OS POVOADORES DO PÓLO NORTE - Arqueologia
Uma pintura numa vértebra de baleia e mais 55 000 peças datadas do século XIV, descobertas em 1986, na Ilha Vitória - extremo norte do Canadá -, tornam possível a uma equipe de arqueólogos franceses desvendar o passado dos esquimós.
Foi num dia qualquer, entre os anos de 1380 e 1450, que uma nova idéia lhe veio à cabeça. Primeiro, queimou um osso e obteve um pó preto. Então, passou o dedo nesse pó e riscou cuidadosamente a peça preparada com antecedência - uma vértebra de baleia. Depois, procurou algo que pudesse fixar a imagem. Olhou demoradamente para a peça e guardou-a no fundo da casa de modo que estivesse sempre de frente para a entrada. Passaram-se mais de 500 anos até que outro ocupante chegasse àquele lugar, onde habitaram os thuleanos - ancestrais diretos dos esquimós -, remexendo vestígios. Ele não se vestia com casacos de pele de boi-almiscarado - estranho animal que parece uma mistura de boi com carneiro -, não caçava baleias nem se locomovia em caiaques. Trazia réguas, pequenas espátulas e potentes computadores.
O ano era 1986. O lugar, a Ilha Vitória, no extremo norte do Canadá. O homem, o arqueólogo e etnólogo francês Jean François Le Mouèl, chefe da Missão Arqueológica Francesa do Ártico (MIAFAR), que deparou com a primeira pintura da pré-história do "teto do mundo" - um boneco estilizado que parece segurar um arco e cujas pernas afastadas sugerem o movimento em direção à caça. Entre o arqueólogo e o thuleano, que se maravilharam pelo mesmo objeto, a comunicação só foi possível graças ao mecanismo que desde os tempos mais remotos promove encontros assim: a curiosidade humana.
O suporte da pintura, obra única, é um disco de vértebra - com 23 centímetros de diâmetro na parte mais larga - de uma Balaena mysticetus, ou baleia misticeta que chega a pesar 30 toneladas e se alimenta de plânctons, filtrados através de suas enormes barbatanas bucais. Junto à pintura, outras 55 000 peças datadas do século XIV, foram encontradas em três antigas habitações da cultura de Thulé, que ocupou o Ártico a partir do ano 1000. O conjunto dessas moradias chama-se OdPp-2, ou Nayoat, que na língua Inuit - o idioma esquimó - quer dizer "as gaivotas".
"Investigar um sítio arqueológico é como descobrir uma nova língua", compara Le Mouèl. "Cada objeto é uma palavra e a relação entre eles é a gramática." No caso de Nayoat, as 55000 palavras - correspondentes aos 55 000 objetos - ainda não formaram frases coerentes. Imagina-se que os thuleanos descendam da cultura dos grandes caçadores de baleia, que dominaram a região do Estreito de Bering, que separa o Alasca da Sibéria, até o século X. No entanto, um aquecimento de cerca de 3° Celsius na temperatura polar determinou sua migração em direção ao leste e, em apenas 100 anos, essas populações chegaram à costa oriental Groenlândia.
"Nessas regiões, onde a vida se perpetua em condições limite, as conseqüências de uma mudança ínfima no meio ambiente são espetaculares", atesta o arqueólogo. Cada grau a mais, por exemplo, representa 100 quilômetros a mais de floresta canadense em direção ao norte. Na região da tundra, onde viviam os caçadores, já distantes de qualquer árvore, o mar se liberou das calotas de gelo e permitiu a passagem das baleias por entre o arquipélago ártico até a Groenlândia. Nada mais natural para um povo nômade que quer seguir sua presa.
Munidos de arpões a propulsor, baleeiras e caiaques de pele de foca, e impregnados de uma forte noção de coletividade, única arma capaz de reunir pessoas em torno de um objetivo comum, os thuleanos foram o primeiro povo do Pólo Norte a se permitir um forte crescimento demográfico - a alimentação estava assegurada pelos gigantescos mamíferos marinhos.
Em OdPp-2, paradoxalmente, o único osso de baleia existente é a vértebra pintada. É que apenas focas serviam de refeição às famílias que ali se instalaram. Além da comida abundante, as baleias também contribuíram à arquitetura thuleana. As habitações típicas eram estruturadas com costelas do mamífero, cobertas de pele de foca e bois-almiscarados ou renas. As casas de Nayoat, porém, foram erguidas a partir de grossos troncos de madeira, trazidos à beira-mar pelos rios que desembocam no Oceano Ártico. Estranhos thuleanos estes de OdPp-2 que também não esculpiam em pedra sabão como outros, conterrâneos thuleanos, e que, entretanto, possuíam potes de cerâmica, cozidos não se sabe onde, pois não há indícios da existência de fornos naquela região. "Que mensagem estaria contida naquela pintura, tão singular quanto seus artistas?", pergunta-se o cientista francês.
Jean François Le Mouèl chefia a única equipe estrangeira autorizada a vasculhar, no extremo norte do Canadá, os testemunhos dos povos de língua Inuit, "os homens por excelência", como gostam de ser chamados os habitantes dessas regiões polares - a palavra esquimó foi usada pela primeira vez em 1611, quando o jesuíta francês Biard incorporou o termo eskimavok "comedores de carne crua", utilizado pelos índios Cree Maskegon, do sul da Baía de Hudson, para designar seus inimigos do norte. Le Mouèl, um legítimo representante dos Qavdlunat, que quer dizer "grandes sobrancelhas". Prepara-se para festejar seu qüinquagésimo aniversário a esquadrinhar o solo da Ilha Vitória.
Mas ele já está acostumado. Em 1962, comemorou seus 20 anos ao lado dos Inuit da Baia de Baffin, na costa ocidental da Groenlândia. "A hipótese mais provável é que estes thuleanos do século XV - um período adiantado da cultura de Thule - tenham sido privados de baleias por uma miniera glacial, obrigando-os a uma adaptação rápida e radical", explica o arqueólogo. "O osso de baleia pintado poderia significar, então, a própria ausência do animal e a momentânea impotência do homem diante do acontecimento."
Quando o telefone tocou no laboratório de Le Mouèl, instalado num barco à beira do Rio Sena, na tarde do dia 21 de fevereiro passado, mais uma "frase" de OdPp-2 estava condenada ao ponto de interrogação. Do outro lado da linha, o químico Bernard Guineau, do Centro de Pesquisas Ernest Babelon, de Orléans, afirmava não ter encontrado nenhum traço de óleo ou matéria gordurosa sobre a singela pintura. "Alguma substância deve ter sido utilizada para fixar a pintura e conservá-la durante os seis séculos em que permaneceu cravada na Ilha Vitória", rebateu o arqueólogo, sem obter resposta. Embora enterrada no chamado permafrost, a camada de gelo 3 centímetros abaixo do solo que não se descongela nem durante o verão, é difícil admitir que os traços em Pó de osso tenham resistido ao tempo sem um "auxílio químico".
Ao contrário da gravura ou da escultura, que se perpetuam espontaneamente, a pintura precisa do consentimento do artista para resistir, traduzido comumente por uma camada de verniz. "A importância desta pequena vértebra de baleia é justamente essa. Ao desenhá-la e fixá-la, o thuleano demonstrou que tinha consciência da continuidade de sua civilização e desejou se comunicar com outros que apreciariam sua obra mesmo depois que ele tivesse morrido. É a primeira vez que presenciamos uma expressão artística de Thuleano independente de seus conhecimentos técnicos", assegura Le Mouèl, A escultura, por exemplo, era usada na fabricação de armas. Pintar, no entanto, era uma atividade dissociada de sua tecnologia.
Esses vestígios são informações preciosas para o punhado de pesquisadores que dedicou a vida a compreensão de um povo que até os anos 20 deste século era considerado pré-histórico por não conhecer a escrita e que sobreviveu graças a uma extrema habilidade técnica capaz de vencer o frio, a escassez de alimentos e baleias de 30 toneladas. "Os esquimós fazem parte do imaginário de todos nós", constata o etnólogo Bernard Saladin d´Anglure, da Universidade Laval, de Quebec, no Canadá. "Mesmo incentivados pela nossa enorme curiosidade, por métodos modernos de escavação e pela convivência de alguns séculos, ainda não temos informações suficientes para desvendar a história dos Inuit."
Até há pouquíssimo tempo, por exemplo, achava-se que eram povos extremamente materialistas, desligados de noções religiosas e filosóficas, que se dedicavam apenas a desenvolver técnicas de sobrevivência. "Só agora percebemos uma riqueza de simbolismos impressionamente que passou pelo nosso nariz sem que enxergássemos", diz Bernard. Veterano do Ártico, assim como Le Mouèl, ele passou os últimos trinta anos a ouvir histórias. "Como toda a tradição Inuit é oral, é preciso muito convívio e cumplicidade com esse povo para ter acesso aos seus mitos e também à sua história real."
Muito antes da colonização da Groealândia pelos vikings liderados por Erik, o Vermelho, por volta do ano 1000 e da disseminação, na mesma época, dos povos de Thule, o Pólo Norte conheceu sucessivas ondas de civilizações. Os testemunhos de ocupação mais antigos de que se tem notícia datam de cerca de 4 000 anos. De fato, entre os anos 2000 e 1700 a.C., caçadores de bois-almiscarados e renas vindos do oeste acabaram por se estabelecer do Estreito de Bering até a Groealândia, incentivados, como os próprios thuleanos, por um aquecimento da temperatura. "Estes povos, chamados de Independence I, não caçavam animais marinhos", explica Le Mouèl, "Sua única presa eram os mamíferos terrestres, que acompanharam a floresta em direção ao norte, também por causa da temperatura." A segunda onda de ocupação se deu entre 1500 e 500 a.C.
Os povos chamados de Independence II também se alimentavam de bois-almiscarados e renas e a estrutura de suas habitações era semelhante à das de Independence I, erguidas sobre pedras achatadas e com cômodos separados para o trabalho doméstico e o descanso. Ao contrário dos primeiros, os de Independence II poliam materiais de caça, possuíam uma lança aprimorada com ranhuras perto da lâmina - seguramente mais eficiente na caça aos bois-almiscarados - e, detalhe não menos importante, furavam agulhas retirando lascas de chifres ou madeira no sentido horizontal. "O interessante é que os de Independence I, mais antigos, já dominavam o movimento circular: os furos de suas agulhas eram redondos", intriga-se Le Mouèl.
Supõe-se ainda que os de Independence II domesticassem cães para puxar trenós. A partir do ano 1000 a.C., outra civilização se desenvolveu paralelamente. Os dorsetianos ou de Dorset ocuparam o Ártico por 2 000 anos, ou seja, até cerca do ano 1000. Eram caçadores de foca e exímios escultores; não possuíam cachorros e por isso tinham de puxar seus pequenos trenós a mão. Suas casas eram retangulares, de uma só peça, e iluminadas por potes em pedra-sabão, cerâmica ou metal, com uma mecha no centro ou na borda, que servia como vela. Não fosse pela tradição oral dos Inuit de hoje, essas seriam as únicas informações disponíveis sobre este povo.
Segundo a lenda, porém, os de Dorset viveram no Ártico muito antes dos ancestrais dos Inuit. Suas casas eram tão pequenas que, quando a família se instalava para dormir no fundo do único cômodo, tinham de esticar as pernas contra as paredes. Excelentes caçadores, abatiam renas com apenas uma lançada. Durante o inverno, costumavam esperar um dia inteiro ao lado de um furo sobre o gelo para surpreender uma foca que viesse respirar. Segundo os esquimós de hoje, os dorsetianos foram expulsos do Artico por seus ancestrais, geralmente depois de batalhas sangrentas. Eles contam também que seus ancestrais gostavam da guerra assim como os homens brancos: Estão se referindo, sem dúvida, aos thuleanos.
"A história se encaixa no pouco que sabemos sobre todas estas bravas culturas", diz Le Mouèl, "Os thuleanos não acabaram, como outros povos. Eles se transformaram pouco a pouco nos Inuit contemporâneos. " Com grandes baleeiras e caiaques de pele de foca; um arpão aperfeiçoado de forma que ao penetrar a pele de uma baleia ou foca se coloca na posição horizontal impedindo que a presa escape; uma estrutura social que surgiu da necessidade da caça às enormes baleias misticetas; e, finalmente uma não menos importante fama de brigões, decretou-se a continuidade destes desbravadores.
A tecnologia empregada em suas construções tampouco é desprezível. Para aprisionar calor dentro das casas de forma circular, os thuleanos construíam corredores de entrada de até 7 metros e em declive. Assim, o ar quente que sobe devido a sua pouca densidade, era aprisionado no interior da casa, enquanto o ar frio que desce era expulso pelo corredor. Os potes de pedra-sabão que serviam de suporte para a mecha que iluminava o ambiente ficavam sempre à direita do longo corredor, local onde hoje fica a televisão.
Ao que tudo indica, os thuleanos também passaram por provas de versatilidade e adaptação - as evidências compõem hoje o sítio arqueológico de OdPp-2. Quando as baleias se foram, começaram a caçar focas. Quando não podiam mais dispor de grandes costelas de mamíferos marinhos, se utilizaram da madeira para construir. Cerca de 120 000 Inuit vivem hoje acima do Círculo Polar. Antenas parabólicas já fazem parte da paisagem gelada do Alasca, Canadá e Groenlândia e as lendas antigas duelam com os seriados de televisão na disputa pela atenção dos jovens. Os "grandes sobrancelhas" impregnaram a cultura Inuit de símbolos "ocidentais", mas ainda terão de queimar as pestanas para desvendar o mistério do pequeno caçador, de uma aldeia fora do comum e de um povo sobre o qual só se conhecem alguns rabiscos.
Quatro séculos para a conquista
Da Ásia à América sem contornar a África - um caminho que passa necessariamente pelas grandes latitudes. No começo do século XVI, época de todas as descobertas e de todas as aventuras, o desafio estava lançado. As primeiras expedições começaram logo depois de Cristóvão Colombo. O florentino Giovanni da Verrazzano foi incumbido pelo rei francês Francisco I de explorar pelo norte as regiões descobertas pelo genovês. Mas a passagem que acreditou encontrar, em 1524, nada mais era que a Baia de Hudson, no norte do Canadá.
Dez anos depois, o marinheiro francês Jacques Cartier chegou à aglomeração indígena de MontReal, através do Rio St. Laurent. O inglês William Baffin, por sua vez, ao cabo de duas expedições, descobriu a baía que tem seu nome. Seguir em frente por entre as ilhas canadenses representaria a tão cobiçada passagem do noroeste. Certo, porém, de que se tratava de uma única bala, desistiu e deu meia volta. Em vista de tamanhas dificuldades, as atenções se voltaram para uma possível passagem pelo nordeste, ao largo da costa siberiana.
Duas expedições também foram necessárias ao holandês Willem Barents até que chegasse à costa da Ilha de Nova Zemlya e pressentisse ter encontrado o caminho correto. Poucas horas, porém, foram suficientes para bloquear seu navio, estraçalhar o casco e obrigar a tripulação a seguir em botes salva-vidas até a costa russa. Barents morreu na empreitada e seu diário de bordo, repleto de relatos emocionantes, se transformou no grande best seller da época. Apenas no final do século XVI, a bordo de pequenas e rápidas embarcações, chamadas kotchis, foi que o cossaco Semen Dezhnev e outros sessenta caçadores em busca de peles de animais acabaram por atravessar, sem saber, o Estreito de Bering, que separa o extremo leste da Sibéria do extremo oeste do Alasca.
Mais de um século e meio se passou até que uma expedição oficial norueguesa refizesse a viagem dos soldados russos e que o explorador sueco Adolf Erik Nordenskiörd (1832-1901) fosse acolhido triunfalmente no porto japonês de Yokohama. A passagem pelo noroeste só foi encontrada em 1905 pelo cientista norueguês Roald Amundsen - pioneiro, seis anos mais tarde, das terras do Pólo Sul. O intrépido explorador foi ainda o primeiro a chegar ao Ártico, a bordo de um hidroavião, em 14 de junho de 1924 - quatro anos antes de sua morte, no próprio Pólo Norte, ao tentar resgatar os sobreviventes do dirigível Itália. Outros destemidos se lançaram à conquista em balões, navios, a pé e até puxados por trenós. Nenhum deles, porém, conseguiu provar sua permanência na inóspita região, à exceção do americano Will Steger, que demorou 56 dias para chegar ao extremo norte, a bordo de um trenó. em 1986.
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