terça-feira, 17 de junho de 2014

Os donos da praia - Zoologia

OS DONOS DA PRAIA - Zoologia


Quando você pisa na areia molhada da praia e seu pé afunda uns 10 centímetros, está provocando um terremoto na casa de 35 000 monstrinhos como este aí da foto. Não se sabe quantos morrem. Mas muitos conseguem sobreviver à catástrofe. E continuam povoando os pequenos espaços entre os grãos de areia, um mundo cheio de espécies. Seus habitantes, os verdadeiros donos da praia, são uns bichos estranhos, que os cientistas chamam de meiofauna. Seriam assustadores se fossem grandes. Mas eles têm menos de 1 milímetro e, ao contrário de outros pequenos intrusos que são levados à areia pelo homem ou pelos cães, não fazem mal a ninguém. São faxineiros que comem restos de animais e algas em decomposição. Agora que você sabe que eles existem, não precisa ficar com remorso nem medo de caminhar na areia, mas lembre-se de que sob os seus pés há uma microscópica selva, cheia de animais alucinantes.



A vida é farta entre os grãos. Se você cavar um um buraco na praia e ampliar algumas centenas de vezes um punhado daquela lama que encontrar, verá que os estreitos e úmidos labirintos entre os grãos da areia são habitados por uma  variedade incrível de animais. A esses bichos os especialistas chamam de meiofauna. 
A palavra diz respeito, principalmente, a tamanho. Para ser meiofauna é preciso ser pequeno o suficiente para passar por buracos de 1 milímetro de largura e grande o bastante para enroscar numa tela cujos furos têm 0,042 milímetro, algo tão fino quanto um fio de seda. Mas isso não é tudo: o animal deve viver nos sedimentos, como a areia das praias de água salgada ou doce, o cascalho do fundo do mar ou as dunas. Dezenas de milhares de espécies se encaixam nessas características. E muitas delas vivem  na praia que você freqüenta . Algumas, possivelmente, ainda nem foram catalogadas pelos cientistas.
"Em termos de taxionomia - a ciência que cuida da classificação das espécies -, pode-se dizer que a areia é um ambiente tão rico quanto a floresta amazônica", disse à SUPER o zoólogo americano Robert Higgins, pesquisador emérito do Departamento de Invertebrados do Museu de História Natural da Smithsonian Institution, um dos maiores especialistas do mundo em meiofauna. Pode parecer exagero, mas o que Higgins diz faz sentido. Segundo ele, os animais estão divididos em 33 filos, que são grupos organizados em função de suas características mais gerais. O homem faz parte do filo dos cordados, os animais que em parte da vida ou durante toda ela possuem uma estrutura ao redor da qual se podem formar vértebras. Isso inclui pássaros, répteis e peixes. Como se vê, uma divisão ampla. Mas o mais surpreendente é que desses 33 filos, 22 têm ao menos uma espécie que é meiofauna. No total, são cerca de 20 000 tipos já identificados. Quase nada. Acredita-se que outras 40 000 espécies permaneçam desconhecidas.  
Sabe-se pouco sobre os hábitos dessas criaturas. Uma coisa, porém, é certa: a meiofauna tem papel importante na cadeia alimentar, transformando matéria orgânica decomposta em nutrientes para outros animais. Seus integrantes são verdadeiros recicladores de lixo. E não fazem mal à saúde do homem. Por isso, não tenha dúvida, quanto mais meiofauna tiver na sua praia, melhor para você. 
Numa única praia da Ilha Anchieta, em Ubatuba, litoral norte de São Paulo, a zoóloga paulista Liliana Medeiros identificou 35 gêneros da meiofauna. O número de espécies não foi definido. Liliana, que faz doutorado em Zoologia na Universidade de São Paulo, é fascinada pelo mundo desses estranhos seres que, suspeita-se, foram os primeiros animais pluricelulares a viver na Terra. Ao longo de sua evolução, eles se adaptaram para levar a vida na escuridão e em ambientes tão reduzidos quanto o espaço entre os grãos de areia. A maioria, conta Liliana, não tem olhos. Em compensação, são bichos ricos em órgãos sensoriais, como cerdas e antenas, que os ajudam a se orientar e a encontrar alimentos. Um caso interessante é o dos copépodes, uns crustáceos cujos menores exemplares têm 0,2 milímetro. Há espécies de copépodes que vivem na água e possuem olhos, mas os da areia são todos cegos. Quanto ao tamanho reduzido, vale lembrar as loricíferas, bichos que parecem plantas, com um chumaço de cerdas na cabeça. Aparentemente esses animais, de no máximo 0,3 milímetro, se miniaturizaram à custa da diminuição do tamanho de suas células (e não somente da quantidade delas). É um caso único, ainda não explicado pelos cientistas. 
Nas praias de água salgada, os bichos mais abundantes são os nematódeos, ou nematóides, que se parecem com minhocas. Eles são encontrados também em solos férteis e parasitando plantas e animais. Já inspiraram até ficção científica. Só nas praias, há 4 000 espécies. As menores têm 0,2 milímetro. Algumas possuem dentes e são predadoras. Outras são agricultoras. Elas produzem um muco que funciona como fertilizante para algas que integram seu cardápio. A substância também ajuda a evitar desabamentos nos túneis abertos na areia. 
Os nematódeos, como boa parte da meiofauna, copulam. Mas não são tão fixados em sexo quanto os copépodes, aqueles crustáceos milimétricos. Estudos já constataram que machos desses animais copulam com fêmeas pré-adolescentes e mesmo com outros machos. "Ainda não foi encontrada uma explicação para esse comportamento aparentemente aberrante", diz a pesquisadora Liliana Medeiros. 
Em geral, animais da meiofauna produzem poucos ovos e a fêmea cuida deles até o nascimento da larva. Algumas os mantêm dentro do próprio corpo. Outras, como as turbelárias, os grudam em grãos de areia e os cobrem com uma secreção, formando uma espécie de casulo. As turbelárias também são predadoras. Elas espetam suas presas com uma estrutura bucal parecida com uma lança e sugam a vítima até secá-la.
Você deve estar se perguntando qual a importância de se conhecer tantos detalhes sobre esses bichos. Há muitos motivos, embora, claro, não se possa esperar deles a solução para os grandes problemas da humanidade. Em primeiro lugar, diz o americano Robert Higgins, simplesmente precisamos saber tudo o que é possível a respeito da biodiversidade na Terra. Mas há mais. Na última década, os cientistas vêm pesquisando meios de usar esses bichos como parâmetro para medir a poluição das praias. É que, além da grande diversidade e densidade, há meiofauna em todo o planeta. E as populações respondem de várias maneiras à presença de poluentes. Por exemplo: já se sabe que, quando aumenta a quantidade de lixo orgânico, ambientes naturalmente habitados pelos copépodes passam a ser dominados pelos nematódeos. Outras pesquisas estão avaliando os efeitos de metais pesados e óleo sobre espécies diferentes. As dificuldades, porém, ainda são grandes, devido à falta de dados relativos ao seu ciclo vital. Sabe-se mais sobre os copépodes, que vivem de 4 a 13 meses, e nematódeos, cuja longevidade, pode variar de 10 a mais de 800 dias.
Outro motivo para se conhecer a meiofauna é a suspeita de que, em alguns ambientes, seu papel na cadeia alimentar seja preponderante. É o caso da Antártida. Por isso, o Comitê Científico de Pesquisa Antártica, entidade internacional com sede na Inglaterra, recomendou recentemente que fossem feitos estudos nessa área. Thaís Navajas Corbisier, professora de Oceanografia Biológica no Instituto Ocenográfico da Universidade de São Paulo, é uma das poucas pesquisadoras do mundo que está atendendo à recomendação. Ela já descobriu que encontrar 7 000 desses organismos em um punhado de 100 centímetros cúbicos de sedimento do fundo dos mares gelados do sul é coisa corriqueira. "Talvez a abundância se deva à claridade, que favorece a multiplicação do fitoplancton (vegetais que vivem em suspensão na água do mar)", explica Thaís. Quando morre ou migra para o fundo, o fitoplâncton serve de alimento para os pequenos habitantes da areia submersa. Sorte dos peixes e camarões que vivem por lá.

Na palma da mão

Num punhado de areia úmida como este, com aproximadamente 100 centímetros cúbicos, é comum se encontrar em torno de 1 000 animais da meiofauna. Mas muitos estudiosos já acharam, em amostras semelhantes, cerca de 7 000 bichos


Umas criaturas muito esquisitas

Alguns parecem camarões, outros parecem legumes e há até os que não se parecem com nada. Veja como são diferentes os pequenos habitantes da praia.

Fórmula 1
Não é por acaso que este bicho se assemelha ao camarão. Ele é o mais primitivo dos crustáceos e pertence ao gênero Derocheilocaris. Tem uma característica muito curiosa para animais do seu tamanho (em média, 0, 5 milímetro): é superveloz. Seu corpo segmentado e as enormes antenas permitem que ande 50 vezes o próprio comprimento por minuto, o que dá, em média, 2,5 centímetros, uma distância incrível, se medida nos labirintos da areia.

Tem alguém aí?
Isto aí em cima parece uma abobrinha, mas é um sipunculídeo. Seu corpo tem uma porção que pode ser exposta ou recolhida ao gosto do dono. Na foto, ela está recolhida. Se estivesse exposta veríamos que se assemelha a uma tromba, na qual se localiza a boca, rodeada de uma coroa de tentáculos. Acredita-se que esses tentáculos sejam capazes de cavar, mas isso não é seguro. Este exemplar tem apenas 0,2 milímetro, mas há outros maiores, de até 4 milímetros, que, por serem muito estreitos, passam na peneira dos cientistas e também são considerados meiofauna. Todos comem, principalmente, detritos.


Desengonçados
Quinorrincos, como este, podem ter de 0,018 a 1 milímetro de comprimento. São 150 espécies  marinhas. Eles também contam com a capacidade de recolher a cabeça. Na foto ela está exposta. Essa flexibilidade ajuda na sua locomoção, que, aliás é bem estranha. O quinorrinco abre caminho como que a golpes de tórax. Repare que há dois "bracinhos" na parte da frente do corpo. À medida que os braços entram em contato com a areia, o bicho se joga para a frente e a cabeça emerge, abrindo os espinhos, que se grudam no que for possível. Aí, ancorado, ele recolhe os braços e repete o movimento. O zoólogo americano Robert Higgins conta que há dez anos orientou uma pesquisa, nos litorais de São Paulo e do Rio de Janeiro, sobre o quinorrinco Cateria styx. "Originalmente descoberto em Lobito, Angola, aquele bicho parece ser uma evidência da deriva dos continentes", explica o especialista.

Hora do parto
Preste atenção: você está vendo um nascimento. Pode parecer estranho, mas essa coisa redonda saindo do meio do corpo desse bicho, do grupo dos gastrótricos, é um ovo. Esses ovos grandes são mesmo uma característica desses animais, dos quais temos várias espécies no Brasil. Entre essas espécies há algumas partenogenéticas, ou seja, cujo ovo se desenvolve sem ter sido fecundado. São bichinhos muito pequenos, de cerca de 0,1 milímetro. Os espinhos em volta do corpo funcionam como uma armadura que os protege contra a agitação da areia, que tem forte poder abrasivo. 
Os gastrótricos também se prendem nos grãos, como os tardígrados, só que se valem, para isso, de glândulas adesivas. Quando caminham, fazem o movimento mede-palmo (aquele que fazemos com os dedos, aproximando-os e afastando-os, quando queremos avaliar o tamanho de alguma coisa).

Cace o bicho

Qualquer um pode  capturar animais da meiofauna. Para isso, vai precisar de equipamento simples.

1 -     Recolha um punhado de areia da praia a uns 10 centímetros de profundidade.

2 -     Coloque a areia num recipiente e acrescente água potável. A água doce faz com que os bichos percam o controle dos movimentos e se soltem dos grãos.

3 -     Agite levemente o frasco até que a água fique meio "suja".

4 -     Despeje a parte de cima, mais líquida, numa peneira bem fina, que pode ser feita forrando-se a boca de outro frasco vazio com uma meia fina de mulher. A meiofauna ficará retida na meia.

5 -      Retire a meia e vire-a ao contrário na boca de outro frasco (pode ser o mesmo que você usou antes, já lavado). Jogue um pouco de água do mar sobre a meia. Para isso, use um esguicho bem fino, que pode ser produzido furando-se a tampa de uma garrafa. Os bichos que ficaram presos na malha cairão no frasco, junto com a água salgada.

6 -     Coloque um pouco da água com a meiofauna em uma placa de Petri (espécie de píres de vidro transparente), pingue um corante, se quiser, e observe-os, de preferência, num estereomicroscópio, aparelho que permite ver os bichos de uma distância maior. Se você não tiver esse equipamento (que é caro), use o microscópio convencional com lâminas escavadas ou comuns, pingando a água com conta-gotas. A ampliação deve ser de, pelo menos, 40 vezes. Você não vai ver os bichos como nas fotos desta reportagem, que foram feitas com microscópio eletrônico, mas poderá dar uma boa espiada no pequeno mundo da meiofauna.

Cuidado com o cachorro

Parasitas que não pertencem à meiofauna, mas são parecidos com alguns de seus representantes, podem ir parar na praia, levados pelas fezes de cães e gatos, e sobreviver ali alguns dias. Um deles é o bicho geográfico (Ancylostoma). A larva penetra na pele e pelos lugares onde passa deixa um rastro semelhante a um mapa que coça muito. Como o homem não é o seu hospedeiro natural, o bicho fica vagando na pele. Em situações raras invade a corrente sanguínea e atinge órgãos como o fígado ou o cérebro, causando infecções perigosas. Nesse caso, o efeito é parecido com o de outro parasita, o Toxocara, que também infesta cães e gatos. Na areia, pode-se adquirir ainda o vírus da verruga e fungos que provocam micoses. Mas esses bichos não fazem parte da meiofauna, que tem vida livre e não se hospeda em outros animais.

Filme tem verme de 450 metros

O monstro do filme Duna (David Linch, 1984, CIC Vídeo) se parece com alguns representantes da meiofauna. A diferença está só no tamanho. O verme de Duna mede algo entre 125 e 450 metros. Vive na areia, mas no planeta Arrakis, em 10191. Duna é a versão para o cinema do romance homônimo do americano Frank Herbert (Nova Fronteira, 1984), que já tem sete continuações.


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