sábado, 21 de abril de 2018

Luzia Homem - Parte 4 de 5 - Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 4 de 5 -  Domingos Olímpio



- Quero muito bem a ele... Sa Luzia também gosta dele? Luzia não respondeu; e a menina 
continuou: 

- Todo o mundo gosta daquele homem...

- Mas... a que vem isso?

- Eu lhe conto. Sa Luzia sabe onde é a casa de Chica Seridó? Pois fui lá, outro dia, buscar 
um remédio, que a mamãe mandou pedir e estava esperando entretida com a Gabrina, 
aquela mocinha bonita, que também gosta de seu Alexandre, quando ela me largou de... 


repente, e foi para o terreiro conversar com uma pessoa. Espiei para fora e fiquei tremendo 
de medo: era o Crapiúna, aquele soldado que de uma feita, quase se pegou com seu 
Alexandre... Fiquei quieta e, então, ouvi ele falar muito zangado: ralhava tanto, que fiquei 
com pena de Gabrina. Ele dizia: - Você não tem palavra. Ficou de ir lá em casa e me 
enganou! Ela respondeu por aqui assim: - A Chica estava com os olhos em riba de mim, que 
não me deixou um instante. - Você está mentindo, menina - tornou ele a dizer-lhe com 
muita má-criação. - Nem por eu lhe dar o par de brincos de ouro e os cortes de chita... - Mas 
eu não fiz o que você disse? - respondeu a rapariga, também com maus modos. Não 
fui jurar em casa do Delegado? ...

- Vamos. Conte-me tudo - irrompeu Luzia, ansiosa e alvorotada, devorando a menina com 
o olhar em fogo. - Vamos, diga a verdade.

- Não estou mentindo - balbuciou, Quinotinha, espavorida pelo gesto ardente da mestra - 
Creia-me por esta luz...

- Não tenho receio. É para bem dele, do pobre, que está penando inocente...

- Espere. Deixe-me lembrar. Ela disse mais: - "Que queria você, seu Crapiúna?" - "O que, 
me prometeu... Olha, diabinho, tu me tens custado os olhos da cara e se não fosse porque..." 
- Aqui, ela fastou pra trás, e disse-lhe: - "Se é por causa da porqueira destes brincos e 
daqueles molambos, pode levar tudo. Basta a dor de consciência de ter alevantado um 
falso... Ainda quer mais?!..." - Crapiúna, estava-se vendo, ficou fulo de raiva e em termos 
de arremeter para ela...

- Está bem certa do que dizes, Quinotinha?!...

- Eu? Como em Deus estar no céu... Por sinal que ele abandonou, quando ela disse que, se 
duvidasse, não se dava de contar tudo; que mentira por pique, para se vingar de 
Alexandre... que não fazia caso dela... O soldado ficou calado um instantinho e pediu-lhe 
que não fosse mazinha, que se falasse, seria presa com ele, desgraçando-se os dois para 
fazerem benefício a um homem que, além de tudo, a desprezava por causa de outra mulher. 
Se ficasse quieta e fizesse o que ele queria, poderiam viver, sem ninguém desconfiar, como 
Deus com os anjos. - "Olhe - disse ele por fim - se eu fosse malvado, poderia encalacrá-la... 
Mas não faço isso, porque você é o meu único amor da minha alma." Continuaram a 
conversar, mas tão baixinho, que não pude ouvir, até que a Chica Seridó gritou lá de dentro 
por ela... Então, eu disse comigo: Que gente malvada! Vou contar tudo a sa Luzia. Não 
contei logo, porque tive medo que ralhasse comigo por eu andar escutando conversa de 
gente grande...

- Ralhar contigo?!... Pois se foi Deus quem te colocou ali para seres testemunha da 
verdade... Fizeste muito bem, Quinotinha; assim é que faz uma menina bem-ensinada. Nem 
podes imaginar o bem que fazes a duas criaturas: a ele e a mim. A mim, que libertaste de um 
grande peso que me esmagalhava o coração.

E enlaçou a menina nos braços robustos; conchegou-a ao peito, convulso, que arfava, com 
alvoroço, desesperadamente beijou-a em febril transporte de ternura, como beijam aos filhos 
as mães amorosas.

- Agora - disse a menina, libertando-se dos afagos de Luzia - deixe-me ir que é tarde... Não 


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diga nada., nem que lhe contei...

- Vai descansada...

Quinotinha partiu a correr, e Luzia continuou o caminho para casa.

A lucidez da narrativa, duma segurança minuciosa, atestava a sinceridade da menina. 
Alexandre, pensava Luzia radiante, está salvo, salvo da infâmia e reabilitado para ela, por 
sua vez libertada das sombras cruéis da suspeita. Ele ressuscitara, e, da prisão nojenta, 
ascendia para o céu das suas aspirações, aureolado pelo sofrimento. E ela abençoava a voz 
demoníaca, aquela voz sedutora e íntima, que lhe falava com a sonoridade mística de um 
canto angelical, e a impelia docemente para o mártir, repetindo: "Vai, curva-te como escrava 
e culpada, unge as suas mãos generosas com as tuas lágrimas, porque o amas."

Se Alexandre a amasse, ele perdoar-lhe-ia; ela era, agora, culpada de haver desconfiado, por 
mesquinho impulso de despeito, por ter recusado ao pobre a consolação da sua presença, a 
caridosa visita diária à prisão, e por não resistir, à crueldade pueril de devolver-lhe as pobres 
flores murchas, símbolo triste de afetos mortos.





XX





Teresinha conversava com a tia Zefinha, numa rútila impaciência de olhos alegres, quando 
Luzia chegou a casa. Falava de Alexandre, amaldiçoando a justiça que o conservava na 
cadeia, havia mais de um mês, por causa de imputes feitos pelo hediondo soldado, de 
parceria com a Gabrina, doidivanas, positivamente, quase a despencar-se no mundo, 
arrastada pela falta de juizo e os péssimos exemplos, porque a morada da Chica Seridó era 
lugar de reunião de gente mal reputada, fregueses de suas mezinhas e feitiçarias.

O semblante claro e, claramente, expansivo de Luzia, denunciou-lhe a vontade que lhe 
alvoroçava o coracão.

- Como vem mudada! - exclamou Teresinha - Você parece que viu passarinho verde?

- É porque tenho de quê, respondeu Luzia, beijando as mãos descarnadas da mãe.

- Vamos lá. Conte-nos isso, que também tenho boas novidades.

- Já sei quem é o ladrão...

- Ora! Isso é velho para mim, como a serra dos Cocos.

- Sabia então?...


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- Olé! Não sabia, mas suspeitava.

- Pois eu sei. Foi mesmo uma coisa mandada por Deus.

E repetiu, sem reservas, a revelação de Quinotinha.

- Franqueza por franqueza - disse - Teresinha, resoluta - Eu também tenho muito que dizer, 
coisas que me andam embuchando há muitos dias. Primeiro que tudo, fiquem sabendo: 
Crapiúna está preso...

- Preso?!... - exclamaram, a um tempo, Luzia e a velha. 

- A onça deste pasto está muito bem guardada no xilindró... E quem conseguiu isso?

- Esta sua criada - afirmou Teresinha, com ênfase, batendo no peito, com largo gesto de 
contentamento.

Contou, então, como descobrira o esconderijo do dinheiro, as aflições suportadas com 
heroísmos fanfarroneou a coragem, o sangue frio, apesar de fraca, não era mofina, e, mais 
não morrera de terror quando se viu a sós com o malfazejo soldado, e passear a narrar a 
entrevista com o sargento Carneviva.

- Que quer você? - disse ele, apurado, riscando com proficiência grave, mapas e tabelas.

- Vim aqui dar parte... - respondeu, perturbada pela severidade do homem de má cara, 
muito barbada e muito fechada.

- Anda depressa, que estou muito ocupado. Comando o destacamento na ausência do 
tenente, que foi fazer uma diligência, e não tenho tempo para trelas.

Teresinha, muito sobressaltada, denunciou-lhe a cena do jogo em casa de Belota e a briga de 
Crapiúna com os paisanos.

- Bem desconfiava eu que aqueles malandros tinham casa de jogo na Gangorra - rebentou o 
sargento, com cólera, cheio de censura disciplinar - Deixa estar essa corja que os arranjarei... 
É só isso?

Logo que a moça começou a narrar o episódio de ter descoberto o dinheiro no quintalzinho 
do seu quarto, o sargento, em crescente interesse, largou a régua, tirou cautelosamente o 
tira-linhas da boca, onde o sustinha atravessado, e pejado de tinta, e cravou indagadores 
olhos na delatora.

- Como é isso? - inquiriu, com surpresa - Então aquele homem que está preso?...

- Inocente, meu senhor; limpo como saiu da barriga da mãe...

- Dele - atalhou, rapidamente, Carneviva, que não queria dúvidas - Veja o que está dizendo 
mulher...



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- Vossa senhoria, se quiser, pode ver com os seus próprios olhos... Depois, eu não tenho 
necessidade de mentir...

- Lá isso é história. De enredos de mulheres estou farto. Vocês, quando têm raiva dos 
soldados inventam e mentem como deslambidas. Enfim, vou indagar o caso da jogatina. 
Oh! Cabecinha!...

- Pronto, seu cadete.

- Que é do Crapiúna?

- Está na guarda da cadeia.

- E o Belota?

- Também.

- Mande rendê-los e que venham já à minha presença.

Cabecinha partiu, e Teresinha fez um movimento para retirar-se e evitar a acareação com os 
soldados.

- Não senhora - ordenou Carneviva - Fique para deslindarmos já esse negócio.

- Poucos minutos decorreram. Crapiúna entrou primeiro, e não pôde disfarçar a surpresa de 
encontrar, na sala do sargento, a moça, transida de susto pelo vexame. Belota chegou, 
depois, com ares humildes, tímidos.

- Que história foi essa - perguntou-lhe Carneviva - do jogo em sua casa? Já lhe não havia 
dito que, à primeira denúncia, você, seu Belota, ajustava comigo novos e velhos?

- Saberá vossa senhoria - balbuciou Belota - que é menas verdade... Até tenho andado 
doente...

- Qual doente!... Você quando faz maroteira, dá-lhe logo na fraqueza...

- Por Deus, seu cadete...

- Vamos lá. Quero saber tudo... E, se mentir, arranco-lhe com a chibata, o coiro do lombo...

- Vossa senhoria me perdoe... Foi, foi... uma brincadeira... a... a leite de pato...

- Bom. E o senhor? - perguntou o sargento, voltando-se para Crapiúna, que dardejava sobre 
Teresinha, olhos ferozes.

- Eu não sei nada respondeu ele, secamente, e sem hesitação. 

- Ah!... Então você não esteve jogando em casa de Belo a com os vagabundos Zoião, 
Candinho e Vicente da Henriqueta?



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- Vossa senhoria não ande atrás de histórias desta mulher, que mente como uma cadela 
vadia.

- Então o senhor - atalhou Teresinha, pulando, irritada pela injúria - não esteve quase se 
pegando com os outros? Não foi aqui o seu Belota, quem apartou a briga!?... Não é verdade 
que, quando eles foram embora, saltou para o meu quintal paredes-meias?...

O sargento impôs-lhe silêncio, com um gesto rápido e enérgico. Crapiúna empalideceu, e 
Belota, espantado, sem atinar com a significação da palavra da moça, interrogava o 
camarada com o olhar.

- Vamos seu Belota - ordenou o sargento - Bote para fora o que sabe. Vamos que temos 
panos para mangas...

Belota, sempre cheio da intransigência das ameaças do sargento, acobardou-se e contou o 
caso, amenizando-o com disparatadas justificativas. Fora uma brincadeira de amigo, uma 
coisa à-toa, que terminara num bate-boca.

- E aqui este mestre?

Crapiúna olhava, de soslaio, para Belota.

- Saberá vossa senhoria - respondeu este - que o seu Crapiúna não estava...

- Você está mentindo seu diabo...

- Quero dizer... sim senhor... Não estava não, senhor...

- Veja bem o que está dizendo.

- Não estava no... no... princípio: chegou; quase no fim... Mas, juro que não vi ele saltar o 
muro...

- Bom. Chegou no fim, hem!?

- É menas verdade - interrompeu Crapiúna, num ímpeto de audácia insolente - Este homem 
diz isto para se desenrascar.

- Não negue, seu Crapiúna - retorquiu Belota - O senhor estava. Eu, mesmo contra mim, 
falo a verdade como homem. Se porém, eu disser que vi você saltar o muro, minto porque 
deixei o senhor sozinho em minha casa, e fui ao quartel.

- E você, seu Crapiúna, o que foi fazer ao quintal vizinho?...

- Já disse a vossa senhoria que é mentira dessa língua danada.

- Também será mentira que tirou debaixo de um caixão, uma bolsa de coiro de onça?...

Crapiúna ficou lívido, e atirou, desesperadamente, um gesto de ameaça a Teresinha.



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- A bolsa? - exclamou ele, maquinalmente, tomado de pasmo.

- Sim, senhor - afirmou o sargento, com ironia. - A bolsa onde guarda o seu dinheiro, a sua 
botija encantada.

Traído pela inesperada revelação e irritado pelos contínuos gestos afirmativos de Teresinha, 
Crapiúna, a custo, sofreava os estos da cólera, que lhe queimava o coração.

Eu sei lá dessa história de bolsas... - respondeu, aparentando serenidade - É verdade que 
cheguei no fim do divertimento; tive uma turra com o Zoião, uma bobage... Mas...

Carneviva levou o apito à boca, e tirou dele três trilos agudos e violentos. Apareceram 
imediatamente, quatro soldados.

- Bem. Vamos pôr isso em pratos limpos. Ah! Eu bem suspeitava que havia falcatrua... 
Todos os dias uma queixa. Furtinho para aqui, gatunagem para acolá... Cambada que é a 
vergonha da farda!... Corja de ordinários...

Depois, pondo à cinta uma garrucha, ordenou aos soldados:

- Vamos! Acompanhem-me com estes dois homens: desarmem a esses coisas ruins.

À aproximação dos camaradas, Crapiúna recuou, e levou imediatamente a mão ao sabre: 
mas, o sargento lho arrebatou com um movimento rápido, com um movimento enérgico.

- Olha lá!... Não se engrace comigo, seu Crapiúna... Observou ele - Vamos e muito 
direitinho... Comigo não se brinca, vocês sabem...

Partiram em escolta, acompanhados por magotes de pessoas, no trajeto pela rua. Chegando 
ao quarto de Teresinha, Carneviva ordenou que se afastassem, e entrou com os soldados 
ficando à porta uma sentinela. Nessa ocasião, chegou o subdelegado, atraído pelo 
ajuntamento e informado da ocorrência, passou a dar a busca.

A bolsa foi retirada debaixo do caixão e aberta. Havia nela dinheiro, jóias e alguns 
fragmentos de papel-escrito, versos de canções populares e o rascunho de uma carta a Luzia.

O subdelegado inquiriu, então, Crapiúna: - De quem é esta bolsa?

- Não sei - respondeu o soldado, impávido de furor. - Pergunte a essa mulher que é a dona 
da casa...

Os camaradas presentes afirmaram que a bolsa era muito conhecida; pertencia a Crapiúna.

- Bem - concluiu a autoridade - Vou levar o fato ao conhecimento do delegado, a quem 
está entregue o inquérito, para lavrar o auto. O senhor sargento terá a bondade de mandar 
recolher os homens incomunicáveis, e comparecer com as testemunhas na delegacia.

Luzia e a mãe ouviram a narrativa, num enlevo de alegria, num enlevo de pasmo, com as 
almas nos olhos, como se lhes revelassem casos fabulosos, casos sobre-humanos. Era 
possível que Teresinha houvesse realizado tão assombrosa façanha?


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- Vocês não imaginam - continuou ela - como tinha povo na rua. Parecia procissão, quando 
levaram os soldados para o xadrez. E a cara do Crapiúna?... Ficou verde, amarelo, 
encarnado como lama pimenta; botava-me uns olhos ensanguentados que me varavam... Eu, 
que vi o bicho bem seguro, ferrei também os olhos nele como quem diz - arre diabo!... 
Quando passou por mim, resmungou: - "Deixa estar sua aquela, que me pagará... Diz à tua 
pareceira Luzia-Homem, que não hei de ficar toda a vida preso..." Senti um frio no coração, 
quando o malvado disse isto.

- E agora - perguntou Luzia - vão soltar já Alexandre?

- Sei lá... Disserarn-me que comparecesse amanhã na delegacia para a trapalhada de 
depoimentos e não sei que mais.

- Ah! Teresinha - gritou Luzia, com um abraço veemente, radiante - Você é um anjo, um 
anjo!

- Que anjo, que nada!... Sabe o que sou? Mulher e bem mulher, de cabelo na venta. 
Ninguém mais faz, que não pague com língua de palmo. Chegou o meu dia... com dois 
proveitos num saco: Crapiúna preso e Alexandre limpo de pena e culpa... Foi uma sorte! 
Viva o glorioso Santo Antônio! Ah!... se eu tivesse foguetes! Xii... tô... tó!... Viva Santo 
Antônio!... Vivô... Vivô!...

E, lestes, escarnicando do celerado, saciada de vingança, fazendo piruetas que lhe agitavam 
os seios, contorciam os quadris e enrolavam, em espirais, as saias em torno do corpo esbelto, 
desnudando as pernas ágeis, toda ela palpitando, toda ela a se mexer em requebros sensuais 
de dança, com sapateados frenéticos, e vastas chibanças de triunfo, e rindo e cantando, 
numa alegria louca, a sua figurinha escanzelada de retorta providencial se destacava, 
evidente, no fundo iluminado pelo rubro disco da luz cheia, a surgir, lentamente, em 
magnífica ascensão.





XXI



Propagou-se, rapidamente, a notícia da prisão de Crapiúna, como verdadeiro autor do roubo 
do armazém da Comissão de socorros. Não havia dúvida. Um conjunto de provas 
esmagadoras: a bolsa reconhecida por todos os camaradas; as declarações de Belota que, 
insistindo em ignorar o fato, confessava causar-lhe admiração o dispor ele de tanto dinheiro 
para perder ao jogo grandes somas e fazer prodigalidades com raparigas e pagodes; o 
depoimento de Teresinha, confirmado, de uma irrefutabilidade minuciosa; o rascunho da 
carta ameaçadora, entregue por Luzia ao delegado, no dia da prisão de Alexandre, e os 
testemunhos de Chica Seridó e Gabrina, encerraram o soldado numa culpa evidente, 
indiscutível.

Seridó confessou que nutrira sempre instintiva repugnância ao soldado, por seus modos 


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atrevidos com as mulheres, muita falta de respeito, caçoadas inconvenientes; nunca, porém, 
lhe passara pela cabeça que ele fosse capaz de tão feia ação, como essa de levantar um 
impute que clamava aos céus e - o que lhe parecia ainda mais grave - reduzir uma rapariga 
inocente e bestalhona, como Gabrina, para ajudá-lo na obra nefanda de culpar um inocente.

- A pobrezinha fez isso - dizia ela ao delegado, na sala de audiência da câmara municipal, 
apinhada de curiosos - sem maldade; e (para que hei de estar com histórias mal contadas?) 
porque andava inclinada para seu Alexandre, depois dos benefícios que dele recebeu. Ponha 
o caso em si, meu senhor. Vossa senhoria sabe que mulher, quando vira a cabeça, é capaz de 
tudo. Quem quer bem não toma conselhos; não enxerga desgraças, nem se importa com 
perigos. Ela tinha no coração aquele amor encoberto e não me disse nada. Esta bichinha que 
aqui vê, esta não-sei-que-diga disfarçou tão bem que eu, macaca velha, nada maldei. Metia a 
mão no fogo por ela, creia-me... Aquele malvado homem, percebendo que a pobre estava 
enciumada, seduziu-a, com promessas de mimos, a tomar uma vingança do moço. Eu sabia 
que seu Crapiúna gostava de Luzia-Homem, tanto assim que, uma noite, me pediu para ir 
fazer uma reza, na casa dela para abrandar-lhe o coração. Fui com ele e mais o seu Belota, 
muito contra a minha vontade; mas (para que hei de negar?) fui e não pudemos fazer nada, 
porque estiveram acordadas até fora de horas. Saberá vossa senhoria que sou mulher de 
propósito; mesmo contra mim, falo a verdade. Fui fazer a reza, mas não há mal nisso. É com 
as minhas orações e mezinhas que arranjo o bocado para a boca, sem ser pesada a ninguém, 
Deus louvado.

- Que oração forte era essa? - perguntou-lhe o Promotor.

- Se eu disser sem ser rezando, mesmo de verdade e com fé, ela perde a virtude.

- E acredita nela?

- Ah! seu doutô, queria ter de anjos para acompanharem minha alma, as pessoas 
beneficiadas por ela. Não foi uma nem duas... Muita senhora dona de família e 
consideração...

Enquanto a Seridó falava, Gabrina, de pé, ao lado dela, cravava os olhos sombrios na 
fímbria do casaco de cassa, cujas rendas enrolava e destorcia maquinalmente, entre os dedos 
hirtos. Os músculos do seu rosto, lindamente oval e duma cor lindamente morena, 
emoldurados em cabelos negros e crespos, não traíam abalos violentos: estavam imóveis, e 
apenas se percebia pelas narinas dilatadas e palpitantes, a sua respiração entrecortada de 
suspiros abafados.

Contemplavam todos a mocinha de formas flexíveis e delicadas, apenas livres das linhas 
incompletas da infância e desdobrando-se em contornos graciosos; e, lastimando achar-se 
ela complicada no crime, todos a envolviam numa atmosfera de simpatia que os impulsos 
passionais despertam.

Por fim, perguntou-lhe o Promotor:

- É verdade o que diz esta senhora?

- É, sim senhor - respondeu com voz que mais parecia um sopro.



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- Foi Crapiúna quem lhe insinuou esta calúnia?

- Foi, sim senhor...

- Por que não resistiu?

Gabrina ficou calada.

- A senhora amava Alexandre?

Como se o coração, muito tímido, lhe despejasse no seio a repoisada torrente de lágrimas, 
ela prorrompeu em convulso pranto, escondendo o rosto no seio da Seridó, que a amparou, 
que a enlaçou nos braços, com maternal carícia.

- Bem, bem - concluiu o Promotor - Não a martirizarei mais. Sossegue...

E, voltando-se ao Delegado, disse-lhe, em voz baixa:

- Realizaram-se as minhas previsões. Temos a eterna história, um drama de amor...

Nesse momento, entrou Alexandre no recinto, fechado por uma balaustrada, e destinado 
aos jurados. Seu olhar aceso de febre, luzindo na sombra das pálpebras roixeadas, fixou-se 
piedoso na febril rapariga; e, no rosto macilento, assomou um ligeiro sorriso amargurado.

- Aproxime-se - ordenou o Delegado.

Ele deu alguns passos vacilantes para a frente, perturbado pelas mal contidas exclamações 
de dó, que chegavam aos seus ouvidos sequiosos, naquele instante, do caricioso eco de 
vozes amigas. Os que ali estavam eram todos curiosos, enviscados pelo escândalo, ou 
indiferentes e desocupados, procurando diversão no desenlace do inquérito policial, à 
exceção de Teresinha, que o contemplava silenciosa, sentada a um canto.

Muitos comentavam os estragos que a infecta enxovia produzira na saúde do moço.

- Senhor Alexandre - disse-lhe o Promotor, a voz sonora e grave - um conjunto, de indícios, 
de elementos de prova bem acentuados e persuasivos, determinou o vexame que sofreu. Ia 
sendo vítima de um desses erros que, infelizmente, não são raros na história dos tribunais e 
que, por lamentável lacuna, não encontram nas leis, meios completos de reparação. Órgão da 
justiça, lamento, sinceramente, fosse recolhido por infundadas suspeitas de tão grave 
imputação; teve, porém, a ventura de sair ileso dessa provacão suportada com heroísmo. O 
verdadeiro criminoso está descoberto. Nada inipede, agora, que a justiça proclame a sua 
honra restaurada com a liberdade que, neste momento, lhe é concedida.

Perpassou pelo ambiente, um sussurro de aprovação unânime, porque, desmascarado o ardil 
do soldado, ninguém nutria dúvidas sobre a autoria do crime.

Não era possível que um moço bem procedido e de abonados precedentes fosse capaz de 
tão vil ação. Por outro lado, todos confessavam, então, justificados suspeitas contra 
Crapiúna, quando não fosse por qualquer motivo definido, nela má cara do homem, seus 
costumes dissolutos, ou por mero palpite. Não fora, entretanto, o feliz acaso de surpreender 


[Linha 4650 de 6979 - Parte 4 de 5]


Teresinha o esconderijo do dinheiro, ou, como ela afirmava sinceramente, a intervenção do 
glorioso Santo Antônio, o inocente seria denunciado, processado e condenado. E toda 
aquela gente aprovaria, com igual entusiasmo, a justiça inexorável.

O Delegado, voltou-se para o Carcereiro e, indicando-lhe a Seridó e Gabrina, ordenou:

- Recolha aquelas mulheres.

- O quê?!... - exclamou a Seridó apavorada - Pois eu sou presa por falar a verdade? Que 
culpa tenho, seu Delegado, do malefício dos outros? Eu, que não matei, não roubei, que 
nunca fiz, mal a ninguém... que não tenho rabo de palha!...

Gabrina olhava em torno espantada, como se despertasse atordoada pelo nevoeiro de mau 
sonho. Estancaram-se-lhe as lágrimas e sucederam-lhes violentos soluços.

Quando o Carcereiro se aproximou, e a intimou com a frieza fulminante do ofício, dizendo: 
"Vamos", acometeu-a o terror da prisão. E enquanto a Seridó implorava piedade, 
justificando-se com protestos de inocência, lamentos e súplicas, ela, com desenvoltura de 
criança que se refugia no seio paterno, agarrou-se a Alexandre.

- Perdoe-me, seu Alexandre - suplicava, com gritos vibrantes - Não deixe que me levem 
presa! Que vergonha!... Não, não é possível!... Peça por mim; valha-me pelo amor de 
Deus!... Ai!... ai!... que eu morro!... Quem me acode!... Minha gente, tenha pena de mim, de 
uma pobre filha sem mãe?... Ah! seu Alexandre da minha alma, pelo leite que mamou, peça 
por mim que lhe quero tanto bem... Valha-me, valha-me por tudo quanto há de mais 
sagrado. Peço por alma de sua mãezinha, pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo... 
Sim, por tudo, pela luz dos seus olhos, pela vida de... de... Luzia!... 

Esgotadas, nesse esforço sobre-humano, as derradeiras energias, a pobre inteiriçou-se; seus 
braços froixos penderam dos ombros de Alexandre; a cabeça, escondida nos cabelos 
desgrenhados, inclinou-se sobre o seio e ela caiu ernborcada, como um corpo desarticulado 
e morto, aos pés do moço, transido de espanto e piedade.

Acercaram-se da mísera algumas mulheres e a Seridó, que pedia um caneco dágua, um 
capucho de algodão queimado, e a esfregava, com força, sobre o peito.

Alexandre dirigiu-se ao Promotor:

- Se lhe mereço alguma coisa, seu, doutô, tenha compaixão daquela pobre. Ela não soube o 
que fez... É quase uma criança...

- Tem razão - observou o Promotor, convindo docemente - É possível evitar... Demais seria 
uma violência inútil.





XXII



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Para se arrancar à comoção forte daquela cena que o amolecia, e apertava o seu tão chupado 
organismo, Alexandre deixou o salão das audiências, seguindo-o, de perto, Teresinha, muito 
zangada pelo ato de generosidade que ele praticara em favor de Gabrina.

- Com aquela carinha de enfinta, - murmurava ela - de alfenim, que com qualquer coisa se 
derrete, não me engano. É muito mazinha de bofes. Com aquela parte de gostar de você, 
não se lhe dava de ser causa do muito que penou na cadeia. O amor deu-lhe pra maldade. 
Era bem-feito que ela fosse gemer e chorar no xadrez para saber se é bom levantar falso 
testemunho aos outros. Não há nada melhor que a gente ser fingida: faz quanta 
perversidade há e no fim de contas, basta se derreter em choro e ter um vágado para ser 
perdoada. Eu, não me importa de dizerem que tenho más entranhas. Quem me fizer paga, 
tão certo como dois e dois serem quatro. E então a Chica Seridó? Como ficou piedosa e 
inocente, ela que é a alma danada de tudo... Aquilo tem mais artes e ronhas que diabos nas 
profundas do inferno... Fosse comigo, ficavam as duas ensinadas para toda a vida.

Alexandre não se justificou. Continuaram a caminhar: ele silencioso, ela resmoneando a 
censura. Quase ao pé do armazém da Comissão, ele perguntou, inesperadamente:

- E Luzia?

- Foi trabalhar - respondeu Teresinha, amuada.

- Por que não veio com você?

- Porque teve vergonha de se expor diante de tanta gente. Disse-me que estava alcançado o 
que desejava: a sua liberdade; nada mais tinha que fazer. Não pregou olhos a noite inteira, 
esperando que amanhecesse o dia de hoje. A tia Zefinha não cessava de agradecer a Deus. 
Se visse como a pobre alminha estava contente... Nem parecia a enferma que conhecemos, 
engelhada, encolhida, cortada de dores...

- Coitadinha! E... Luzia? Ainda está zangada comigo?

- Que zangada!... Aquilo foi um repiquete de ciúmes. Quis, à fina força, fingir de coração 
duro e forte, mas desenganou-se. Uma penca de corações não vale um grão de milho. 
Deu-lhe a paixão na fraqueza, e aquela criatura, forte como um boi, entrou a fazer coisas de 
criança: ficou logo meia lesa e capionga; deu-lhe para maginar, olhando para o tempo e 
querendo sustentar capricho, mesmo depois de haver sabido, pela Quinotinha, do aleive da 
Gabrina.

- E... depois?

- Depois?... Entrou a repetir que nada tinha feito em seu favor, que a mim, somente a mim, 
se devia tudo, quando foi ela que me deu o dinheiro para a Rosa Veado rezar o respônsio.

- Que pretende ela fazer agora?

- Diz que espera poder ir, em breve, para as praias, logo que a mãe possa viajar.



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- Sempre essa idéia.

- Teimosa é ela. Isso é verdade.

- Sabe, Teresinha? Ainda estou meio encandeado e parece um sonho estar livre daquele 
inferno. Toda essa gente a andar aqui pela rua, a me olhar espantada, causa-me tonturas. 
Como que me falta o chão debaixo dos pés.

- Isso passará...

- Tenho, aqui no nariz, o fedor da cadeia, a inhaca dos presos. Que horror! Cem anos que eu 
viva, nunca esquecerei esses dias de martírio.

Alexandre falava lentamente, falava fatigado, com profunda impressão de mágoa no rosto 
macilento, que a barba crescida e inculta tornava ainda mais triste. Queixou-se de dores ao 
lado direito, debaixo da costela mindinha, de falta de ar e de uma tosse seca que o acometia 
quando respirava, mesmo a curto fólego.

- Aquela cadeia - dizia ele - matou-me. Nunca mais hei de ter saúde.

A Comissão de socorros o recebeu com demonstração de compassivo afeto, lamentando os 
vexames sofridos pela infame imputação. Foi-lhe pago o ordenado integral: e, como 
reparação, teve acesso para o posto de administrador dos depósitos de víveres, percebendo, 
além da ração, sessenta mil-réis em dinheiro, uma riqueza naqueles apertados tempos.

Teresinha comentava o fato, os males que vêm para bem, e, logo, achou muito justo esse 
procedimento da Comissão; e, todavia, observava que o dinheiro lhe não pagaria as ruínas 
da saúde, os incômodos e, mais que tudo, a vergonha de ser apontado como ladrão, como 
um infame que havia roubado o de-comer dos pobres famintos, para saciar vícios abjetos, 
tudo por causa de suspeitas que ela, mulher ignorante, mal sabendo ler por cima e assinar o 
nome, repelira desde o primeiro momento, porque o coração lhe dizia que ele não tinha cara 
de se sujar com o alheio. Admirava como os homens da justiça, que sabiam ler em grandes 
livros de letras embaraçadas, homens de óculos, que sabem tudo, não tinham logo percebido 
que o criminoso não era outro senão Crapiúna. Quantos inocentes não estariam pagando 
culpas alheias por causa da cegueira da justiça! Quantos não ficam livres de pena e culpa, 
apesar de autores de crimes escandalosos, perpetrados perante Deus e o mundo, à luz do 
dia, como aquele nefasto Bentinho que matara Berto, como quem mata um cão, e apenas 
ficou recolhido alguns dias à sala livre, por ser capitão e filho do maioral da terra!

E suspirou entristecida, sucumbida à dolorosa recordação do bárbaro amante, arrastado pelo 
cavalo desembestado, deixando nos tocos, pedras e cardos, farrapos sangrentos do corpo 
esfacelado.

Aglomeravam-se retirantes à porta do armazém para verem Alexandre, cujo prestígio de 
mártir aumentava com as novas atribuições de administrador. Uns, sinceramente, 
lamentavam o fato; outros o adulavam com fingidas lamúrias, para serem preferidos na 
distribuição de rações bem medidas, com lavagem, como eles dizigm, porque outros 
empregados de coração duro mediam farinha e feijão sem caculo, rapando a boca do litro, 
poupando, como usurários, os dinheiros do Governo e o de-comer que a Rainhal mandara 
dar de esmola aos pobres.


[Linha 4800 de 6979 - Parte 4 de 5]



Alexandre procurou fugir à curiosidade da multidão, recolhendo-se ao fundo do armazém, 
onde ficou, apesar dos insistentes rogos de Teresinha para irem juntos à casa de Luzia, que 
estaria ansiosa por vê-lo; e, como ele recusasse obstinadamente, ela se despediu, enfadada, 
dizendo-lhe:

- Vou embora. Já que teima em não me acompanhar, irei sozinha. Direi a Luzia que você 
está doente e aparecerá amanhã. Não falte, não negue essa consolação àquela pobre criatura 
que, abaixo de Deus, só pensa em você, seu ingrato. Capricho não se fez só para mulheres.

- Pobre de mim.

- Pobre, não. Bata na boca. Diga rico, bem rico, porque uma prenda igual a ela só encontram 
os afortunados. Você fala de farto. Os homens todos são assim, cheios de luxos e desdéns 
quando são queridos. A demora é saberem que a gente gosta deles: começam logo a botar 
cafangas.

- Diga o que quiser, Teresinha. Está no seu direito. Não me zango com isso, nem exijo nada; 
basta o muito que tem feito por mim. Mas, não posso acreditar que Luzia me queira, como 
você diz. Que faria no lugar dela?

- Cada um sabe de si e Deus de todos. Eu faria o que sempre fiz, e por isso apanhei muito 
na minha ruim cabeça. Hoje, torço as orelhas, que não botam sangue. Ah! quem ama não 
tem tico de vergonha. É verdade que você, agora, está melhorado de sorte, quase rico...

- Prefiro o trabalho na Ladeira da Meruoca, às vantagens que tenho aqui.

- Deixe-se de luxos. Veja se é ou não como eu digo: este quer se meter no cafundó da serra, 
a outra só pensa em sumir-se para o lado das praias.

Histórias!... O que vocês querem sei eu... Deixa-me ir que é quase de noite... Até amanhã... 
Veja bem, seu Alexandre, o que me prometeu!... Até amanhã... Agora vá fazer feio 
comigo...





XXIII



Nunca estivera Luzia mais atenta, mais solícita na ocupação de diretora das meninas 
costureiras. Fingindo indiferença aos comentários e informações, resmungados de grupo em 
grupo, sobre o extraordinário caso do dia, às perguntas indiscretas, alheia aos gracejos 
inofensivos, levemente maliciosos, das companheiras de trabalho, respondia com meias 
palavras, com evasivas curtas de quem se não quer importunar de olhares impertinentes, de 
mexericos, de insinuações. Mas, as meninas mais taludes cochichavam a respeito da mestra; 
trocavam gracejos contemplando-a, de soslaio, muito espantadas de que ela não 
acompanhasse o contentamento dos amigos de Alexandre, que eram, então, muitos, quando 


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devera ser a mais interessada no desfecho do aleive urdido pelo celerado Crapiúna.

Notava-se-lhe, no entanto, certo cuidado excepcional no arrumo dos cabelos em grossas 
tranças luminosas, dum brilho escuro de cobras negras, a escolha uo vestido de chita 
cabocla, guarnecido de rendas, e as posturas faceiras, a disfarçarem o alvoroço do ecoração. 
Seus olhos, onde brilhavam lampejos fugaces, se fitavam, a curtos intervalos, na foz da larga 
estrada da cidade, e seus ouvidos, com avidez aguçado, colhiam frases soltas, palavras 
esparsas dos trabalhadores que chegavam, e traziam notícias últimas dos últimos 
acontecimentos.

- Estive na Casa da Câmara - dizia um - Tem gente que faz medo. A sala estava atopetada, 
e os soldados não deixavam mais entrar o povo que se espalhava por fora, pela escada do 
rendenguel abaixo, até à rua. Ouvi dizer que a Chica Seridó contou tudo...

- Eu vi o Crapiúna - afirmava outro - Estava como uma onça acuada. Os olhos pareciam 
duas brasas.

- Não viste a Gabrina? - inquiriu uma mulher - Pois eu tive pena dela. Fazia apertos no 
coração. Tão moça, tão bonitinha e faceira e implicada na história do roubo. Eu, Deus me 
livre de tal, se me visse em semelhante vergonheira, era capaz de morrer.

- Foi sempre uma desmiolada - acentuava uma velha - Conheço-a desde menina. Era um 
diabinho em figura de gente. Também a mãe, Deus perdoe os seus pecados, não se 
importava com ela; fazia-lhe todas as vontades... Sempre digo que essa criação d'agora não 
presta. Filhos muito senhores de si, por qualquer descuido, se desgarram. Os meus não 
punham pé em ramo verde. Muito amor, mas muito respeito e cabresto curto.

- Nestes tempos de miséria - ponderou um carpinteiro idoso - ninguém tem folga para 
cuidar da criação dos filhos. Vão se criando ao Deus-dará, como filhos de pobre.

- Os mais bem criados não estão livres de uma desgraça. Não valem cuidados, nem 
vigilâncias; a miséria entra pelas gretas das fechaduras, empesta o ar e tira o juizo.

- Quando saí - informou um recém-chegado - a Chica ainda estava falando. Ela, que tem 
partes com o demônio, estava se, vendo para explicar a embrulhada das sacas de feijão e de 
farinha recebidas de Crapiúna, os cortes de vestido e os brincos de oiro. Imaginem vocês 
que aquela inocente, passada pelos corrimboques, não maldou. Se eu fosse delegado, ela ia, 
mas era pra cadeia, para não se fazer de besta, pensando que os outros têm um tê na testa.

- Ladina como ela só... Quem a ouvir, não a leva presa.

Luzia não perdia uma sílaba do que se dizia. Colhia, aqui e ali, fragmentos de narrativas, 
observações, notícias incompletas, que devorava na ânsia de saber tudo, principalmente o 
que concernia a Gabrina e a Alexandre, de quem não haviam ainda falado. E Teresinha? 
Onde se metera? Por onde andava que não vinha para dar-lhe, como prometera, informações 
seguras, anunciar-lhe a feliz nova da libertação do preso, ou trazê-lo?

Correram horas de ansiedade, da pungente tortura de esperar, suportada de rosto sereno, 
onde não havia uma contração de impaciência.



[Linha 4900 de 6979 - Parte 4 de 5]


As sombras informes da penitenciária, das grandes paredes de andaimes complicados, se 
alastravam pela encosta do morro; o anilado perfil das serranias se esfumava em turva 
neblina de mormaço, e a viração, caída como um hálito de febre, revolvia o pó em torno das 
moitas mortas, rugia nas palhas dos alpendres e barracas, anunciando o pendor do sol para o 
ocaso flamejante.

Do alto do morro ela divisava a faixa de oiticicas seculares, marcando o contorno do leito 
do rio estanque, e a cidade, como um enorme crustáceo farto à sesta, as torres da matriz 
alvejando em plena luz, o vermelho, o vasto telhado da casa da Câmara, no qual, tanta vez, 
demorara o olhar saudoso e compadecido do homem querido, sofrendo, ali, aviltante prisão, 
e donde ela, enternecida, esperava, agora, ver alar-se o anjo da esperança triunfante. Mas, 
não partia de lá, nem o eco de uma voz de alvíssaras, nem um sinal auspicioso animava a 
paisagem, tocada de tons quentes de brasa, numa imobilidade de coisa morta, num silêncio 
triste de sítio desolado, quando ela desejava que a natureza, as coisas vivas, as coisas mortas 
participassem da sua ansiedade, do seu desejo quase raro, quase ignorado.

As meninas cosiam, diligentes, agrupadas em derredor da mestra, numa garrulice de 
passarada inquieta. Ranchos de operárias davam a última demão ao trabalho do dia; 
retirantes fatigados da derradeira caminhada se aliviavam das cargas de material, e os 
feitores contavam e notavam em cadernos apolegados, o pessoal que vinha chegando 
lentamente.

Apareceu por último, Raulino, rúbida figura de bretão, muito alto, muito magro, de 
músculos túmidos, os revoltos cabelos ruivos empoeirados, erguidos em trunfa sobre a 
fronte tostada.

- Então? - inquiriu Luzia, erguendo-se a encontrá-lo.

- Está solto. Não o vi, porque havia gente como formiga defronte do armazém. Teresinha 
saiu com ele. Estava desfigurado, dizem, como quem se levanta da cama de moléstia 
maligna. Credo! Parecia um defunto em pé.

- Não falou com ele?

- Fiz o possível; mas tinha pressa de chegar aqui antes do ponto.

- Está mesmo livre. Não é, seu Raulino?

- Tão livre como eu, que lhe estou falando. Também não foi sem tempo, porque se o pobre 
ficasse mais alguns dias na cadeia, talvez fosse desta para melhor. Saía dali para a cova.

- E agora?...

- Agora... é cuidar da saúde, e trabalhar. Pobre não tem direito de ficar doente. Barco 
parado não ganha frete...

- Acha que ficará bom?

- Alexandre é rijo e moço. Com alguns dias de ar livre, fica capaz de outra, do que Deus o 
livre. Aquilo é madeira de lei; o cupim da moléstia há de custar a roê-la.


[Linha 4950 de 6979 - Parte 4 de 5]



- Ainda bem.

Luzia voltou-se para as meninas, e ordenou-lhes que dobrassem as costuras, embora não 
soasse ainda a hora de terminar a tarefa. Pensou, então, em abandonar o trabalho, voar a 
casa, onde, talvez, a estivesse Alexandre esperando, ansioso. Mas, primeiro a obrigação, o 
cumprimento do dever remunerado pelo pão de cada dia. E ficou, aparentemente, calma, 
resignada à lentidão do tempo, porque o sol, que o governava, como que havia parado, 
desceu escandescido, na calma imensidade de oiro alastrado.

Dona Inacinha errava, rabujenta, entre as turmas de costureiras, resmoneando censuras 
graves, cheias de desgosto.

- Tudo muito mal feito, obra albardeira, mal-acabada e feita à pressa: não paga o pirão que 
custa.

- Vocês mesmo - continuava, com asperezas fanhosas de voz, traindo a irritarão incoerente 
de celibatária - não se emendam. O que lhes digo sobre o serviço entra por uma orelha, e sai 
pela outra. Estas costuras encardidas bem mostram que foram feitas por porcalhonas. Vejam 
as da Luzia. Dá gosto lidar com uma pessoa assim cuidadosa e cumpridora dos seus 
deveres. Os pospontos parecem feitos por máquina. Vocês me põem doida. Estou vendo a 
hora de perder a paciência e o juizo. Se vivem grazinando na conversa, em vez de olharem 
para o que estão fazendo.

E mais rubro se acendia, riscado de veiazinhas tensas, o grande nariz da beata, montado de 
grandes óculos cintilantes.

Quando chegou a turma de Luzia, estranhou que as peças costuradas já estivessem todas 
arrumadas em pilhas.

- Como? Tão cedo, e já acabada a tarefa?

- É que eu - observou Luzia, enleado - desejava sair hoje mais cedo...

Por que não me disse há mais tempo? Pode ir. Você merece contemplações. Dá conta do 
serviço, como uma moça de vergonha.

Acrescentou depois, sorrindo, com ironia, e cravando nela os pequeninos olhos maliciosos:

- Hoje é dia grande para você, sua sonsa. Já me disseram: sei tudo. Vá, ande, e seja bem 
sucedida. Como é para bom fim, não me importa de dar-lhe um suetozinho...

Luzia corou; agradeceu o favor, e partiu veloz, açoitada pela ventania morna e violenta que 
lhe relevava as formas, colando-lhe, como uma túnica de estátua, o vestido ao corpo, mal 
disfarçando os graciosos contornos, modelados por inspirado escopro.

O coração pulsou-lhe inquieto, ao avistar o tecto da casinha, vergando ao peso das telhas 
enegrecidas pelas intempéries, deslocadas pelos tufões. Naquele abrigo, onde gemia a mãe 
doente, e que ela amava como lugar do sofrimento dos fortes resignados e dos crentes; 
naquele sítio, onde Alexandre lhe propusera viverem eternamente juntos, ligados pelo 


[Linha 5000 de 6979 - Parte 4 de 5]


mesmo afeto espontâneo e sincero, e lhe dera os cravos vermelhos que lhe haviam envolvido 
o coração com raizes vigorosas, e o inebriaram com o seu perfume suavissimo; sob aquele 
tecto velho, a vacilar sobre as forquilhas de aroeira, passara dias de amargura, noites de 
vigília torturantes, e os momentos mais venturosos de sua existência humilde, ignorada; e 
ali, àquela hora melancólica, contrastando ccm as pompas deslumbrantes do crepúsculo, 
encontraria a satisfação dos seus supremos desejos.

Exausta da caminhada, estacou para tomar fôlego e consertar as vestes, como quem se 
aparelha para um lance de efeito. Prosseguiu, lívída e trêmula, com precauções de menina 
criminosa na iminência de castigo merecido.

A latada do alpendre estava deserta. Sobre a trempe fumegava uma grande panela de barro. 
Os utensílios domésticos estavam arrumados no jirau. O silêncio, um silêncio triste de 
abandono, era interrompido pelo queixume triste dos ganchos de ferro, donde pendia a 
rede, em que a mãe se baloiçava, defronte da porta do quarto escancarada.

- Que é isto? - perguntou-lhe a velha - Supus que viesses com Alexandre...

- Não - respondeu ela. - Vim do morro.

- Não foste à cadeia?

- Fui trabalhar.

- Que modos, filha? Esperava ver-te alegre e ditosa...

- Quem sou eu para merecer tanto?

- Tens alguma coisa? Estás cansada, não é?... Sempre digo que te matas sem proveito com 
os teus excessos de labutação.

- Teresinha não apareceu?

- Não.

- Sabe que Alexandre já está livre?

- Deus seja louvado!

- Agora vamos cuidar de nós - concluiu Luzia, atirando o manto branco sobre a corda 
atravessada ao canto do quarto. E, voltando ao alpendre, tratou do jantar da doente, que a 
seguia com os olhos carinhosos, olhos de mãe.

- Bem mereço este castigo. Sou eu a culpada. Abandonei-o por soberba, capricho... Teve 
razão. Não devia perguntar por mim - murmurou, enchendo de caldo a tígela. - Eu, no lugar 
dele, não viria atrás de uma ingrata feroz... Ah! os homens nada desculpam; não perdoam... 
São vingativos porque não são capazes de querer bem como nós, que, por eles, esquecemos 
tudo...

- Que tens, filha? - repetiu a velha, recebendo o caldo fumegante. - Choraste?


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- Não - respondeu ela, a voz salteada, comovida. - É a fumaça que me faz arder os olhos...

E sentou-se à soleira da porta, desmanchando, lentamente, as bastas tranças, do lustre fulvo 
da asa da caraúna, as tranças que vendera por causa dele, dessa criatura ingrata, que os seus 
olhos, flébeis de decepção e de saudade, procuram, em vão, topar, de súbito, surgindo onde 
o caminho torcia, encoberto de moitas mortas de mofumbas e juremas, a cujos galhos, 
desordenadamente hirtos, contorcidos, a ventania vultarna dava movimento, gestos de 
aflição, nuns silvos de estertor.





XXIV



Separando-se de Alexandre, Teresinha, começou de sofrer a extenuante reação do esforço 
empregado para salvá-lo. Essa generosa empresa, que a seqüestrara à influência deletéria dos 
hábitos de viciosa passiva, que lhe despertara afetos adormecidos no coração, encrostado ao 
atrito do infortúnio e lhe deparava a inefável satisfação de ser útil, fora, muitos dias, o pólo 
da gravitação do seu espírito. Nesse período de agitação do cérebro ocioso e vazio, ela só 
pensava na iniqüidade do constrangimento de um inocente, no martírio da enxovia imunda, 
na arrogância petulante de Crapiúna e no cruel insulto, que a chicoteara como um relho. 
Alcançado o anelo de justiça e vindita, parecia faltar-lhe a razão de viver. As pétalas de sua 
alma, sob um fino, um suave orvalho do bem, se contraíam tristonhas, como folhas que, 
saciadas de luz e oxigênio, se encolhem para adormecerem ao avizinhar da treva, e se 
expandem viçosas ao raiar da seguinte aurora. Ela, porém, se sentia sepultada em noite sem 
esperança de alvorecer, sem o consolo delicioso do sonho a doirar a ignomínia da realidade, 
onde imergira, como num tremedal de lama gulosa.

Restava, entretanto, o remate da obra meritória, a felicidade de Alexandre e Luzia; vê-los 
casados, muito amigos um do outro; e fruir o saboroso quinhão de ventura do lar 
abençoado. Mas, os dois pareciam separados pela teia de aranha de melindres fúteis ou 
amarrados ao poste de caprichos injustificáveis. Seria mais nobre, mais humano, se 
estreitarem em decisivo amplexo, como faria ela, sem ponderar conveniências, escrúpulos, 
circunstâncias, num arroubo de paixão vitoriosa.

As reservas de Luzia irritavam-na como estulta resistência. E murmurava, caminhando a 
esmo, injúrias contra ela, recriminações a Alexandre, um mazanzal, que ficava no armazém 
embiocado de fadiga, quando a liberdade e o amor deveriam restituir-lhe as forças, dar-lhe 
asas para voar, como um passarinho evadido para junto da criatura querida.

- Arre lá! - exclamava indignada - Que se arranjem, que se separem, cada um para o seu 
lado. Que me importa!... Bem-querer não é obrigado, nem eu tenho nada com isso. Eu me 
intrometi demais em negócios alheios... Chega a meter-me raiva tamanha cerimônia entre 
pobres diabos, que não têm onde caírem mortos, quanto mais vivos...

Considerava depois, que não mudaria o seu destino se eles fossem felizes. Ela seria 


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esquecida, porque o dia do benefício é véspera da ingratidão. Na embriaguez de gozos 
divinos, não se lembrariam dela que havia sofrido por eles; não teriam uma palavra de dó da 
pobre Teresinha, mulher à-toa, desprezada como vil trapo humano, atirado ao monturo dos 
resíduos sociais, vagabunda sem rumo, sem triste vintém para comprar um bocado, 
carecendo de tudo e não sabendo onde buscar cinco patacas do aluguel do quarto, 
abandonado, havia mais de mês.

A recordação dessa dívida, surgia a horrível idéia de ser forçada a volver ao poste da 
infâmia, onde passara noites acocorada à soleira da porta, fumando cigarros, mutuando 
gracejos torpes com as vizinhas; ou, solitária, bocejando, a lutar com o sono, aguardando o 
inesperado amante, que a provasse de alimento para o dia seguinte deixando-lhe o imundo 
bafio hircico de homem luxurioso, impregnado na sua pele. Vinha-lhe, então, invencível 
nojo à passividade abjeta de coisa que se vende, tábua de lavar roupa, como dissera 
Crapiúna; assaltava-a o terror de volver àquele lamaçal infecto, como se o contágio da 
pureza, o exemplo da honestidade impoluta e forte, em combate com a miséria, lhe 
houvessem infundido no coração, fechado aos afetos sãos e benfazejos, um nobre impulso 
de amor-próprio. Faltava-lhe, porém, coragem para resistir ao pendor criminoso, volver a 
trabalhar como as outras desgraçadas, nas obras da Comissão, carregar água, tijolos, areia. 
Que poderia fazer para ganhar, além da ração, algum dinheiro, uma criatura franzina, 
desacostumada a esforços musculares, e, por cúmulo de males, aberta dos peitos?...

- Como há de ser, Deus do céu? - exclamava, aflita - Como hei de viver agora, sozinha, 
sem parentes e aderentes nessa desgraceira!...

E seguia, lentamente, na direção da casa de Luzia, contornando os quintais e as casas 
extremas da cidade, para evitar o trajeto nas ruas cheias de gente, mendigos, enfermos e a 
praga de meninos esfomeados.

Na várzea, varada de trilhos claros que riscavam o chão negro, ela encontrou, àquela triste 
hora da tarde, magotes de retirantes, cobertos de pó, marchando em filas tortuosas, das 
quais, como de um rastilho de suplício marcado pelas vítimas, se destacavam individuos ou 
famílias, que paravam emaciados, rendidos de cansaço e se sentavam para repoisarem, 
recobrarem alento e comporem os andrajos, antes de penetrarem na cidade.

Esse espetáculo de todos os dias, na sua monotonia sinistra, não a impressionava mais, 
porque se habituara à vizinhança da miséria nas formas mais lúgubres e vis. Vira crianças, a 
sugarem os seios murchos das mães mortas; cadáveres desses entezinhos abandonados sobre 
a estrada, devorados por urubus e cães vorazes: criaturas, ainda vivas e exangues, torturadas 
pelas bicadas de carcarás a lhes arrancarem, aos pedaços, as carnes ulceradas e podres. Vira 
mães desnaturadas ocultarem em crateras de formigueiros, o fruto de amores criminosos, ou 
traficarem com filhas impúberes; pais desalmados, incestuosos e delinqüentes dos mais 
torpes crimes, como se o concurso de todas as dores e de todas as baixezas, condensando-se 
em enorme e fantástico suplício, os houvera transformado em monstros hediondos, 
rebalçando-se em lances trágicos de ferocidade inconsciente. Diante dela haviam tombado, 
fulminados pela fome, indivíduos de aparência sadia e robusta, estrebuchando no chão 
como epilépticos a tragarem terra aderente aos dedos aangrentos e blasfamarem contra o 
Deus impassível que os desamparava, os renegava filhos pecadores, condenados, em vida, 
às torturas daquele inominável inferno da miséria.

Milhares de criaturas haviam sido provadas nesses transes inenarráveis; no entanto, ela havia 


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apenas sofrido o ferrete da ignomínia. Era, pois, incomparavelmente, mais feliz que aqueles 
pobres alquebrados, que passavam lentamente, restos de uma raça de trabalhadores heróicos 
e fortes, desbaratada sob o látego do castigo do céu. Se devia cair mais, descer mais fundo 
no sorvedoiro da infâmia, padecer como aqueles mártires, desejaria ser levada por uma 
moléstia para a vida onde ninguém sofre.

A sua imaginação desvairada volviam, com esses pensamentos tristes, as figuras de 
Alexandre e Luzia: ela caminhando para a praia, confundida no êxodo, conduzindo a mãe 
estropiada; ele, feliz, bem colocado no emprego e apoiado na confiança dos Comissários. E 
não se conformava com o romance passional sem desenlace, empatado pelo egoísmo de 
ambos.

Desviando-se, insensivelmente, Teresinha foi ter ao sobpé da encosta íngreme cerrada pelos 
rochedos, chamados Fortaleza, nos quais terminava o renque de casas da Leonor, onde 
morava Rosa Veado. Aí o caminho, que era uma breve ladeira cavada entre pedroiços, 
estava obstruído por um grupo de três indivíduos, uma família que subia a passo tardo, 
tangendo um velho burro, pelado e esquelético, carregando duas malas e, no meio da carga, 
os utensílios domésticos e o oratório de cedro envernizado, cheio de santos. Um velho, de 
longas barbas brancas, puxava o animal pelo cabresto; ao lado, ia a mulher, também idosa, 
de formas cheias; atrás, marchava uma rapariga loira, de corpo franzino e flexível, acusando 
o despontar da adolescência. O burro, de grandes orelhas bambas, vacilava a cada passo, e 
era animado pelos seus condutores com palmadas carinhosas nas ancas, estalidos de lábios 
soando como largos beijos, e vozes de estímulo. Mas o mísero bufava, arquejava, e mal se 
podia equilibrar sobre as patas corridas de suor, trêmulas, hesitantes.

- Que maçada! - resmungava Teresinha, obrigada a seguir o moroso grupo, parar quando ele 
parava, a marchar com ele, bem chegada à mocinha loira - Esta só a mim acontece...

Entretanto, o animal, vergado de fadiga, tirava-lhe funda piedade. O oratório, encimado 
pela pequena cruz singela, a balançar surgindo dentre o amarradio de cordas de crina, 
evocava meiga saudade, fantasmas de anjos esvoaçando através de sua memória 
obscurecida, recordações vagas, místicas comoções, talvez provocados pela parte dos santos 
no infortúnio dos adoradores, aquela família de crentes, que não os abandonava, como 
tutelares do lar vazio.

- Vamos, vamos! - dizia a mocinha ao animal - Caminha mais um bocadinho; estamos quase 
em riba.

Essa voz tinha sonoridade consoante às recordações de Teresinha; era a de uma pessoa 
querida, morta, ou, havia muito, ausente, depois de feliz encontro na sua carreira aventurosa 
pelo mundo. Quem seria? Onde ouvira falar aquela criatura, que lhe alvoroçava o coração? 
E à revolta contra o obstáculo, sobreveio intensa curiosidade de ver a mocinha, de saber 
quem era.

O burro, com supremo esforço, deu mais alguns passos e chegou ao cimo da pequena 
ladeira, junto dos grandes molhes de granito retangulares e erguidos a prumo, como ameias 
de uma fortaleza. Aí, como se houvesse esgotado o alento, vacilou, respirou com força; 
soltou um surdo gemido doloroso e caiu aniquilado, contemplando com os grandes olhos 
súplices, o velho que puxava o cabresto para lhe suspender a cabeça, ao passo que a moça 
tentava erguê-lo pela cauda.


[Linha 5200 de 6979 - Parte 4 de 5]



- Aliviemo-lo da carga - ordenou o velho - Está afrontado, pobre Macaco... Também há três 
dias que nem retraços tem comido.

O caminho estava desobstruído e franco; mas Teresinha apiedada do pobre animal, estacara 
trêmula e lívida, cosida aos rochedos, numa postura de horror, pregando o olhar esgazeado 
no grupo sugestivo, a poucos passos de distância.

- Macaco! Será possível! - gaguejou ela, espavorida.

Vendo-a ali parada, a mocinha se dirigiu a ela:

- Minha senhora, faça a esmola de nos dar uma mãozinha para tirarmos a carga daquele 
pobre.

- Maria da Graça! - bradou Teresinha.

- Sa dona conhece-me? Minha Nossa Senhora!... É... é...

Maria recuou, transida de susto, mal confiando nos seus olhos. 

- Que é?... - perguntaram, a um tempo, os dois velhos, muito empenhados em tirar o 
oratório de cima do burro, imóvel, estirado no chão.

- É... é a Teresa - respondeu a mocinha, com um grande gesto de espanto.

- Teresa! minha filhinha!... - exclamou a velha, num grito de surpresa alegre, no qual 
retumbava a ternura toda do coração de mãe. - Tu!... tu aqui?

E, atirando-se à filha, enlaçou-a nos braços, beijando-a com apaixonado frenesi na face, na 
fronte, nos cabelos, como quem sacia longa e cruel sede de amor.

Hirta e gelada, desfigurado o rosto por violentas contrações de estupor, e lívida como um 
morto, Teresinha não pôde fazer um gesto; mas, a carícia maternal lhe agitava todas as 
febras do coração, e todo o seu corpo tremia convulsionado. Só os olhos espantados, 
viviam, cintilando com uma lucidez ingênita.

- Teresa, filha da minha alma, - continuou a mãe - Deus te abençoe! Minha Virgem 
Santíssima, é ela mesma!... Seu Marcos, veja, é a nossa filha!...

O velho erguera-se. As grandes barbas, alvejando à luz do sol poente, davam venerando 
relevo ao esquálido rosto, macerado, tostado pelo mormaço do sertão. Os pequenos olhos 
azuis, de um azul de céu empoeirado de neblinas, brilhavam no fundo das órbitas sombrias, 
com um bruxuleio de lâmpada de santuário. Na postura, nos andrajos e na voz soturna e 
firme, corporizava a nobreza da miséria da miséria superior.

- Teresa de Jesus! - murmurou ele, com um suspiro, que lhe assomou aos lábios, como um 
silvo de tormenta - Já pedi a Deus que perdoasse os seus pecados. Estes santos, que nos 
acompanham, sabem que rezei por ela, como um pai reza por uma filha ingrata, perdida e 
morta.


[Linha 5250 de 6979 - Parte 4 de 5]



Ao choque destas palavras de condenação implacável, Teresinha cambaleou, e caiu 
prostrada de dor, nos braços da mãe angustiada.

Maria da Graça contemplava, muito aflita, o pai e a mãe, e, no transe incompreensível, 
considerava a intensidade da cena, dolorosa, inconsiderável.

- É nossa filha, seu Marcos - continuou a velha, acariciando a filha e conchegando-a ao seio. 
- Tenha dó dela, meu marido do coração! Veja como está acabada a nossa filhinha!...

- Você sabe, mulher - gemeu Marcos - que já padeci por ela todas as dores deste mundo...

- Também ela tem sofrido... É uma infeliz...

- Infeliz! assim foi de sua vontade...

- Seu Marcos...

- Sabe que mais, mulher? Vamos cuidar deste pobre animal, nosso amigo velho, que não nos 
abandonou e está aqui morrendo por nossa causa ... Ah! os bichos têm, às vezes, mais 
coração que as criaturas.

- Meu pai! - soluçou Teresinha, como se as duras palavras lhe estrangulassem as entranhas.

Ele, porém, parecia intangível. A súplica da filha, queixumes de alma penitenciada a 
estorcer-se no silício da vergonha não ecoou no coração, donde ele arrancara, num 
paroxismo de opróbio, a poluída imagem da pecadora, que não podia volver a profanar o 
tabernáculo do culto incondicional à honra e à integridade da família. No peito lhe ficara 
um buraco lúgubre, o ninho vazio transformado em cova, encerrando, para sempre, um 
sublime afeto estiolado.

A um gesto imperativo do pai, Maria da Graça, despertada da estupefação que lhe gelava o 
sangue nas veias, o ajudou a desatar a troixa de redes, as azelhas dos dois baús, cobertos de 
coiro cru e tauxiados de pregos doirados e, por último, as cilhas da cangalha que, retirada 
do suarento dorso do burro, lhe expôs as mataduras da espinha, as chagas rubras dos 
omoplatas, sobre as quais vieram adejar, zumbindo, grandes varejeiras, de asas nacaradas e 
revestidos de cintilantes coiraças, oxidadas de verde metálico. No espaço voavam, em 
largas espirais, urubus famintos, dos quais alguns mais ousados se despenhavam, de asas 
quase fechadas, até perto dos rochedos, onde poisavam, aguardando o abundante repasto 
da carniça ainda viva.

Macaco, aliviado da carga, tentava erguer-se sobre as pernas dianteiras, rolando um olhar de 
terror para os lúgubres pássaros, que pontuavam de negro as arestas das rochas, mas, 
faltavam-lhe as forças e recaia ofegante.

- Se ao menos - dizia Marcos - houvesse por aqui uma pouca d'água e alguns retraços...

Clara, indiferente à sorte do animal, acariciava e consolava a filha desditosa:

- Tem paciência, meu coração. Teu pai tem ímpetos de crueldade, mas passam, porque a 


[Linha 5300 de 6979 - Parte 4 de 5]


alma é de oiro. Coitado! Sofreu tanto por ti...

- Tem razão... tem razão, mamãe - gemia Teresinha. - Sou uma ingrata, uma doida, mas... 
assim mesmo... não sou tão ruim que mereça menos compaixão que este animal...

E entrou a chorar em convulsão, murmurando frases inteligíveis, que o pranto e os soluços 
entrecortavam.

- Seu Marcos, meu marido da minha alma - suplicava a mãe. - Tenha pena desta pobre.

- Ah! papai - balbuciou, trêmula, Maria da Graça - tenha compaixão dela... Coitadinha de 
Teresa...

- Era melhor - resmoneou o velho, abalado pelas lágrimas da mulher e da filha caçula, que 
era o seu ídolo. - Melhor seria que essa mulher, em vez de estar ai a chorar, ela que conhece 
a cidade, nos ajudasse, mostrasse que ainda tem préstimo...

Teresinha ergueu-se de repente; enxugou o rosto na saia e partiu. Sabia que Rosa Veado 
morava perto, no renque de casas da Leonor, e foi procurá-la, seguida pelos olhares da mãe 
e irmã, tomadas de surpresa, ao passo que o velho teimava em reanimar o burro com 
palavras afetuosas.

Pouco depois ela voltou, trazendo uma grande cuia cheia d'água... Pressentindo o precioso 
líquido, Macaco nitriu surdamente, como se sorrisse de satisfação; ergueu a cabeça e, 
agitando os grandes lábios negros e ávidos, a sorveu, a longos, a ruidosos tragos.

- Deus lhe pague - disse o velho, restituindo a Teresinha, cuia vazia. - Disseram-me que era 
possível encontrar aqui uma, pousada, um tecto caridoso, onde pudéssemos descansar da 
viagem através desse sertão ingrato.

- Deram-me - balbuciou Teresinha, hesitante de medo - chave daquela casa, a casa da 
fortaleza, onde ninguém mora há muitos anos, porque é mal-assombrada...

- Virgem Maria!... Credo! - exclamaram Maria da Graça e Clara, numas projeções 
espavoridas de olhos sobre a velha prumada, cujas paredes, esburacadas e marcadas de 
grande reboco, pareciam apoiadas nos rochedos. Ervas morta das goteiras desdentadas, 
donde esguichavam piando, em desordenado vôo, grandes morcegos, estonteados pela 
tênue luz crepuscular.

Pouco depois, o grupo estava cercado de moradores da vizinhança, cada qual mais curioso e 
empenhado em socorrê-lo. Vieram em seguida, e quase sobre os passos de Teresinha, Rosa 
Veado e o Chico, um guapo tipo de homem; a Marciana que mantinha, nas proximidades, 
uma bodega bem sortida e possuía já algumas libras de oiro em obra, comprado aos 
retirantes a troco de gêneros alimentícios; e, esgueirando-se por entre os circunstantes, o 
bando infalível, barulhento de meninos, os mais pequenos nus, os outros enrolados em 
trapos, em molambos.

- Anda, Francisco - ordenou Rosa ao filho - dá um adjutório a estas criaturas... Abre a casa; 
leva as malas...



[Linha 5350 de 6979 - Parte 4 de 5]


- Amanhã - exclamaram os meninos, tripudiando em volta do burro - urubus têm festas! 
Este mesmo está aqui e está no céu das formigas!...

Rosa Veado tomou o oratório; beijou-o, com reverência, que outras mulheres, outras 
devotas, imitaram, silenciosamente.

- O senhor - observou ela ao velho Marcos - tem coragem. Eu não passava a noite naquela 
casa amaldiçoada, nem que me matassem.

- Eu só tenho medo dos vivos - ponderou o velho.

- É que vossa mercê não sabe o que nela se tem dado, coisas de arrepiar coiro e cabelo...

- Que me importa visagens e almas do outro mundo, ou artes do demônio? Por ora, eu 
careço, que me arranjem alguma coisa para matar a fome deste animal...

- Não é difícil - atalhou Marciana. Mas, o senhor deve saber que o milho está pela hora da 
morte...

- Ainda tenho meios, graças a Deus, e, além da paga, ficaria agradecido.

Marcos desatou da cintura uma faixa elástica, tecida de algodão, e tirou dela alguns 
patacões de prata. A vista das moedas, desapareceram as hesitações de Marciana, que se 
desmanchou logo em cumprimentos e palavras de pesar pela sorte da família e prometeu 
prove-la, sem demora, do necessário, preparando a casa mal-assombrada para aboletá-la com 
a possível comodidade naquela noite.

Não era raro aparecerem, entre os retirantes, famílias abastadas que haviam abandonado os 
lares, levando dinheiro e jóias sem valor por não terem o que comprar, mesmo a preços 
exorbitantes. Marcos, depois de inútil resistência, viu-se nessa triste situação. De esperança 
em esperança de mudança de tempo, vira os gados morrerem nos campos devastados; 
consumira, com parcimônia cautelosa, as provisões acumuladas, os surrões de farinha de 
mandioca, os paiós de milho, arroz em casca e feijão; as matalotagens em salmoira ou 
empilhadas se esgotaram por encanto, porque não tivera coragem de recusar esmola aos 
famintos que passavam pela sua fazenda. Os vaqueiros, agregados e pessoal de fábrica, 
empregados na labutação de criadores e agricultores, na maioria escravos velhos e crias de 
casa, não tinham que fazer; eram bocas inúteis. Alforriou-os deu-lhes liberdade para 
ganharem a vida.

Cansado de resistir e lutar, aguardando, em vão, sinais de inverno, viu-se, afinal, só, sem um 
amigo, um companheiro, um vizinho, numa redondeza de dez léguas, exposto aos assaltos 
de bandidos, que enchiam a região, e resolveu emigrar. Arrumou em algumas malas o 
indispensável, a roupa da família e algum dinheiro, enterrando o resto com a prataria, velha 
baixela e jóias numa brenha de serrotes ásperos e pedregosos. Organizou o comboio com 
três burros e outros tantos cavalos de sela, e partiu na direção de Sobral, a cidade 
intelectual, rica e populosa, empório do comércio do norte da província, na qual o Governo 
estabelecera opulentos celeiros.

Na longa e penosa travessia, à falta d'água e pasto, morreram os cavalos, depois dois burros. 
Foi forçado a abandonar malas, reduzir as cargas a uma só para que Macaco, o animal 


[Linha 5400 de 6979 - Parte 4 de 5]


sobrevivente, a pudesse agüentar. Pela primeira vez na vida, tiveram de viajar a pé, a curtas 
jornadas, para não fatigarem o animal e poderem suportar, sem se estropiarem, a penosa 
marcha de exílio.

Muita vez, arranchados à sombra de oiticicas frondosas, oferecera um patacão por uma cuia 
d'água. Os raros bebedoiros subsistentes ficavam longe da estrada real: era preciso fazer 
enormes desvios para os alcançar. Cortava-lhe o coração ver a filha, a meiga Maria da 
Graça, descorado o rosto de criança na moldura dos cabelos de oiro, rendido o frágil corpo, 
os pezinhos dilacerados pelas agruras dos caminhos e veredas, os rubros lábios ressequidos e 
rachados, as entranhas devoradas pela sede, adormecer no regaço da mãe, também 
mortificada, mas resistindo resignada, com esse valor divino que torna invencíveis as mães 
aflitas.

Ele sofria a tortura inigualável de não a poder socorrer, mesmo com o sangue de suas veias; 
de pedir, em vão, ao céu luminoso, impassível, sorridente, a gota de orvalho que alentasse 
aquele lírio, nascido nas ruínas de sua alma, a vergar emurchecido, tostado pelo sol 
inexorável, quando, no delírio da febre, a pobrezinha, com ânsia, balbuciava: "Água... água, 
papai!"; e ele via dos olhos da mãe, resignada e heróica, a implorar misericórdia ao Deus de 
amor e justiça, por intercessão daqueles santos companheiros de infortúnio, rolarem grossas 
lágrimas silenciosas.

Quando algum comboieiro lhe cedia, de graça, a metade da sua borracha d'água salobra, 
recusando a pródiga paga por não ter ânimo de vendê-la a cristãos, Marcos, superior às 
dores físicas, sorria de alegria de ver saciadas e salvas da morte horrível as criaturas 
idolatradas e o fiel animal, e apenas umedecia os lábios e sentia alentarem-se-lhe as 
indômitas energias para chegar ao termo da dolorosa viagem pelo sertão combusto.

- Deus é grande! - exclamava, em arroubos de fé inquebrantável. - Coragem, mulher, ânimo 
filhinha!... Vamos para adiante, parar aqui é morrer!... Mais alguns dias, estaremos salvos!...

A salvação estava em Sobral, na cidade formosa e opulenta, o oásis hospitaleiro anelado 
pelas caravanas de pegureiros esquálidos.

E chegaram, padecendo todas as inclemências da jornada, caminhando à noite para evitarem 
a torreira do sol. Por inculcas, souberam que no subúrbio da cidade, poderiam encontrar um 
rancho, modesto abrigo, onde pudessem esperar dias menos aflitivos.

A casa mal-assombrada era quase uma, tapera. O repuxo das paredes; os esteios esconsos, 
cobertos de colmeias abandonadas; o tecto, velado sob empoeiradas colgaduras de teia de 
aranha; o telhado desfalcado, invadido de ervas mortas; as portas emperradas e o chão, 
aluído por túneis de formigueiros, sinalavam longo abandono. Essa vivenda maldita, 
preservada pela superstição, estivera sempre fechada. Ninguém lhe conhecia já o 
proprietário, cujo procurador, morto havia muitos anos, deixara a chave à custódia de 
Marciana.

Ao penetrar no asilo de duendes, onde se ouviam, à noite, gemidos lancinantes, rumores de 
correntes arrastadas assobios diabólicos, Rosa Veado, que se encarregara de prepará-la para 
aboletar os hóspedes, persignou-se, balbuciou uma Ave-Maria e acostou-se às outras 
mulheres, apiedadas da família de Marcos. Mal acenderam a vela, uma coruja espantada 
esvoaçou, gaguejando pavorosa gargalhada de louco, e enormes vampiros agitaram a luz, o 


[Linha 5450 de 6979 - Parte 4 de 5]


ar deslocado pelo remígio das grandes asas desvairadas.

- Credo! - gritaram as mulheres, recuando de medo. - Te desconjuro, pé-de-pato!

Passado o susto, entraram e vasculharam, num instante, a sala, impregnada de forte cheiro 
de estrume de morcego.

Uma levou as redes e as atou aos cantos nos armadores enferrujados; outra sobraçou, 
reverente, o oratória que foi colocado sobre uma das malas conduzidas pelo Chico, que foi 
depois à venda da Marciana buscar um pote d'água e um caneco de folha-de-Flandres novo. 
Apareceu, por sua vez, a bodegueira, trazendo um bule com café, três casais de xícaras de 
ruim louça, esmaltada de flores vermelhas, um pires com açúcar escuro mascavado, e 
algumas roscas e bolachas, duras como pedra.

- Aí está, seu capitão - disse ela a Marcos - Já tem onde encostar o corpo e o que foi 
possível arranjar para entreter a barriga. Até amanhã. Vossa senhoria deve ter o corpo 
pedindo rede... Com Deus amanheça. Se percisar de alguma coisa, é só bater na derradeira 
porta da esquina.

Marcos contemplava, penalizado, o burro, que Teresinha alimentava com punhados de milho 
amolecido; tomou Maria da Graca pela mão, e recolheu-se.

- Vai dormir, filhinha...

- E mamãe?

- Está com a outra, tratando o Macaco. Virá mais tarde.

Clara ficara ao lado da filha infeliz, amimando-lhe os cabelos, dirigindo-lhe palavras de 
amor e conforto, e recomendando-lhe que suportasse, com paciência, as explosões da cólera 
paterna, até conseguir ser abençoada.

- Ele tem razão, mamãe - balbuciava a moça, com voz embargada pelo hercúleo esforço para 
conter o pranto. - É o castigo, castigo merecido pelos meus pecados, que são muitos. Não 
peço que me perdoe, mas tenho padecido tanto com o abandono, que não poderei mais 
viver sozinha no mundo. Rogue a papai que não me bote para fora de casa. Embora não me 
tenha mais como filha, porque morri para ele, deixe que eu fique, como negra cativa. 
Tratarei o Macaco, carregarei água, tomando conta da cozinha, da roupa, pois não me 
desprezo de fazer todo o serviço.

- Sei que não és má, filha do coração. Foi aquele malvado, meu Deus perdoai-me, que te 
botou a perder... Eras uma criança... - Não o culpe, mamãe. Cazuza era bom e me quis bem 
até morrer. Só depois de ficar sem ele foi que me senti na desgraça, por não ter vivalma 
caridosa que me amparasse.

- Por que não voltaste?

- Tive medo e... vergonha. Faltou-me coragem para afrontar a ira do papai...

Passaram as duas horas conversando, e alimentando, aos poucos, o precioso muar 


[Linha 5500 de 6979 - Parte 4 de 5]


desfalecido. Por fim, teve Clara de obedecer aos repetidos chamados do marido para não o 
exasperar.

- Anda - disse ela. - Teu pai já está impaciente. Vem comigo.

- Não preciso de descanso. Vá, mamãe, que ficarei vigiando este pobre.

Clara imprimiu-lhe na fronte um longo beijo, e partiu, murmurando: Pobre filha! Deus te 
abençoe. Parece que lhe quero ainda mais por ser infeliz.

O rígido velho, curtido de preconceitos e fechado o coração nas resoluções inabaláveis, 
como num túmulo, não podia conciliar o sono. A espaços, erguia-se da rede, ia à porta, 
sempre aberta; contemplava a filha culpada, acocorada ao lado do burro enfermo; e, no 
misterioso silêncio da noite estrelada, ouvia um murmúrio dolente, um estertor de fonte, que 
se estanca, o pranto de Teresinha velando o animal para que os urubus, postados nas arestas 
dos rochedos, como vedetas sinistras, não o devorassem vivo.





XXV

Com irrepressível impaciência, esperou Luzia que algum dos raros conhecidos lhe trouxesse 
as últimas notícias dos acontecimentos do dia. A cada momento, se lhe afiguravam vultos 
de homem, esboçados nos cúmulos da poeira, que o vento rijo da tarde revolvia, em 
redemoinhos, pela estrada, como um sinal do vento baixo, rasteiro, sinal de seca. Talvez 
Alexandre livre, remido da infâmia, radiante de ternura a lhe sorrir com amor. Tinha 
estremecimentos de júbilos comedidos; a efêmera visão fugia com as colunas de pó 
desfeitas, e a pobre recaía desiludida numa dolorosa apatia de quem espera em vão.

Ninguém aparecia. Alexandre, cheio de brio, magoado pela crueza com que ela o tratara, 
não viria, contido pelo mesmo propósito que a condenava a estar ali, a estorcer-se em 
voluntário suplício, estimulada de fútil obstinação em resistir ao impulso de correr a 
recebê-lo no limiar do cárcere.

Nem vivalma. Estavam todos, àquela hora, recebendo, em ração, o salário da semana, pago 
aos sábados, nos postos de distribuição de socorros, ou na obra da penitenciária. Ela via as 
suas meninas amadas, Quinotinha e outras da tenda de costuras, sobraçando saquinhos 
cheios de víveres; as suas companheiras de trabalho aguardando a chamada, a tagarelarem 
com a garridice de maracanãs nos roçados; outras tristes, desconsoladas, recebendo os 
quinhões que deveriam passar às mãos de atravessadores, em paga de adiantamentos 
usurários; muitas agrupadas em torno da figura hercúlea, vermelha e ruiva de Raulino 
Uchoa, com a distinção de tipo de outra raça, entre os ouvintes, emaciados de privações, 
minados pelos tóxicos das raizes de mucunã, de pau-mocó, esboroadas em farinha. Ele 
costumava matar o tempo com a narrativa pinturesea das façanhas inverossímeis de 
amansador de animais bravios, orelhudos que nunca tinham visto gente, as áfricas de 
vaqueiro de fama, temido dos barbatões mais ferozes das catingas e carrascões 
impenetráveis, as proezas de caçadas de onças acuadas em furnas sombrias, onde ele as 
agredia, armado de uma simples azagaia. Contava das viagens extraordinárias, aventurosas 


[Linha 5550 de 6979 - Parte 4 de 5]


pelo sertão inundado, da intrepidez com que afrontava o ímpeto dos rios desbordantes, 
nadando em cavaletes de molungu no tempo - até parecia sonho - em que Deus ainda se 
lembrava, piedoso, do Ceará, para dar-lhe chuvas copiosas e fertilizadoras dos campos, 
trombas d'água devastadoras, rotas nas cumeadas das serras, descendo em catadupas 
raivosas, invencíveis, pelos telhados, encostas verdejantes, arrastando rochedos, árvores, 
plantações, até se espraiarem na planície, à maneira de um mar, arrombando açudes, 
soterrando bebedores, cavados durante a seca. Descrevia com a linguagem fantasiosa, 
ardente, de vigoroso colorido, com as imagens vivas, sugestivas do rude estilo sertanejo, o 
fragor das correntes raivosas de concerto com o ribombo ininterrupto da trovoada, o 
relampear das nuvens negras e maciças, es ziguezagues fulvos a riscarem o céu, com letras 
cabalísticas, ameaçadoras, traçadas pela ira de Deus; o estrondo horrível dos coriscos, o 
pavor do gado, haurindo, a largos sorvos; o ar saturado de ozonona, reunido, em magotes, 
nos cômoros da planície encharcada.

Fresos aos lábios do narrador imaginoso, os retirantes mal continham lágrimas, ouvindo-o 
evocar, entre episódios da vida sertaneja, fatos e coisas, dons do céu, para sempre perdidos, 
água, verdura, roçados, safras opimas, alegria e fartura, cortados os corações pela amarga 
saudade de recordar tempos felizes.

Luzia meditava, fitos os olhos, com uns gestos de sufocado pranto, nas rubras chamas 
vacilantes, desprendidas dos tições, quase apagados, espevitadas pelo vento e crepitando 
nuns feixes de centelhas intermitentes.

- Ninguém - murmurou ela, magoada pelo abandono - Nem vivalma! E Teresinha? Que será 
feito daquela cabeça de vento? Onde se meteria? Nem pensa em mim, que a espero... Ah! se 
ela soubesse... Qual... está com ele, e eu, coitada de mim...

Cada vez mais espessa, a nebrina da tarde, com uns restos de calor, entrava a redondeza. 
Casas, árvores mortas confundiam-se desconformes, no esboço da paisagem, esfumada em 
claro-escuro. As manchas das sombras alastravam, como um líquido negro, devorando os 
tons luminosos. No céu, puríssimo, piscavam, espertas, álacres, como uns pequeninos olhos, 
estrelas e constelações. Papa-ceial, o astro da melancolia, librava-se no poente ainda claro, 
como lúcida lágrima, mensageira da dor ignota, oculta nas profundezas misteriosas do 
espaço, tremeluzia prateada como pólo das esperanças e das mágoas dos tristes, e parecia 
vacilar atraída pelo sol, atufado em nuvens purpúreas.


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