sábado, 18 de agosto de 2018

Inocência - Parte 4 de 4 - Visconde de Taunay


Inocência - Parte 4 de 4 - Visconde de Taunay



        Exaltam-se e irritam-se os incômodos do espíritos, no momento em que o físico começa a
sofrer.
     
        Quando Cirino passou por aquelas campinas desabrigadas, abrasado de calor, desanimou
completamente do êxito da empresa a que se atirara. Tanta esperança o alvoroçara quando ia seguindo a vereda encoberta e amena, quanto desalento sentia agora; e, descoroçoado, deixava que o animal o fosse levando a passo vagaroso e como que identificado com a disposição de animo do cavaleiro.
     

        -Que vou eu fazer? pensava quase alto... Como encetar aquela conversa?
     
        Tamanha era a duvida que o salteava que chegou quase a blasfemar contra a amada do seu
coração.
     
        -Maldita a hora em que vi aquela mulher... Seguia eu sossegado o meu rumo... botaram-me a
perder os seus olhos!... Depois, exclamou contrito:
     
        -Perdão, Inocência! perdão, meu anjo! Estou a amaldiçoar a hora da minha felicidade... Eu,
que sou homem, posso fugir... deixar-te... mas tu, amarrada à casa... Infeliz, fui o culpado!...
     
        E, engolfado em dolorosa cogitação, alcançou a Vila de Sant'Ana do Paranaíba.


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        De longe é sumamente pitoresco o primeiro aspecto da povoação.
     
        Ponto terminal do sertão de Mato Grosso, assenta no abaulado dorso de um outeirozinho. O que
lhe dá, porém, encanto particular para quem a vê de fora, é o extenso laranjal, coroado anualmente de
milhares de áureos pomos, em cuja folhagem verde-escura se encravam as casas e ressalta a cruz da
modesta igreja matriz.
     
        Transpondo límpido regato e vencida pedregosa ladeira com casinholas de sapé à direita e à
esquerda, chega-se à rua principal, que tem por mais grandioso edifício espaçosa casa de sobrado, de
construção antiquada. Ornamenta-a uma varanda de ferro e um telhado que se adianta para a rua, como
a querer abrigá-la em sua totalidade dos ardores do sol.
     
        É aí que mora o Major Martinho de Melo Taques, baixote, rechonchudo, corado.
     
        Na sua loja de fazendas, ao rés-do-chão, reúne-se a melhor gente da localidade, para ouvi-lo
dissertar sobre política, ou narrar a guerra dos farrapos no Rio Grande do Sul e a vida que se leva na corte
do Rio de Janeiro, onde estivera pelos anos de 1838 a 1839.
     
        De vez em quando, naquela silenciosa rua em que tão bem se estampa o tipo melancólico de
uma povoação acanhada e em decadência, aparece uma ou outra tropa carregada, que levanta nuvens de
pó vermelho e atrai às janelas rostos macilentos de mulheres, ou a porta crianças pálidas das febres do
Rio Paranaíba e barrigudas de comerem terra.
     
        Também aos domingos, à hora da missa, por ali cruzam mulheres velhas, embrulhadas em
mantilhas, acompanhando outras mais mocinhas, que trajam capote comprido até aos pés e usam
daqueles pentes andaluzes, de moda em tempos que já vão longe.
     
        Atravessou Cirino a vila, e passando por defronte do Sr. Taques saudou-o com a mão, e sem
parar.
     
        Estava o major, como de costume, sentado ao balcão, de chinelos, sem meias, e rodeado das
pessoas gradas do lugar, a contar não só as próprias proezas, que muitas tinha aquele estimável cidadão,
senão também as façanhas dos antigos sertanejos, histórias que sabia na ponta da língua.
     
        -Lá vai o doutor, disse um dos presentes a palestra da loja.
     
        -O Sr. Cirino! interpelou o major correndo para a porta. Então que é isso? Por aqui?
     
        -É verdade, respondeu Cirino, e vou de passagem; também por pouco tempo: talvez nesses
oito ou dez dias esteja de volta.
     
        Tudo quanto enchia a salinha havia saído para a rua, de modo que o moço ficou logo cercado.
Recostavam-se uns quase à anca do animal; afagavam-lhe outros a pá do pescoço ou brincavam com o
freio.
     
        Achava-se a curiosidade aguçada: era preciso dar-lhe pasto.
     
        Compreendeu o major o alcance da situação.
     


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        -Cada qual tem os seus negócios particulares, disse logo para começar; mas, se não há segredo
que quer dizer esta sua volta?
     
        -Já devia estar bem longe de acá, observou um sujeito. Há quase dois meses que parou aqui na
cidade e...
     
        Espere, interrompeu o vigário, não há tal dois meses. O doutor passou por esta rua há um mês e
vinte dois dias, às oito horas da manhã.
     
        -Pois bem, continuou o major, tinha tempo. de sobra para estar já por bandas de Miranda...
     
        -Isso, se fosse escoteiro, replicou Cirino, reparem que levava cargas... e, demais, viajava
curando...
     
        -É verdade! confirmou o coletor (homem esguio, que trazia um chapéu muito alto e
afunilado), não pensam nisso. O que querem é falar... falar...
     
     

        -Creio que o senhor não atira a mim, observou o vigário com ar rusguento.
     
        -Quem em tal cuida, senhor padre? protestou logo o outro. Estou dizendo em geral... Em geral.
Eu não...
     
        -Mas, doutor, atalhou o major, onde esteve o senhor de molho este tempão todo?... nalguma
fazenda?
     
        Prometia ir longe o interrogatório.
     
        -Eu já estava quase perto do Sucuriú, disse Cirino meio perturbado, no...
     
        -Não é tão perto assim, objetou o vigário. Uma vez...
     
        -Ouçamos, senhor padre, atalhou o coletor denunciando rixa velha com o clérigo. O moço
não disse que seja perto daqui...
     
        Repetiu o major as palavras de Cirino, acentuando-as de certo modo:
     
        -Então o doutor já estava quase perto do Sucuriú, não é?
     
        -De fato. Ali encontrei uma pessoa que me devia, há meses um dinheiro...
     
        -Um dinheiro? perguntou o vigário. Uma pessoa?... Que pessoa? Quem será?
     
        -Homem, quem poderá ser? indagaram a um tempo vozes sôfregas.
     
        Prosseguiu o major implacável:
     
        -Deixem o doutor explicar-se... Vocês fazem logo uma algazarra! . .
     


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        Foi quase a balbuciar que Cirino procurou continuar:
     
        -Sim... certo tropeiro... mandou ordem para mim cobrar... de um parente uma bolada...
Também eu tinha que... pagar outra pessoa... que...
     
        -Espere, espere, interrompeu o major, então o senhor velo receber dinheiro ou desembolsar?
Não 6 uma e a mesma coisa...
     
        -Por certo, apoiaram os circunstantes.
     
        Cirino fez repentina parada nas suas explicações.
     
        -Também, disse com alguma volubilidade, muito breve estarei voltando cá. Tenho de ir para
lá do rio...
     
        -Vai até as Melancias? Indagou o coletor ajeitando o nome de um pouso para ver se acertava.
     
        -Mais adiante, respondeu o moço. E vendo a impossibilidade de escapar de tão terrível
inquirição, mudou de tática.
     
        -Na volta, disse ele dirigindo ao major, hei de lhe comprar algumas fazendas...
     
        -Já adivinhei, exclamou o vigário cortando a palavra a Cirino, o doutor vai casar.
     
        -Ora, chasquearam alguns, para que tanto segredo?... Ninguém lhe vai roubar a noiva!...
     
        -Sobretudo quando as coisas têm de me vir parar às mãos, ponderou o padre.
     
        Por instante, deram o acanhamento e o silêncio de Cirino azo a muitas observações.
     
        -Parabéns! dizia um.
     
        -Quem é essa feliz sertaneja? perguntaram outros.
     
        -Juro-lhes, meus senhores, protestou o moço, não há nada...
     
        Prosseguiu o padre:
     
        -Pois, se quer um conselho, apresse isso; de uma cajadada matarei dois coelhos... E o senhor
e o Manecão.
     
        -Na verdade, concordaram os presentes.
     
        -Mas, onde se meteu ele? perguntou um deles.
     
        -Há pouco estava aqui...
     
        -Quem? o Manecão?
     
        -Sim...


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        -Ali  vem ele! anunciou alguém
     
        No fim da rua, aparecia, com efeito, um homem montado em fogoso cavalo que sofreava com
firmeza e mão adestrada.
     
        Era a personificação do capataz de tropa.
     
        Cabelos compridos e emaranhados, ar selváticos e sobranceiro tez queimada e vigorosa
musculatura constituíam um tipo que atraia de pronto a atenção.
     
        Metidos os pés numa espécie de polainas de couro cru de veado, grandes chinelas de ferro,
lenço vermelho atado ao pescoço, garruchas nos coldres da sela e chicote de cabo de osso em punho,
tudo indicava o tropeiro no exercícios da sua lida.
     
        -Nosso Senhor... convosco, disse ao chegar, erguendo ligeiramente a aba do chapéu com a
ponta do dedo indicador.
     
        -Bons dias, Sr. Manecão? respondeu por todos o major, ou melhor, boas tardes... Já sei que
desta feita vai de batida..
     
        -Boa dúvida, grazinou o vigário, vai ver a pequerrucha.
     
        Sorriu-se o capataz com melancolia:
     
        -Não é por isso Sr. vigário. Não me deixo anarquizar por mulheres; mas, enfim a gente deve
um dia deitar a poita... A vida é uma viagem...
     
        Haviam Cirino e Manecão? ficado no meio dos curiosos.
     
        Fitaram-se: um, indiferente e altivo no modo de encarar; outro, descorado meio trêmulo
     
        -Este cujo é o cirurgião? Perguntou à meia voz Manecão? adernando no selim para o lado do
coletor. A Cula da venda me disse que tinha chegado... Tem-me cara de enjoado.
     
        -Xi! retrucou o outro, mas tem cabeça. Por aí fez um despotismo de curas.
     
        Cirino, notando que tratavam dele, cumprimentou com um sorriso de amabilidade
     
        -Boa tarde, patrício.
     
        -Ora viva, correspondeu o tropeiro em tom áspero.
     
        E, olhando para o Sol, acrescentou:
     
        -Vejam lá o que é um homem estar como mulher... a bater língua... A tarde vem descendo, e
muito tenho hoje que palmear... Minha gente, adeus... Sr. major, até mais ver... Sr. vigário, breve estou
por cá...
     
        Esporeou o animal o circulo abriu-se, e Manecão? partiu em boa marcha.


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        Aproveitando, por seu turno, aquela saída rápida, que rompera a cadela dos que o rodeavam,
apertou Cirino a mão do major e tomou rumo do Rio Paranaíba em cuja margem contava passar a noite.
     
        Mal desaparecera, e choveram comentários que nem saraiva.
     
        -Notou o senhor, disse o vigário para o major, como esta mudado? .. todo jururu...
     
        -Nem tanto, contrariou o coletor, nem tanto...
     
        O Sr. Taques, major e juiz de paz, tomou ar de profunda meditação.
     
        -Hão de os senhores ver, disse por fim levantando um dedo para o ar, que ai há dente de
coelho.
     
        Durante aquela noite e muitos dias subsequentes, repetiu a vila todas estas célebres palavras.
     
        -Foi o major quem o disse, asseveravam convictos, ali há dente de coelho.
     

       XXV-A VIAGEM
     
         Às vezes sinto necessidade de morrer, como pessoas acordadas sentem necessidade de dormir
       
         (Mme Du Deffand).
       
         Encantador país! Teu aspecto, teus solitários bosques ar puro e balsâmico, tem o poder de dissipar toda a sorte de tristezas,
menos a da perda da esperança.
       
         (Carlota Smith).
     
        Cirino em pouco mais de uma hora, transpôs a distancia da povoação ao rio. Também, na légua
e quarto que ate lá media só há de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as margens da majestosa
corrente.
     
        Nessa mata, trazem os troncos das árvores vestígio das grandes enchentes; o terreno 6 lodacento
e enatado; centro de putrefação vegetal donde irradiam os miasmas que, por ocasião da retirada das
águas, se formam em dias de calor abrasador e sufocante.
     
        Abundam ali coqueiros de estípite curto e folhuda coroa chamados aucuris, a que rodeiam
numerosas lagoinhas de água empoçada e coberta de limo.
     
        Em nada é, pois, aprazível o aspecto, e a lembrança de que ali imperam as temidas sezões faz
que todo o viajante apresse a travessia de tão tristonhas paragens.
     
        Ouve-se a curta distancia o ruído do rio que corre largo, claro e com rapidez.
     
        Como duas verdes orlas refletem-se no espelhado da superfície as elevadas margens, a cujo
sopé moitas de sarandis, curvadas pelo esforço das águas e num balancear continuo, produzem doce
marulho.


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        Causa-nos involuntário cismar a contemplação de grande massa liquida a rolar, a rolar
mansamente, tangida por força oculta.
     
        Bem como a ondulação incessante e monótona do oceano agita a alma, assim também aquele
perpassar perene, quase silencioso, de uma corrente caudal, insensivelmente nos leva a meditar.
     
        E quando o homem medita, torna-se triste.
     
        Franca e espontânea é a alegria, como todo o fato repentino da natureza. A tristeza é uma vaga
aspiração metafísica uma elação inquieta e quase dolorosa acima da contingência material.
     
        Ninguém se prepara para ficar alegre. A melancolia, pelo contrário, aos poucos é que chega
como efeito de fenômenos psicológicos a encadear-se uns nos outros.
     
        De que modo nasceu aquela enorme mole de água? Donde velo? Para onde vai? Que mistérios
encerra em seu seio?
     
        Largo tempo ficou Cirino a olhar para o rio. Em sua mente tumultuavam negros pensamentos.
     
        Já se havia difundido o crepúsculo, e bandos folgazões de quero-queros saudavam os últimos
raios do Sol e despertavam os ecos em descomunal gritaria. De vez em quando, passava algum pato
selvagem, batendo pesadamente as asas; sobre as águas, adejavam garças estirando e encolhendo o níveo
colo e pombas, aos centos, cruzavam de margem a margem a buscar inquietas o pouso de querência.
     
        Foi a luz gradativamente morrendo no céu, seguida de perto pelas sombras; e o rio tomou
aspecto uniforme como se fora imensa lâmina de prata não brunida.
     
        -Enfim, -conheci o Manecão? pensava Cirino. E para esse é que reservam a minha gentil
Inocência . . . Bonito homem para qualquer... para mim, para ela, horrendo monstro!... E como é forte !
. . .
     
        Digamo-lo, sem por isso amesquinhar o nosso herói, a Idéia de força no rival
acabrunhava-o.-Se eu pudesse... esmagava-o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus, dai-me
coragem... dai-me esperanças... Nossa Senhora da Abadia!... Nosso Senhor da Cana-Verde... vaiei-me!...
     
        E o mancebo, diante daquela natureza acabrunhadora a quem tanto Importava a paixão que lhe
atanazava-o peito, como o inseto a chilrar debaixo da folha de humilde erva, caiu de joelhos, orando
com fervor ou, melhor, desfiando automaticamente as preces que sua mãe lhe havia, em pequeno,
ensinado.
     
        E o rio lá se ia sereno; e uma onça ao longe urrava, ou algum pássaro da noite soltava gritos de
susto, esvoaçando às tontas.
     
     
        Transpondo na manhã  seguinte, o Rio Paranaíba, pisou Cirino território de Minas literais.
     
        Depois de légua e meia em mata semelhante à da margem direita, abrem-se campos dobrados,
um tanto arestados do sol, de aspecto pouco variado, mas abundantíssimos em perdizes e codornas. Tão
preocupado levava o moço o espírito que, nem sequer uma só vez, imitou o pio daquelas aves; distração,


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a que aliás não se furta quem por lá viaja, tão Instantes os motivos de instigação.
     
        Foi com impaciência mais e mais crescente que percorreu as dezesseis léguas intermédias à
fazenda do Pauda.
     
        Ia com o coração cheio de apreensões e os olhos se lhe arrasavam de lágrimas, de cada vez que
contemplava o melancólico buriti. Então pelo pensamento voava à casa de Inocência. Também, ali junto
ao córrego em cuja borda se dera a última entrevista, se erguia uma daquelas palmeiras, rainha dos
sertões.
     
        Que estaria fazendo a querida dos seus sonhos?
     
        Que lhe aconteceria? E Manecão?! Já teria lá chegado?
     
        Ao pensar nisto, aumentava-se-lhe a agitação e com vigor esporeava a cavalgadura.
     
        Transformava-se para ele o caminho em dolorosa via, que numa vertiginosa carreira quisera
vencer mas que era preciso ir tragando pouso a pouso, ponto a ponto.
     
        A majestosa impassibilidade da natureza exasperava-o.
     
        Quando o homem sofre deveras, deseja nos raptos do alucinado orgulho, ver tudo derrocado
pela fúria dos temporais, em harmonia com a tempestade que lhe vai no intimo.
     
        -Meu Deus! murmurava Cirino, tudo quanto me rodeia está tão alegre e é tão belo! Com tanta
leveza voam os pássaros: as flores são tão mimosas; os ribeirões tão claros... tudo convida ao descanso...
só eu a padecer! Antes a morte... Quem me dera arrancar do coração este peso! esta certeza de uma
desgraça imensa! Que é afinal o amor?... Daqui a anos talvez nem me lembre mais da pobre Inocência...
Estarei me atormentando à toa... Oh não! Essa menina é a minha vida! é o meu sangue... o meu farol para
os céus... Quem ma rouba mata-me de uma vez. Venha a morte... fique ela para chorar por mim... um dia
contará como um homem soube amar! . . .
     
        Levantara Cirino a voz. De repente, deu um grande grito, como que o sufocava:
     
        -Inocência!... Inocência!
     
        E as sonoridades da solidão, dóceis a qualquer ruído, repetiram aquele adorado nome, como
repetiam o uivo selvático da suçuarana, a nota plangente do sabiá ou a martelada metálica da araponga.
     
        Como tudo, afinal, tem termo, alcançou Cirino, no quarto dia, a casa de Antônio Cesário.
Acolheu-o este com toda a amabilidade e franqueza.
     
     

       XXVI-RECEPÇÁO CORDIAL
     
         Assinalemos este dia entre os mais felizes não se poupem ânforas; e, como Sábios, descanso não demos aos nossos pés.
          (Horácio Ode XXVI).
     
        Em breve chegara Manecão? à casa do futuro sogro.


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        Não é grande a distancia de Sant'Ana até lá, e entretanto o animal brioso e descansado que
montava o tropeiro viera sempre estimulado do férreo acicate.
     
        Batia de impaciência o coração do capataz, e a lembrança da formosa noiva que o esperava,
enchia-o de desconhecido alvoroço. Também, por vezes, fugia-lhe do rosto o toque habitual de
severidade e tênue sorriso afastando a custo os densos bigodes lhe pairava nos lábios,
     
        Acolheu-o Pereira com verdadeira explosão de alegria.
     
        -Viva! viva! exclamou de longe acenando com os braços, seja bem-vindo neste rancho... Ora,
até que afinal!... Faltam rojões para festejar a sua chegada... Que demora!... Pensei que não topava mais
com o caminho da casa... Nocência vai pular de contente. . .
     
        Enquanto o mineiro enfiava estas palavras quase em gritos, apeou-se o sertanista que, de
chapéu na mão, veio pedir-lhe a bênção.
     
        -Deus o faça um santo, disse Pereira abençoando-o com fervor. Você não queria chegar...
     
        -Como vai a dona? perguntou Manecão.
     
        -Agora, muito bem. Teve sezões, mas já está de todo boa...
     
        -E lembrou-se de mim?
     
        -Olhe, que enjoado... Pois se ele enfeitiça a gente... Eu mesmo só pensava em você... Quando
estará por cá aquele marreco? dizia eu comigo mesmo:... e botava uns olhos compridos por essa estrada
afora... quanto mais, mulher! Isto é um não acabar nunca de saudades. Mas, observou ele, estamos a
bater língua e não o faço entrar... Agorinha mesmo, Nocência foi para o córrego... Desencilhe o pingo e
deixe-o por ai...
     
        Fez Manecão o que disse Pereira. Tirou os arreios, não de súbito, mas com cautela e lentidão
para que o animal, encalmado como estava, não ficasse airado, deixou sobre o lombo a manta e,
apanhando um sabugo de milho, esfregou devagar a anca e o pescoço.
     
        Depois de dar termo aqueles cuidados, penetrou na casa fazendo soar ruidosamente as esporas,
que pelas dimensões desproporcionadas o obrigavam a caminhar firmado nos dedos do pé e com a
planta levantada.
     
        O mineiro não cabia em si de contente.
     
        -Então, está tudo arranjado? perguntou alegremente.
     
        -Tudo. Os papéis já foram tirados... Tive que ir até Uberaba, e foi o que me atrasou... Quando
mecê queira... botamo-nos de partida para a Senhora Sant'Ana... Amanhã cá chegam os cavalos que
comprei... Está falado o Lata... o vigário avisado; só... falta o dia...
     
        -Nestes casos, quanto mais depressa melhor... Não acha?
     
        - Certo que sim...


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        -Então, se quiser, daqui a dois domingos...
     
        -Como queira . . Eu, cá por mim. . . Bem sabe, isto de casórios, o que custa é... tomar
resolução... depois... deve-se pegar na carreira... A rapariga esta pronta?...
     
        -Não sei... há de estar... Vejo-a sempre cosendo... Quero ficar bem certo do dia, porque
mando chamar a gente do Roberto... Afinal, é preciso matar a porcada e mandar buscar restilo. Quando
se casa uma filha e... filha única, as algibeiras devem ficar veleiras. Já estão todos combinados... é só dar
o sinal... Tudo se arma logo... Aqui, em frente da casa, faz-se um grande rancho... A latada para a janta
há de ser no oitão direito... Já encomendei de Sant'Ana alguns rojões, e o mestre Trabuco prometeu-me
uns que deitam lágrimas .. Depois, tiros de bacamarte e ronqueiras hão de troar . . .
     
        -Eu, interrompeu Manecão, mandei com a sua licença vir da cidade duas dúzias de garrafas de
vinho da casa do major...
     
        -Olaré! Você meteu-se em gastos!... Duas dúzias de garrafas de vinho?
     
        -Nhor-sim...
     
        -Pois essas, meu caro, hão de ser reguladinhas da silva... Para o vigário.. para o major... o
coletor... o professor... Enfim, gente de alguma representação, porque com ela conto, sem falar na arraia
miada. Isto há de haver um despotismo. Quero que, dez dias antes da fonçonata venha a comadre do
Ricardo com o seu povaréu para prepararem sequilhos, tarecos, broas, biscoitos de polvilho e
brevidades. Haverá regalo de chicolate todas as manhãs... Você verá que desta festa falarão... E o
sapateado à noite? Os descantes?... Talvez se possa arranjar um cururu valente...
     
        -Mas, perguntou Manecão, qu'é de sua filha?
     
        Riu-se Pereira.
     
        -Maganão! não pensa noutra coisa, hem? Também fui ansim... cada qual tem o seu tempo...
Isto é regra de Nosso Senhor Jesus Cristo.
     
        E, saindo para o terreiro, gritou com força, fazendo das mãos buzina:
     
        -Nocência!... Nocência!...
     
        Não teve resposta.
     
        -Coitadinha da pequena, disse ele, há de saltar que nem veadinha, quando voltar do rio.
     
        E acrescentou:
     
        -Já que ela não vem... entremos. Você é de casa: tome por cá e chegue até o meu quarto...
Rede e peles macias não faltam.
     
        Ao dizer estas palavras, Pereira bateu amigavelmente no ombro de Manecão e fê-lo seguir para
o lanço do fundo da casa.



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       XXVII- CENAS ÍNTIMAS
     
         Santa Maria. advogada nossa, ouvi nossos rogos. Virgem pura, ante Vós se prostra uma infeliz donzela.
         (Walter Scott, Os Dois Desposados).                   
        Descrever o abalo que sofreu Inocência ao dar, cara a cara  com Manecão fora impossível
Debuxaram-se-lhe tão vivos na fisionomia o espanto e o terror, que o reparo, não só da parte do noivo,
como do próprio pai habitualmente tão despreocupado, foi repentino,
     
        -Que tem você? perguntou Pereira apressadamente.
     
        -Homem, a modos, observou Manecão com tristeza, que meto medo a senhora dona...
     
        Batiam de comoção os queixos da pobrezinha: nervoso estremecimento balanceava-lhe o
corpo todo.
     
        A ela se achegou o mineiro e pegou-lhe no braço.
     
        -Mas você não tem febre?... Que é isto, rapariga de Deus?
     
        Depois, meio risonho e voltando-se para Manecão:
     
        -Já sei o que é... Ficou toda fora de si... vendo o que não contava ver... Vamos, Nocência,
deixe-se de tolices.
     
        -Eu quero, murmurou ela, voltar para o meu quarto.
     
        E encostando-se à parede, com passo vacilante se encaminhou para dentro.
     
        Ficara sombrio o capataz.
     
        De sobrecenho carregado, recostara-,se à mesa e fora, com a vista, seguindo aquela a quem já
chamava esposa.
     
        Sentou-se defronte dele Pereira com ar de admiração.
     
        -E que tal? exclamou por fim... Ninguém pode contar com mulheres, iche!
     
        Nada retorquiu o outro.
     
        -Sua filha, indagou ele de repente com voz muito arrastada e parando a cada palavra, viu
alguém?
     
        Descorou o mineiro e quase a balbuciar:
     
        -Não... isto é, viu... mas todos os dias... ela vê gente... Por que me pergunta isso?
     
        -Por nada...
     
        -Não;... explique-se... Você faz assim uma pergunta que me deixa um pouco... anarquizado.


[Linha 5450 de 6572 - Parte 4 de 4]


Este negócio é muito, muito sério. Dei-lhe palavra de honra que minha filha havéra de ser sua mulher...
a cidade já sabe e... comigo não quero histórias... t: o que lhe digo.
     
        -Esta bom, replicou ele, nada de percipitações. Toda a vida fui ansim... Já volto; vou ver onde
pára o meu cavalo.
     
        E saiu, deixando Pereira entregue a encontradas suposições.
     
        Decorreram dias, sem que os dois tocassem mais no assunto que lhes moía o coração. Ambos,
calmos na aparência, viviam vida comum, visitavam as plantações, comiam juntos, caçavam e só se
separavam á hora de dormir, quando o mineiro ia para dentro e Manecão para a sala dos hóspedes.
     
        Inocência não aparecia.
     
        Mal saia do quarto, pretextando recaída de sezões: entretanto, não era o seu corpo o doente,
não; a sua alma, sim, essa sofria morte e paixão; e amargas lágrimas, sobretudo à noite, lhe inundavam o
rosto.
     
        -Meus Deus, exclamava ela, que será de mim? Nossa Senhora da Guia me socorra. Que pode
uma infeliz rapariga dos sertões contra tanta desgraça? Eu vivia tão sossegada neste retiro, amparada por
meu pai... que agora tanto medo me mete... Deus do céu, piedade, piedade.
     
        E de joelhos, diante de tosco oratório alumiado por esguias velas de cera, orava com fervor,
balbuciando as preces que costumava recitar antes de se deitar.
     
        Uma noite, disse ela:
     
        -Quisera uma reza que me enchesse mais o coração... que mais me aliviasse o peso da agonia
de hoje...
     
        E, como levada de inspiração, prostrou-se murmurando:
     
        -Minha Nossa Senhora mãe da Virgem que nunca pecou, ide adiante de Deus. Pedi-lhe que
tenha pena de mim... que não me deixe assim nesta dor cá de dentro tão cruel. Estendei a vossa mão
sobre mim. Se é crime amar a Cirino, mandai-me a morte. Que culpa tenho eu do que me sucede? Rezei
tanto, para não gostar deste homem! Tudo... tudo... foi inútil! Por que então este suplício de todos os
momentos? Nem sequer tem alivio no sono? Sempre ele... ele!
     
        As vezes, sentia Inocência em si ímpetos de resistência: era a natureza do pai que acordava,
natureza forte, teimosa.
     
        -Hei de ir, dizia então com olhos a chamejar, à igreja, mas de rastos! No rosto do padre gritarei:
Não, não!... Matem-me... mas eu não quero...
     
        Quando a lembrança de Cirino se lhe apresentava mais viva, estorcia-se de desespero. A paixão
punha-lhe o peito em fogo...
     
        -Que é  isto, Santo Deus? Aquele homem me teria botado um mau olhado? Cirino, Cirino,
volta, vem tomar-me... leva-me!... eu morro! Sou tua, só tua... de mais ninguém.
     


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        E caia prostrada no leito, sacudida por arrepios nervosos.
     
         Um dia, entrou inesperadamente Pereira e achou-a toda lacrimosa.
     
        Vinha sereno, mas com ar decidido.
     
        -Que tem você, menina, perguntou ele, meio terno, de alguns dias para cá?
     
        Inocência encolheu-se toda como uma pombinha que se sente agarrar.
     
        Puxou-a brandamente o pai e fê-la sentar no seu colo.
     
        -Vamos, que é isto, Nocência? Por que se socou assim no quarto?... Manecão lá fora a toda a
hora está perguntando por você... Isto não bonito... É, ou não, o seu noivo?
     
        Redobraram as lágrimas.
     
        -Mulher não deve atirar-se a cara dos homens... mas também é bom não se canhar assim... É
de enjoada... Um marido quase, como ele já é...
     
        De repente o pranto de Inocência cessou.
     
        Desvencilhou-se dos braços do pai e, de pé diante dele, encarou-o com resolução:
     
        -Papai. sabe por que tudo isto?
     
        -Sim.
     
        -É porque eu... não devo...
     
        -Não devo o quê?
     
        -Casar.
     
        Arregalou Pereira os olhos e de espanto abriu a boca.
     
        -Que? perguntou ele elevando muito a voz...
     
        Compreendeu a pobrezinha que a lata ia travar-se. Era chegado o momento.
     
        Revestiu-se de toda coragem.
     
        -Sim, meu pai, este casamento não deve fazer-se..
     
        -Você está doida? observou Pereira com fingida tranqüilidade.
     
        Prosseguiu então Inocência com muita rapidez, as faces incendiadas de rubor:
     
        -Conto-lhe tudo papai... Não me queira mal... Foi um sonho... O outro dia, antes de Manecão
chegar, estava sesteando e tive um sonho... Neste sonho, ouviu, papai? minha mãe vinha descendo do


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céu... Coitada! estava tão branca que metia pena... Vinha bem limpa, com um vestido todo azul... leve,
leve!
     
        -Sua mãe? balbuciou Pereira tomando de ligeiro assombro.
     
        -Nhor-sim, ela mesma...
     
        -Mas você não a conheceu! Morreu, quando você era pequetita... . .
     
        -Não faz nada, continuou Inocência, logo vi que era minha mãe... Olhava para mim tão
amorosa!... Perguntou-me: Cadê seu pai? Respondi com medo: Esta na roga; quer mecê, que ele venha?
- Não, me disse ela, não é perciso; diga-lhe a ele que eu vim ate cá, para não deixar Manecão casar com
você, porque há de ser infeliz... muito!... muito!...
     
        -E depois? perguntou Pereira levantando a cabeça com ar sombrio, girando os olhos.
     
        -Depois... disse mais... Se esse homem casar com você, uma grande desgraça há de entrar...
nesta casa que foi minha e onde não haverá mais sossego. Bote seu pai bem sentido nisso. E sem mais
palavra, sumiu-se como uma luz que se apaga.
     
        Cravou Pereira olhar inquiridor na filha.
     
        Uma suspeita lhe atravessou o espírito.
     
        -Que sinal tinha sua mãe no rosto?
     
        Inocência empalideceu.
     
        Levando ambas as mãos à cabeça e prorrompendo em ruidoso pranto, exclamou:
     
        -Não sei... eu estou mentindo... Isto tudo 6 mentira! mentira! Não vi minha mãe!... Perdão,
minha mãe, perdão!
     
        E, caindo de bruços sobre a cama, ficou imóvel com os cabelos espargos pelas espáduas.
     
        Contemplou-a Pereira largo tempo sem saber que pensar, que dizer.
     
        Súbito se inclinou sobre o corpo da filha e ao ouvido lhe segredou com muita energia:
     
        -Nocência, daqui a bocadinho Manecão chega da roça... você ha de ir para a sala... se não
fizer boa cara, eu a mato.
     
        E erguendo a voz:
     
        -Ouviu? Eu a mato!... Quero antes vê-la morta, estendida, do que... a casa de um mineiro
desonrada...
     
        As pressas saiu do quarto, deixando Inocência na mesma posição.
     
        -Pois bem, murmurou ela, já que é preciso... morra eu!


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       XXVIII-EM CASA DE CESÁRIO
     
         Ah! a perspectiva que pode mais docemente sorrir ao meu coração é a do aniquilamento.
          (Klopstock, A Messiada)
     
        Cirino, logo que se estabeleceu em casa do seu novo hospedeiro,  tratou de lhe captar as
simpatias. Medicou um escravo que estava de cama, fez valer o conhecimento e amizade que tinha com
     
     

        Pereira, conversou muito a respeito dele e incidentemente deu noticias de Inocência.
     
        Atalhou-o Antônio Cesário neste ponto.
     
        -Mecê a viu? perguntou ele.
     
        -Pois não, respondeu o moço, por sinal que a curei de sezões.
     
        -Ah! É uma guapa rapariga...
     
        -Parece-me...
     
        -Isso é... falo assim, porque afinal... daqui a poucos dias está casada... não sabe?
     
        -Ouvi contar.
     
        -Pois é verdade. O noivo passou por cá e levou a minha licença. É homem de mão-cheia. A
pequena deve estar contente. Ah! nem todas no sertão são felizes assim. Tem-se por aqui o mau vezo de
arranjar casamentos as cegas, e às vezes se encambulha um mocetão com uma fanadinha ou então uma
sujeita de encher o olho com algum rapaz todo engrouvinhado. . . Cruz! E, uma vez dada a palavra,
acabou-se...
     
        Achou Cirino a ocasião própria e redargüiu com vivacidade:
     
        -Então o senhor não é desse parecer.
     
        - Conforme, respondeu logo Cesário com reserva. Aos pais é que convém inziminar essas
coisas.
     
        -Boa dúvida... Mas... se... sua afilhada... não gostasse de Manecão?
     
        -Não gostasse?
     
        -Sim.
     
        -E que nos importa isso? Uma menina como ela não sabe o que lhe fica bem ou mal...
Ninguém a vai consultar. Mulheres, o que querem é casar. Não ouviu já o patrício dizer que elas não
casam com carrapato, porque não sabem qual é o macho?


[Linha 5650 de 6572 - Parte 4 de 4]


     
        E Cesário sorriu.
     
        Depois, fechando de repente a cara, perguntou:
     
        -Por que é que estamos a dar de língua nesse particular? Não sou amigo disso. Quer-me
parecer que mecê é um tanto namorador. . .
     
        -Eu? protestou Cirino com vivacidade.
     
        -Boa dúvida. Eu cá nem falar nelas quero. Mulher é para viver muito quietinha perto do tear,
tratar dos filhos e criá-los no temor de Deus; não é nem para parolar-se com ela, nem a respeito dela.
     
        Sempre as mesmas teorias de Pereira: a mesma grosseria repassada de desprezo ao sexo fraco,
a mesma suscetibilidade para desconfiar de qualquer pessoa ou de qualquer palavra que lhes parecesse
menos bem soante aos prevenidos ouvidos.
     
        -Minha afilhada, continuou Cesário, deve levantar as mãos para o céu. Achou um marido que
a há de fazer feliz e torná-la mãe de uma boa dúzia de filhos.
     
        Estremeceu Cirino, mas nada disse.
     
        Por toda a parte esbarrava de encontro a preconceitos que nada podia vencer.
     
        Nessa mesma tarde quis montar a cavalo e voltar para Sant'Ana entretanto, o pensamento da
resistência com que Inocência encetara a terrível lata com seu pai, atuou em seu espírito e o reteve.
     
        Decidiu-se a atacar o touro pelas aspas.
     
        Restar-lhe-ia ao menos o consolo do desabafo, e num jogo perdido arriscava ainda ousado
lance.
     
        -Sr. Cesário, disse ele na manhã seguinte, preciso muito falar-lhe em particular.
     
        -A mim?
     
        -Sim, senhor.
     
        -Pois, estou aqui às suas ordens.
     
        -Quisera que saíssemos. O que lhe vou dizer... ninguém pode... ninguém deve ouvir.
     
        -Oh! O senhor me assusta... Então tem segredos que me contar?
     
        -Tenho...
     
        -Pois vá lá... Mapiaremos fora... Ao meio-dia esteja na minha roga... sabe onde é?
     
        -Sei...
     


[Linha 5700 de 6572 - Parte 4 de 4]


        - Espere-me num pau de peroba seco que está derrubado.
     
        -Lá estarei.
     
        Muito antes da hora aprazada, achava-se Cirino no lugar indicado.
     
        Devorava-o a impaciência.
     
        Resolvido a desvendar sem rebuço os seus amores a esse homem a quem mui conhecia, que por
ele não tinha senão razões de passageira simpatia, e de quem, contudo, estava dependente sua felicidade,
considerava decisivos os momentos.
     
        Quem em tais circunstâncias se acha, enxerga em tudo quanto o rodela sintomas de bom ou
mau agouro, e nesse instante a Cirino pouco parecia sorrir a natureza.
     
        Não chovia; mas o tempo estava carregado e sombrio.
     
        Tinha o céu cor acinzentada e do lado do poente linhas negras e continuas denunciavam
trovoada talvez para a tarde.
     
        Era o local, além disso, tristonho. Enfileiravam-se numa grande área, pés de milho já
pendoados, dentre os quais surgiam possantes madeiros de tronco rugoso e galhada completamente
despida de ramagem, uns, da base à extrema ponta, lugubremente enegrecidos pelo fogo lançado antes
da sementeira; outros perdidas todas as folhas em conseqüência da incisão profunda e circular com que
o machado impedira a ascensão da selva. Esses quedavam vivos mas de uma vida latente e esmorecida,
denunciada por entanguidos brotos no mais alto do tope.
     
        Quando o dia é claro, aqueles gigantes da floresta, que pela robustez do cerne haviam desafiado
as chamas e os esforços do homem, servem de poleiro a inúmeros bandos de papagaios, periquitos,
araçaris, ou de graúnas que formam concertos capazes de ensurdecer os ecos.
     
        Naquela ocasião, porém, tudo era silêncio.
     
        Só de vez em quando se ouviam pancadas surdas e intermitentes dos pica-paus de crista
vermelha, agarrados aos troncos das árvores e a explorar-lhes os pontos carunchosos, subindo em
ziguezagues.
     
        A hora ajustada, apresentou-se Antônio Cesário.
     
        Por cautela vinha armado de uma espingarda de caça, que bem serviria para derrubar alguma
onça, ou animal daninho.
     
        Seu rosto, habitualmente sereno, indicava certa inquietação, repassada de curiosidade.
     
        -Aqui me tem, doutor, disse ele descansando a arma sobre o pau derrubado e sentando-se ao
lado de Cirino. Estou pronto para ouvi-lo quanto tempo queira...
     
        Muito pensara Cirino nesse momento a que devia chegar e, entretanto, não pudera achar o
modo por que encetasse as suas declarações. Parafusara de continuo mil pretextos sem nada assentar
     


[Linha 5750 de 6572 - Parte 4 de 4]


        Foi, pois, a balbuciar que respondeu:
     
        -0 Sr... há de me desculpar... o incômodo que... lhe dou. .
     
        -Incomodo nenhum.
     
        -E deve estar... espantado do que lhe pedi... vir falar comigo... em lugar ermo... comigo que
sou como qualquer hospede. como tantos que sua casa tão franca todos os dias recebe
     
        -Com efeito, confirmou Cesário.
     
        -Pois bem, daqui a nada tudo lhe ficará claro e explicado . Se enquanto eu falar... o ofender,
perdoe-me, ouviu?
     
        Sr. Cesário, continuou Cirino após breve pausa, se o Sr. visse um homem arrastado numa
corredeira e pudesse atirar-lhe uma corda e salvá-lo... o faria?
     
        -Boa dúvida, replicou o outro com forca. Ainda que corra perigo de vida, não deixarei homem
nenhum, branco ou preto, livre ou escravo, rico ou pobre, conhecido ou não, sem o socorro de meu
braço.
     
        -Pois bem, exclamou Cirino arrebatadamente, sou eu esse homem que vai morrer, que está
perdido e a quem o Sr. pode salvar...
     
        E respondendo à tácita suspeita de quem o ouvia:
     
        -Não acredite que esteja doido... não. Estou tão são de juízo como o Sr. e falo-lhe a verdade.
Uma palavra esclarece-lhe tudo... eu morro de paixão por uma mulher e essa mulher é... sua afiIhada! .
. . Inocência!
     
        De um pulo levantou-se Cesário. Seus lábios tremiam, os olhos de súbito injetados de sangue. A
mão procurou a arma que lhe ficava ao lado.
     
        -Que é isso? balbuciou encarando fixamente Cirino.
     
        Adivinhara-lhe este todos os pensamentos.
     
        Erguera-se também, cara a cara com Cesário:
     
        - Mate-me, bradou ele, mate-me... E um favor que me faz.. Dê cabo desta vida desgraçada.
     
        Já arrependido do gesto que fizera e um tanto corrido de sua precipitação, replicou o outro todo
sombrio:
     
        -Não tenho razões para matá-lo... O Sr. nunca me fez mal...
     
        -Não, prosseguiu Cirino no meio desvairado, peço-lhe por favor... Se o Sr. tem caridade, e é
bom, "se gosta de seus filhos, se tem pai e mãe no céu... por tudo isso eu lhe peço de joelhos! mate-me...
mate-me!
     


[Linha 5800 de 6572 - Parte 4 de 4]


        E deixou-se cair aos pés de Cesário, ocultando a cabeça entre as mãos.
     
        Contemplou-o largos instantes o mineiro com surpresa.
     
        Inclinando-se para o moço, bateu-lhe no ombro e quase com brandura lhe disse:
     
        - Que história é essa, doutor?... Isso é loucura! Conte-me que há... Quero saber se a sua bola
está girando ou não. Sou homem do sertão, mineiro de lei... mas sei tratar com gente...
     
        A estas palavras, recobrou Cirino algum alento e pôs-se de pé.
     
        Sentando-se então ao lado de Cesário, narrou-lhe tudo, o desespero que o minava, a certeza que
tinha do amor de Inocência e a implacável sentença preferida por Pereira.
     
        Ouvia-o Cesário atentamente. Só de vez em quando deixava escapar esta exclamação:
     
        - Ah! mulheres!... mulheres! É a nossa perdição.
     
        Depois que Cirino acabou de falar, encarou-o detidamente e, com ar severo, perguntou:
     
        -Fale-me a verdade, doutor, o senhor nunca trocou palavra com Inocência?
     
        Nunca esteve só com ela?
     
        - Estive, respondeu o outro meio receoso.
     
        As faces de Cesário subiu uma onda de sangue.
     
        -Então, rouquejou ele, a desgraça...
     
        -Deus meu, atalhou Cirino com fogo, caia a alma de minha mãe no inferno, se Inocência não
é pura... se...
     
        Conteve-o Cesário com um gesto.
     
        -Basta moço: quem jura assim, não mente... Também no meu tempo tive uma paixão infeliz...
e sei o que é sofrer..,
     
        -Oh! Sr. Cesário, salve-me!...
     
        -Que posso eu fazer? Não sabe o senhor que ela hoje hão pertence nem mesmo ao pai, ao seu
próprio pai? Pertence a palavra de honra, e palavra de mineiro não volta atrás... Não sabia o senhor disso,
quando deixou que o amor lhe entrasse pelos olhos?... Mulheres não pensam... mulheres o que querem
é ver os homens derretidos por elas... sacrificam tudo... e por um requebro pincham na rua a honra de
suas casas ..
     
        -Não, protestou Cirino, ela não é assim...
     
        -Então é melhor que as outras? objetou Cesário com desdém.
     


[Linha 5850 de 6572 - Parte 4 de 4]


        -Sim, sim, é melhor do que tudo deste mundo. Acima dela, só Nossa Senhora! . . .
     
        Ligeiramente sorriu o mineiro.
     
        -Qual! observou ele, bem disse o outro: a paixão 6 um transtorno. Fica um homem que nem
uma miséria! É. . .
     
        -Então? interrompeu Cirino.
     
        -Então o quê?... Já lhe não disse quanto basta? Minha afilhada pertence tanto a Manecão,
como uma garrucha ou um guampo lavrado que Pereira lhe tivesse dado... Não há meios e modos de
voltar atrás...
     
        Não desanimou o mancebo.
     
        Falou por muito tempo com verdadeira eloqüência, apelando principalmente para a proteção
que todo o cristão tem obrigação de dispensar ao ente que leva à pia batismal, a seu segundo filho, ao
pagãozinho por quem o padrinho se torna responsável perante Deus.
     
        Feriu o sentimento religioso do mineiro e comoveu-o.
     
        -Não me fale assim, contrariou este, o senhor quer ver se me puxa para o seu lado... E quem
me assegura que Nocência gosta tanto da sua pessoa?... Quem?
     
        -O coração está-lho dizendo baixinho, respondeu com calma Cirino. O senhor, que é homem
de honra, acredita que eu esteja mentindo? Que tudo isso é falso?... diga, acredita?
     
        Cesário tartamudeou:
     
        -Sim... Assunto verdades, mas...
     
        -Ah! exclamou Cirino, o Sr. sente a consciência bater-lhe que sua afilhada está desamparada,
que vai ser sacrificada... e agora tapa os ouvidos e diz: Não quero ouvir, não quero cumprir a minha
palavra! Por que a deu então o Sr. . . essa palavra de honra de que tanto tala?... Nossa Senhora que a
proteja... que a tire deste mundo .. Isso há de pesar-lhe no peito... e, quando um dia tiver noticia que
Inocência morreu de desgostos, há de dizer lá consigo que ajudou a cavar-lhe a sepultura.
     
        Estava Cesário abalado; com verdadeira ansiedade retorquiu:
     
        -Que histórias me conta o Sr.? Eu metido no meu canto... vivendo tão sossegado... não
bulindo com ninguém, e agora anarquizado por estes mexericos! . . . Quem o mandou vir cá?
     
        -Quem seria, retrucou Cirino, senso Inocência? Porventura eu o conhecia?... algum dia o vi?...
Não; foi aquele anjo que me
     
        disse: busca meu padrinho, 6 o último recurso. Se ele não nos amparar, então... estamos
perdidos de uma vez.
     
        Estas palavras convenceram de todo Cesário.
     


[Linha 5900 de 6572 - Parte 4 de 4]


        Ficou em silêncio, recolhido, a meditar; Cirino o observava ofegante.
     
        -Pois bem, disse por fim o mineiro em tom grave e pausado, hei de pensar no que o Sr. me
conta...
     
        -Oh! Sr. Cesário!...
     
        -Levarei dois dias a remoer sobre o caso... O que disse uma vez, não digo duas... No fim desse
tempo, monto a cavalo e apareço por casa de Pereira...
     
        -Sim, sim, balbuciou o moço.
     
        -Amanhã mesmo, de madrugada, o Sr. sal daqui e vai esperar-me na Senhora Sant'Ana.
     
        -Irei... salve-me...
     
        Cesário parou um pouco.
     
        -Agora, quero que o Sr. me faça um juramento... pelas cinzas de sua mãe.
     
        -Estou pronto.
     
        -Pela salvação de sua alma...
     
        -Pela salvação de minha alma, repetiu Cirino.
     
        -Pela vida eterna...
     
        Cirino acenou a cabeça.
     
        - Jure!
     
        O mancebo cruzou os dois índices e beijo-os com unção abaixando os olhos e empalidecendo.
     
        -O Sr., disse Cesário, Jurou antes de saber o que era... Deu-me boa idéia do seu caráter... Farei
tudo por ajudá-lo, mas exijo-lhe uma condição... Se quiser aceitá-la, fica valendo o juramento; senão... o
dito por não dito...
     
        -Que será, meu Deus? murmurou Cirino.
     
        -E ficar o Sr. esperando em Sant'Ana. Se eu aparecer por estes oito dias, iremos juntos à casa
do compadre. Se não, é que decidi contrário. Neste caso, virá o Sr. até cá e aqui esperará as suas cargas
que mandarei buscar. Será sinal de que nunca mais há de procurar botar as vistas em Inocência... nem
sequer falar nela. Aceita?
     
        -Aceito, respondeu o moço com exaltação; mas fique certo de uma coisa: se o Sr., no tempo
marcado, não estiver na vila, reze por alma de Cirino, porque ele terá deixado este mundo de aflições.
     
        Cesário meneou tristemente a cabeça e retirou-se, sem dizer mais palavra.



[Linha 5950 de 6572 - Parte 4 de 4]


       XXIX-RESISTÊNCIA DE CORÇA
     
         Acasto.- Não pode ela falar?
                                         
                                                     Osvaldo - Se falar é tão-somente fazer ouvir sons por meio da língua e dos lábios. e aquela
criatura muda; mas se tão maravilhosa faculdade consiste também em tornar compreensíveis os menores pensamentos por acionados e
expressivos gestos, pode dizer-se que ela a possui, pois seus olhos cheios de eloqüência têm uma linguagem inteligível, embora falha de
sons de palavras.
       
                                                    (Antiga Comédia Inglesa citada por Walter Scott).
       
     
        Deixamos Inocência tão abatida de corpo, quanto resoluta de  espírito.
     
        Pressentia os choques que tinha de suportar, e robustecia a alma na meditação continua e firme
de sua infelicidade.
     
        Estava de joelhos diante da imagem de Nossa Senhora, quando a voz de seu pai a fez levantar.
     
        -Nocência! chamava ele.
     
        Rapidamente passou a pobrezinha a mão pelo rosto para apagar os vestígios de copioso pranto,
e com passo quase seguro penetrou na sala.
     
        Estavam Pereira e Manecão sentados junto à mesa. O anãozinho Tico aquecia-se aos pálidos
raios de um Sol meio encoberto e, sentado à soleira da porta, brincava com umas palhinhas.
     
        -Estou aqui, papai, disse Inocência em voz alta e um pouco trêmula.
     
        Encarou-a Manecão com ar entre sombrio e apaixonado.
     
        Julgou dever dizer alguma coisa.
     
        -Até que afinal a dona saiu do ninho... E que hoje o dia está de sol, não é?
     
        A moça nada lhe respondeu; fitou-o com tanta insistência que o fez abaixar os olhos.
     
        -Ela esteve doente, desculpou Pereira.
     
        E voltando-se para a filha:
     
        -Sente-se aqui bem perto de nós... O Manecão quer conversar com você em negócios
particulares.
     
        - Bem percebe ela, observou o desazado noivo intentando abrir o motivo para risos.
     
        Inocência replicou em tom incisivo:
     
        -Não percebo.
     


[Linha 6000 de 6572 - Parte 4 de 4]


        -Está se... fazendo de... engraçada, balbuciou Manecão. Pois já... se esqueceu... do que tratei
com seu pai?... Parece que comeu muito queijo.
     
        Com a mesma entoação e cortando-lhe a palavra retorquiu ela:
     
        -Não me lembro.
     
        Houve uns minutos de silencio.
     
        Acumulava-se a cólera no peito de Pereira; seus olhares irados Iam rápidos de Manecão à
imprudente filha.
     
        -Pois, se você não se lembra, disse ele de repente, eu cá não sou tão esquecido,
     
        -Ora, recomeçou Manecão levantando-se e vindo recostar-se à beira da mesa para ficar mais
chegado à moça, faz-se de enjoada a toa... o nosso casamento...
     
        -Seu casamento? perguntou Inocência fingindo espanto.
     
        -Sim...
     
        -Mas com quem?
     
        -Ué, exclamou Manecão, com quem há de ser... Com mecê...
     
        Pereira fora-se tornando lívido de raiva.
     
        O anão acompanhava toda essa cena com muita atenção Cintilavam seus olhinhos como
diamantes pretos; seu corpo raquítico estremecia de impaciência e susto.
     
        A resposta de Manecão, levantou-se rápida Inocência e, como que acastelando-se por detrás da
sua cadeira, exclamou:
     
        -Eu? .. Casar com o senhor?! Antes uma boa morte!... Não quero... não quero... Nunca...
Nunca...
     
        Manecão bambaleou.
     
        Pereira quis por-se de pé, mas por instantes não pôde.
     
        -Está doida, balbuciou, está doida.
     
        E, segurando-se à mesa, ergueu-se terrível.
     
        -Então, você não quer? perguntou com os queixos a bater de raiva.
     
        -Não, disse a moça com desespero, quero antes...
     
        Não pode terminar.
     


[Linha 6050 de 6572 - Parte 4 de 4]


        O pai agarrara-a pela mão, obrigando-a a curvar-se toda.
     
        Depois, com violento empurrão, arrojou-a longe, de encontro à parede.
     
        Caiu a infeliz com abafado gemido e ficou estendida por terra amparando o peito com as mãos.
Mortal palidez cobria-lhe as faces e de ligeira brecha que se abrira na testa deslizavam gotas de sangue
     
        Ia Pereira precipitar-se sobre ela como para esmagá-la debaixo dos pés, mas parou de repente e,
levando as mãos ao rosto, ocultou as lágrimas que dos olhos lhe saltavam a flux.
     
        Manecão não fizera o menor gesto. Extático assistira a toda essa dolorosa cena. A fisionomia
estava impassível, mas, por dentro, seu coração era um vulcão.
     
        Lúgubre silencio reinou por algum tempo naquela sala.
     
        O anão chegara-se a Inocência, tomando-lhe uma das mãos: depois, a fizera sentar e, no meio
de carinhos, mostrara-lhe por sinais a necessidade de retirar-se.
     
        A custo pôde ela seguir aquele conselho. Quase de rastos e ajudada por Tico é que saiu da
presença do pai e de seu perseguidor.
     
        Nenhum movimento fizeram os dois para retê-la. Calados como estavam, deixaram-se ficar de
pé, um ao lado do outro, ambos acabrunhados pela grandeza daquela desgraça.
     
        Com frenesi cofiava Manecão o basto bigode.
     
        Pereira tinha a cabeça pendida sobre o peito.
     
        Afinal, exclamou:
     
        -É preciso que eu desembuche o que tenho cá dentro, senão estouro .. Quem for homem que
seja... Manecão, Nocência para nós está perdida... para nós, porque um homem lhe deitou um
mau-olhado . . .
        -E que homem é esse? perguntou em tom surdo e ameaçador o outro.
     
        -Agora vejo como tudo foi... Eu mesmo meti o diabo em casa... Estive alerta... mas o mal já
caminhava.
     
        -Mas, quem é ele? tornou a perguntar com impaciência Manecão.
     
        -Um maldito! um infame, um estrangeiro que aqui esteve... Roubou-me o sossego que Deus
me deu...
     
        Contou então às pressas Pereira todas as tentativas do alemão Meyer, tentativas que haviam
sido descobertas, mas que infelizmente, pelo menos assim supunha, já haviam produzido os seus
danosos frutos.
     
        -Ah! disse por fim abaixando a voz, pensou aquele cachorro que tudo era namorar mulheres
e depois dar com os pés em polvorosa, não é?... Amanhã mesmo eu lhe saio no rasto.
     


[Linha 6100 de 6572 - Parte 4 de 4]


        -Para quê? interrompeu Manecão.
     
        -Respondam os urubus...
     
        -Para matá-lo?
     
        -Sim...
     
        Houve breve pausa.
     
        -Não será, o senhor, disse o capataz, que lhe há de dar cabo da pele.
     
        -Por quê?
     
        -É negócio que me pertence. O senhor é pai.,. eu porem sou.,. noivo. Mangaram com os dois...
mas o alamão fica no chão.
     
        -Pois seja, concordou Pereira, parta amanhã mesmo ou hoje... agora, se possível for. Cão
danado deve logo ser morto, para que a baba não dê raiva. Vá depressa e venha contar-me que aquele
homem já não existe... Como velho, como pai... abençôo a mão que o há de matar. Cala o sangue que
correr... sobre os meus cabelos brancos . . .
     
        Havia toda esta conversa sido atentamente ouvida por alguém: o anão Tico.
     
        Viera a pouco e pouco aproximando-se da mesa com os olhos a fulgir.
     
        De repente, colocou-se resolutamente entre Manecão e Pereira.
     
        -Que quer você aqui? perguntou o mineiro com aspereza.
        Começou então o homúnculo a explicar por gestos vagarosos, mas muito expressivos, que de
tudo estava ciente, participando de todos os projetos e do mesmo sentimento de indignação e desespero
que enchia os dois ofendidos.
     
        Depois, apressando mais a gesticulação e por sons meio articulados, fez ver que Pereira
laborava em engano, tão-somente quanto a pessoa.
     
        Com multa propriedade de imitação e perfeita mímica, ora levantando o braço para caracterizar
as fisionomias, tão exatamente representou Meyer e Cirino, que o mineiro logo os reconheceu.
     
        -Bem sei, bem sei, Tico, murmurou ele. Você fala do doutor e daquele...
     
        Ai o anão fez um gesto de negação e, apontando para o quarto de Inocência, indicou que nada
tinha ela com o alemão.
     
        Ficaram pasmos os dois.
     
        - Então, balbuciou Pereira, quem será?... Ci...rino, meu Deus?!
     
        -Sim... Sim! gritou o anão com violento esforço abaixando muitas vezes a cabeça.
     


[Linha 6150 de 6572 - Parte 4 de 4]


        -Qual! protestou Pereira, o doutor?...
     
        Com muita habilidade e segurança Tico desenvolveu as provas que tinha.
     
        Gesticulou como um possesso; correu para fora de casa; denunciou as entrevistas; reproduziu
ao vivo todas as passadas de Cirino; mostrou o lugar do laranjal donde vira tudo, o galho quebrado em
razão da sua queda; repetiu o grito que dera; lembrou a cena da madrugada, findando com aqueles tiros;
exprimiu-se por sinais tão adequados e tais movimentos de cabeça e fisionomia, que toda a dúvida
desapareceu do espírito de Pereira.
     
        Então tudo se lhe descortinou claro e deslumbrante, e sua cólera subiu a um grau de violência
inexprimível.
     
        Esteve a cair fulminado.
     
        -Infame, murmurou roxo de ira, tu me pagas!
     
        -Infame... Infame!
     
        Depois voltando-se para Manecão:
     
        -Dê-me esse... eu o quero...
     
        Abanou o capataz a cabeça.
     
        - Não, respondeu surdamente. Esse me pertence... Caçoou com o senhor... e fez de mim
chacota.
     
        -Então, disse apressadamente Pereira, parta hoje... parta já . E quando voltar, diga só: estamos
desagravados... Inocência será sua...
     
        Parando um pouco. concluiu tomado de enleio:
     
        -Se quiser aceitá-la.
     
        -Havemos de conversar,
     
        Teve o mineiro uma explosão de desespero
     
        -Meu Deus, exclamou com dor, em que mundo vivemos nos? Um homem entra na minha
casa, come do que eu como, dorme debaixo do meu teto, bebe da água que carrego da fonte, esse homem
chega aqui e, de uma morada de paz e de honra, faz um lugar de desordem e vergonha! Não, mil raios me
partam!... Não quero mais saberque esse miserável respire o ar que respiro. Não! mil vezes, não! E desde
já enxoto a canalhada que trouxe, gente do inferno como ele! . . . Hei de cuspir-lhes na cara. . . Pinchá-los
fora como cães que são!... Ladrões! .. Eu... Interrompeu-o Manecão com calma:
     
        -Não faça nada... E preciso que ninguém saiba do que se está passando aqui... Ninguém!...
percebe?
     
        -E então?


[Linha 6200 de 6572 - Parte 4 de 4]


     
        -Faça de conta que recebeu uma letra de Sant'Ana. O cujo foi quem a mandou, para que os
camaradas o vão esperar no Leal... Ouviu?
     
        Pereira fez sinal de tudo compreender.
     
        -Depois, acrescentou Manecão com voz sinistra, mãos a obra.
     
        -Você diz bem, retorquiu Pereira, tenha pena de mim... Estou com esta cabeça corno um
cortiço de guaxupés... E um zumbido!... Mostre que já é dono desta casa e faça como entender...
Entrego-me de pés e mãos atados a você... Tudo lhe pertence... Enquanto a honra do mineiro não for
desafrontada .. não levanto o rosto... Meu Deus, meu Deus, que vergonha! .
     
        -Coragem, coragem, aconselhou o outro.
     
        -Se este socavão não chegar para esconder minhas misérias... mudo-me para as bandas do
Apa... Parece que vou morrer... sinto fogo dentro da cabeça...
     
        E, vencido pela emoção, encostou a testa à mesa, deixando cair os braços.
     
        Bateu-lhe Manecão no ombro.
     
        -Que é isso, meu pai? animo! De que serve ser homem?... Olhe cara a cara a sua desgraça...
que também é minha. Não o consola a certeza de que aquele homem brevemente...
     
        -Sim, replicou Pereira levantando a cabeça e reparando que o anão se retirara, mas que
faremos deste tico de gente, que sabe tudo ?
     
        -Não o deixe sair mais de casa.
     
        -Qual!... É que nem muçu. Quando a gente mal pensa, surge no Sucuriú e até no Corredor.
     
        -Pois bem... Ficará sabendo que... um só piscar de olho... pode sair-lhe caro... muito caro.
     
        -Então implorou Pereira, vá quanto antes limpar o meu paiol daquela gente vá... Se eu pudesse
ainda dormir... esquecia um pouco, mas .
     
        Com estas palavras retirou-se a custo o mineiro.

              Incontinenti foi Manecão despachar os camaradas de Cirino, os quais, pouco depois saiam com
destino à casa do Leal.
     
        Em seguida, montando o tropeiro a cavalo, partiu em carreira desapoderada para a Vila de
Sant'Ana do Paranaíba, onde chegou alta noite.

     
       XXX-DESENLACE
     
         Estão contados os grãos de areia que compõem a minha vide. É aqui que devo tombar. É aqui que ela há de acabar.
       


[Linha 6250 de 6572 - Parte 4 de 4]


         (Shakespeare, Henrique V, Ato 1)
       
         Eis que vi um cavalo amarelo, e quem o montava, era a morte.
       
         (São João Apocalipse)
     
     
        Durante três dias, foi Cirino rigorosamente espreitado pelo noivo de Inocência.
     
        Com a cautela própria dos seus hábitos esquivos, soube Manecão acompanhar-lhe todos os
passos sem ser pressentido.
     
        Assim notou que o rival montava a cavalo e ia até certo ponto da estrada como que esperar por
alguém que não chegava. Na ida, mostrava impaciência e inquietação; na volta vinha melancólico e
curvado sobre si mesmo, absorto em fundo meditar.
     
        Ia o infeliz mancebo ao encontro de Cesário; mas este não aparecia.
     
        Estava quase expirado o prazo combinado, e prestes a soar a hora do completo desengano.
     
        Oh! se ele pudera!... Agarraria com forças de Josué esse Sol que lhe marcava os dias e o
deixaria imóvel, até que o seu salvador se resolvesse a estender-lhe a mão.
     
        E já ia findando a semana!...
     
        Completo o círculo de horas, se Cesário não aparecesse, começava a imperar o juramento que
dera, irrevogável, implacável!
     
        -Matar-me-ei, dizia Cirino; ficarão sabendo que não menti às minhas palavras.
     
        Nessa firme resolução saiu da vila; passou o Rio Paranaíba e, como costumava, caminhou pela
estrada de São Francisco de Sales, talvez três léguas. Contava pousar por aqueles sítios de modo que
alongava o seu passeio.
     
        Claro era o dia; lindo:
        Por toda parte cantavam mil pássaros. Gritavam as gralhas nos cerrados; piavam as perdizes no
relvoso chão.
     
        Cirino ia multo agitado. Nada ouvia; os seus olhos, fitos sempre na frente, buscavam na estrada,
ansiosos, o vulto de um cavaleiro.
     
        Soou-lhe de repente aos ouvidos o tropel de um animal.
     
        Alguém vinha a galope.
     
        Seu coração pulsou que parecia ter entrado também a galopar.
     
        Mas o som partia de detrás.
     
        Sem dúvida, algum viajante vindo da vila.


[Linha 6300 de 6572 - Parte 4 de 4]


     
        Continuou Cirino na vagarosa marcha.
     
        O estrupido vinha indicando carreira folgada e que breve consigo estaria emparelhando, quem
extravagantemente em hora tão imprópria corria à desfilada.
     
        O mancebo de nada cuidava, tanto que mal reparou que alguém a trote largo passara por perto
de si, quase a rogar animal contra animal.
     
        Dali a pouco, novo galope se fez ouvir.
     
        Parecia que o mesmo cavaleiro havia dado de rédeas, cortando o rumo que levava.
     
        Dessa vez, porém, Cirino acordou do letargo, esporeou vigorosamente a sua cavalgadura e...
esbarrou com Manecão.
     
        Instintivamente empalideceu. O outro estava também muito descorado.
     
        Estacaram eles os animais e fitaram-se alguns minutos, de um lado com desconfiança e pasmo,
de outro com mal concentrado furor.
     
        -Patrício, interpelou por fim o capataz em tom provocador, que faz mecê por aqui?
     
        -Eu? perguntou Cirino.
     
        -Nhor-sim, mecê mesmo.
     
        -É boa... viajo.
     
        -Ah! viaja! replicou Manecão. Então é andejo?
     
        -Andejo, não, contestou Cirino com força. Não sou nenhum bruto.
     
        E por prevenção levantou a capa do coldre em que havia uma pistola, fazendo menção de a
sacar.
     
        -Não será andejo, continuou o capataz, mas então o que é?
     
        -Sou o que sou, não é da sua conta.
     
        Contraiu-se o rosto de Manecão.
     
        De um tranco chegou o cavalo bem junto a Cirino e disse-lhe em voz surda:
     
        -É um ladrão... é um cachorro! .
     
        A esse insulto, puxou Cirino a pistola.
     
        -Mato-o já, bradou com violência se continua a destratar-me.
     


[Linha 6350 de 6572 - Parte 4 de 4]


        Sorriu-se o capataz com desprezo.
     
        -Gentes, observou cuspindo para um lado, vejam só que valentão... E sabe manejar
garrucha!...
     
        -Acabemos com isso, gritou Cirino.
     
        -Acabemos, retorquiu Manecão com fingida calma.
     
        -Mas quem é o Sr.? perguntou Cirino.
     
        -Eu?
     
        -Sim!... sim!...
     
        -Então não me conhece?
     
        -Não, balbuciou Cirino.
     
        -Conhece Nocência? uivou Manecão com voz terrível
     
        E de supetão tirando uma garrucha da cintura, desfechou-a à queima-roupa em Cirino.
     
        Varou a bala o corpo do infeliz e o fez baquear por terra.
     
        Dois gritos estrugiram.
     
        Um de agonia, outro de triunfo.
     
        Ficara Cirino estendido de bruços. Reunindo as forças, que se lhe escapavam com o sangue,
voltou-se de costas e prorrompeu em vociferações contra o inimigo, que o contemplava sardônico.
     
        -Matador!. vil! .. sim! .. conheço Inocência... Ela é minha .. Infame! .. Mataste-me... mas
mataste também a ela!... Que te fiz eu?... Deus te há de amaldiçoar... sim, meu Deus, meus Santos ..
maldição sobre este assassino... Foge, foge... minha sombra há de seguir-te sempre...
     
        -Melhor, interrompeu Manecão do alto do cavalo, isso mesmo é 0 que eu quero.
     
        -Ah! queres? continuou Cirino com voz rouquejante, não é?... Pois bem!... De noite e de dia...
minha alma há de estar contigo . . sempre, sempre! . . .
     
        Calou-se por um pouco e, revolvendo-se no chão, passou a mão pela testa. Lentejava-lhe dos
poros o suor frio e visguento da morte.
     
        Foi seu rosto abandonando a expressão de rancor; a respiração tornou-se-lhe mais difícil
     
        -Não murmurou com pausa e gravidade, não quero morrer... assim. Devo sair desta vida...
como cristão... Hei de saber perdoar... E reunindo as forças, acrescentou com unção e energia:
Manecão... eu te perdôo... por Cristo... que morreu... na cruz, para nos salvar... eu te perdôo Nosso
Senhor tenha pena de ti... Eu te perdôo, ouviste?


[Linha 6400 de 6572 - Parte 4 de 4]


     
        A medida que o moribundo pronunciava estas palavras, esbugalhara Manecão os olhos de
horror com o corpo todo a tremer.
     
        -Não quero o teu perdão, bradou ele a custo.
     
        -Não importa, respondeu-lhe Cirino com voz suave. Ele é... dado do fundo d'alma... Cata
sobre tua cabeça...
     
        Quero, quero morrer como cristão... Que me importa agora o mundo, a vingança... tudo?... só
Inocência!... Coitada de Inocência... Quem sabe... se... ela... não morrerá? Manecão, dá-me água. Água
pelo amor de Deus! . . . Desce do cavalo, homem. . . É um defunto que te pede... Desce!...
     
        E com os braços erguidos acenava para Manecão.
     
        -Água, bradou o mancebo forcejando por levantar-se, dá-me água... eu te dou a salvação...
     
        Sentia o capataz escorrer-lhe o suor dentre os cabelos. Queria fugir e não podia. Parecia que os
seus olhos tinham de acompanhar passo a passo a agonia da sua vitima. Aquela cena, se lhe afigurava um
pesadelo, e completo torpor lhe tolhia os membros.
     
        Tirou-o desse enleio o bater das patas de um animal que vinha pela estrada a trote.
     
        Ouvira também Cirino o estrupido e arregalara com ansiedade os olhos.
     
        Desabrochou-lhe nos lábios um sorriso de acre tristeza.
     
        Alguém vinha chegando.
     
        Esporeou Manecão com vigor o cavalo e, levantando uma nuvem de poeira, desapareceu num
abrir e fechar de olhos.
     
        Nisto assomava um cavaleiro numa das voltas do caminho.
     
        Era Antônio Cesário.
     
        Vendo um homem estirado por terra apressou o passo.
     
        - O doutor?! exclamou apeando-se rapidamente e todo horrorizado.
     
        -Eu mesmo, respondeu Cirino com voz fraca.
     
        -Mas, quem lhe fez este dano, santo Deus?
     
        E correndo para o moço ajoelhou-se junto dele e levantou-lhe o corpo.
     
        -Quem foi o assassino?
     
        -Ninguém, rouquejou o mísero, foi... destino... Morro contente... Dê-me água .. e fale-me de
Inocência...


[Linha 6450 de 6572 - Parte 4 de 4]


     
        -Água? exclamou Cesário com desespero, aqui no meio do cerrado?... O córrego fica a três
léguas pelo menos...
     
        -Ah! replicou Cirino meio desvairado, se não há... com que estancar a sede do corpo...
estanque a... da alma... Inocência... onde esta? quero vê-la... Diga-lhe que morri... por causa dela...
     
        -Mas, quem o matou? bradou o mineiro.
     
        -Não vale a pena dizê-lo, respondeu o mancebo entre gemidos. Cuide agora... só de mim...
Olhe nunca fui mau... não tenho pecados .. grandes... Acha que Deus me... há de perdoar?
     
        - Acho, respondeu Cesário com força ..
     
        -Que fiz eu... na minha vida? Talvez... enganasse os outros... dizendo que era .. médico... Mas
também curei alguns . De nada mais me recordo . . . Ah! sim . . . uma divida de honra . . . Na minha
carteira... há uns seiscentos mil-réis; pague... trezentos -ao Totó Siqueira, da vila; de... cinqüenta mil-réis.
a cada camarada... meu... o mais... distribua.. todo... pelos pobres, sobretudo... morféticos... depois das
.. missas... que por mim... mandar... rezar... ouviu?... ouviu?
     
        Fez o mineiro sinal que sim.
     
        Vinha a morte desdobrando as suas sombras no rosto de Cirino. Ia-se-lhe empanando o brilho
dos olhos; ficara a língua trôpega, afilara-se-lhe o nariz e sinistro palor mais realçava a negra cor dos seus
cabelos e barbas.
     
        Sentara-se Cesário no chão para segurar com mais jeito o corpo do moribundo. Duas lágrimas
vinham-lhe sulcando as másculas faces.
     
        Ligeiro estremecimento agitava o corpo de Cirino.
     
        -Agora, acrescentou com voz muito sumida, chegou... o meu dia... Mas... eu lhe peço... nada
diga... à sua afilhada... Não consinta... que case com... Manecão.
     
        -Então, interrompeu Cesário, foi ele quem?...
     
        -Não, não, contestou Cirino, mas... ela havia de ser... infeliz... Ouviu? Promete-me?
     
        -Prometo, respondeu Cesário com firmeza. Juro até...
     
        -Pois bem, suspirou o agonizante, agora... agradeço a morte. Quero apegar-me... às Santas do
Paraíso... e chamo por...
     
        E com esforço, no último alento, murmurou mais e mais baixo:
     
        -Inocência!
     
        Na tarde deste dia, o viajante que passasse por aquele sitio poderia ver uma cova coberta de
fresco, sobre a qual se erguia uma cruz tosca feita de dois grossos paus amarrados com cipós.
     


[Linha 6500 de 6572 - Parte 4 de 4]


        Eram mostras da caridade do mineiro Antônio Cesário
     
     

     
       EPÍLOGO-REAPARECE MEYER
     
         Possuí-te do justo orgulho o coroem os louros de Apolo tua cabeça.
          ( Horácio ).
     
     
        No dia 18 de agosto de 1863, presenciava a cidade de Magdeburgo pomposo espetáculo, há
muito anunciado no mundo científico da sabia Germânia.
     
        Era uma sessão extraordinária e solene da Sociedade Geral Entomológica, a qual chamava a
postos não só todos os seus membros efetivos, honorários, correspondentes, como muitos convidados
de ocasião, a fim de acolher e levar ao capitólio da glória um dos seus mais distintos filhos, um dos mais
infatigáveis investigadores dos segredos da natureza, intrépido viajante, ausente da pátria desde anos e
de volta da América Meridional, em cujas regiões centrais por tal forma se embrenhara, que impossível
havia sido seguir-lhe o roteiro, até nos mapas e cartas especiais do grande colecionador Simão Schropp,
     
        Revestira-se de mil galas a ciência. Todos os sócios de casaca preta, gravata e luvas brancas
alguns com discursos nos bolsos, enchiam a sala das sessões muito antes da hora marcada; a orquestra
executava a sonata nº 26 de Ludwig van Beethoven, e senhoras ostentavam toilettes ricas e de
aprimorado gosto.
     
        De repente atroou um grito:
     
        -Vivat Meyer! Hurrah! Vivat! Hoch! Hoch!...
     
        E, ao passo que todos os pescoços se estiravam para ver quem entrava sacudiam-se no ar com
entusiasmo lenços e chapéus.
     
        Acalmada a ruidosa manifestação, levantou-se o presidente da Sociedade Entomológica, um
presidente magro como um espeto e ornamentado de ruiva cabeleira que lhe dava o aspecto de um
projeto de incêndio.
     
        -Sim! exclamou ele depois de ter bebido uns goles d'água açucarada e de haver preparado a
garganta; eis enfim, aqui, no meio de nós, o grande, o vencedor, o incomparável Guilherme Tembel
Meyer! . . .
     
        E neste gosto falou duas horas seguidas
     
        No dia seguinte, traziam as gazetas de Magdeburgo extensa relação da festa, transcreviam o
discurso do presidente e, como apêndice às notas biográficas relativas a Meyer, enumeravam os
prodígios entomológicos que havia recolhido em suas dilatadas peregrinações.
     
        "O que há de mais digno de admiração, dizia O Tempo (Die Zeit), em toda a imensa e
preciosíssima coleção trazida pelo Dr. Meyer das suas viagens, é sem contestação uma borboleta, gênero
completamente novo e de esplendor acima de qualquer concepção. É a Papilo Innocentia... (Seguia-se


[Linha 6550 de 6572 - Parte 4 de 4]


uma descrição de minuciosidade perfeitamente germânica).
     
        "O nome, acrescentava a folha, dado pelo eminente naturalista àquele soberbo espécime foi
graciosa homenagem à beleza de uma
     
     
     
        donzela (Mädchen) dos desertos da Província de Mato Grosso (Brasil), criatura, segundo conta
o Dr. Meyer, de fascinadora formosura. Vê-se, pois, que também os sábios possuem coração tangível e
podem por vezes, usar da ciência como meio de demonstrar impressões sentimentais de que muitos não
os julgam suscetíveis."
     
        * * *
     
        Inocência, coitadinha...
     
        Exatamente nesse dia fazia dois anos que o seu gentil corpo fora entregue a terra, no imenso
sertão de Sant'Ana do Paranaíba, para ai dormir o sono da eternidade.
     

FIM - FIM - FIM


...

Inocência - Parte 1 de 4 - Visconde de Taunay
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Inocência - Parte 2 de 4 - Visconde de Taunay
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Inocência - Parte 3 de 4 - Visconde de Taunay
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Inocência - Parte 4 de 4 - Visconde de Taunay
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