A Mão e a Luva - Parte 2 de 3 - Machado de Assis
Suponho que o leitor estará curioso de saber quem era o feliz ou infeliz mortal, de quem as duas trataram no diálogo que precede, se é que já não suspeitou que esse era nem mais nem menos o sobrinho da baronesa, -- aquele moço que apenas de passagem lhe apontei nas escadas do Ginásio.
Era um rapaz de vinte e cinco a vinte e seis anos. Jorge chamava-se ele; não era feio
mas a arte estragava um pouco a obra da natureza. O muito mimo empece a planta, disse o
poeta, e esta máxima não é só aplicável à poesia, mas também ao homem. Jorge tinha um lindo
bigode castanho, untado e retesado com excessivo esmero. Os olhos, claros e vivos, seriam
mais belos, se ele não os movesse com afetação, às vezes feminina. O mesmo direi dos modos,
que seriam fáceis e naturais, se os não tornasse tão alinhados e medidos. As palavras saíam-lhe
lentas e contadas, como a fazer sentir toda a munificência do autor. Não as proferia como as
demais pessoas; cada sílaba era por assim dizer espremida, sendo fácil ver ao cabo de alguns
minutos, que ele fazia consistir toda a beleza de elocução nesse alongar do vocábulo. As idéias
orçavam pelo modo de as exprimir; eram chochas por dentro, mas traziam uma côdea de
gravidade pesadona, que dava vontade de ir espairecer o ouvido em coisas leves e folgazãs.
Tais eram os defeitos aparentes de Jorge. Outros havia, e desses, o maior era um
pecado mortal, o sétimo. O nome que lhe deixara o pai, e a influência da tia podiam servir-lhe
nas mãos para fazer carreira em alguma coisa pública; ele, porém, preferia vegetar à toa,
vivendo do pecúlio que dos pais herdara e das esperanças que tinha na afeição da baronesa.
Não se lhe conhecia outra ocupação.
Não obstante os defeitos apontados, havia nele qualidades boas; sabia dedicar-se, era
generoso, incapaz de malfazer, e tinha sincero amor à velha parenta. A baronesa, pela sua
parte, queria-lhe muito. Guiomar e ele eram as suas duas afeições principais, quase exclusivas.
Tal era a pessoa cujos interesses defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e não
menos de si própria. A baronesa também tinha os seus sonhos, como ela mesma disse, e esses
eram deixar felizes aquelas duas crianças. Jorge pela sua parte estava disposto a estender o
colo ao sacrifício; e, bem examinadas as coisas, talvez amasse sinceramente a moça. A
diferença entre ele e Estêvão é que o seu amor era tão medido como os seus gestos, e tão
superficial como as suas outras impressões.
Do que aí fica dito, facilmente compreenderá o leitor que, dos dois namorados, só
um percebeu logo o sentimento do outro. A alma de Estêvão andava-lhe nos olhos,
enchendo-os de maneira que ele não podia ver nada mais além de Guiomar.
Ao cabo de duas semanas a situação de Estêvão podia dizer-se menos má; na opinião
dele era excelente. A baronesa soube quem ele era; Guiomar contara-lhe tudo; mas a inglesa,
não menos que a observação própria, lhe mostrou que nenhum perigo corria Guiomar, e
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excluído o perigo, restavam as boas qualidades do bacharel, que de todo lhe caiu em graça.
Mrs. Oswald navegou nas mesmas águas mansas, O próprio Jorge, naturalmente porque
confiava em si, não temeu do rival, e pouco tardou que lhe abrisse os cancelos da sua
gravidade. Que admira, pois, que a mesma Guiomar afrouxasse um pouco da primeira rigidez?
Aquele bom rapaz tinha a salutar crendice da esperança, em que muita vez se
resumem todas as bênçãos da vida. Pedia muito, como alma sequiosa que era, mas bem pouco
bastava a contentá-lo. A imaginação multiplicava os zeros; com um grão de areia construiria
um mundo. A afabilidade de uns e a cortesia de outros, tanto bastou para que ele se julgasse
quase no termo de suas aspirações; e posto não lhe desse Guiomar uma só das animações de
outro tempo, -- que aliás tão frágeis eram, ainda assim acreditou ele piamente que o amor
nascia, ou renascia, naquele rebelde coração.
Guiomar, no meio das afeiçoes que a cercavam, sabia manter-se superior às
esperanças de uns e às suspeitas de outros. Igualmente cortês, mas igualmente impassível para
todos, movia os olhos com a serenidade da isenção, não namorados, nem sequer namoradores.
Ela teria, se quisesse, a arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme eles
fossem impacientes ou tíbios; faltava-lhe porém o gosto, -- ou melhor, sobrava-lhe o
sentimento do que ela achava que era a sua dignidade pessoal.
VIII GOLPE
Um dia de manhã acordou Estêvão com a resolução feita de dar o golpe decisivo. Os
corações frouxos têm destas energias súbitas, e é próprio da pusilanimidade iludir-se a si
mesma. Ele confessava que nada havia feito, e que a situação exigia alguma coisa mais.
-- Nunca as circunstâncias foram mais propícias do que hoje, pensava o rapaz;
Guiomar trata-me com afabilidade de bom agouro. Demais, há nela espírito elevado; há de
reconhecer que um sentimento discreto e respeitoso, como este meu, vale um pouco mais do
que lisonjarias de sala.
A resolução estava assentada; restava o meio de a tornar efetiva. Estêvão hesitou
largo tempo entre dizer de viva voz o que sentia ou transmiti-lo por via do papel. Qualquer dos
modos tinha para ele mais perigos que vantagens. Ele receava ser frio na declaração escrita ou
incompleto na confusão oral. Irresoluto e vacilante, ambos os meios adotou e repeliu, a curtos
intervalos; enfim, diferiu a escolha para outra ocasião.
O acaso supriu a resolução, e o premeditado cedeu o passo ao fortuito.
Uma tarde, havendo algumas pessoas a jantar em casa da baronesa, foram passear à
chácara. Estêvão que, como Luís Alves, era dos convivas, afastou-se gradualmente dos outros
grupos, e aproximou-se daquela cerca histórica onde, após dois anos de ausência e
esquecimento, vira, já transformada, a formosa Guiomar. Era a primeira vez que ele punha os
olhos nesse sítio, depois da conversa, que aí tivera com ela. A comoção que sentiu foi
naturalmente grande, ressurgia-lhe o quadro ante os olhos, a hora, o céu brilhante, o doce
alento da manhã, e por fim a figura da moça, que ali apareceu, como a alma do quadro,
trazendo-lhe recordações, que ele julgava mortas, esperanças que supunha impossíveis.
Estêvão curvou a cabeça ao doce peso daquelas memórias, a alma bebeu, a largos
haustos, a vida toda que a imaginação lhe criava e talvez a noite o tomasse na mesma atitude,
se a voz maviosa de Guiomar, lhe não dissesse a poucos passos de distância:
-- Sr. doutor, perdeu alguma coisa?
O rapaz volveu rapidamente a cabeça, e viu a moça, que atravessava uma das calhes
próximas, a olhar e a sorrir para ele. Estêvão sorriu também, e com uma presença de espírito
assaz rara em namorados, sobretudo em namorados como ele era, prontamente respondeu:
-- Não perdi nada, mas achei uma coisa.
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-- Vejamos o que foi.
E Guiomar aproximou-se, a passo firme e seguro, e Estêvão, sem muito vacilar, ali
mesmo forjou uma reflexão filosófica a respeito de um inseto que casualmente passava por
cima de uma folha seca. A reflexão não valia muito, e tinha o defeito de vir um pouco forçada
e de acarreto; a moça sorriu, entretanto, e ia continuar o seu caminho, quando ele, colhendo as
forças todas, a fez deter com estas palavras:
-- E se eu tivesse achado outra coisa?
-- Ainda mais! exclamou ela voltando-se risonha.
Estêvão deu dois passos para Guiomar, desta vez comovido e resoluto. A moça
fez-se séria e dispôs-se a ouvi-lo.
-- Se eu tivesse achado neste lugar, continuou ele, longos dias de esperança e de
saudade, um passado que eu julgara não reviver mais, uma dor oculta e medrosa, vivida na
solidão, nutrida e consolada de minhas próprias lágrimas? Se eu tivesse achado aqui a página
rota de uma história começada e interrompida, não por culpa de ninguém na terra, mas da
estrela sinistra da minha vida, que um anjo mau acendeu no céu, e que, talvez, talvez ninguém
nunca apagará?
Estêvão calou-se e ficou a olhar fixamente para Guiomar.
Aquela declaração repentina e rosto a rosto estava tão longe do temperamento do
rapaz, que ela gastou alguns segundos longos primeiro que voltasse a si do assombro. Ele
próprio admirava-se do atrevimento que tivera; e enquanto pendia dos lábios da moça,
repassava na memória, aliás confusamente, o que tão a frouxo lhe saíra do peito naquela hora
de abençoada temeridade.
-- Se tivesse achado tudo isso, respondeu Guiomar sorrindo, é natural que preferisse
achar outra coisa menos melancólica. Entretanto, parece que nada mais achou do que esta
ocasião de falar, com a viva imaginação que Deus lhe deu; num ou noutro caso, porém, posso
decerto lastimá-lo ou admirá-lo, mas não me é dado ouvi-lo.
E Guiomar ia de novo afastar-se, quando Estêvão, receando perder a ocasião que a
fortuna lhe oferecia, disse de longe com voz triste e súplice:
-- Atenda-me um só minuto!
-- Não um, mas dez -- respondeu a moça estacando o passo e voltando o rosto para
ele -- e serão provavelmente os últimos em que falaremos a sós. Cedo à comiseração que me
inspira o seu estado; e pois que rompeu o longo e expressivo silêncio em que se tem
conservado até hoje, concedo-lhe que diga tudo, para me ouvir uma só palavra.
A moça falara num tom seco e imperioso, em que mais dominava a impaciência do
que a comiseração a que vinha de aludir. O coração de Estêvão batia-lhe como nunca, -- como
o coração costuma bater nas crises de uma angústia suprema. Todo aquele castelo de vento,
laboriosamente construído nos seus dias de ilusão, todo ele se esboroava e desfazia, como
vento que era. Estêvão arrependera-se do impulso que o levara a violar ainda uma vez o
segredo dos seus sentimentos íntimos, a abrir mão de tantas esperanças, alimentadas com o
melhor do seu sangue juvenil.
Alguns instantes decorreram em que nem um nem outro falou; ambos pareciam
medir-se, ela serena e quieta, ele trêmulo e gelado.
-- Uma só palavra, repetiu Estêvão, e essa adivinho que será de desengano. Embora!
Pois que me atrevi a dizer-lhe alguma coisa, força é que lhe diga tudo, -- feliz, se me restar, ao
menos, a maior fortuna a que já agora posso aspirar, -- o seu remorso.
Guiomar ouvira-o tranqüilamente; a última palavra fê-la estremecer. Sorriu,
entretanto, de um sorriso um pouco voluntário e esperou.
A narração foi longa, tanto quanto o permitiam a ocasião, o lugar e a pessoa; durou
apenas dez minutos. Estêvão nada lhe escondeu, nem o amor que lhe tivera outrora, nem o que
agora lhe renascia, mais violento que o primeiro; disse-lhe as dores que curtira, as esperanças
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que afinal lhe enfloravam a alma, tudo quanto empreendera para ter a ventura de a contemplar
de perto, de gozar naquele escasso ponto da terra a maior de todas as bem-aventuranças.
Tal é a transcrição, não literal, mas fiel, do que disse Estêvão durante esses dez
minutos. As palavras caíam-lhe trêmulas e a voz saia-lhe sumida, em parte porque ele forcejava
em a abafar, a fim de que o não ouvissem, em parte porque a comoção lhe comprimia a
garganta. A dor era visivelmente sincera; a eloqüência vinha do coração.
Guiomar não ouvira tudo com a mesma expressão; a princípio um meio riso parecia
desabrochar-lhe os lábios, mas não tardou que pelo rosto abaixo lhe caísse um véu mais
compassivo e humano. Havia nela impaciência e ansiedade de acabar, de sair dali; era, sem
dúvida, o receio de que a ausência se prolongasse de maneira que inspirasse suspeitas. Mas
havia também comiseração e piedade.
-- Nenhuma culpa lhe pode caber do mal que tenho padecido, disse Estêvão
concluindo; sobretudo agora, só eu, só a minha cabeça é a causa única de tudo. Parecia-me ver
o contrário do que existia; cheguei a supor que havia em seu coração alguma coisa que não era
a total indiferença; vejo que foi tudo ilusão.
O tom em que ele falara era o mesmo das palavras que aí ficam, todas humildes e
resignadas, sem o menor laivo de queixa ou de reproche. Uma submissão assim devia por força
comover a uma mulher amada. Guiomar falou-lhe sem azedume:
-- Era ilusão, disse ela. O sentimento que me acaba de revelar inteiro, ninguém o
recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega. Posso eu ter culpa disso?
-- Nenhuma.
-- Nem o senhor também, e espero que esta mútua justiça avigore o sentimento de
estima que devemos ter um para com o outro. Mas estima apenas, não pode haver outra
coisa, -- da minha parte ao menos. É pouco, decerto...
-- Não é pouco, é coisa diferente, interrompeu Estêvão.
-- Mas não espere nada mais, concluiu Guiomar sem ouvir a interrupção.
Estêvão abriu a boca para falar, mas não achou palavra que lhe dissesse o que sentia;
levou a mão ao coração, que batia fortemente, e ficou a olhar para ela com os olhos secos e
parados, a voz extinta, como se a alma lhe fugira toda. Era claro, depois daquele desengano,
que lhe cumpria não voltar ali mais, pelo menos com a assiduidade da esperança; e assim era
que a única e amarga satisfação de a ver, nem essa já agora se lhe consentia.
-- Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja
homem, vença-se a si próprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma criança.
-- Talvez, respondeu o moço suspirando.
-- E adeus. Falamos a sós, mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto.
Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas
palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis.
Guiomar estendeu-lhe a mão, em que ele tocou levemente.
A baronesa apareceu, entretanto, a algumas braças de distância; vinha encostada ao
braço do sobrinho, que lhe falava, mas a quem ela já não ouvia. Tinha os olhos cravados nos
dois interlocutores de há pouco. A moça, apenas vira de longe a madrinha, deu afoitamente o
braço a Estêvão, e seguiram ambos a encontrar-se com ela; o rosto de Guiomar não revelava
nada; o de Estêvão vinha perturbado e abatido. A baronesa franziu a testa:
-- Jorge, disse ela em voz baixa, precisamos conversar.
IX CONSPIRAÇÃO
A baronesa, quando se lhe aproximaram os dois interlocutores da cerca, mais receosa
ficou e mais perplexa. Guiomar vinha risonha e até gracejadora; mas o abatimento de Estêvão
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era tão mal disfarçado, que de duas uma, -- ou ela acabava de lhe dar o último
desengano, -- ou aquilo era apenas um arrufo sério, que o moço não podia ou não queria
esconder de olhos estranhos. Isto é o que a baronesa pensou. O que ela concluiu foi que, em
todo caso, urgia tentar alguma coisa em favor do maior, -- do único sonho da sua velhice.
Jorge não percebeu a verdadeira razão por que a tia lhe dissera ser necessário
conversar com ela; imaginou que se trataria de Guiomar e Estevão, -- mas estava longe de
supor todo o alcance da entrevista.
A entrevista não pôde ser logo nesse dia; as visitas ficaram ali até tarde, e a noite foi
a mais agradável e distraída de todas as noites; Guiomar, sobretudo, esteve como nunca, jovial
e interessante. A serenidade parecia morar-lhe na alma e refletir-se-lhe no rosto, -- tantas vezes
pensativo, mas agora tão frio e tão nu.
Não será preciso dizer a um leitor arguto e de boa vontade... Oh! sobretudo de boa
vontade, porque é mister havê-la, e muita, para vir até aqui, e seguir até o fim, uma história,
como esta, em que o autor mais se ocupa de desenhar um ou dois caracteres, e de expor alguns
sentimentos humanos, que de outra qualquer coisa, porque outra coisa não se animaria a
fazer; -- não será preciso declarar ao leitor, dizia eu, que toda aquela jovialidade de Guiomar
eram punhais que se lhe cravavam no peito ao nosso Estêvão. Ele não podia supô-la abatida;
mas penalizada, ao menos, um pouco respeitosa para com a dor que havia nele, isto, sim,
imaginava que seria. Mas nada disso foi, e o pobre rapaz saiu dali mais cedo do que pensara e
quisera sair.
Na alcova, se ele pudesse vê-la mais tarde na alcova, solitária e toda consigo, sentada
na poltrona rasa ao lado da cama, com os cabelos desfeitos, os pezinhos metidos nas chinelas
de cetim preto, as mãos no regaço e os olhos vagando de objeto em objeto, como se
reproduzissem fora as atitudes interiores do pensamento, ali não só ele a adoraria de joelhos,
mas até poderia supor que alguma preocupação lhe tirava o sono e que essa era nem mais nem
menos ele próprio.
Talvez fosse; em parte ao menos seria ele. Guiomar não tinha um coração tão mau,
que lhe não doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar. Mas
fosse uma, ou fossem muitas as causas daquela preocupação, a verdade é que ela durou muito
tempo. Guiomar passou da poltrona à janela, que abriu toda, para contemplar a noite, -- o luar
que batia nas águas, o céu sereno e eterno. Eterno, sim, eterno, leitora minha, que é a mais
desconsoladora lição que nos poderia dar Deus, no meio das nossas agitações, lutas, ânsias,
paixões insaciáveis, dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco,
debaixo daquela azul eternidade, impassível e muda como a morte.
Pensaria nisto Guiomar? Não, não pensou nisto um minuto sequer; ela era toda da
vida e do mundo, desabrochava agora o coração, vivia em plena aurora. Que lhe
importava, -- ou quem lhe chegara a fazer compreender esta filosofia seca e árida? Ela vivia do
presente e do futuro e, -- tamanho era o seu futuro, quero dizer as ambições que lho
enchiam, -- tamanho, que bastava a ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais
lhe dera. Do passado nada queria saber; provavelmente havia-o esquecido.
A madrugada achou-a dormindo; mas os primeiros raios do sol vieram acordá-la, na
forma do costume, para o matinal passeio com a madrinha. Guiomar sacrificava tudo à
dedicação filial de que já dera tantas provas. A baronesa, entretanto, estava preocupada; o
passeio foi diferente do dos outros dias.
Ao meio-dia meteu-se Guiomar no carro, com Mrs. Oswald, e saíram a uma visita. A
baronesa ficou só; Jorge não a deixou ficar só por muito tempo, porque chegou daí a pouco.
A baronesa não perdeu tempo em circunlóquios. Apenas viu o sobrinho interpelou-o
diretamente.
-- Disseram-me, foi Mrs. Oswald quem me disse que tu gostas de Guiomar.
Jorge não contava muito com semelhante interrogação; todavia, não era tão ingênuo
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que corasse, nem tão apaixonado que lhe tremesse a voz. Puxou gravemente os punhos da
camisa, concertou a gravata, e respondeu singelamente:
-- Não me atrevia a falar-lhe destas coisas...
-- Por que não? interrompeu a baronesa; são assuntos que se podem tratar entre mim e
ti, sem desar para nenhum de nós. É então verdade o que me disse Mrs. Oswald?
-- É.
-- Amas deveras, ou...
-- Deveras. Recuaria, se visse que uma aliança entre nós ficava mal ao lustre de nossa
família; mas, posto que ela seja...
-- Guiomar é minha filha, apressou-se a dizer a baronesa.
-- Justamente; não pode haver melhor título.
-- Tem ainda outro, continuou a baronesa; é uma alma angélica e pura. Henriqueta
não teve melhor coração nem mais amor aos seus. Além disso, a natureza deu-lhe um espírito
superior, de maneira que a fortuna não fez mais do que emendar o equívoco do nascimento.
Finalmente é de uma beleza pouco comum...
-- Rara, titia, pode dizer que é de uma beleza rara, acudiu Jorge, e pela primeira vez
lhe luziu nos olhos alguma coisa, que não era a gravidade de costume.
-- Já vês, prosseguiu a baronesa, que ela possui todos os direitos ao amor e à mão de
um homem, como tu.
A baronesa tinha um coração ingênuo e liso, sem desvios nem astúcias; contudo, há
ocasiões em que o mais reto espírito emprega, como por instinto, finuras diplomáticas. A boa
senhora tinha tanto a peito aquela união do sobrinho com a afilhada, que não confiava só do
amor; procurava interessar-lhe também o amor-próprio.
Jorge curvou-se com afetada modéstia.
-- Um homem, como eu, -- disse ele -- vale pouco por si mesmo; o valor que tenho, e
esse é muito, vem do nome de meus pais e do seu, titia, e das santas qualidades que a
adornam.
-- Só uma, Jorge, só uma qualidade santíssima: é a de amá-los, a ti e a ela. Por isso foi
imenso o gosto que senti quando Mrs. Oswald me disse que gostavas de Guiomar. Acredita
que se eu tivesse a fortuna de ver a vocês unidos e felizes, morreria contente.
-- Oh! isso! disse Jorge com ar de dúvida.
-- Julgas impossível o casamento?
-- Impossível, não; impossível, nada há. Mas... mas suponho que a vontade dela é
indispensável, tão indispensável como duvidosa.
-- Duvidosa! Estás certo disso?
Jorge tinha-se levantado e dera alguns passos, não agitado de todo, mas um pouco
fora da impassibilidade usual. A idéia do casamento aparecia-lhe agora um pouco mais
possível e exeqüível, desde que a tia francamente lhe propusesse aliança.
-- Estás certo disso? repetiu a baronesa.
-- Certo não; mas há toda a razão para a dúvida. Guiomar sabe que eu gosto dela; e
contudo não me dá o menor sinal de corresponder aos meus sentimentos.
Jorge expôs longamente todas as razões que tinha para crer que a vontade de
Guiomar não correspondia à dele; referiu-lhe, com a maior exação e fidelidade, uns três ou
quatro episódios que lhe pareciam boa prova daquilo que dizia. A baronesa não ouvia tudo
com igual atenção. Quando ele acabou:
-- Guiomar será muito vexada, -- disse ela -- e às vezes, e por isso mesmo, tem essas
aparências frias. Nada impede, porém, a que venha a amar-te, se é que já te não ama. Há nela
certa altivez natural, que pode explicar também essa frieza; parece-me que lhe seria penoso
receber o amor de alguém que julgasse levantá-la até si.
-- Isso, talvez...
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-- Mas esse sentimento, que pode ser e é honroso, não é decerto invencível.
Todas estas palavras da baronesa lisonjeavam o sobrinho, em cujos lábios pairava
agora um sorriso de íntima satisfação. De quando em quando não ouvia ele nada do que lhe
dizia a tia; seus ouvidos voltavam-se para dentro; ele escutava-se a si próprio. O amor de
Guiomar começava a parecer-lhe possível; tudo quanto a baronesa lhe dizia era razoável, com a
vantagem de lhe esclarecer as faces obscuras da situação. Demais, até que ponto a baronesa
conjecturava ou revelava? Bem podia ser que ela tivesse lido mais fundo no coração da moça.
Estas reflexões fê-las Jorge, enquanto a baronesa continuava a falar e a desenvolver a
idéia que ultimamente indicara. Até aquele dia havia ele limitado toda a sua ação a alguns
olhares, e raras palavras de cumprimento; a entrevista com a tia dera-lhe animação; pareceu-lhe
chegado o ensejo de sair daquela paz armada.
Guiomar chegou daí a pouco e achou-os na "saleta de trabalho", eufemismo elegante,
que queria dizer literalmente -- saleta de conversação entremeada de crochet. Mrs. Oswald
vinha com ela; ambas riam alegremente de não sei que episódio visto no caminho. Jorge
erguera-se, pausado mas risonho, apertou a mão de Guiomar, -- apertou-a deveras, mais do que
era usual e cortês. Guiomar não pareceu afligir-se; perguntou-lhe pela saúde, transmitiu à
madrinha as lembranças que lhe mandavam e dispôs-se a sair.
Durante esse tempo, Jorge olhava para ela, enlevado deveras na contemplação de
toda aquela nobre figura, agora mais bela que dantes, desde que se lhe tornara possível a
aliança há muito sonhada. Havia nos olhos de Jorge uns tais ou quais vestígios lúbricos, donde
se podia colher que, se ele fosse poeta, e poeta arcádico, editaria pela milionésima vez a
comparação da Vênus e dos seus infalíveis amorinhos; comparação detestável, sobretudo,
porque a casta beleza de moça, se alguma coisa pagã lhe podia ser chamada, seria antes Diana
convertida ao Evangelho.
Jorge saiu dali singularmente agitado; a conversa da baronesa dera-lhe nervo e
resolução, e o quadro do casamento começou a desenhar-se-lhe no espírito, como o relógio que
o menino tem de usar pela primeira vez. Até ali deixara-se ele ir à feição das águas; agora via a
necessidade e a possibilidade de abicar à riba feliz do matrimônio.
As dúvidas de Jorge não lhe saltearam o espirito; apenas chegou a casa travou da
pena, e lançou na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que
todavia refundiu duas ou três vezes, primeiro que a desse por pronta. Acabada a redação final,
transcreveu aquela prosa do coração na mais nítida folha que havia em casa, -- dobrou o escrito
e meteu-o na algibeira.
De noite foi à casa da tia. Achou as senhoras à volta de uma mesa; Guiomar lia, para
a madrinha ouvir, um romance francês, recentemente publicado em Paris e trazido pelo último
paquete. Mrs. Oswald lia também, mas para si, um grosso volume de Sir Walter Scott, edição
Constable, de Edimburgo.
Jorge veio interrompê-las um pouco, mas só interromper, porque a leitura continuou
logo depois, ajudando ele próprio a Guiomar naquela filial tarefa. Veio o chá, veio depois a
hora de recolher, e a baronesa deu por findo o serão, ainda que o livro estava quase findo.
-- Um capítulo mais, aventurou Jorge com o livro aberto nas mãos.
A baronesa sorriu e voltou os olhos para Guiomar, a cuja conta lançou aquela
dedicação do sobrinho; recusou contudo, por estar a cair de sono.
-- Eu é que não me deito sem saber o resto, declarou Guiomar; levo o livro comigo.
-- Ah! disse Jorge com um gesto de satisfação.
E enquanto Guiomar se dispunha a acompanhar a madrinha até à porta do quarto, e
Mrs. Oswald marcava a página e fechava o seu livro, Jorge igualmente fechava o outro, mas
com tal demora e cuidado, que deu muito que entender à inglesa. Se ela chegou a entender,
vê-lo-emos depois; o certo é que o livro foi enfim entregue a Guiomar, tendo a página
marcada, não com a fita que lá estava pendente, mas com um pedacinho de papel.
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O pedacinho de papel era a carta; apenas uns poucos centímetros de altura; mas por
mais exíguas que tivesse as dimensões, bem podia ser que levasse ali dentro nada menos que
uma tempestade próxima.
X A REVELAÇÃO
Meia hora depois, indo a abrir o livro para continuar a leitura, viu Guiomar a cartinha
de Jorge. Não tinha sobrecarta; era um simples papelinho dobrado, recendendo a amores. O
espírito de Guiomar estava tão longe daquilo que não suspeitou nada e distraidamente o abriu.
A primeira palavra escrita era o seu nome; a última era o de Jorge.
O primeiro gesto de Guiomar foi de cólera. Se ele pudesse espreitá-la pelo buraco da
fechadura, e ver-lhe a expressão do rosto, e mui provável que se lhe convertesse em
aborrecimento todo o amor que até agora nutria. Mas ele não estava ali, a moça podia traduzir
fielmente no rosto os movimentos do coração.
-- Mais um, pensou ela; este porém...
E desta vez o gesto não foi de cólera, foi de alguma coisa mais, metade fastio,
metade lástima, mescla difícil e rara.
A moça ficou algum tempo quieta, a olhar para o papel, sem o querer ler, como a
hesitar entre queimá-lo ou restituí-lo intacto a seu autor. Mas a curiosidade venceu por fim;
Guiomar abriu o papel e leu estas linhas:
"GUIOMAR! Perdoe-me se lhe chamo assim; as convenções sociais condenam-me
decerto, mas o coração aprova, que digo? ele mesmo escreve estas letras. Não é a minha pena,
não são os meus lábios que lhe falam deste modo, são todas as forças vivas da minha
existência, que em alta voz proclamam o imenso e profundo amor que lhe tenho.
"Antes de o ler neste papel, já a senhora o há de ter visto, pelo menos adivinhado nos
meus olhos, na doce embriaguez que em mim produz a presença dos seus. Persuado-me de que
todo o meu esforço em recalcar este afeto é vão; por mais que eu sinceramente deseje
esquecê-la, não o alcançarei nunca; não alcançarei mais que uma aflição nova. O remorso de o
tentar virá coroar os demais infortúnios.
"Por que razão rompo hoje o silêncio em que me tenho conservado, medroso e
respeitoso silêncio que, se me não abre o caminho da glória, ao menos conserva-me a palma da
esperança? Nem eu mesmo saberia responder-lhe; falo, porque uma força interior me manda
falar, como transborda o rio, como se derrama a luz; falo porque morreria talvez se me calasse,
do mesmo modo que morrerei de desespero, se além do perdão que lhe peço, me não der uma
esperança mais segura do que esta que me faz viver e consumir. -- JORGE."
Guiomar leu esta carta duas vezes, uma leitura de curiosidade, outra de análise e
reflexão, e ao cabo da segunda achava-se tão fria como antes da primeira. Olhou algum tempo
para o papel e mentalmente para o homem que o havia escrito; enfim, pôs a carta de lado, abriu
o livro e continuou o romance.
Mas o espírito, que não ficara tão indiferente como o coração, entrou a fugir-lhe do
romance para a vida, com tal tenacidade que não houve remédio senão irem os olhos atrás
dele, e a moça de novo mergulhou nas reflexões que lhe sugeria o caso da paixão de Jorge.
Paixão não era, -- não o seria ao menos no sentido inteiro do vocábulo; mas alguma
coisa menos, ou parecida com ela, e ainda assim verdadeira, via bem Guiomar que o poderia
ser. Até que ponto chegaria entretanto,o seu adorador, se ela o desatendesse logo; e, dado o
amor que a baronesa tinha ao sobrinho, até que ponto a recusa iria magoá-la? Guiomar varreu
do espírito os receios que lhe nasciam de tais interrogações; mas sentiu-os primeiro, pesou-os
antes de os arredar de si, o que revelará ao leitor em que proporção estavam nela combinados o
sentimento e a razão, as tendências da alma e os cálculos da vida.
[Linha 1300 de 2741 - Parte 2 de 3]
Excluído o receio, voltou-lhe o riso, aquele riso interior, que é o mais involuntário e
cruel, e também o menos arriscado que a gente pode dar às fatuidades humanas. Não podia ser
tão desprezível assim o amor de um homem, cuja ridiculez compensavam algumas qualidades
boas, e que enfim era também distinto, ainda que a sua distinção primasse antes por um estilo
rendilhado e complicado, que não é o melhor. Guiomar via tudo isso, e por outro lado, não
podia obstar que ele a amasse; nem por isso achava menos temerária aquela confissão.
A moça refletia também na posição especial que tinha naquela casa o sobrinho da
baronesa; via-se obrigada à presença dele, e talvez à luta, porque o pretendente não recuaria
do primeiro golpe. Não havia tais receios da parte de Estêvão; ela reconhecia que a paixão
deste era ardente e profunda, e por isso mais capaz de desatinos; mas comparava as índoles
dos dois homens, e se ambos lhe pareciam de fraca compleição moral, nem por isso
desconhecia que ao bacharel faltava certa presunção que distinguia o outro, e com a qual teria
talvez de pelejar.
Quando ela fez esta comparação entre os dois homens, ficaram-lhe os olhos um
pouco mais moles e quebrados, obra de três minutos apenas, mas três minutos que, se Estêvão
soubera deles, trocaria por eles o resto de toda a vida. E contudo, não era amor nem saudade;
alguma simpatia, sim, ainda que leve e sem conseqüência; mas sobretudo era pena de o não
poder amar, -- ou ainda melhor -- era lástima de que tal coração não fora casado a outro
espirito.
Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também, soltando
o pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos navegamos alguma vez na
vida, quando nos cansa a terra firme e dura, e chama-nos o mar vasto e sem praias. A
imaginação dela porém não era doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir
colher flores em regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. Nada disso era nem
fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da terra.
Volveu enfim e os olhos caíram-lhe na carta. A realidade presente não se lhe podia
mostrar de pior modo. Guiomar ergueu-se irritada, lançou mão do papel e machucou-o
febrilmente; ia talvez rasgá-lo, quando ouviu bater de manso à porta.
-- Quem é? perguntou.
-- Sou eu, respondeu a voz de Mrs. Oswald.
A moça foi abrir a porta; a inglesa entrou, trajada de dormir, e um vivo espanto nos
olhos, que pareceu tirar-lhe a voz durante alguns segundos. Guiomar assustada perguntou:
-- Que é? aconteceu alguma coisa a minha madrinha?
-- Longe vá o agouro! exclamou a inglesa. Não lhe aconteceu nada; a senhora
baronesa dorme naturalmente a sono solto. Venho porque do meu quarto pareceu-me ouvir
rumor de passos aqui, e depois vi luz. Pensei que tivesse algum incômodo. Mas, pelo que vejo,
continuou a inglesa deitando os olhos para a mesinha em que pousava o livro aberto, -- pelo
que vejo ainda não acabou de ler o seu romance...
-- Não li ainda uma linha, depois que me recolhi, respondeu Guiomar cravando os
olhos no rosto da inglesa, como tomada de um pensamento súbito.
-- Deveras!
-- Li outra coisa, continuou a moça; li este papel.
Mrs. Oswald inclinou-se para ler também o papel, que aliás adivinhou qual fosse;
Guiomar atirou-o sobre a mesa.
-- Não precisa, disse ela; é uma declaração amorosa.
-- De quem? perguntou a inglesa abrindo uns olhos espantados e obedientes.
-- Leia o nome.
Mrs. Oswald leu a assinatura da carta, que a moça de novo lhe apresentava.
-- Naturalmente, continuou Guiomar, há nisto obra sua...
-- Minha! interrompeu a outra um pouco mais rispidamente do que costumava falar.
[Linha 1350 de 2741 - Parte 2 de 3]
Guiomar tinha ido sentar-se; o pezinho impaciente batia no tapete, com um
movimento rápido e regular; cruzara os braços sobre o peito, fitando a inglesa com uns olhos
em que se podia ler a viva exacerbação do espírito. Seguiu-se curto silêncio; Mrs. Oswald
puxou outra cadeira e sentou-se perto da moça.
-- Por que há de ser injusta comigo? disse ela dando à voz um tom melífluo e
suplicante; por que não há de ver as coisas, como elas naturalmente são? O que há nisto é uma
coincidência curiosa, mas nada mais. Se lhe falei em semelhante coisa algumas vezes, foi
porque eu mesma percebi o amor que lhe tem o Sr. Jorge; é coisa que todos vêem. Imaginei
que o casamento, neste caso, seria agradável à senhora baronesa a quem sou grata. Posso ter
feito mal...
-- Muito mal, interrompeu Guiomar; são coisas de família em que a senhora nada tem
que ver.
Guiomar levantou-se outra vez, deu alguns passos, e voltou a sentar-se. Com o
movimento desprenderam-se-lhe os cabelos e caíram-lhe sobre os ombros. Mrs. Oswald
aproximou-se dela para os colher e atar, mas a moça secamente a repeliu:
-- Deixe, deixe...
E ela mesma os recompôs com as suas mãozinhas finas, e ficou depois a olhar para o
chão, a morder o lábio, a respirar fortemente, como se contivera a palavra que forcejava por
sair impetuosa e colérica. Mrs. Oswald não disse nada durante alguns minutos; esperou que
passasse o período agudo da irritação. Quando lhe pareceu que ela afrouxava, rompeu enfim o
silêncio.
-- Fiz mal, fiz não há dúvida, mas a intenção não podia ser melhor. Talvez não me
creia; paciência! O que lhe peço, -- nem lhe peço, -- o que eu acredito piamente é que não me
há de atribuir algum interesse de ordem...
Mrs. Oswald fez uma pausa para dar aberta ao protesto de Guiomar, mas Guiomar
não protestou, quero dizer não protestou de viva voz; fez apenas um gesto negativo, bastante a
satisfazer os melindres da inglesa. A moça foi sincera; não atribuía realmente a nenhum
interesse vil, -- pecuniário, -- a ação de Mrs. Oswald. Nem por isso a absolvia, -- não só porque
ela viria concorrer talvez para uma crise penosa, mas também, -- bom é notá-lo outra
vez, -- porque a condição da inglesa naquela casa era relativamente inferior.
A inglesa continuou a falar em defesa própria, a justificar miudamente os bons
sentimentos do coração, e a prometer que deixava por mão todo aquele negócio, a seu juízo, o
melhor que a moça podia fazer.
-- A experiência da vida, concluiu ela, devia ter-me convencido de que o melhor de
todos os sentimentos é um egoísmo quieto e calado.
Enquanto ela falava assim, Guiomar parecia volver à tranqüilidade habitual. A
mudança foi, -- não súbita, -- mas um pouco mais rápida do que devera ser, tratando-se de um
espírito, como o dela, em que as impressões não eram superficiais nem momentâneas. Havia
até uns toques de afabilidade no rosto e na voz, quando ela começou a falar, o que revelaria
talvez ser aquela mudança muito voluntária e meditada.
-- Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as coisas chegassem a
este ponto, e que ele se lembrasse de escrever semelhante carta, confessando uma paixão que
acredito sincera, mas a que o meu coração não pode corresponder. Amores não se
encomendam como vestidos; sobretudo não se fingem, ou não se devem fingir nunca.
-- Oh! decerto!
-- Eu gosto dele, como parente que é de minha madrinha, e também porque ela lhe
tem afeição de mãe, como a mim; somos uma espécie de irmãos, nada mais.
-- Tem muita razão, assentiu Mrs. Oswald. A senhora pensa e fala como um doutor.
Que se lhe há de fazer? Quem não ama não ama. Dele é que eu tenho pena!
-- Gosta muito de mim, não? perguntou Guiomar fitando os olhos na inglesa.
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-- Oh! parece que sim! A senhora deve sabê-lo tanto como eu; eu sei o que tenho
visto, e creio que é muito.
-- Eu nunca vi nada, respondeu secamente Guiomar.
A resposta de Mrs. Oswald foi um sorriso de incredulidade, que a outra não viu ou
não quis ver. Houve uma pausa; Guiomar continuou nestes termos:
-- Mas seja como for, a minha resposta é negativa. Estou que ele não me fará a injúria
de querer casar comigo, sem que eu o ame...
Guiomar parou, como a esperar que a outra lhe dissesse alguma coisa. Desta vez
coube a Mrs. Oswald não responder nada, nem com a voz nem com o gesto. A moça inclinou
o corpo, pôs os braços sobre os joelhos, com os dedos cruzados, e entre um riso amável e um
olhar afetuoso, continuou:
-- A senhora podia, se acaso ele alguma vez lhe falou nisso ou vier a falar-lhe, podia
dissuadi-lo de tais idéias, dizendo-lhe simplesmente a verdade e dando-lhe conselhos, os
conselhos que a senhora há de saber dar, e que ele aceitará decerto, porque é um bom coração,
um caráter estimável...
-- Oh! excelente! um moço excelente!
E as duas ficaram a olhar uma para a outra, Guiomar a sorrir, mas de um sorriso, que
era uma contração voluntária dos músculos, e a inglesa a fazer um rosto de piedade, e
adoração, e pena, e muita coisa junta, que a moça só começou a compreender, quando ela
rompeu o silêncio deste modo:
-- Estou a duvidar se devo dizer-lhe o resto.
-- O resto? perguntou Guiomar admirada. Pois que há mais?
A inglesa aproximou a cadeira. Guiomar endireitou o busto e esperou ansiosa a
revelação, -- se revelação era, -- que lhe ia fazer Mrs. Oswald. Esta não falou logo; era razoável
hesitar um pouco, lutar consigo mesma, antes de dizer alguma coisa. Enfim, com um
movimento de quem ajunta as forças todas e as emprega em coisa superior à coragem
usual: -- D. Guiomar, disse ela, pegando-lhe nas mãos, ninguém pode exigir que se case
sem amar o noivo; seria na verdade uma afronta. Mas o que lhe digo é que o amor que não
existe por ora, pode vir mais tarde, e se vier, e se viesse, seria uma grande fortuna...
-- Mas acabe, acabe, interrompeu a moça com impaciência.
-- Seria uma grande fortuna para a senhora, para ele, ouso dizer que para mim, que os
estimo e adoro, mas sobretudo para a senhora baronesa.
-- Como assim? disse Guiomar.
-- Oh! para ela seria a maior fortuna da vida, porque é hoje o seu mais entranhado e
vivo desejo, o seu desejo verdadeiramente da alma. A senhora...
-- Está certa disso?
-- Certíssima.
-- Não creio, não vejo nada que...
-- Creia, deve crer. Se me promete nada dizer desta nossa conversa, nem fazer
suspeitar por nenhum modo o que lhe estou contando...
-- Fale.
-- Pois bem, -- continuou Mrs. Oswald abaixando a voz, como se alguém pudesse
ouvi-la na solidão daquela alcova, e no silêncio profundo daquela casa, que toda
dormia, -- pois bem, eu lhe direi que por ela mesma tive notícia deste seu desejo. Quando eu
percebi a paixão do Sr. Jorge, falei nisso a sua madrinha, gracejando na intimidade que ela me
permite, e a senhora baronesa em vez de sorrir, como eu esperava que fizesse, ficou algum
tempo pensativa e séria, até que rompeu nestas palavras: "Oh! se Guiomar gostasse dele e
viessem a casar-se, eu seria completamente feliz. Não tenho hoje outra ambição na terra. Há de
ser a minha campanha."
-- Minha madrinha disse isso? perguntou Guiomar.
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-- Tal qual. A resposta que lhe dei foi que o casamento não era impossível, e que nada
mais natural do que virem a amar-se duas pessoas a princípio indiferentes. O amor nasce muita
vez do costume.
Guiomar já mal ouvia o que lhe estava dizendo a inglesa; se ainda olhava para ela, era
com os olhos indecisos e empanados, de quem vai toda absorvida em pensamentos íntimos.
-- Foi desde esse dia, continuou Mrs. Oswald, que me pareceu conveniente falar-lhe
algumas vezes nisso, sondar-lhe o coração, ver se ele favorecia o sonho de sua madrinha,
tornando feliz toda esta casa... Fiz mal, convenho; mas a intenção era a mais respeitável e santa
deste mundo.
-- Decerto, murmurou Guiomar.
Mrs. Oswald pegou-lhe numa das mãos e beijou-a afetuosamente. Guiomar não a
repeliu nem sequer pareceu dar-se-lhe da ternura da inglesa. As duas olharam-se uns breves
minutos, sem dizer nada, como a lerem na alma uma da outra.
Guiomar não tinha a experiência nem a idade da inglesa, que podia ser sua mãe; mas
a experiência e a idade eram substituídas, como sabe o leitor, por um grande tino e sagacidade
naturais. Há criaturas que chegam aos cinqüenta anos sem nunca passar dos quinze, tão
símplices, tão cegas, tão verdes as compõe a natureza; para essas o crepúsculo é o
prolongamento da aurora. Outras não; amadurecem na sazão das flores; vêm ao mundo com a
ruga da reflexão no espírito, -- embora, sem prejuízo do sentimento, que nelas vive e influi,
mas não domina. Nestas o coração nasce enfreado; trota largo, vai a passo ou galopa, como
coração que é, mas não dispara nunca, não se perde nem perde o cavaleiro.
O que a afilhada da baronesa buscava ler no rosto de Mrs. Oswald era se
efetivamente a madrinha nutria aquele desejo, ou se tal revelação não era mais do que um
embuste. O leitor sabe que era verdadeira; mas admitirá, sem dúvida, que a moça só depois de
muito interrogar e examinar lhe desse fé. Creu enfim; creu, porque era verossímil, creu porque
a inglesa não se arriscaria a qualquer indiscrição da parte dela, que de todo a desmascararia.
-- Parece-me, disse Mrs. Oswald, que não fiz mal em lhe dizer tudo o que sabia.
Conselhos não lhe dou nenhuns; o melhor deles não vale a voz do próprio coração. O seu é
puro e reto; consulte-o de boa vontade, e verá se há nele indiferença, ou se alguma faísca...
-- Eu sei! interrompeu Guiomar. Não me lembrou consultá-lo nunca.
-- Faz mal, ele é o relógio da vida. Quem o não consulta, anda naturalmente fora do
tempo. Mas que vejo! continuou Mrs. Oswald deitando os olhos para o reloginho de Guiomar.
Naquele outro relógio faltam dez minutos para uma hora! Uma hora! Que diria a senhora
baronesa se soubesse que ainda estamos aqui de conversa! Retiro-me; Deus lhe dê um sono
sossegado, e sobretudo a faça feliz, como merece. Não lhe recomendo juízo, porque o tem de
sobra. Adeus, até amanhã.
E Mrs. Oswald saiu pé ante pé em direção ao seu quarto.
Guiomar ficou só, ali sentada ao pé da cama, a ouvir o passo surdo e cauteloso da
inglesa. Quando o som morreu de todo, e o silêncio da noite volveu ao que era, profundo e
sepulcral, a moça deixou cair os braços na cama, e a cabeça nas mãos, e um suspiro
desentranhou-se-lhe do peito, longo, ruidoso, magoado, -- o primeiro que o leitor lhe ouve
desde que a conhece -- e enfim estas palavras arrancadas da alma, tão doloridas, -- ia dizer tão
lacrimosas, -- vinham elas:
-- Oh! meus sonhos! meus sonhos!
Não chorou; a alma dela era das que não têm lágrimas, enquanto lhe restam forças.
Os olhos estavam secos e firmes quando ela os ergueu das mãos; o rosto tinha vestígios do
abalo, mas não havia nele desânimo, menos ainda desespero.
XI LUÍS ALVES
[Linha 1500 de 2741 - Parte 2 de 3]
Durante uma inteira e comprida semana, deixou Estêvão de aparecer no escritório
onde trabalhava com Luís Alves; não apareceu também em Botafogo. Ninguém o viu em todo
esse tempo nos lugares onde ele era mais ou menos assíduo. Foram seis dias, não digo de
reclusão absoluta, mas de completa solidão, porque ainda nas poucas vezes que saiu, fê-lo
sempre a horas ou em direções que a ninguém via, e de ninguém era visto.
Mas não fora essa crua e malfadada crise, e é quase certo que ele meteria uma lança
na Africa daqueles dias, que era um ponto muito sério e grave, a questão magna da rua do
Ouvidor e da casa do José Tomás, a ponderosa, crespa e complicada questão de saber se a
Stephanoni estrearia no Ernani. Esta questão, de que o leitor se ri hoje, como se hão de rir os
seus sobrinhos de outras análogas puerilidades, esta pretensão a que se opunha a Lagrua,
alegando que o Ernani era seu, pretensão que fazia gemer as almas e os prelos daquele tempo,
era coisa muito própria a espertar os brios do nosso Estêvão, tão marechal nas coisas ínimas,
como recruta nas coisas máximas.
Infelizmente ele não aparecia, não sabia sequer do conflito e do debate, ocupado
como estava em travar o áspero e sangrento duelo do homem contra si mesmo, quando lhe
falta o apoio, ou a consolação dos outros homens. Todo ele era Guiomar; Guiomar era o
primeiro e último pensamento de cada dia. A sombra da moça vivia ao pé dele e dentro dele,
no livro em que lia, na rua solitária onde acaso transitava, nos sonhos da noite, nas estrelas do
céu, nas poucas flores de seu inculto jardim.
Um leitor perspicaz, como eu suponho que há de ser o leitor deste livro, dispensa que
eu lhe conte os muitos planos que ele teceu, diversos e contraditórios, como é de razão em
análogas situações. Apenas direi por alto que ele pensou três vezes em morrer, duas em fugir
à cidade, quatro em ir afogar a sua dor mortal naquele ainda mais mortal pântano de corrupção
em que apodrece e morre tantas vezes a flor da mocidade. Em tudo isto era o seu espírito
apenas um joguete de sensações contínuas e variadas. A força, a permanência do afeto não lhe
bastava a dar seguimento e realidade às concepções vagas de seu cérebro, -- enfermo, ainda
quando estava de saúde.
A idéia do suicídio fincou-se-lhe mais adentro no espírito, certa tarde em que ele saiu
a espairecer, e viu um enterro que passava, caminho do Caju. O préstito era triste, -- ainda mais
triste pela indiferença que se lia no rosto dos que iam piedosamente acompanhando o morto.
Estêvão descobriu-se e sinceramente desejou ir ali dentro, metido naquelas estreitas tábuas de
pinho, com todas as suas dores, paixões e esperanças.
Não tenho outro recurso, pensou ele; é necessário que morra. É uma dor só, e é a
liberdade.
Ao voltar para casa, uma criança que brincava na rua, em camisa, com os pés na água
barrenta da sarjeta, fê-lo parar alguns instantes, invejoso daquela boa fortuna da infância, que
ri com os pés no charco. Mas a inveja da morte e a inveja da inocência foram ainda
substituídas pela inveja da felicidade, quando ao recolher-se viu as janelas abertas de uma casa
vizinha, e a sala iluminada, e uma noiva coroada de flores de laranjeira, a sorrir para o noivo,
que sorria igualmente para ela, ambos com o sorriso indefinível e único da ocasião.
Os cinco dias correram-lhe assim, travados de enojo, de desespero, de lágrimas, de
reflexões amargas, de suspiros inúteis, até que raiou a aurora do sexto dia, e com ela, -- ou
pouco depois dela, uma carta de Botafogo. Estêvão quando viu o criado da baronesa, à porta
da sala, com uma carta na mão, sentiu tamanho alvoroço, que não ouviu nada do que ele lhe
disse. Suporia que a carta era de Guiomar? Talvez; mas a ilusão durou os poucos instantes que
ele gastou em romper a sobrecarta e desdobrar a folha de papel que vinha dentro.
A carta era da baronesa.
A baronesa perguntava-lhe graciosamente se ele havia morrido, e pedia que fosse
falar-lhe acerca da demanda que ela trazia. Estêvão chegara já ao estado de só esperar um
[Linha 1550 de 2741 - Parte 2 de 3]
pretexto para transigir consigo mesmo; não podia havê-lo melhor. Escreveu rapidamente duas
linhas de resposta, e à uma hora da tarde apeava-se de um tílburi à porta da funesta e deliciosa
casa, onde havia passado as melhores e as piores horas da vida.
-- Sabe por que razão lhe dei este incômodo, além do prazer que tinha em vê-lo?
perguntou a baronesa logo depois dos primeiros cumprimentos.
-- Disse-me que era por causa da demanda...
-- Sim, precisamos assentar algumas coisas, antes da nossa partida.
-- V. Ex.a sai da corte?
-- Vamos para a roça.
Estêvão empalideceu. Na situação dele, aquela viagem era a melhor coisa que lhe
podia acontecer; contudo, fez-lhe mal a notícia. A conversa que se seguiu foi toda sobre o
assunto forense, e durou uma longa hora, sem que aparecesse Guiomar. Ao despedir-se
atreveu-se Estêvão a perguntar por ela.
-- Anda passeando, respondeu a baronesa.
Estêvão despediu-se da constituinte, que o acompanhou até à porta da sala,
repetindo-lhe algumas recomendações, que o advogado mal pôde ouvir e absolutamente lhe
não ficaram de memória.
A esperança de ver a moça levara-o, mais que tudo, àquela casa; saía sem ter o gosto
de a contemplar ainda uma vez; mais do que isso, ameaçado de a não ver tão cedo, ou quem
sabe se nunca mais. Ja ele a refletir nisto e a aproximar-se da porta, onde parava ao mesmo
tempo um carro. Estêvão estremeceu naturalmente, antes de ver quem ia apear-se; grudou-se
ao portal, com os olhos fitos na portinhola, que um lacaio abria apressadamente.
A primeira figura que desceu foi a nossa conhecida Mrs. Oswald, que o fez, sem dar
tempo a que Estêvão lhe oferecesse a mão. O bacharel, desde que a vira, aproximara-se
rapidamente da portinhola.
Guiomar desceu logo depois. A mão apertada na luva cor de pérola pousou
levemente na mão de Estêvão que estremeceu todo. A moça fez-lhe um cumprimento risonho,
murmurou um agradecimento e recolheu-se com a inglesa. Era pouco; mas esse pouco
alvoroçou o bacharel, que enfiou dali para a cidade, em direção ao escritório.
Luís Alves admirou-se de o ver; não foi com um espanto de seis dias, como devera
ser, mas de quarenta e oito horas, quando muito. Que admira? A preocupação de Luís Alves
por aqueles dias era a candidatura eleitoral; a boa-nova devia chegar-lhe na primeira mala do
Norte. Ora, em boa razão, um homem que está prestes a ser inscrito nas tábuas do parlamento,
não pode cogitar muito dos amores de um rapaz, ainda que o rapaz seja amigo e os amores
verdadeiros.
Estêvão não perdeu tempo em circunlóquios; foi entrando e entornando a alma toda,
aflita e consolada a um tempo, no seio do velho amigo e companheiro. A cada trecho da
confissão plena que ele ali lhe fez, respondia um comento, ora sério, ora gracioso de Luís
Alves. Quando Estêvão porém lhe deu notícia de que a família da baronesa ia para a roça, Luís
Alves recolheu o meio-riso que lhe pousava nos lábios desde começo, e com a mais súbita e
sincera admiração, exclamou:
-- Para a roça!
-- Disse-o agora mesmo a baronesa.
-- Mas...
Luís Alves não acabou; olhou ainda meio duvidoso para Estêvão, e ficou algum
tempo calado, a coçar o queixo com a faca de marfim e a olhar para uma gravura que pendia
na parede fronteira.
-- Na situação em que estou, continuou Estêvão, hás de dizer que a viagem é uma
felicidade para mim. Pois não é; não admito a viagem. Se ela sair da corte, eu saio também.
-- Tu estás doido!
[Linha 1600 de 2741 - Parte 2 de 3]
-- Talvez.
Luís Alves saiu daquela natural indiferença com que o ouvia, e lhe falava sempre em
tal assunto. Falou-lhe carinhoso, -- talvez pela primeira vez na vida. O que lhe disse foi apenas
uma edição aumentada do que lhe havia dito em anteriores ocasiões, -- agora com maior
fundamento, porque depois do formal desengano de Guiomar, não havia outro recurso mais
que ir esquecê-la de todo.
-- Oh! isso nunca! interrompeu Estêvão. Demais, não sei, não estou certo se ela falava
de coração naquela tarde...
A candidez com que Estêvão disse isto era a fiel tradução de seu espírito, e a razão
de tais palavras, não a procure o leitor em outra parte mais que não seja aquele sorriso de há
pouco, ao pé do carro, sorriso que lhe bailava no cérebro, como raio de sol coado por entre
nuvens negras de tempestade.
Luís Alves sacudiu a cabeça e enfiou os olhos pelas folhas rabiscadas de uns autos
que tinha diante, e que entrou a folhear vagarosamente. Súbito, bateu uma pancadinha, com a
mão espalmada sobre os papéis, e levantou a cabeça:
-- Há um meio talvez de saber tudo, disse ele, de saber se ela verdadeiramente te
ama, ou... Posso tentá-lo, com uma condição.
-- Qual?
-- A condição de eliminares as tuas pretensões. Que diabo ganhas tu em nutrir uma
paixão sem eficácia nem remédio?
Esta promessa era a mais dura que se podia arrancar de um coração, em que as
gerações de esperanças se sucediam quase sem solução de continuidade; fê-la, todavia,
Estêvão, talvez com a secreta resolução de a trair.
Luís Alves ficou só daí a alguns minutos. As últimas palavras que disse ao colega
foram duas ou três pilhérias de rapaz; mas apenas ficou só tornou-se sério, e inclinando o corpo
para a frente, com os braços na secretária, e a raspar as unhas com um canivete, ali esteve largo
tempo, como a refletir, longe de Estêvão, que aliás já não ia perto, e ainda mais longe dos
autos que tinha diante de si. Mas em que pensava ele, se não era em Estêvão, nem nos autos,
nem também, por agora, nas suas esperanças eleitorais? Paciência, leitor; sabê-lo-ás daqui a
nada. Contenta-te com a notícia de que, ao cabo de vinte minutos daquela abstração, Luís
Alves volveu a si, proferindo em alta voz esta simples palavra:
-- Não há dúvida; é uma ambiciosa.
E descativado daquela preocupação, enterrou-se de todo na leitura dos autos.
XII A VIAGEM
Mal recomeçara Luís Alves a leitura dos autos, entrou no gabinete o criado
apresentando-lhe um bilhete de visita.
-- Que entre! disse o advogado lendo o nome do sobrinho da baronesa.
E logo se ouviu no corredor o passo medido e lento do mancebo, que daí a nada
assomava à porta do gabinete, fazendo uma cortesia, sisuda, mas graciosa.
-- Venho incomodá-lo, doutor? perguntou Jorge.
-- Pelo amor de Deus! exclamou o advogado erguendo-se e indo buscá-lo à porta.
Não me incomodaria em caso nenhum; agora, sobretudo, que a leitura de uns papéis me
fatigou sobremaneira, a maior fortuna que eu poderia desejar é a presença de um homem de
espírito.
Jorge agradeceu este cumprimento um pouco enfático, e retribuiu-o com outra
lisonjaria muito mais extensa e de maior alcance. Quer dizer que ele vinha pedir alguma coisa.
Efetivamente, passados os minutos de intróito e desfiadas as generalidades, Jorge
[Linha 1650 de 2741 - Parte 2 de 3]
empertigou-se mais do que até ali estivera e desfechou esta pergunta abrupta:
-- Sabe que venho pedir-lhe uma coisa grave?
Luís Alves inclinou-se.
-- Grave e simples ao mesmo tempo, continuou o sobrinho da baronesa; mas antes
disso precisava saber se é tão amigo da nossa família, como ela o é do senhor.
-- Oh! decerto!
-- O senhor é o menos assíduo, talvez, das pessoas que lá vão, apesar de vizinho; só
agora o vejo ali mais a miúdo; entretanto é como flor que se trai pelo aroma; minha tia tem a
seu respeito a melhor opinião do mundo; acha-lhe uma gravidade, e eu também a sinto, e nem
compreendo que um homem possa ser outra coisa. Os tais espíritos fúteis...
-- São insuportáveis, concluiu Luís Alves ansioso por chegar ao objeto da visita.
O objeto era a viagem da baronesa. Um comendador, amigo do finado barão, e
fazendeiro em Cantagalo, tinha promessa da viúva, havia dois anos, de ir lá passar algum
tempo. A baronesa esquivara-se sempre a cumprir a palavra dada; agora porém, tal fora a
insistência, que se resolvera a ir. Ora, o que Jorge vinha propor era, -- expressões dele, -- uma
conjuração de amigos para dissuadir a tia daquele projeto. Afiançava ao advogado que, ainda
descoberta a conjuração, teria ele a vida sã e salva.
Luís Alves supôs a princípio que aquilo era um simples pretexto; mas, tendo
observado que a bela Guiomar não era indiferente ao rapaz, compreendeu que este tinha na
conjuração proposta, um interesse inteiramente pessoal. Enfim, Jorge chegou a confessar que,
se a tia insistisse em sair da corte, ele não tinha remédio senão acompanhá-la.
O acordo não foi difícil; ficou assentado que fariam todos os esforços para dissuadir
a baronesa. Jorge quis sair logo; reteve-o Luís Alves algum tempo mais, com expressões de
louvor habilmente tecidas e mais habilmente encastoadas na conversação; e também
deixando-se ir à feição do espírito dele, aceitando-lhe as idéias e os preconceitos, e
aplaudindo-os discretamente, -- sério, quando eles o eram ou pareciam ser, -- chocarreiro
quando vinham com ar de graça, -- respondendo enfim a todos os gestos e meneios do outro,
como faz o espelho por ofício e obrigação: -- toda a arte em suma de tratar os homens, de os
atrair e de os namorar, que ele aprendera cedo e que lhe devia aproveitar mais tarde na vida
pública.
De noite foi Luís Alves à casa da baronesa, onde poucas pessoas havia, todas de
intimidade. A dona da casa, sentada na poltrona do costume, tinha ao pé de si uma senhora da
mesma idade que ela, igualmente viúva, e defronte as suíças brancas e aposentadas de um
ex-funcionário público. Num sofá, viam-se Mrs. Oswald e Jorge a conversarem em voz, ora
muito baixa, ora um pouco mais elevada. Adiante, dois moços contavam a duas senhoras o
enredo da última peça do Ginásio. Mais longe, uma moça da vizinhança gabava a outra a
tesoura de Mme. Bragaldi, que pedia meças, dizia ela, ao pincel do cenógrafo, seu marido.
Enfim, junto a uma das janelas via-se uma mocinha, viva e bonita, a dizer mil ninharias
graciosas a outra pessoa, que era nada menos que a nossa conhecida Guiomar. A conversa,
assim dividida, tornava-se às vezes geral, para recair logo no particularismo anterior; os grupos
modificavam-se também de quando em quando, do mesmo modo que o assunto, e assim se
iam matando agradavelmente as horas, que não resistiam, coitadas, nem apressavam o passo
um minuto sequer.
Luís Alves agregara-se ao grupo da baronesa, ao qual não tardou juntar-se Jorge. O
advogado teve a discrição de esperar que o assunto viesse de si, se viesse, ou de o introduzir
na conversa, quando lhe parecesse de feição. Mas Jorge, que estava impaciente, arrastou o
assunto ao debate. Luís Alves mostrou-se fiel à palavra dada; declarou amavelmente que se
opunha à viagem, como vizinho e amigo, que reclamaria em último caso o auxílio de força
pública; que era um erro e um crime deixar aquela casa viúva da benevolência e da graça e do
gosto e de todas as mais qualidades excelentes que ali iam achar os felizes que a
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freqüentavam; que, enfim, o mal era tamanho, que não deixaria de ser pecado, posto não
viesse apontado nos catecismos, e como pecado, seria de força punido, com amargas penas, no
outro século, pelo que, e o mais dos autos, era sua decisão que a baronesa devia ficar.
Todas estas razões foram ditas como deviam de ser, de um modo galante e folgazão,
a que a baronesa respondia igualmente, e que não daria nada mais de si, se Luís Alves,
mudando de estilo, não fosse pôr o assunto em diferente terreno.
-- Digamos a verdade, senhora baronesa, a viagem há de ser-lhe imensamente
incômoda, se for só isso; suas forças não são decerto iguais às de seus primeiros anos; sua
saúde é melindrosa e não poderá sofrer tanta fadiga. Confesso que falo em nome de certo
interesse pessoal de amigo e de vizinho; mas a principal razão não é essa. Se houvesse um
motivo urgente, bem; mas tratando-se apenas de uma promessa feita há tanto tempo, seria
crueldade da minha parte não insistir que ficasse.
A baronesa defendia-se, e Luís Alves não tardou em reconhecer de si para si que ela
não se defendia com o vigor de uma resolução original e própria. A conversa, entretanto,
tornara-se mais geral; de todos os lados partiam votos de oposição.
Guiomar havia já alguns minutos que não atendia à interlocutora; tinha o ouvido
afiado e assestado sobre o grupo da madrinha. Ninguém a observava; mas é privilégio do
romancista e do leitor ver no rosto de uma personagem aquilo que as outras não vêem ou não
podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio que lhe causava aquela
opinião unânime contra o projeto da baronesa, mas ainda a expressão de um gênio imperioso e
voluntário.
-- Estamos de acordo, creio eu? perguntou Luís Alves olhando alternadamente para a
baronesa e as outras pessoas.
-- Não é possível, doutor, respondia a boa senhora.
-- Decerto que não é possível, interveio Guiomar do lugar onde estava. A viagem não
oferece risco, nem minha madrinha está inválida. Demais, é uma promessa feita; não se pode
deixar de cumprir.
Esta opinião, dita em tom seco e firme, ainda que a voz nada perdesse do seu natural
aveludado, equivaleu a um pouco de água fria lançada na fervura triunfante dos ânimos.
-- Guiomar tem razão, disse a baronesa; já agora é preciso ir; são apenas três ou
quatro meses.
Luís Alves olhou longamente para Guiomar, como a procurar ver-lhe no rosto todas
as antecedências da resolução da baronesa. A oposição afrouxara; Jorge chamou em vão o
advogado em seu auxilio. A resolução
da tia, se alguma vez fora abalada, tornara-se outra vez firme.
Guiomar, entretanto, erguera-se e chegara ao grupo da madrinha. Jorge fitou-a com
uma expressão de vaidade e cobiça. Luís Alves, que se achava de pé, recuou um pouco para
deixá-la passar. Os olhos com que a contemplou não eram de cobiça nem de vaidade; a leitora,
que ainda lembrará da confissão por ele mesmo feita a Estêvão, suporá talvez que eram de
amor. Talvez, -- quem sabe? -- amor um pouco sossegado, não louco e cego como o de
Estêvão, não pueril e lascivo, como o de Jorge, um meio-termo entre um e outro, -- como podia
havê-lo no coração de um ambicioso.
-- O Dr. Luís Alves defende causas más, disse Guiomar sorrindo para ele; não se
trata de uma coisa impossível. Quanto a mim, Cantagalo só tem um inconveniente; será menos
divertido que a corte; mas o tempo passa depressa...
-- Nesse caso, disse Jorge suspirando, eu também dispenso teatros e bailes;
sacrifico-me à família.
-- Queres ir conosco? perguntou a baronesa alegremente.
-- Que dúvida!
Guiomar mordeu o lábio inferior, com uma expressão de despeito, que pôde conter e
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abafar, sem que ninguém a percebesse, ninguém, exceto Luís Alves, Um sorriso tranqüilo e
perspicaz roçou os lábios do advogado, enquanto a moça, para esconder a impressão que lhe
ficara, de novo se dirigiu à janela, onde esteve alguns momentos sozinha, meia voltada para
fora e meia guardada pela sombra que ali fazia a cortina. Um rumor de passos fê-la voltar-se
para dentro. Era Luís Alves.
-- Ah! disse ela fingindo-se tranqüila; agradeço-lhe não haver insistido mais nos seus
conselhos.
-- A intenção era boa, respondeu Luís Alves em voz baixa; mas será agora excelente;
nem tudo está perdido: eu me incumbo de salvar o resto.
Guiomar franziu a testa com o mais vivo e natural espanto; tal espanto que parecia
havê-la feito esquecer outro sentimento, igualmente natural: -- o do despeito que lhe causaria
aquela singular familiaridade. Mas o assombro dominou tudo; Guiomar sentiu que ele lera nela
a razão da insistência e o desgosto do resultado.
A ruga desfez-se a pouco e pouco, mas a moça não retirou logo os olhos. Havia
neles uma interrogação imperiosa, que a alma não se atrevia a transmitir aos lábios. Se há
nos do leitor alguma interrogação, esperemos o capítulo seguinte.
XIII EXPLICAÇÕES
Luís Alves compreendera toda a expressão dos olhos de Guiomar; era, porém,
homem frio, resoluto. Inclinou o busto com toda a graça correta e de bom-tom, e disse-lhe na
voz mais branda que lhe permitia o seu órgão forte e severo:
-- Parece-lhe que fui um pouco audaz, não é? Fui apenas sincero; e ainda que a sua
delicadeza me condene, estou certo de que há em seu coração misericórdia de sobra...
Guiomar tinha readquirido toda a posse de si mesma.
-- Está enganado, disse ela, não o condeno, pela simples razão de que o não entendi.
-- Tanto melhor, redargüiu Luís Alves sem pestanejar; o meu delito nesse caso não
passou da esfera da intenção.
-- Mas... referia-se à viagem?
-- Referia-me; perguntava quando iam.
Esta presença de espírito de Luís Alves ia muito com o gênio de Guiomar; era um
laço de simpatia. A moça respondeu que o comendador viria buscá-las dai a quinze ou vinte
dias.
-- Três meses apenas? perguntou o advogado.
-- Três ou quatro.
-- Quatro meses não é a eternidade, mas Cantagalo, para uma carioca da gema, há de
ser um degredo, ou quase... Oxalá, -- continuou Luís Alves, concluindo mais depressa do que
queria, ao ver que Jorge se aproximava da janela, -- oxalá não lhe faça esse exílio esquecer o
que solenemente lhe digo neste momento: que a senhora tem uma alma grande e nobre, e que
eu a admiro!
Jorge chegara; a conversa tinha de acabar ou tomar diferente rumo.
As últimas palavras de Luís Alves eram singularmente dispostas para deixar sulco
profundo na memória da moça. Não era uma declaração de amor, nem uma cortesania de sala,
coisas todas que ela ouvira muita vez, que podiam lisonjeá-la, e decerto a lisonjeavam; era mais
que um cumprimento e não chegava a Ser uma declaração. Comoção, não a havia na voz do
advogado; firmeza, sim, e um ar de convicção profunda. Guiomar olhou para ele quase sem
dar pela presença de Jorge; mas Luís Alves voltara-se para o recém-chegado e falava-lhe em
tom jovial, bem diferente daquele que empregara pouco antes.
Se esse contraste era premeditado, -- não sei se o era, -- não podia vir mais de feição
ao espírito de Guiomar. De quantos homens a moça tratara até ali, era o primeiro que lhe
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inspirava curiosidade, e também, naquela ocasião, a primeira pessoa que se compadecia dela.
Veja o leitor: -- curiosidade e gratidão; -- veja se há duas asas mais próprias para arrojar uma
alma no seio de outra alma, -- ou de um abismo, que é às vezes a mesma coisa.
Eu disse -- compadecia -- e esta só palavra, desacompanhada de outra coisa, pode
fazer crer ao leitor que, durante aqueles dias em que a perdemos de vista, tornara-se Guiomar
uma criatura desditosa. Nada disso; a situação era a mesma, não a mesma anteriormente à
carta de Jorge, mas a mesma da noite em que ela a recebeu, situação, decerto, assaz sombria e
carregada para um coração que receia ser constrangido, mas não desesperada nem angustiosa.
A baronesa, se soubera dos fatos, ou se pudera ler na alma da moça, seria a primeira a
dar-lhe todas as consolações. Mas não sabia. Seu desejo, -- ou antes o sonho da velhice, como
ela dizia num dos anteriores capítulos, -- era deixar felizes a afilhada e o sobrinho, e entendia
que o melhor meio de os deixar felizes era casá-los um com o outro. A notícia que tinha do
coração da moça, a este respeito, era incompleta ou inexata; pintavam-lhe como frieza o que
era repugnância. Mrs. Oswald dava-lhe sempre esperanças de êxito feliz e próximo, as cóleras
da moça não lhas contava nunca. Da carta de Jorge não soube, nem da cena havida na alcova.
O casamento continuava a aparecer-lhe com todas as probabilidades de uma esperança
realizável.
Dirá a leitora que o sobrinho não merecia tanto zelo nem tão pertinaz esperança, e
terá razão; mas os olhos da baronesa não são os da leitora; ela só lhe via o lado bom, -- que era
realmente bom, -- ainda que de uma bondade relativa; mas não via o lado mau, não via riem
podia ver-lhe a frivolidade grave do espírito, nem o gênero de afeto que se lhe gerava no
coração.
Jorge era o seu único parente de sangue, -- filho de uma irmã que vivera infeliz e mais
infelizmente morrera, não repudiada, mas aborrecida do marido, circunstância que lhe
tornava caro aquele moço, Mais do que a afilhada, não; nem tanto, decerto; o coração não
chegaria para dividir-se igualmente em tão grandes porções; queria-lhe, porém, muito,
quanto bastava para desejá-lo feliz, e trabalhar por fazê-lo. Acrescentemos que o destino
da irmã sempre lhe estava presente ao espírito, e que ela receava igual sorte a Guiomar; em
Jorge parecia-lhe ver todos os dotes necessários para torná-la venturosa.
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