YO! HIP HOP
O hip hop não cabe em si. Das trilhas de novela ao top ten das rádios, das paradas de videoclipe às campainhas de celular, das principais premiações musicais a anúncios de marcas de cerveja ou de tênis, ele extrapola, dia após dia, a imagem desgastada de cultura de gueto e se torna figurinha fácil, onipresente, sutil ou abertamente.
Astros como Eminem cobram cachês na casa do milhão de dólares por um show. De acordo com a revista Rolling Stone, em 2003, ano em que não teve disco lançado, ele embolsou cerca de 20 milhões de dólares com turnês, discos anteriores, merchandising, entre outros meios - quantia que chega a quase um quarto dos 84,1 milhões de dólares faturados pelos Rolling Stones no mesmo ano.
Um dos mais vistosos fenômenos do rap feito por branquelos, Eminem enfileira controvérsias em sua carreira, com peripécias que incluem um processo aberto pela própria mãe contra ele e brigas públicas com gente como Michael Jackson. Velho truque da indústria pop, a pose de menino mau ajudou seu disco mais recente, Encore (lançado em 2004), a superar, em dois dias, o que Britney Spears havia vendido em uma semana, na Inglaterra. Placar: 122 459 cópias para o bad boy e 115 341 para Britney.
Eminem é um sintoma da escalada do rap no mundo do consumo, como ilustra a guerra dos tênis. Gigantes como Nike, Adidas e Reebok travam batalhas inclementes usando popstars do rap no pelotão de frente das campanhas publicitárias. Há dois anos, por exemplo, a Reebok ganhou fôlego com a contratação de Jay-Z. Pela primeira vez a campanha de uma coleção de tênis teve um rapper como protagonista. Conjugada a uma investida no mercado asiático, a ação ajudou a catapultar o faturamento da empresa para 3,5 bilhões de dólares em 2003, 11% a mais que em 2002. E consolidou o espaço dos rappers com uma parceria com o fenômeno 50 Cent - que contabiliza 12 milhões de cópias de seu primeiro disco - para a linha de footwear G-Unit Collection by Rbk.
Ninguém tem dialogado nesse universo como Jay-Z. No Natal de 2003, o rapper ganhou uma edição especial do modelo 3300 do celular Nokia. Batizado de Black Phone, o aparelho chegou às lojas com faixas de seu Black Album, além de papéis-de-parede para o visor do telefone com sua imagem e mensagens com sua assinatura.
A publicidade é a ponta reluzente desse iceberg chamado hip hop. A expansão dos diferentes elementos que compõem a cultura de rua pela moda e o comportamento grita aos olhos num momento em que o rap é, nos Estados Unidos, a bola da vez da indústria da música - uma das armas de marketing mais eficientes de todos os tempos. De acordo com estimativa da Riaa, a associação da indústria fonográfica americana, o rap perde apenas para o rock (que fatura 3 bilhões de dólares) e faz circular cerca de 1,5 bilhão de dólares por ano nos Estados Unidos - e isso apenas com a venda de discos.
A disseminação da cultura de rua vai muito além disso (veja os quadros ao longo da reportagem). O estilo largado das roupas, o jeito alargado de andar e gesticular, a cadência canto-falada das músicas, o tom reivindicativo das letras, o apelo social consciente, isso tudo transborda de um canto a outro, contamina aqui (na dança, nas artes visuais, no audiovisual) e influencia acolá (no trabalho das ONGs, no modelo pedagógico das escolas), até mesmo em círculos que sequer sabem o que diferencia hip hop de rap.
Conhecimento
E o que distingue um do outro, afinal? Bem, o rap (junção das iniciais de rhythm and poetry, ou música e poesia) é a faceta musical do hip hop. E só. Parece óbvio, mas muita gente que ouve rap diz por aí que adora dançar hip hop. E não tem como. O rap é apenas um dedo entre os cinco da mão que balança o berço do hip hop. É verdade que quando o berço foi construído falava-se em quatro dedos - ou, na linguagem do movimento, quatro elementos: DJ (responsável pelas bases da música) + MC (quem rima), o dedo musical, break, o dedo corporal, e grafite, o dedo visual.
Mas eis que, nos anos 80, o homem que deu sentido ao termo hip hop achou por bem ampliar o cardápio, enxertando um item novo que unifica todos os demais: o conhecimento. Esse homem é Afrika Bambaataa, um dos nomes fundamentais no nascimento e, principalmente, na conceituação do hip hop. Ele, porém, não passaria no teste de paternidade do termo. Criada por Lovebug Starski, a expressão hip hop (ao pé da letra, balançar os quadris) surgiu a reboque do jogo de palavras típico do rap. Era, à época, uma espécie de lema gritado ao microfone para inflamar a pista durante as festas.
Parece que foi ontem, mas o fenômeno acaba de completar 30 anos de idade, comemorados em Nova York, o grande pátio de escola em que os conceitos e a prática do movimento foram exercitados. O marco simbólico, 12 de novembro de 1974, é a data do primeiro aniversário de fundação da Universal Zulu Nation, a organização criada por Bambaataa para disseminar o receituário mundo afora. Desde que ele e seu colega Grandmaster Flash popularizaram o modelo de festa de rua que o jamaicano Kool Herc levou aos subúrbios nova-iorquinos em fins dos anos 60 e resolveram usá-lo para mediar os conflitos de gangues no bairro do Bronx (propondo que as disputas fossem resolvidas em combates de dança), nem as rixas nos guetos nem a música foram os mesmos. Com o passar do tempo, alguns artistas saídos de gangues enveredaram pelo chamado gangsta, o estilo barra-pesada que começava em tiroteio verbal e muitas vezes ia para as vias de fato. E pelo menos dois nomes importantes morreram em decorrência disso na década de 1990: Notorius B.I.G e Tupac Shakur.
O tom dominante no rap nacional, no entanto, é o avesso do gangsta ou de sua face mais comercial, o "rap luxúria" que se vê em boa parte dos clipes americanos. Em vez da ostentação (carrões, correntes de ouro, mulheres mil), o foco é o da reivindicação de direitos e da denúncia social. "É um discurso político da maior importância", diz o produtor André Midani, ex-diretor da gravadora Philips e nome fundamental da indústria musical no país.
Talvez o melhor termômetro do alastramento do hip hop pelo Brasil seja a televisão. Artistas como o rapper carioca MV Bill, crítico ferrenho do abismo social, ou a dupla Helião e Negra Li, militantes do rap paulista engajado, ganharam visibilidade em programas como o Faustão. "Um dos mais importantes artistas do rap nacional", como disse o apresentador, Bill ficou no ar durante 40 minutos. "Nunca vi uma jovem liderança tanto tempo ao vivo na tevê, num programa que fala para 70 milhões de pessoas", diz o antropólogo Hermano Vianna.
DJs e trancinhas
Marco Aurélio Paz Tella, doutorando em antropologia pela PUC-SP, defendeu em sua dissertação de mestrado que a fase em que o rap era consumido apenas pela periferia - para a qual serve de voz - é parte do passado. "De alguns anos para cá, os principais DJs de rap tocam nas casas noturnas de bairros nobres paulistanos como os Jardins, Vila Madalena e Vila Olímpia porque tem gente com dinheiro que consome rap", afirma Marco. A linguagem do hip hop transbordou para outros segmentos da música, do rock ao eletrônico. "O hip hop cria a cultura de DJs. A figura do DJ como entendemos hoje é oriunda do Kool Herc, do Grandmaster Flash, do Bambaataa, que desenvolveram a idéia de criar música a partir de dois toca-discos", diz Eugenio Lima, DJ da Soulfamily e diretor do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com trabalho voltado para o que chama de teatro hip hop - um cruzamento da pesquisa teatral brechtiana com os elementos da cultura de rua.
O uso de trancinhas coladas ao couro cabeludo mostra que as influências do estilo hip hop vão dos pés à cabeça. Característica dos astros do rap e do basquete americano, elas disseminaram-se no Brasil para além do circuito de iniciados. O estilo já extrapolou os limites raciais. "Faço trança em japonês, loira, branco de cabelo liso, gente de qualquer tipo e de todas as raças", diz Fátima Aparecida de Abreu, cabeleireira do salão e loja de roupas 4P, dos rappers KLJ (DJ dos Racionais MCs) e Xis. Com 20 anos de atividade na área, Fátima contabiliza hoje oito homens entre cada dez clientes que fazem trança.
A 4P, também um selo musical, funciona na meca da black music paulistana, a Galeria 24 de Maio, conhecida como Galeria do Rock, mas cada vez mais chamada de Galeria do Rap. Síndico do prédio e comerciante no local há 30 anos, Antonio de Souza Neto, o Toninho da Galeria, afirma que foi ali que a cultura de rua tomou corpo em São Paulo. "O pessoal se encontrava aqui e ia para o largo São Bento", diz, em referência ao local onde as rodas de break ganharam popularidade, nos anos 80, depois do período embrionário na própria 24 de Maio. "O hip hop saiu daqui, foi pra periferia e tomou o asfalto", afirma. Toninho vê o movimento como "possibilidade de revolução cultural no país". Na sua leitura, o rock tornou-se "pequeno em relação ao hip hop".
Se o dedo musical amplia cada vez mais as suas influências, dança e artes visuais não ficam atrás. Fundador e coreógrafo da companhia mineira SeráQuê?, o dançarino Rui Moreira formou-se entre aulas de dança moderna e os bailes black de São Paulo e vê com interesse a absorção da dança de rua pela dança moderna e contemporânea. Segundo ele, o gestual da rua se incorporou à dança no fim dos anos 60 a partir de coreógrafos americanos como Alvin Ailey. E, na década seguinte, houve um reflexo no trabalho de criação do Grupo Corpo, assim como no do Ballet Stagium, que incorporaram o que na época era chamado de jazz de rua. "No cenário contemporâneo, os bailarinos buscam cada vez mais o diálogo gestual com os b-boys, como forma de ampliar as possibilidades de uso dos planos espaciais", diz Rui.
Sinônimo de dançarino de break, o b-boy dá mortais, gira e rodopia dentro de parâmetros do vocabulário da dança de rua. Assim é também com os outros dois estilos principais da dança hip hop: o locking (movimentos imitam um robô) e o popping (influenciado pelos passos do funk), um sistema de códigos corporais que se reproduz por todo o mundo. "Cada um se destaca no seu estilo, como no futebol" afirma Nelson Triunfo, mestre na dança de rua e pioneiro das jornadas empreendidas pelos b-boys nos calçadões do centro velho paulistano desde 1984.
Depois da grande visibilidade dos anos 80, oferecida pelos concursos em programas de auditório como o de Barros de Alencar ou por participações em humorísticos como Os Trapalhões, a dança de rua já não desperta o mesmo interesse na mídia, mas deixou como resíduo a incorporação, até hoje, de cursos de break em academias de dança voltadas para a classe média.
A vez do grafite
O vocabulário visual do hip hop também demarca seu espaço em outros territórios. Muito além das frases de protesto e das guerras de ego de adolescentes que carimbam com spray os muros, pontes e edifícios das cidades, a pichação e o grafite ganham respeito, deixam de ser vistos como "caso de polícia" e contaminam outras linguagens, como o design gráfico e a publicidade.
O esforço de compreensão do abecedário dos pichadores e das crônicas visuais dos grafiteiros rende estudos acadêmicos e projetos vinculados ao poder público, como é o caso do Guernica, focado em oficinas de arte, mantido pela Prefeitura de Belo Horizonte desde 1999. "A pichação é uma escrita aparentemente sem memória e conteúdo, mas temos de aprender a ler essa escrita porque os jovens estão querendo dizer alguma coisa", disse o prefeito Célio de Castro à época. Desde então, o estigma deu lugar a aulas, ministradas por alguns dos "fora-da-lei", e a prática dos murais públicos grafitados ganhou reconhecimento entre a população e as empresas - gerando parcerias que já resultaram em curtas-metragens ou em balões dirigíveis e totens estampados com a linguagem do grafite.
O hip hop atualizou, em versão urbana, uma prática secular. "O grafite existe há, no mínimo, 30 mil anos", afirma Pedro Portella, autor do ensaio "Memórias Escritas da Cidade Inscrita". De acordo com ele, os aborígenes australianos sopram pigmento para contornar suas mãos nas grutas até hoje, como ocorreu em Lascaux, na França, e em algumas grutas da Patagônia. "Eles dizem que muitas vezes fazem isso para expressar uma demanda, um impulso de criação, e não para assinar a parede da gruta, como pensavam muitos arqueólogos", diz Pedro.
O trânsito do grafite pelo circuito de museus e galerias tem pelo menos duas décadas. O interesse pela linguagem das diferentes formas de intervenção visual que se multiplicaram pelas cidades alcançou seu ápice nos anos 80, nos Estados Unidos. Bajulados por revistas como a respeitada Artforum, artistas surgidos nas ruas e estações de metrô, como Jean-Michel Basquiat e Keith Haring, ganharam notoriedade e foram rapidamente integrados ao circuito de marchands e galeristas. Não demorou para que a indústria cultural tomasse os signos e ferramentas da arte de rua para si. Para o designer gráfico Rico Lins, que já fez trabalhos para a Time e a Newsweek, o uso dessa linguagem é bastante perceptível, "especialmente quando (o produto) é direcionado ao público jovem, na propaganda, em capas de livro, CDs, camisetas etc.". Rico vê forte ascendência da cultura urbana em geral - e do hip hop em particular - sobre seu estilo. "As pichações e grafites estão presentes em trabalhos que eu faço."
Essa intersecção entre áreas levou a uma mutação no jeito de se fazer grafite. Se de um lado a origem "artesanal" e única da inscrição no muro proliferou e perpetuou-se, de outro as possibilidades técnicas de manipulação e circulação da imagem abriram novas frentes.
Conhecida como stencil art, a técnica de criar uma "fôrma" sobre a qual o spray era aplicado, muito usada na década de 1980, desembocou nos stickers, adesivos desenvolvidos muitas vezes em computador, com imagens e/ou mensagens, encontráveis em postes, latas de lixo e telefones públicos de centros urbanos. A idéia? Disseminar o dedo visual do hip hop. Mas, também, estampar, com um grafismo peculiar e para todo mundo ver, que o hip hop ultrapassou qualquer gueto. Como se diz na quebrada: tá tudo dominado.
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