O MAIS RICO TESOURO DA AMÉRICA - Arqueologia
A partir de peças roubadas de uma sepultura, arqueólogos descobrem no Peru uma preciosa coleção que permite reconstruir a antiga civilização pré-colombiana dos mochicas.
Há dois anos, quando o arqueólogo Walter Alva foi chamado às pressas, no meio da noite, à delegacia da cidade de Chiclayo, na costa norte do Peru, imaginava encontrar ali um ladrão de tumbas, como tantos que infestam as ruínas das velhas civilizações que antecederam o homem branco naquelas paragens. Mas, para sua surpresa, encontrou uma coleção de peças antigas - que se revelaria um dos mais preciosos tesouros pré-colombianos encontrados até então. Haviam sido roubadas de uma sepultura de um dos monumentos de adobe que se erguem em Sipán - lugarejo a 26 quilômetros de Chiclayo - e confiscadas pela polícia na casa de um dos ladrões. Vasos de cerâmica, peças de cobre, estatuetas, adornos de ouro e prata e até uma pequena cabeça humana em ouro com as pálpebras esculpidas em prata e os olhos em lápis-lazúli faziam parte da inesperada descoberta.
Eram, sem dúvida, objetos de arte fabricados pelos mochicas, povo que habitou a costa norte peruana antes dos incas, dezessete séculos atrás. Pela riqueza das peças, Alva, diretor do Museu Arqueológico Bruning, em Lambayeque, também no Peru, logo imaginou que deveriam ter saído de uma sepultura suntuosa: provavelmente de alguém muito importante ou quem sabe de um governante. Mas sua hipótese só poderia ser testada com escavações no local e, mesmo assim, com o risco de não se encontrar mais nada. Afinal, essa era apenas uma entre as tantas sepulturas saqueadas que se encontram dentro das enormes e antigas estruturas de adobe - huacas, como são chamadas pelos peruanos. Algumas delas chegam a 40 metros de altura. Pilhá-las é um hábito tão comum quanto antigo, pelo menos desde os conquistadores espanhóis, que em 1532 iniciaram os saques aos monumentos, esburacando tudo o que encontravam, em busca de ouro.
Quatro séculos se passaram e essas construções históricas continuam a ser um alvo fácil para os ladrões. Os huaqueros, como são chamados, agem livremente, estimulados sobretudo pelos altos preços que os colecionadores pagam por peças antigas. Para se ter uma idéia, uma pequena cabeça de ouro mochica vale 100 mil dólares. Por tudo isso, raras vezes os arqueólogos tiveram a oportunidade de encontrar sepulturas importantes que já não tivessem sido roubadas.
Decidido, Alva imediatamente montou um acampamento na base do monumento saqueado. Se conseguisse explorar o local antes que outros huaqueros aparecessem, poderia, quem sabe, descobrir novas pistas sobre a civilização mochica, que surgiu, expandiu-se e desapareceu aproximadamente entre os séculos I e VIII da era cristã. Embora contemporâneos dos maias, seus adiantados vizinhos da região que se estende do sul do México à Costa Rica, os mochicas não desenvolveram, como aqueles, um sistema de escrita. "Tudo o que se sabe a seu respeito vem das pinturas em cerâmica", conta Vera Penteado Coelho, do Museu Paulista da USP, uma das maiores autoridades brasileiras em arqueologia peruana. "As cenas pintadas reproduzem desde animais, plantas, insetos até as doenças que havia entre eles", descreve Vera, que durante três anos estudou no Peru.
De fato, os mochicas reproduziram nas cerâmicas rostos com rugas e verrugas, sem falar nos olhares que conseguem transmitir tristeza mesmo atrás de um sorriso. Além de hábeis artesãos, foram também engenheiros e arquitetos competentíssimos, embora não tivessem erguido grandiosas construções, como fizeram os incas. Para sobreviver na estreita faixa desértica entre a cordilheira dos Andes e o oceano Pacífico, os mochicas desenvolveram uma imensa rede de canais, aproveitando os rios que descem da cordilheira, para transformar a região num vale fértil.
Aperfeiçoando as técnicas de irrigação, os mochicas estenderam seus domínios ao longo de 354 quilômetros, onde viviam 50 mil pessoas, que habitavam modestas casas de barro e palha. Além disso, usando tijolos retangulares de adobe - mistura de barro cozido com cascalho -, construíam enormes templos e pirâmides de topo achatado, que, apesar do nome, não tinham a mesma função das egípcias. As construções mochicas eram usadas também em vida, não só após a morte, Quando morria uma figura ilustre, erguia-se dentro delas uma câmara para abrigar o morto. Com ele enterravam-se objetos de uso pessoal e oferendas - geralmente, elas implicavam o sacrifício daqueles que o serviram em vida. Basicamente as pirâmides funcionavam como templos, centros administrativos e depósitos de tecidos e cerâmicas.
Os mochicas usavam cerâmicas como recipientes de comidas e bebidas, entre elas a chicha, obtida pela fermentação do milho moído, uma exclusividade da classe dominante de guerreiros e sacerdotes. Sua dieta, rica em proteínas, é de dar inveja a muitos peruanos nos dias de hoje. Cultivavam abacate, milho, feijão, amendoim, mandioca, abóbora e pimenta e incluíam nas refeições patos, porquinhos-da-índia, pitus (camarões de água doce) e muito peixe. Para pescar, os mochicas alcançavam as ilhas do Pacífico montados em botes que mais se pareciam a pranchas de surfe. A tradição mochica sobreviveu aos séculos: até hoje, nas areias da vila de Santa Rosa, não muito longe de Sipán, é possível ver os botes, que os pescadores locais chamam de caballitos (cavalinhos), semelhantes a pranchas, secando na praia.
Não se sabe muita coisa sobre a religião dos mochicas. As cerâmicas mostram com freqüência as duas faces de um jaguar com os caninos salientes e ameaçadores. Supõe-se que seja uma divindade de nome Ai-apaec, cujo significado é desconhecido. Uma imagem em cobre desse felino de duas faces com os dentes feitos de conchas foi encontrada pela polícia na casa do huaquero de Sipán. O uso que os mochicas faziam de materiais como o lápis-lazúli e as conchas é um indício de que teriam comerciado com povos distantes que viviam nos territórios dos atuais Equador, de onde proviriam as conchas, e Chile, onde buscariam lápis-lazúli.
As escavações da equipe de arqueólogos em Sipán começaram efetivamente em abril de 1987 graças à colaboração de empresas locais, órgãos de cultura peruanos e uma doação de 47 mil dólares da centenária revista-americana National Geographic. Foi um trabalho longo e difícil. Munidos de pás e delicados pincéis, os arqueólogos realizaram ali uma verdadeira cirurgia. Somente um ano depois, descobriram-se marcas de vigas de madeira que teriam apoiado o teto de uma câmara retangular.
Com cuidado, os arqueólogos retiraram a grossa camada de areia que encobria o local e, surpresos, viram surgir centenas de potes, jarras, canecas e recipientes de cerâmica. Mais de mil peças foram inventariadas. Os pesquisadores concluíram que a câmara era o maior depósito de cerâmicas pré-colombianas já encontrado até então. Nelas aparecia com freqüência a cena de dois homens esforçando-se para baixar, com cordas, um caixão numa sepultura. Outra cena que se repetia em várias peças mostrava prisioneiros amarrados, nus, com uma corda no pescoço. Ainda nessa câmara, os arqueólogos encontraram um esqueleto humano. Como um contorcionista, estava arqueado sobre suas costas, com os braços cruzados e os joelhos forçados para trás. Próximo à ossada, pedaços de folhas de cobre e uma máscara também de cobre indicavam não se tratar de alguém propriamente ilustre.
Ele poderia ter sido sacrificado em honra de uma pessoa muito importante, enterrada mais abaixo, supuseram os arqueólogos. Não estavam enganados. Três metros e meio abaixo do contorcionista, surgia um segundo esqueleto humano, muito deteriorado, devendo ter pertencido a um homem de cerca de 20 anos. Fragmentos de cobre na sua cabeça e um escudo na cintura não deixavam dúvidas de que fora um guerreiro. Um dado chamou a atenção dos pesquisadores - a ossada não tinha pés. Teriam sido amputados antes ou depois da morte?
De todo modo, os arqueólogos se convenceram de que a ausência de pés simbolizava o dever de ficar sempre em seu posto, vigilante. Por isso chamaram o esqueleto de guardião. Mas, afinal, a quem ou o que ele guardaria? Para saber era preciso continuar escavando. Num dos cantos da câmara, 50 centímetros abaixo, novas marcas de vigas de madeira foram achadas e logo surgia um caixão selado, para espanto e alegria dos pesquisadores. Pois, pela primara vez na história da arqueologia peruana, descobria-se um caixão nessas condições.
Com tubos de ar e pincéis, ele foi aberto, e a primeira coisa que os arqueólogos notaram foi um adorno de cabeça em cobre, em formato de V, no qual tinha sido esculpida uma figura de homem com um enfeite no nariz. Coberta por um punhado de terra, debaixo do adorno, apareceu uma miniatura de ouro: um homenzinho vestido com uma túnica de turquesa. Era um objeto perfeito e, na opinião dos pesquisadores, a mais fina jóia pré-colombiana jamais vista. Tratava-se, na verdade, de parte de um grande brinco redondo. O brinco devia pertencer ao dono da sepultura - certamente alguém muito importante. Por isso, foi balizado de Lorde de Sipán.
Partes de uma máscara de ouro - olhos, nariz, queixo e uma bochecha - estavam sobre a cabeça do esqueleto. Peças de turquesa delicadamente trabalhadas formavam mosaicos redondos, usados como brincos, retratando guerreiros e animais. As sandálias de cobre que cobriam os pés do lorde não apresentavam sinais de uso. Duras e pesadas, deviam ser reservadas às cerimónias, se bem que isso pouca diferença fazia, pois as cerâmicas mostravam que os mochicas ilustres eram carregados em liteiras por homens comuns.
Junto ao lorde estavam um escudo de cobre e um chocalho de ouro. Ambos exibiam a mesma cena esculpida em alto-relevo: um homem vestido de guerreiro agarrava um prisioneiro pelos cabelos e batia em sua cabeça com um bastão, lembrando um sacrifício humano. Após analisar os fragmentos do esqueleto, o antropólogo John Verano, da Smithsonian Institution, de Washington, calculou que o homem deveria ter 1,52 m de altura e cerca de 30 anos quando morreu - não se tem como saber de quê. Nas duas pontas do caixão havia ossos de mulheres, certamente concubinas do lorde. Do lado direito, ossos de um homem e, com ele, os ossos de um cão. Ao que tudo indica, deve ter sido um aprendiz de guerreiro e teria cerca de 40 anos ao morrer.
À esquerda o esqueleto de outro homem, também de 40 anos. Os escudos de cobre, adornos de cabeça e bastões de guerra a seu lado levaram os arqueólogos a concluir que se tratava de um guerreiro. Homens e mulheres provavelmente haviam sido sacrificados em honra ao morto. Se, de fato, os objetos encontrados no caixão foram usados pelo dono, é certo que ele foi um guerreiro. A tanga de ouro que pendia da parte de trás do cinto, o ornamento de cabeça em forma de crescente, o enfeite de nariz e os sinos também presos ao cinto eram vestimentas exclusivas de guerreiros.
No entanto, por se tratar de objetos trabalhados com esmero em ouro e prata, ele não poderia ter sido apenas um guerreiro, e sim um sacerdote guerreiro, o mesmo que presidia as cerimônias rituais em que prisioneiros de guerra eram decapitados em homenagem às divindades. Como o militarismo e a religião eram características inseparáveis da sociedade mochica, compreende-se por que sua arte é tão pródiga em cenas de guerra. As representações artísticas permitem deduzir que a função da guerra para eles resumia-se à captura de inimigos para sacrificá-los depois, cortando-lhes o pescoço.
Não há indícios de que os prisioneiros de guerra se transformassem em escravos e mesmo de que houvesse escravidão entre os mochicas. As pinturas mostram também que o sangue dos sacrificados era recolhido em recipientes e mostrado às pessoas ilustres - elas se distinguem nas cenas pela elegância das roupas. O chocalho de ouro que os arqueólogos encontraram no caixão é o mesmo que aparece preso à liteira do sacerdote guerreiro, como mostram as pinturas. Entre os objetos que a polícia encontrou na casado ladrão em Sipán, também estavam um chocalho de prata - igual ao de ouro achado junto ao lorde - , uma faca de ouro, braceletes, brincos e um ornamento de cabeça em forma decrescente.
Diante dessas evidências, os arqueólogos levantaram a hipótese de Sipán ter sido o local escolhido pelos mochicas para enterrar seus mortos ilustres. A certeza só virá á medida que as escavações prosseguirem. Quem sabe os pesquisadores possam descobrir também por que a partir do ano 700 da era cristã a civilização mochica entrou em declínio. Os historiadores acreditam que ela foi minada por progressivas invasões de povos vindos do sul. Seja como for, a descoberta de Sipán proporcionou aos pesquisadores a rara oportunidade de comparar as pinturas em cerâmicas que se encontram em museus e coleções particulares com as peças encontradas nas sepulturas e, a partir daí, reconstituir a vida dessa civilização pré-colombiana.
A arte mochica no Brasil
Nos últimos vinte anos, a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, recolheu uma formidável documentação sobre a arte mochica. Ao todo são 125 mil fotografias de peças de cerâmica, cobre, ouro, prata e pedras preciosas, que se encontram espalhadas pelo mundo. Em seus desenhos estão retratados a arquitetura, os instrumentos, as cerimônias, as divindades e atividades - como a caça, a tecelagem e os combates - a que se dedicaram os mochicas. Com base nessas fotos, os arqueólogos peruanos puderam comparar os valiosos objetos encontrados na tumba do Lorde de Sipán e descobrir quem ele era naquela hierarquizada sociedade. No Brasil os exemplares do artesanato mochica - basicamente vasilhames de cerâmica - são muito representativos.
A maior coleção está no Museu Paulista da USP - o Museu do Ipiranga, como é mais conhecido. São 33 peças, doadas à instituição pelo arqueólogo alemão Max Uhle, em 1912. O museu costuma realizar mostras periódicas dessa e de outras coleções de artesanato pré-colombiano. Bem mais modesta, mas não menos valiosa, é a coleção em exposição permanente no Museu de Arqueologia da USP, na Cidade Universitária. São apenas sete vasos- um deles é pintado e os outros são moldados como figuras humanas, de animais e vegetais - , e neles estão representadas a habilidade e delicadeza da arte mochica.