro para lhe botar juízo na cachola, ou alguma facada que lhe ponha as tripas a

mostra...
Nem sempre há de ter cartas de irmão para sair-se bem da rascada... O diabo o leve para

longe!...
Voltemos, Sr. Cirino... Já demais temos deixado o bicharoco sozinho,
     
        E encaminhou-se para a vivenda, acompanhado de Cirino. Ia este desalentado; na

realidade,
bem rentes lhe ficavam cortadas as esperanças que o haviam animado na tentativa de oposição

ao
projetado casamento da amada com o terrível e fatal Manecão.
     
        Ainda a meio do caminho, voltou-se Pereira e disse-lhe peremptoriamente:
     
        -Deveras, Sr. Cirino, aquelas suas palavras me buliram com o sangue todo... Ainda o sinto
galopar nas veias... Que idéias estúrdias!... Que lembrança! Ah... a tal vida das cidades...

cruzes!
       XXI-PAPILIO INNOCENTIA
       
         Considerai a arte da composição das asas da borboleta: a regularidade da escamas,

cobrindo-as como se fosse penas; a variedade
das cambiantes cores: a tromba enrolada, com que suga o alimento no seio das flores : as

antenas, órgãos delicados do tato, que lhe coroam
a cabeça, cercada de uma rede admirável de mais de mil e duzentos olhos...
       
         (Bernadin de Saint-Pierre. de Saint-Pierre, Harmonias d. Natureza).
     
        Meyer, que estava sentado na soleira da porta com as compridas pernas encolhidas,

ergueu-se
precipitadamente ao avistar Cirino e correu ao seu encontro.
     
        Trazia o coração no rosto, um coração cheio de alegria e triunfo.
     
        -Oh! Sr. doutor, exclamou. todo risonho, venha, venha ver uma preciosidade. .. uma
descoberta. .. espécie nova. :. não há em parte alguma... Ouviu? Coisa assim vale um tesouro...

E fui eu
que o descobri!... Nem sequer Juque me ajudou... pois estava deitado e dormindo... Não é

verdade, Sr.
Pereira?
     
        -Veja, murmurava o mineiro, que barulhada faz ele com o tal aniceto... Ao menos, se fosse
um animal grande!
     
        -E uma espécie... nova... completamente nova! Mas já tem nome... Batizei-a logo... Vou-lhe
mostrar... Espere um instante...
     
        E, entrando na sara, voltou sem demora com uma caixinha quadrada de folha-de-flandres,

que
trazia com toda a reverencia e cujo tampo abriu cuidadosamente.


[Linha 4400 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        Da própria garganta saiu um grito de admiração, que Cirino acompanhou, embora com

menos
entusiasmo.
     
        Pregada em larga tábua de pita, via-se formosa e grande borboleta, com asas meio

abertas,
como que disposta a tomar vôo.
     
        Eram essas asas de maravilhoso colorido; as superiores, do branco mais puro e luzidio;

as de
baixo, de um azul metálico de brilho vivíssimo.
     
        Dir-se-ia a combinação aprimorada dos dois mais belos lepidópteros das matas virgens do

Rio
de Janeiro, Laertes e Adônis, estes, azuis como cerúleo cantinho do céu, aqueles, alvinitentes

como
pétalas de magnólia recém-desabrochada.
     
        Era sem contestação lindíssimo espécime, verdadeiro capricho da esplêndida natureza

daqueles
paramos. Também Meyer não tinha mão em si de contente.
     
        -Este inseto, prelecionou ele como se o ouvissem dois profissionais na matéria, pertence à
falange das Helicônicas. Denominei-a logo, Papilio Innocentia, em honra à filha do Sr. Pereira,

de quem
tenho recebido tão bom tratamento. Tributo todo o respeito ao grande sábio Linneu -e Meyer

levou a
mão ao chápeu-mas  mas a sua classificação já está um pouco velha. A classe e, pois, Diurna; a

falange,
Helicônia; o gênero Papilio e a espécie, Innocentia, espécie minha e cuja glória ninguém mais

me pode
tirar... Daqui vou, hoje mesmo, oficiar ao secretário perpétuo da Sociedade Entomológica de
Magdeburgo, participando-lhe fato tão importante para mim e para a sábia Germânia.
     
        Dizia Meyer tudo isto com legítima ufania e lentidão dogmática.
     
        Depois, com mais volubilidade, e apesar de tropeçar amiudadas vezes em palavras, o que,

para
comodidade dos leitores, temos quase sempre deixado de indicar, continuou:
     
        -Reparem, meus senhores, neste lepidóptero com os olhos cuidadosos da ciência. Tem

quatro
pés caminhantes: as antenas de terminação comprida e oval, cavada em forma de colher; os

palpares
maiores do que a cabeça e escamosos; tromba toda branca e lábio quase nulo. Não perdi nem

sequer um
pouco do seu pó, porque o pó, um só grão de pó, vale tanto como uma pena de pássaro, e a

comparação
é perfeita, visto como cada uma destas escamas, à semelhança das penas, é atravessada por

uma
traquéia, por onde circula o ar. Oh! que achado! prosseguiu ele. Que triunfo para mim! A

Sociedade
Entomológica de Magdeburgo há de ficar muito orgulhosa... Sem dúvida alguma farão uma

sessão
solene, extraordinária. Mein Gott!... Estou que não posso de alegria... Também, daqui a três ou

quatro
dias, vou-me embora desta casa... ainda que cheio de saudades. . .
     
        Deveras? atalhou Pereira, vai partir?
     
        -Sim, senhor. O meu itinerário é para Camapuã; depois. vou a Miranda e talvez Niac... Hei

de
subir até ao Coxim e ai, ou embarco para Cuiabá no Rio Taquari, ou sigo por terra pelo Pequiri.
     
        -E o senhor volta para sua pátria?
     
        -Boa dúvida!... Daqui a ano e meio, pretendo apresentar a minha coleção toda arranjada à
Sociedade Entomológica...
     


[Linha 4450 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Homem, observou Pereira com intenção que seu hóspede não podia nem de leve perceber,
eu quisera já estar nesse dia. Daqui a ano e meio, que voltas terá dado o mundo?...
     
        -Terá percorrido, respondeu Meyer gravemente, dezoito signos do Zodíaco
     
        -Pois bem, eu queria ver isso... Já me tarda esse dia.
     
        -Quando ele chegar, continuou o alemão com sinceridade e um tanto comovido, hei de
lembrar-me com gratidão do tratamento que recebi... nos sertões do Império... e hei de dizer...

bem alto...
que os brasileiros:.. são felizes porque são morigerados e têm muito boa Índole hospitaleiros

como
ninguém.
     
        -Acrescente, interrompeu Pereira com algum azedume, que zelam com todo o cuidado a
honra de suas famílias.
     
        Obedeceu docilmente Meyer e repetiu palavra por palavra.
     
        -E zelam com todo o cuidado a honra de suas famílias.
     
        -Multo bem, replicou o mineiro, diga isso, e o Sr. terá dito uma verdade.
     

       XXII - MEYER PARTE
     
          Adeus, pois amigos bela companhia! Aos lares distantes cada qual de nós, por caminhos

diversos. deve um dia chegar.
       
         (Catulo, Epigrama XLVI)
     
        Não haviam descontinuado as visitas feitas a Cirino por enfermos  de muitas léguas em

torno.
Tão freqüentes e teimosos eram os casos de sezões ou maleitas que a porção de sulfato de

quinina que
trouxera em suas canastras estava toda esgotada, pelo que se vira levado a substituir esse

medicamento
sem tanta confiança, porém, por plantas verdes do campo ou ervas secas, fornecidas por uns

bolivianos
que encontrara em Minas, vindos de Santa Cruz de ia Sierra em peregrinarão pelo interior do

Brasil e a
tratarem de doentes, sem Chernoviz em punho, nem aqueles resquícios de conhecimentos

terapêuticos
que ostentava o nosso doutor.
     
        Entre os enfermos que o vinham diariamente procurar, alguns acusavam moléstias cujas
qualificações eram complicadas e estrambóticas; assim declaravam-se salteados de engasgue,

espinhela
caída, mal de encalhe, tosse de cachorro, feridas brabas, almorreimas, eripelas, até

assombração e
mau-olhado.
     
        Quem se queixava de engasgues era o capataz de uma fazenda minada do Vau, distante

umas
boas cinqüenta léguas.
     
        -Sr. doutor, disse c enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com

este
mal vai fazer cinco anos no São João por sinal que me veio com uma grande dor na boca do

estómbago.
Vezes há que não posso engolir nada, sem beber muitos galos de água, de maneira que me

encharco todo
e fico que mal me mexo de um lugar para outro.
     
        -E a dor, perguntou Cirino, ainda a sente?


[Linha 4500 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        - Toda a vida, respondeu o capataz... O que me aflege mais é que há comidas então que

não
me passam a goela... É um fastio dos meus pecados... Boto uns pedacinhos no bucho e

parece-me que
dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta...
     
        Receitou o médico umas doses de erva-de-marinheiro como emético, e fez mais algumas
prescrições que o enfermo ouviu com toda a religiosidade.
     
        No estado de perturbação moral em que se achava o jovem facultativo, natural e que fosse

uma
coisa por outra; mais importante porém, era a fé que suas indicações incutiam a fé, essa

alavanca
poderosa da medicina, esse contingente precioso que o espírito ministra aos ingentes esforços

da
natureza na sua constante lota contra os princípios mórbidos.
     
        O doente de espinhela caída acusava um peso muito forte e perene no peito e a

impossibilidade
de levantar as mãos juntas a mesma altura.
     
        Prescreveu-lhe Cirino amargo do campo, genciana e quina, e ordenou-lhe certas cautelas
firmadas na voz geral, mas com. algum fundo de razão; verbi c rata. engolir sempre a saliva e

sobretudo
deixar de  fumar depois de comer.
     
        O infeliz moço, ao passo que tratava de curar os outros, mais que ninguém precisava de

quem
nele cuidasse, pelo menos da alma.
     
        Via não só Meyer fazendo os seus preparativos de partida, e em véspera de deixá-lo a sós

com
Pereira, podendo este descobrir afinal o engano em que havia laborado, como também a clínica

quase
esgotada, aconselhando-lhe a conveniência de transportar-se para outro ponto e continuar a

interrompida
jornada.
     
        Tudo isto, e o amor a aumentar, a tirar-lhe todo o sossego, a consumi-lo a fogo lento...
     
        Meyer, na realidade, desde o achado da sua magnífica borboleta. não pensava senão em

partir
     
        -Oh! dizia ele, eu quisera estar já em Magdeburgo... Quantas léguas, Mein Gott!... Papilio
Innocentia... a minha glória! Que diz, Sr. Cirino?...
     
        -E verdade... mas quem sabe se o senhor não deveria ficar mais tempo aqui?... Talvez

achasse
outra borboleta nova...
     
        -Não, é impossível... Era felicidade demais... Além disso, o dinheiro não me havia de

chegar.
     
        -Oh! posso emprestar-lhe....
     
        -Muito obrigado... mas é de todo Impossível a minha estada aqui... Veja o senhor: tenho

ainda
que ir a Camapuã, a Miranda, a Cuiabá para então voltar... E só me restam poucos meses... A

Sociedade
Entomológica de Magdeburgo conta comigo na primavera do ano que vem...
     
        Metida uma vez essa idéia na cabeça, Meyer não deixou mais de falar na sua viagem um


instante e, para que a execução correspondesse ao prometido, mandou na tarde seguinte, José

Pinho, o
camarada, alçar cargas às costas do burro, depois de as ter, ele próprio, arranjado e revistado

com toda a
cautela.


[Linha 4550 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        Julgou o carioca nesse momento dever lavrar um protesto:
     
        -Mochu, disse ele, vai recomeçar com o seu modo de andar por essas estradas à noite..

Afinal
havemos todos de cair nalguma buraqueira, eu, o senhor, o barro de carga e os bichos; e não

chegaremos,
nem eu ao Rio de Janeiro, nem eles e o senhor à sua terra. Enfim, já estou cansado de o avisar.
     
        No momento da partida, apresentava o naturalista aquele mesmo aspecto da célebre noite

da
chegada; eram aquelas mesmas frasqueiras a tiracolo, aquele mesmo ar tranqüilo e bonachão

com que
viera, fora de horas, pedir pousada a casa de Pereira.
     
        Este, ao ver o hóspede a cavalo e prestes a deixar para sempre a sua morada, sentiu-se

possuído
de alegria, mesclada, sem saber por que, com surpresa repentina e intima, de tal ou qual

comoção. No
fundo, achou de si para si as desconfianças mal empregadas, e deixou-se levar pela simpatia

que em
todos incutia o caráter naturalmente inofensivo e meigo do saxônio.
     
        -Chegou, declarou Meyer, a hora da minha despedida.
     
        E, sacudindo com força a mão e o braço do mineiro:
        -Sr. Pereira, meu amigo, adeus!... nunca mais nos havemos de ver... mas hei de lembrar-

me do
senhor toda a vida... Quando eu estiver na minha pátria, daqui a miihares e milhares de

léguas... pelo
pensamento recordarei os dias felizes... que aqui passei.
     
        -Oh! Sr. Meyer, balbuciou Pereira.
     
        -Sim, felizes, continuou Meyer com muita lentidão, felizes porque correram... sem eu
perceber que o tempo estava caminhando... De todo o Brasil fica em mim a lembrança... mas

desta sua
casa... essa lembrança é mais viva e mais forte.
         Acompanhara o alemão o seu pensamento com acentuado gesto, acenando com o punho
fechado para mostrar a lealdade daquelas impressões.
     
        Voltando-se para Cirino, acrescentou:
     
        -Sr. doutor, as suas receitas estão todas marcadas no meu caderno... O senhor pode

enganar-se
às vezes... mas as suas intenções são sempre boas... e isso basta para desculpá-lo... Eu...
     
        Interrompendo o que ia dizendo, ficou instantes a olhar para Cirino e Pereira, que estavam
igualmente silenciosos, e uma lágrima comprida deslizou-se-lhe pela face, sem que a

fisionomia
mostrasse a menor alteração.
     
        -Adeus! concluiu ele de repente.
     
        -Boa viagem, Sr. Meyer, boa viagem, disse Pereira ajudando-o a montar a cavalo.
     
        -Adeus! adeus... repetiu ele...
     
        E interpelando o camarada:
     
        -Juque, vá na frente!... Toque pouco no burrinho... Nosso pouso é daqui a meia légua...
     


[Linha 4600 de 6572 - Parte 3 de 4]


        Deu Meyer então de rédeas e caminhou a passo, logo após de José Pinho, este munido de
cabeçudo cacete, evidentemente hostil as costas do cargueiro entregue aos seus cuidados.
     
        -Lá vai o homem, exclamou Pereira ao ver a tropinha pelas costas. E um alivio... Ele,

coitado,
não era mau... mas não tinha modos... Safa, hei de me lembrar para sempre do tal Sr. Meyer! Foi

uma
campanha.. Ué... Olhe, Sr. Cirino... não está ele de volta?... Teria esquecido alguma bugigangas
     
        Com efeito reaparecia a trote o alemão em carne e osso, como quem vinha procurar ou

dizer
coisa de importância.
     
        -Então que tem? perguntou Pereira adiantando-se e alçando a voz. Deixou algum trem?

Daqui
a pouco é escurão.
     
        Meyer, no entanto, ia chegando e de certa distancia entrou a explicar a rasão da volta:
     
        -Não deixei coisa alguma, Sr. Pereira. Tão-somente faltei a um dever.
     
        -Qual é? indagou o mineiro.
     
        -Não me despedi de sua filha...
     
        -Ah! replicou Pereira com vivacidade... não era preciso... tanto mais que ela... está
dormindo... meio adoentado... Há pouco tinha muito peso na cabeça... Eu lhe hei de dizer... Não

se
incomode . . .
     
        -Pois então, observou Meyer com muita gravidade, diga-lhe que tem em mim um criado, em
toda a parte onde esteja... O seu nome ficou para sempre na ciência e a estima em que a tenho

é grande...
E uma moça muito bela... digna de ser vista na Europa...
        -Pois não, pois não, interrompeu Pereira, vá sem susto...
     
        -Sim, eu me vou, adeus!
     
        -Vá indo... olhe que o Sol dobra de repente aquele mato e a noite cai logo...
     
        -Sim, sim, adeus, disse ele despedindo-se de uma vez.
     
        E na estrada areenta, à luz do astro que descambava, foi-se tornando comprida a mais e

mais a
sombra do bom Meyer, à medida que ele marchava atrás do seu camarada, do cargueiro e da

coleção
entomológica.
     
     
       XXIII - A ÚLTIMA ENTREVISTA
     
         Está a  máscara da noite sobre meu rosto: a  não ser ela, verias as minhas faces tintas do

rubor  virginal.
       
         (Shakespeare, Romeu e Julieta, Ato 11).
       
         Mais cresce a luz, mais aumentam as trevas  das nossas desgraças.
       
         (Idem. Ato IV).


[Linha 4650 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
     
        Grave modificação trouxe a retirada de Meyer no sistema de viver daquela vivenda, onde

se
agitava um dos problemas mais comezinhos da natureza moral, mas que ali apresentava cores

algum
tanto carregadas, senão já sombrias.
     
        Fora Pereira dormir no interior da casa, passando ali a maior parte do tempo. Assim os
encontros dos dois apaixonados tornaram-se de todo impossíveis, e, não tendo mais a atenção

do
mineiro o alvo que sempre colimara durante a estada do alemão, começava como era de prever,

a
voltar-se para Cirino, a quem confessou ter tratado Meyer com injusta prevenção.
     
        - Hoje, dizia o mineiro, dói-me a consciência do modo por que desconfiei daquele homem...
Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola? Sr. Cirino, quando a gente

entra a dar
volta ao miolo.. é que vê que todos têm queda para malucos... Sim senhor!... Hoje estou

convencido que
o tal alamão era bom e sincero... Olhou para a menina... achou-a bonitinha... e disse aquele

despotismo
de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem

fiar... Às
vezes o perigo vem donde nunca se esperou... Enfim não me arrependo muito de ter feito o que

fiz...
Receei e tomei tento...
     
        Amiudando-se estes e outros dizeres iguais, deram que refletir a Cirino. De uma hora para

outra
compreendeu que as vistas inquisitoriais poderiam tornar a sua posição insustentável.
     
        Por enquanto tratou de encontrar-se com Inocência. Grandes eram as dificuldades; o meio
único, tentar novamente as entrevistas noturnas; pelo que do laranjal não arredava pé, noites e

noites
inteiras, ficando ali com os olhos presos à janela da querida do coração.
     
        Certa madrugada, viu afinal a sombra de Inocência.
     
        Achou-se, num ápice, o mancebo junto dela e agarrou-lhe com violência nas mãos.
     
        -Enfim, exclamou ele, eu a vejo.
     
        -Meu pai, murmurou a moça com voz tão fraca que mal se ouvia, pode acordar...
     
        - Não importa, replicou Cirino desabrido, descubra-se tudo... não posso mais viver assim,..
     
        -Xi! observou ela, cuidado! Se ele nos acha aqui, mata-nos logo... Olhe, vá-me esperar junto
ao corguinho para lá do laranjal... daqui a nada vou ter com mecê... A porta esta só encostada . .

.
     
        O moço fez sinal que obedecia e sumiu-se incontinenti na escuridão do pomar.
     
        Aquela hora dava a Lua de minguante alguma claridade à terra; entretanto, como que se
pressentia outra luz a preparar-se no céu para irradiar com súbito esplendor e infundir animação

e alegria
à natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia-se o pipilar de pássaros prestes a

despertar, um
gorjeio intimo e aveludado de ave que cochila; e ao longe um sabia mais madrugador desfiava

melodias
que o silêncio harmoniosamente repercutia. Riscava-se o oriente de dúbias linhas vermelhas,

prenúncio
mal percebível da manhã; nos espaços pestanejavam as estrelas com brilho bastante

amortecido, ao
passo que fina e amarelada névoa empalecia o tênue segmento iluminado do argênteo astro.
     
        Não era mais noite; mas ainda não era sequer a aurora.


[Linha 4700 de 6572 - Parte 3 de 4]


     
        Tão comovido se sentia Cirino, que teve de sentar-se, enquanto esperava por Inocência.
     
        Esta não tardou: vinha vestida de uma sala de algodão grosseiro e, à cabeça, trazia uma

grande
manta da mesma fazenda, cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava

descalça, e a
firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos, mostrava que o hábito lhe

havia
endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar, contudo, a primitiva elegância e pequenez.
     
        Parecia muito assustada, e, mau grado seu, dos olhos lhe rolavam lágrimas a fio.
     
        O mancebo, apenas a avistou, correu-lhe ao encontro.
     
        -Inocência, exclamou ele notando um gesto de dúvida, nada receie de mim... Hei de
respeitá-la, como se fora uma santa... Não confia então em mim?...
     
        -Sim! disse ela apressadamente. Por isso é que vim até cá... Entretanto, estou com a cara
ardendo... de vergonha...
     
        E levando uma das mãos de Cirino às suas faces:
     
        -Veja, Cirino, como tenho o rosto em brasa...
     
        Por que é que mecê veio bulir comigo? Eu era uma moça sossegada... agora, se mecê não
gostasse mais de mim... eu morria...
     
        - Deveras?
     
        -Eu lhe juro... t: mais fácil apagarem-se de repente estas estrelas todas, do que eu deixar

de
amá-la...
     
        -E Manecão? perguntou ela com terror.
     
        -Oh! esse homem, sempre esse nome maldito!...
     
        -Há de ser meu marido...
     
        -Isso nunca, Inocência... É impossível!... E se fugíssemos?... Olhe, amanhã a estas

mesmas
horas ou mais cedo, trago para aqui dois bons animais... Você monta num, eu noutro... batemos

para
Sant'Ana e, a galope sempre, havemos de chegar a Uberaba... onde acharemos um padre que

nos case...
Vamos, ouviu?
     
        -E mecê havia de me estimar toda a vida?
     
        -Sempre... Diga, sim... diga pelo amor de Deus, e estamos salvos. . . diga! . . .
     
        - E meu pai, Cirino? Que havéra de ser? .. Atirava-me a maldição... eu ficava perdida... uma
mulher de má vida... sem a bênção de meu pai... Não... mecê está me tentanto... Não quero

fugir... Antes
a desgraça para toda a existência... mas fique eu sendo o que meu nome diz que sou... Já muito

peco,
fazendo o que faço.. Mecê é moço da cidade; não lhe custa enganar uma criatura como eu...

Até...
     


[Linha 4750 de 6572 - Parte 3 de 4]


        -Pois bem, interrompeu Cirino, você não quer?... não falemos mais nisso .. Não hei de

querer,
senso aquilo que achar bom... E se eu, por fim, me decidir a falar a seu pai?
     
        -Deus nos livre! retorquiu ela aterrada. Pensei a principio que pudera ser, mas depois vi

que
era pior... Mecê não conhece o que é palavra de mineiro... ferro quebra, ela não... Manecão? há

de ser
genro dele...
     
        -Quem sabe, Inocência? Hei de falar tanto... pedir com tanta humildade.
     
        -Ché, que esperança!... de nada serviria...
     
        -Então, que fazer? bradou o moço. A que Santa agarrar-nos? Por que é que o céu nos quer
tanto mal?
     
        E ocultando a cabeça entre as mãos, desatou a chorar ruidosamente. Inocência, por seu

lado,
encostou a fronte ao ombro do amante, e ambos, unidos, choraram como duas crianças que

eram.
     
        Foi ela quem primeiro rompeu o silêncio
     
        -Ah! meu Deus, se o padrinho quisesse!...
     
        - Seu padrinho? perguntou Cirino. Quem é?... quem é ele?
     
        -Um homem que mora para lá das Parnaíbas, já nos terrenos Gerais.
     
        -Onde?... É longe?...
     
        -Meio longe, meio perto. .. Mecê não conhece o Pauda ?
     
        -Conheço... A 16 léguas do Rio Paranaíba...
     
        -Pois é aí que padrinho pára... A esquerda da fazenda do Pauda, numas terras de

sesmaria...
     
        -E como se chama ele?
     
        -Antônio Cesário... Papai lhe deve favores de dinheiro e faz tudo quanto ele manda... Se
dissesse uma palavra, Manecão? havéra de ficar atrapalhado...
     
        -Oh! exclamou Cirino com confiança, estamos salvos então!,.. Amanhã mesmo, monto a
cavalo e toco para lá... Daqui à vila são sete léguas... Até lá, umas dezessete... f: um passeio...

Chego...
conto-lhe tudo... ponho-me de rastos aos seus pés... e...
     
        -Mas, interrompeu Inocência, não lhe fale em mim, ouviu? Não lhe diga que tratou comigo...
que comigo mapiou... Estava tudo perdido... Invente umas histórias... faça-se de rico... nem de

leve
deixe assuntar que foi por meu juízo que mecê bateu à porta dele... Hi! com gente desconfiada,

6 preciso
saber negacear ..
     
        -Oh! meu Deus, disse Cirino no auge da alegria, estamos salvos!... Não há dúvida... Vejo
agora como há de tudo acontecer... Depois de um dia ou dois de parada na casa, desembucho o

negócio.
O velho escreve uma carta a seu pai e, pelo menos, se não se arredar logo o Manecão? ..

ganha-se


[Linha 4800 de 6572 - Parte 3 de 4]


tempo... Eu já quisera estar montado na minha besta tordilha queimada, a bater a estrada por ai

afora...
Dois dias para ir, dois para voltar, dois ou três de pousada... Com pouco mais de uma semana,

estou de
volta, trazendo ou a felicidade ou a caipora de uma vez. Não! Tenho fé em Nossa Senhora da

Abadia...
Ela nos ajudará... e juntos havemos ainda de cumprir a promessa que já fiz...
     
        -Que permessa foi? perguntou Inocência com curiosidade.
     
        -Irmos nós daqui até a vila a pé, botar duas velas bentas no altar de Nossa Senhora.
     
        -Sim, confirmou a moça com fogo, eu juro... Fosse até ao fim do mundo! . . .
     
        -Oh! minha santa do Paraíso, exclamou o moço apertando-a de encontro ao peito, quanto
você me ama!!
     
        E assim abraçados, quedaram eles inconscientes, enquanto a aurora vinha clareando o
firmamento e desferindo para a terra raios indecisos como que a sondarem a profundidade das

trevas;
enquanto os pássaros chilreavam à surdina, preparando as gargantas para o matutino concerto,

enquanto
o orvalho subia da terra ao céu molhando o dorso das folhas das grandes árvores e

suspendendo, às das
rasteiras plantinhas, gotas que cintilavam já como diamantes.
     
        Ao longe, à beira de algum rio, as aracuãs levantavam a sonora grita, e o macauã atirava

aos ares
os pios prolongados da áspera garganta.
     
        -É dia, observou Inocência desprendendo-se dos braços de Cirino.
     
        -Já! exclamou este amuado.
     
        -Meu Deus, e eu que tenho de ir até a casa... vou-me embora...
     
        -Então, partirei hoje mesmo, disse o moço.
     
        -Sim...
     
        -E na semana que vem, estou de volta...
     
        -Pois bem... Leve com mecê esta certeza; a minha vida ou a minha morte depende do
padrinho...
     
        -A minha também, replicou o mancebo beijando com fervor as mãos de Inocência...
     
        -Deixe-me... deixe-me, implorou ela. Adeus, estou com um medo!... Felizmente ninguém me
viu...
     
        Nesse momento e, como que para responder à asseveração, de dentro do pomar partiu

aquele
fino assobio que tanto assombrara os amantes na primeira das suas entrevistas.
     
        Inocência quase caiu por terra.
     
        -Meu Deus! balbuciou ela, que agouro!... Quem sabe se não 6 gente?
     


[Linha 4850 de 6572 - Parte 3 de 4]


        Ao assobio seguiu-se uma espécie de gargalhada, que gelou o sangue nas veias dos dois
míseros.
     
        Agarrou-se a menina a Cirino.
     
        -É alma do outro mundo, murmurou ela persignando-se.
     
        Não perdera o mancebo o sangue frio. Invocando a São Miguel, fez o sinal-da-cruz na

direção
dos quatro pontos cardeais; depois suspendeu a moça em seus braços e, transpondo a toda a

pressa o
pomar, foi depô-la junto à porta da casa, porta que estava entreaberta, naturalmente pelo vento.
     
        Quase desmaiara Inocência entretanto, reunindo as forças pôde entrar, e cautelosa correu o
ferrolho interior.
     
        Mais sossegado a esse respeito, voltou Cirino ao laranjal e, como da primeira vez, pôs-se

a
percorrê-lo em todos os sentidos, indagando, à nascente claridade do dia, se era ente humano

ou
fantasma quem dele parecia fazer joguete.
     
        No momento em que passava por junto de uma laranjeira mais copada, viu de repente certa
massa informe cair-lhe quase na cabeça e no meio de folhas e ramos quebrados vir ao chão

com surdo
grito de angústia.
     
        -Cruz! T'esconjuro! bradou o moço.
     
        E, como uma visão, passou-lhe por perto uma criaturinha, desaparecendo logo entre os

troncos
das árvores.
     
        Ali esteve Cirino com os cabelos eriçados, os olhos fixos, os braços hirtos de terror, os

lábios
secos a tartamudear um exorcismo, e as pernas a tremer.
     
        Uma voz, a certa distancia, arrancou-o desse espasmo.
     
        Era Pereira; com a mão encostada a boca, interpelava a um dos seus escravos.
     
        -Faz fogo, José!... Se for alma do outro mundo ou lobisomem, a bala não pega... Se for

gente,
melhor.
     
        E um tiro troou.
     
        Sibilou uma bala aos ouvidos de Cirino, indo cravar-se numa árvore próxima.
     
        Por outra, não esperou ele. Com o favor da escuridão que ainda reinava, deslizou rápido e

foi
buscar a frente da casa, quando já iam acordando os camaradas.
     
        Mal chegara a sala, apareceu-lhe Pereira à porta.
     
        -Que foi isso? perguntou Cirino compondo a fisionomia.
     
        -Lá sei, respondeu o mineiro. Uma matinada de gritos no laranjal, que parecia um inferno...

A
pequena ficou toda que parecia querer morrer de medo. Desconfio que a alma do Coletor andou

hoje me


[Linha 4900 de 6572 - Parte 3 de 4]


rondando a casa... Não seja presságio de mal... A Senhora Sant'Ana nos proteja.
     
        -Pois eu cá dormi como um chumbo, disse Cirino; acordei com um tiro...
     
        -Não há de poder enfiar outra soneca daqui a um nadinha, está o sol batendo no terreiro.
     
        Com efeito, depressa caminhava o alvorecer, e debaixo daquelas vivas impressões

acordaram
aqueles que haviam conciliado o sono, na morada de Pereira.
     
       
       XXIV-A VILA DE SANT'ANA
     
         Debaixo do céu há uma coisa que nunca se viu: é uma cidade pequena sem falatórios,

mentiras e bisbilhotices.
       
         (Lavergne).
     
        Nesse mesmo dia, montou Cirino a cavalo e despediu-se de Pereira por uma semana ou

pouco
mais, dando por motivo de tão inesperada viagem, não só a necessidade de visitar alguns

doentes mais
afastados, senão também procurar, quer na vila, quer mesmo nos campos da província de

Minas Gerais,
uns remédios e símplices que lhe iam faltando.
     
        -Daqui a um terno de dias estarei de volta, disse ao partir.
     
        Desde a casa de Pereira até ao Albino Lata é tão ensombrada e agradável a estrada, que

essas
três léguas lhe foram muito fáceis de vencer.
     
        Ali, porém, começam campos dobrados e soalheiros que, num estirão de quatro léguas, até

a
Vila de Sant'Ana tornam penosa a viagem, sobretudo quando são percorridos sob os ardentes

raios do sol
do meio-dia.
     

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Inocência - Parte 1 de 4 - Visconde de Taunay
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