A Arte da Capoeira - Parte 3 de 3 - Camille Adorno
A Arte da Capoeira - Camille Adorno
Tanto pode ser incluído na categoria de cítaras, quanto algumas formas
se encaixam com maior facilidade na classe das harpas. Mais uma vez,
qualquer que seja a opinião seguida, o arco musical se fez presente nas
antigas culturas egípcia, assíria, caldéia, fenícia, persa, indú. Na África,
muitas espécies de arco musical podem ser encontradas entre tribos de
Uganda, pigmeus do Congo, em Angola e noutras regiões.
Como não foram efetuadas pesquisas em profundidade no Brasil
e continente africano antes do final do século passado, não existem
informações documentais quanto à presença e uso do arco musical, na
forma por nós conhecida como berimbau, antes dessa época. Com
certeza existiam - já que são utilizados tradicionalmente - há muito
tempo no continente africano. O que não podemos é precisar desde
quando.
Informações importantes foram prestadas por inúmeros
exploradores, viajantes e pesquisadores do período final do século
passado e alguns mais recentes, que apesar de fazerem narrativas um
tanto superficiais e sem detalhes, nos permitem estabelecer a presença
do nosso berimbau na África, originando sua presença também no
Brasil, pois além das formas idênticas, são iguais em construção e
tocados do mesmo modo. Resumindo, registram o mesmo instrumento,
seja qual for a denominação dada em cada lugar.
O mais antigo desenho desse instrumento é dos exploradores
Capelo e Ivens, que fizeram o desenho de um arco musical em tudo
semelhante ao berimbau em 'De Benguela às terras de Iaca', Lisboa,
1881. O texto, porém, não traz nenhum comentário a respeito do
instrumento.
Ladislau Batalha, no livro Angola, editado no ano de 1889, em
Lisboa fez a seguinte descrição do berimbau: "O humbo é o tipo dos
instrumentos de corda. Consta geralmente de metade de uma cabaça,
oca e bem seca. Furam-na no centro, em dois pontos próximos. À parte,
fazem um arco como de flecha, com a competente corda. Amarram a
extremidade do arco, com uma cordinha do mato, à cabaça, por via dos
dois orifícios; então, encostando o instrumento à pele do peito que
serve neste caso de caixa sonora, fazem vibrar a corda do arco, por meio
de uma palhinha."
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A descrição não deixa dúvidas. Em que pese a ausência de
detalhes mais específicos, o humbo é realmente nosso velho e
conhecido berimbau. O mesmo Ladislau Batalha torna a referir-se a ele
em Costumes Angolenses, de 1890, também publicado em Lisboa: "Um
negralhão toca no seu humbo, espécie de guitarra de uma só corda a
que o corpo nu do artista serve de caixa sonora."
No mesmo ano de 1890, ainda em Lisboa, Henrique Augusto Dias
de Carvalho, em sua Etnografia e História Tradicional dos Povos da
Lunda, desenhou o mesmo instrumento, sozinho e com outros,
incluindo a denominação rucumbo e a descrição seguinte: "O rucumbo,
constituído de uma corda distendida em arco de madeira flexível, que
tem numa das extremidades uma pequena cabaça a servir de caixa de
ressonância; o arco fica entalado entre o corpo e o braço esquerdo, indo
a mão correspondente segurar nele a certa altura, e os sons são obtidos
com a mão direita, por intermédio de uma pequena varinha que tange a
corda em diferentes alturas."
O major Dias de Carvalho afirma ainda que "os lundas
chamam-lhe violôm. Tocam-no quando passeiam e também quando
estão deitados nas cubatas". Diz ainda que o instrumento era "muito
cômodo e portátil".
Do Álbum Etnográfico de José Redinha, Luanda, s.d., consta um
desenho de instrumento com a descrição a seguir: "Um monocórdio,
lucungo, com caixa de ressonância, constituída por um copo de
cabaça."
Outra informação da existência africana do berimbau decorre de
Albano de Neves e Souza, consultado por Luis da Câmara Cascudo, e
que afirmou: "(...) um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós
chamamos hungu ou m'bolumbumba, conforme os lugares e que é
tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até
a Swazilândia, na costa oriental da África."
No Brasil, um dos primeiros a fazer o registro da presença do
berimbau foi Henry Koster, que descreveu o instrumento da seguinte
forma: "(...) um grande arco com uma corda tendo uma meia quenga de
coco no meio, ou uma pequena cabaça amarrada. Colocam-na contra o
abdome e tocam a corda com o dedo ou com um pedacinho de pau."
Jean Baptiste Debret, em Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil,
deixou-nos o desenho de um tocador de berimbau e uma descrição do
instrumento, ao qual denomina urucungo: "E finalmente o urucungo,
aqui representado. Este instrumento se compõe da metade de uma
cabaça aderente a um arco formado por uma varinha curva com um fio
de latão, sobre o qual se bate ligeiramente. Pode-se ao mesmo tempo
estudar o instinto musical do tocador que apoia a mão sobre a frente
descoberta da cabaça, a fim de obter pela vibração um som mais grave e
harmonioso. Este efeito, quando feliz, só pode ser comparado ao som de
uma corda e tímpano, pois é obtido batendo-se ligeiramente sobre a
corda com uma pequena vareta que se segura entre o indicador e o
dedo médio da mão direita."
Outra descrição acompanha a gravura que reproduz um
instrumento em tudo idêntico ao berimbau, colocado à mão de um
vendedor e que nos foi deixada por Johhan Emmanuel Pohl, em
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Viagem no Interior do Brasil, de 1832, onde afirma: "Os negros gostam
muito de música. Consta da gritaria monótona de um entoador, como
estribilho e seguido por todo o coro de maneira igualmente monótona,
ou, quando instrumental, do sonido de uma corda retesada num
pequeno arco, num simples instrumento que descansa sobre uma
cabaça esvaziada que dá, no máximo, três tons..."
Estas são as descrições e referências mais antigas ao berimbau
conhecidas até o momento. Apesar de ligeiras discordâncias quanto à
denominação e detalhes menores, de há muito o berimbau se faz
presente ao lado do negro, garantindo-lhe a presença da música no
momento desejado.
A CONSTRUÇÃO DO BERIMBAU
O primeiro passo para o fabrico do berimbau é a obtenção de uma
madeira flexível e resistente, que suporte arqueamento e pressão sem
ceder demasiado. Escolhe-se uma vara sem muitos nós ou grandes
curvas, que bem pode ser "biriba" (a preferida pela maioria dos
capoeiras ) ou guatambú (mais facilmente encontrada). O
guatambú se apresenta como a madeira indicada - ao lado da taipoca e
outras espécies nativas - na construção do berimbau, por se tornarem
suas varas muito leves, após secas, sendo comuns longas hastes muito
regulares, apresentando grossura mais ou menos uniforme de uma
extremidade a outra. Tirada a vara, que não seja demasiado grossa ou
muito fina. O tamanho ideal é de aproximadamente 1.20 m.
Quando a madeira ainda está verde, caso não seja perfeitamente
reta, basta passá-la sobre o calor do fogo, ainda com casca, para que
sejam corrigidas eventuais curvas, dando-lhe a forma reta necessária. A
casca do guatambú sai com facilidade, passando uma faca de lâmina
afiada de ponta a ponta da vara, removendo longas tiras.
Passamos, a seguir, à confecção propriamente dita do berimbau.
Esculpe-se uma pequena ponta na extremidade mais grossa da vara,
que irá servir como conexão para se ajustar o arame do berimbau. A
outra ponta deve ser bem acertada, pois irá receber um pequeno
pedaço de sola de couro, que impedirá o arame de rachar a madeira.
O arame - que cumprirá o papel de corda do instrumento - é um
fio de aço com um comprimento maior que a vara cerca de 20 cm e
recebe em sua extremidade um laço de diâmetro adequado para se
encaixar na ponta esculpida na madeira - que será o pé do instrumento
- enquanto que no outro extremo recebe uma laçada menor, onde será
amarrado o cordão que irá prendê-lo à madeira. Após esta primeira
fase, o berimbau é vergado - ou "armado" para o ajuste da corda,
formando o arco - com o emprego de um pé flexionando a madeira,
enquanto uma das mãos apoia a extremidade superior da vara e a outra
amarra o arame. Pronto o berimbau, já se tornou comum
acrescentar-lhe discreta pintura, manchas de fogo e verniz, com a
finalidade de embelezá-lo. Esta pintura às vezes possui um significado
especial para o tocador, quando é este que confecciona o instrumento.
O próximo passo é a elaboração da caixa de ressonância,
indispensável ao arco do berimbau. Para isto, utiliza-se uma cabaça que
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serve à perfeição ao nosso propósito. De preferência, que a cabaça se
encontre já bem seca e não tenha sido colhida madura. Que a casca
não seja demasiado grossa ou muito fina. O tamanho ideal terá um
circunferência de aproximadamente 18 cm - quando se pretenda fazer
um berimbau gunga, de timbre grave; caso se pretenda um berimbau
viola, de timbre agudo, o tamanho deverá ser menor, com cerca de 11
cm.
Escolhida a cabaça, primeiramente façamos uma abertura tal que
seja possível a saída de um som claro. Esta abertura será proporcional
ao diâmetro máximo alcançado pela cabaça e feita na extremidade
oposta à que se prende a haste, quando ainda no pé. Concluída a
abertura - feita com uma serra fina - se a cabaça for demasiado grossa
é conveniente que coloquemos água em seu interior e deixar por 48h,
para depois raspá-lo até que a casca se torne da espessura desejada.
Isso para que a ressonância obtida seja de boa qualidade. Depois, com o
emprego de uma lixa, daremos à abertura da cabaça o acabamento
necessário.
Terminado este preparo, a cabaça receberá no seu fundo dois
furos paralelos em uma distância de aproximadamente 3 cm um do
outro, por onde irá passar o cordão que a manterá fixa ao arco. O
tamanho deste cordão irá depender do grau de curvatura obtido pelo
arco, para que a cabaça fique presa de forma tal que aperte o arame e
proporcione ao tocador a necessária firmeza para segurar o
instrumento, apoiando-o sobre o dedo mínimo através deste cordão.
Servirá ainda para afinar o instrumento, conforme a pressão exercida
sobre a corda.
Na escolha da vareta a ser utilizada na percussão do arame são
preferidas pequenas varas tiradas de pedaços de bambu, da grossura
aproximada de um lápis e comprimento de mais ou menos 30 cm.
Outra espécie de vareta muito apreciada é de bambu fino, do tipo das
varas de pesca, obedecendo às dimensões citadas. A vareta será
usada segura entre os dedos indicador e polegar, apoiada sobre o dedo
médio de uma mão, enquanto a outra sustenta o instrumento e prende
o dobrão. A percussão da corda se dá numa altura pouco superior ao
ponto onde o dobrão pressiona o arame. As batidas devem ser firmes.
O dobrão - denominação popular das antigas moedas de 40 réis -
é empregado com a finalidade de pressionar o arame quando se
pretende obter uma nota aguda, já que o berimbau emite dois tons
básicos (grave e agudo) e outros efeitos. É por seu intermédio que o
tocador estica ainda mais a corda do instrumento, provocando em
conseqüência a modificação do tom grave para o agudo ou um chiado
característico. Muitos capoeiras preferem o uso de pedras lisas e
resistentes no lugar das moedas de cobre, por considerarem o som
obtido mais agradável, além da escolha das pedras possibilitar o
emprego daquela de formato mais conveniente para o manuseio do
tocador.
O CAXIXI
Na execução do berimbau, um outro instrumento constitui
acessório indispensável: o caxixi, que é usado como chocalho.
Caxixi é o nome que se dá ao pequeno cesto de alças, feito com
tiras de junco trançadas, contendo em seu interior contas de lágrimas,
pequenas conchas marinhas ou búzios. O seu fundo é feito de pedaços
de cabaça.
Além do seu emprego como complemento ao berimbau, Edison
Carneiro nos informa em Candomblés da Bahia acerca de outros usos
do caxixi.
"Caxixi, s.m. Saquinho de palha trançada que contém sementes
de bananeira-do-mato, usado pelos pais dos candomblés de Angola
para acompanhar certos cânticos, especialmente a ingorôssi. (...)
Ingorôssi, s.m. Reza da nação Angola. O tata, agitando um caxixi, fica
no meio das filhas, que sentadas em esteiras, batem com a mão
espalmada sobre a boca, respondendo ao solo. (...) O chefe do
candomblé acrescenta à orquestra, quando Nagô ou Jeje, o som do
adjá, uma ou duas campânulas compridas que, sacudidas ao
movimento da filha, ajudam a manifestação do orixá, e quando Angola
ou Congo, o som do caxixi, um saquinho de palha trançada cheio de
sementes. (...) Os candomblés de Angola e do Congo saúdam
conjuntamente os inkices com um cantochão lúgubre, o ingorôssi, que
se compõe de mais de trinta cantigas diferentes. As muzenzas se
sentam em esteiras, em volta do tata, que, com um caxixi na mão, faz o
solo, respondido por um coro de gritos entrecortados por pequenas
pancadas na boca."
No acompanhamento do berimbau o caxixi é usado prendendo-se
a sua alça entre os dedos anular e médio da mão que segura a vareta.
Tem destaque especial na marcação rítmica dos toques.
A RODA DE CAPOEIRA
"Chibata na mão/Capoeira no pé/pega esse negro que é de
Nazaré.."
As cantigas estão presentes no jogo desde o momento em que se
forma a roda. O canto inicial - em geral conduzido pelo mestre, ou
capoeira mais antigo - pode constituir-se na apresentação da roda, do
lugar onde é feito o jogo.
Quando um capoeira visita uma roda formada por grupo que não
freqüente habitualmente, o canto de abertura pode ser seu, o que
demonstrará deferência e homenagem ao visitante.
O toque do berimbau agrupa os capoeiras em círculo. A princípio,
somente se ouve o som do gunga; em seguida entram no ritmo os
demais berimbaus. O viola e o violinha, com seu timbre ainda mais
agudo. Agora é a vez do atabaque, com sua marcação forte, pesada. Um
a um se apresentam para a roda o agogô, reco-reco, pandeiro, ganzá.
Os capoeiras acompanham com palmas o som dos instrumentos.
Todos permanecem de pé. O toque inicial é Angola, e o canto - um solo:
a ladainha - pode ser costumeiro àquela roda ou improvisado, como
esta cantiga de autoria do mestre Canjiquinha: .
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'Meu Deus o que eu faço/para viver nesse mundo/se ando
limpo, sou malandro/se ando sujo, sou imundo/oh que mundo
véio grande/oh que mundo enganadô/se eu não brigo, sou
covarde/se mato sou assassino/se eu não falo, sou calado/se
falo, sou faladô/eu digo dessa maneira/meu mestre que me
ensinô...'
Durante a ladainha não há jogo. Os capoeiras ouvem
atentamente o canto. Neste momento o mestre-capoeira transmite
uma mensagem à roda ou a determinado capoeira. É na cantiga que o
capoeira expressa sua vivência no jogo.
'Quando eu tinha dinheiro/levei a vida a vadiar/
comi na mesa de ioiô/deitei na cama de iaiá/
o dinheiro acabou/me mandaram trabalhar...
Às vezes a ladainha traz à lembrança fatos passados, relembrados
como aviso aos jovens, e assim o capoeira guarda até hoje a história do
jogo e dos jogadores, instrumento de preservação da memória e
transmissão das tradições de cada época e da sua arte.
'Tava lá em casa/sem pensar, nem 'maginar/quando ouvi
bater na porta/mandaram me chamar/para ajudar a vencer/a
guerra do Paraguai/eu que nunca fui de luta/nem pretendia
lutar/botei a arma na mão/era tempo de brigar/era hora de
lutar...'
Pode acontecer ainda de estar mesclada à alegria da brincadeira
a tristeza pela ausência do capoeira que já morreu e o canto busca
exprimir estes sentimentos.
'Adeus Bahia, zum, zum, zum/Cordão de Ouro
eu vou partir/porque mataram o meu Besouro...'
Os que ouvem procuram estar atentos ao conteúdo do canto, que
pode conter uma advertência ou observação, um exemplo prático, uma
lição para a vida.
'Mataram o capoeira/dentro da delegacia
delegado me chamou/p'ra prestar depoimento
daquilo que eu não sabia...'
Ao terminar a ladainha o mestre inicia um refrão, que é o sinal
para a entrada do coro, acompanhando o canto.
'Iê, viva meu Deus/viva meu mestre/galo cantou/é hora, é
hora/da volta ao mundo/que o mundo deu/que o mundo
dá/camará'
Antes de iniciar o jogo, entrando na roda, os capoeiras executam
um movimento de reverência, de saudação à Capoeira, ao berimbau, à
roda, de respeito aos camaradas presentes. É uma demonstração de
obediência ao jogo e às suas regras.
Os capoeiras firmam o corpo sobre as mãos apoiadas ao solo,
braços flexionados - um sob o corpo, o outro em posição paralela. A
perna que corresponde ao braço utilizado em apoio permanece acima
do solo, flexionada; a outra se coloca em posição ainda mais alta,
estirada.
Deste modo, em uma demonstração de habilidade, domínio do
corpo e equilíbrio, os capoeiras anunciam sua disposição dentro da
roda: a brincadeira, a disputa baseada no respeito aos fundamentos da
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arte.
Feita a saudação, os capoeiras se cumprimentam e entram na
roda. À medida em que o jogo se desenvolve, o canto acompanha as
situações que acontecem na roda, quando não as provoca, como ocorre
quando um jogador procura demonstrar sua superioridade ao outro.
'Pega esse negro/derruba no chão
esse negro é valente/esse negro é o cão..'.
Quando há intenção de provocar alguém, da assistência ou
dentro da roda, o capoeira que conduz o canto pode entoar:
E é tu que é moleque/moleque é tu/mas é tu que é
moleque/moleque é tu/moleque te pego/te jogo no
chão/castiga o moleque/conforme a razão...
O canto pode servir para brincar com uma mulher que entra na
roda:
Se essa mulher fosse minha/eu ensinava a viver
dava mamão com farinha/de noite e de dia
p'ra ela aprender...
A brincadeira do canto pode envolver uma advertência velada aos
jogadores, se um deles é atingido ou provocado de forma perigosa.
Noutras vezes a cantiga também narra acontecimentos ocorridos dentro
do jogo, de significação própria:
Siri botou/gameleira no chão
botou, botou/gameleira no chão...
Pode ser que a música sirva de consolo a um capoeira que não se
dê bem no jogo, em linguagem peculiar:
A canoa virou/marinheiro
no fundo do mar/tem dinheiro...
É comum ainda o canto em que há referência a determinado
orixá, da devoção do jogador; outros mencionam o nome de um
capoeira, em sua homenagem.
As letras trazem uma característica comum: a linguagem, em
geral, é figurada, sendo sua compreensão restrita aos capoeiras. Com
isto, para os que ignoram sua função, são apenas cantigas...
Os capoeiras prosseguem no jogo, nos seus gestos de enorme
beleza. Sem se tocarem, na comunicação dos movimentos imprevistos e
súbitos. O bom capoeira jamais explicita seus golpes. Age
sorrateiramente e só atacando quando o adversário está vulnerável.
Parece milagre que as pernas percorram o mesmo espaço sem se
chocarem. Ninguém é ferido, não há agressão. A luta existe no esforço
de suplantar o adversário pela habilidade na execução do jogo.
A roda pode durar horas, prendendo os espectadores na agilidade
e alegria dos cantos e movimentos, na sucessão de cenas emocionantes,
onde um minuto de desatenção pode levar um dos capoeiras ao solo.
Mas não se deixem enganar...a dança pode ser um jogo camuflando a
luta e a brincadeira pode ter um final inesperado:
São Salvador, Bahia/A tarde morria devagar
E berimbau se ouvia/ Gente na rua a passar
Alguém no desejo da briga/Fazia cantiga de provocar São
Salvador, Bahia/ Um homem passando escutou/ Isso é comigo! e
falou:/Se quer jogar vamos lá/
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Eu ia pra lá mas não vou/E dizendo se ajoelhou/
Dois homens fizeram oração/Começaram jogando no chão/
Jogaram Angola, Santa Maria/ São Bento Pequeno/ Cavalaria/
E o povo assistia/ tremendo/Capoeira pra matar/ Faca de ponta/
Rabo de arraia Na dança da morte do lugar/ São Salvador,
Bahia
Quando a polícia chegou/ Um corpo no chão havia
Em volta o silêncio dizendo/ Seu moço, essa briga acabou/ São
Salvador, Bahia/ Bahia de São Salvador"
O JOGO DA CAPOEIRA
"Capoeira é luta de bailarinos. É dança
de gladiadores. É duelo de camaradas. É jogo, é bailado, é
disputa - simbiose perfeita de força e ritmo, poesia e agilidade.
Única em que os movimentos são comandados pela música e pelo
canto. A submissão da força ao ritmo. Da violência à melodia. A
sublimação dos antagonismos.
Na Capoeira, os contendores não são adversários, são
'camaradas'. Não lutam, fingem lutar. Procuram -
genialmente - dar a visão artística de um combate. Acima do
espírito de competição, há neles um sentido de beleza. O
capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta."
Dias Gomes
Para compreender esse jogo é preciso primeiramente entender o
propósito dos capoeiras ao entrarem na roda. A leitura gestual do jogo
de Capoeira desvenda-o como um modo particular de fazer política: as
estratégias baseada sobretudo no enfrentamento indireto.
A luta-dança-jogo expressa o modo como os negros inverteram,
a seu favor, a força visível e explícita dos poderosos, fugindo do
enfrentamento direto a partir de regras que não foram definidas por
eles.
A aparente oposição entre a rebeldia passiva e a rebeldia ativa
determina a dubiedade do jogo de Capoeira: os seus movimentos
corporais indicam uma negociação, mais do que rebelião. Durante o
confronto os corpos negociam e a ginga significa a possibilidade da
barganha, atuando no sentido de moderar o conflito. Ao menor sinal de
distração do oponente, quando "as chances de falhar são mínimas"
(como ensinava mestre Pastinha), explode o contra-ataque, como um
relâmpago, deflagrando-se então o conflito.
Esse é um jogo de considerável complexidade - apesar da
aparência simples -, onde há objetividade em todos os gestos e uma
filosofia intrínseca determinando o sentido da movimentação. A disputa
às vezes transcorre de forma tão sutil que muitos não se apercebem
da sua existência, ou não conseguem entendê-la. O capoeira pretende
suplantar o oponente: só que é dada ênfase especial à malícia na
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movimentação; a inteligência é privilegiada na execução dos golpes, em
detrimento da aplicação de movimentos de força e potência. Predomina
particularmente a astúcia nos contra-ataques irresistíveis.
Não há o objetivo de superar o adversário na base do vale-tudo.
Os gestos são naturalmente estudados, permitindo a observação detida
de um camarada pelo outro. Se um movimento é executado de forma
irrefletida, seu autor não perde por esperar... De pronto está criada a
oportunidade de uma sucessão de ataques e contra-ataques. Cada gesto
é executado com muita atenção em todos os detalhes. A hora exata de
empregá-lo é aquela que diminua as possibilidades de deixar uma
brecha para a defesa. É imprescindível estar atento às reações do
oponente, procurar iludi-lo, chamá-lo para a armadilha. Tudo de forma
calculada, treinada, assimilada durante horas de exercício e prática.
Este é o princípio fundamental do jogo de Capoeira: nada de
explosões de violência. Não se trata de uma briga, mas de um
entretenimento. Deve prevalecer a aceitação das regras. Malícia,
manha, astúcia, esperteza, são sinônimos do jogo. Não se pretende a
demonstração ou exibição de nada que não seja a competência na
disputa.
A movimentação do jogo acontece basicamente no chão. Isto não
quer dizer que não podem ser executados movimentos altos; significa
que o capoeira busca explorar as facilidades de locomoção pelo solo,
fazendo uso de todos os recursos colocados ao seu dispor graças aos
treinos, destinados a habilitar o praticante a gestos aparentemente
inofensivos.
Se um capoeira interrompe um movimento já iniciado, por
encontrar-se o adversário demasiado longe, é bem provável que o outro
capoeira reaja de forma insólita: se aproximando do oponente aos
saltos, como se fosse um símio, para desferir potente cabeçada. Pode
ser ainda que o seu parceiro escapula do ataque correndo pelo solo,
como se fosse um gato.
No jogo da Capoeira se desconfia de imediato do capoeira que
afivela um sorriso fixo ao rosto, como se tudo não passasse de uma
grande piada. Essa pode ser a forma encontrada para criar-se um clima
descontraído, onde as defesas ficarão abertas, permitindo o ataque
desconcertante.
Em razão do espírito bem-humorado e descontraído do jogo de
gestos soltos e naturais, tanto faz se o capoeira é um garotão bem
nutrido, cheio de músculos e espelhando vigor, ou se é um velho
mestre. O que importa é a vivência, a experiência, a sabedoria, a
prática: vale mais o conhecimento dos fundamentos da Capoeira.
As oportunidades de atingir o adversário não são procuradas com
a ferocidade típica do combate entre irracionais. O capoeira sabe -
simplesmente ao encostar o pé no adversário - que seus movimentos
podem ser fatais. Então, para que atirar o adversário à distância,
nocauteado, talvez inutilizado?
A essência da Capoeira é compreender o jogo como uma
brincadeira entre amigos, que se respeitam e vêem na luta uma
diversão amistosa. Nesse brinquedo vale mais um movimento
desnorteante que um chute arrasador. É preciso malícia, manha, para
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suplantar o oponente. Saber esperar sem perder o espírito
malandreado do jogo. Na hora certa surgirá a oportunidade; basta ter
calma. A própria circularidade do jogo e de seus movimentos assegura
ao capoeira que eventualmente se encontre em desvantagem, a
oportunidade ideal para recuperar terreno.
O capoeira busca o jogo no chão por saber que ali os recursos
físicos se igualam: a vantagem só poderá ser encontrada com muita da
habilidade. Cada gesto envolve grande margem de risco, em razão de
detalhes aparentemente insignificantes. Um movimento executado de
forma que deixe parte do tronco ou da cabeça desprotegidos é de
imediato aproveitado pelo contendor, que logo procura atacar a região
desguarnecida. No momento seguinte o capoeira que levou vantagem se
afasta sorridente - e quando ninguém estiver esperando, inicia o
contra-ataque, tirando proveito de cada brecha na defesa do adversário.
As iniciativas de ataque e defesa se sucedem, uma após a outra,
exigindo total concentração dos jogadores
As oportunidades de superar o adversário não são forçadas. O
clima de brincadeira entre companheiros não é quebrado por cenas de
violência banal. A superioridade de um capoeira em relação a outro - ou
mesmo o equilíbrio entre ambos - se manifesta tanto na oportunidade
bem aproveitada para evidenciar esperteza, quanto no modo educado
de reconhecer o momento de vacilação.
A tradição do jogo não admite que o capoeira em desvantagem
busque a desforra ou o revide a qualquer custo. O capoeira sabe que se
no passado o aspecto de brinquedo e diversão do jogo representava
sobretudo uma estratégia política para ocultar o aspecto combativo,
proeminente na capoeira da sociedade escravista, até hoje essa
natureza dúplice (brincadeira e combate) está presente e contamina
todos os elementos do sistema cultural da Capoeira.
As táticas dos capoeiras no jogo se baseiam no disfarce e na
camuflagem dos verdadeiros objetivos. Exemplo disso é o berimbau: é
um instrumento musical mas ao mesmo tempo pode ser uma arma: e
fala-se em "armar" o berimbau para poder tocá-lo; montar o
instrumento e afiná-lo, esticando-se o arame, prendendo-o a uma das
extremidades da madeira envergada e depois ajustando a cabaça na
outra extremidade - e em "desarmar" o berimbau, ao final de uma
roda
No jogo da Capoeira há movimentos corporais cujos nomes nos
remetem ao terreno das brincadeiras de infância (pião, balão) e há
aqueles que supõem o combate (armada, arpôo de cabeça, asfixiante); e
existe a chamada de Angola, que é um momento de ruptura na roda de
capoeira, quando os dois jogadores se movimentam emparelhados para
a frente e para trás até que um, subitamente, "desarma" a chamada,
isto é, aplica um golpe qualquer sobre o adversário, reiniciando assim o
jogo.
A combinação das ações do jogo (tais como golpes e floreios,
avanços e recuos, ataques e esquivas) é dúbia como as próprias cantigas
de Capoeira, que falam do jogo que "todos podem aprender, general
até doutor", ao mesmo tempo em que avisam do perigo da brincadeira:
"Capoeira é ligeira, ela é brasileira, ela é de matar".
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Luta coletiva que incorpora séculos de resistência cultural,
expressando corporalmente a linguagem de um povo que
tradicionalmente resistiu à dominação, a Capoeira é fundamentalmente
um jogo de contrapoder. Atuando nos vazios do adversário,
aproveitando-se das lacunas provocadas pelos movimentos do próprio
atacante, o importante para o capoeira é saber aproveitar o espaço vazio
deixado pelo outro; só quando há oportunidade de êxito o capoeira
parte para o embate direto. Percebe-se, então, que o mesmo corpo que
aparentemente conformara-se, na ocasião oportuna insurge-se e ataca:
inesperado, surpreendente, invertendo as regras do jogo que garantem
a dominação; e aquele que já se acostumava ao aparente domínio da
situação poderá, num instante, 'levar uma rasteira' e tornar-se, ele
próprio, o dominado.
A surpresa é o elemento essencial nas estratégias de ação e
reação da Capoeira, subvertendo e invertendo as regras do jogo da
dominação: a principal intenção é sempre a de desequilibrar o outro, o
qual, por sua vez, deve evitar cair. Afinal, cair é ficar em desvantagem:
perder o domínio, o poder. Todos os movimentos da luta da Capoeira se
encaixam nesse mesmo propósito: derrubar o outro. E para que isso
ocorra, mais do que força física o capoeira deve ter fundamentalmente
mandinga, malícia. Essa regra do jogo garante há séculos a unidade da
Capoeira como prática de camaradas. Mesmo que um deles acabe
derrubado, no chão. Afinal...
'Capoeira que é bom/ não cai
E se um dia ele cai/ cai bem...'
Vinícius de Moraes & Baden Powell, Berimbau
A PREPARAÇÃO DO CAPOEIRA
Quando se afirma ser a Capoeira luta, dança, arte, mandinga, fica
implícita a diversidade das técnicas e processos existentes em sua
aprendizagem. A mandinga, a astúcia e a agilidade se sobrepõem à
força física, posto que o mais forte não é aquele fisicamente mais
avantajado mas o mais malicioso, o mais mandingueiro.
A metodologia utilizada com este objetivo exige o emprego de
instrumental adequado ao que se propõe: fazer um capoeira, para que
este possa jogá-la, corporificá-la. Estabelecido este propósito, cabe ao
mestre verificar individualmente a medida na qual o iniciante possui
alguns requisitos básicos: ritmo, flexibilidade articular, elasticidade e
força muscular, etc.
Esta observação ocorre quando o iniciante demonstra facilidade -
ou não - na execução dos movimentos voltados à educação e
condicionamento corporal.
O primeiro passo pode consistir em andar engatinhando, ou seja,
o corpo apoiado nas mãos, braços e pernas mantidos flexionados,
deslocando lentamente pelo solo.
Este treinamento possui finalidades essenciais para o jogador,
sob os aspectos do desenvolvimento físico e de retomar-se a intimidade
homem-terra. A locomoção executada desta forma exige força muscular
diretamente proporcional ao corpo, perfeita coordenação entre os
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movimentos dos membros inferiores e superiores, mantidos sob intenso
trabalho aeróbico.
Outra posição indispensável na preparação do capoeira é a
denominada parada, ou parada de mãos, em que o corpo fica imóvel na
postura vertical, com a cabeça para baixo, sustentado pelos braços
estirados e as mãos abertas apoiadas ao solo.
Tendo o praticante desenvolvido suficiente força e equilíbrio, o
exercício seguinte é andar com as mãos, usando a mesma posição
vertical da parada, agora com as pernas flexionadas nos joelhos.
Os músculos do tronco e membros superiores, muito solicitados
no jogo, são trabalhados especificamente com a prática de flexões dos
braços, na postura descrita acima. Nestes exercícios o corpo permanece
na vertical, cabeça para baixo. As pernas se encontram dobradas nos
joelhos, a coluna vertebral com pequena arqueação, os pés auxiliando o
equilíbrio, deslizando sobre uma superfície vertical (que pode ser uma
parede), paralela ao corpo.
OS MOVIMENTOS
"Olha a armada/meia lua e cabeçada
a rasteira e a queixada/ p'ra matar..."
A GINGA
A ginga é a movimentação corporal essencial da capoeira. Passo
de dança, passo de luta. Primeiro, para aprender-se o jogo. Cadência,
movimentação oscilante, meneio do corpo, que desconcerta e engana,
no jeito bamboleante, na dança de todo o corpo.
A sua característica principal é permitir a descontração,
a entrega aos ritmos da Capoeira. Funciona como armação para outros
movimentos, permitindo deslocações constantes.
Como se fora uma dança - nem por isto obrigada a ter propósitos
inofensivos - estabelece harmonia entre a Capoeira e a própria
natureza do jogador: versátil, dinâmica, criativa.
Permitindo que a um só tempo o corpo lute aparentando dançar,
a ginga camufla o potencial letal dos movimentos. É a ginga que
predispõe o jogador a um jogo situado entre a brincadeira e o combate.
A ginga não é unicamente uma base para o arremesso de golpes. E os
movimentos da Capoeira não são somente golpes.
Existe um princípio de movimentação em equilíbrio, com as ações
circulares típicas do jogo, que determina uma forma de ginga para cada
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jogador, atendendo a suas características e preferências. Afinal, não
podemos esquecer as peculiaridades do jogo.
As padronizações - ou estilizações - levam à diminuição do espaço
reservado à arte, aos improvisos de cada jogador, empobrecendo e
descaracterizando o jogo, invertendo suas finalidades.
As tentativas de estabelecer-se um estilo único de ginga,
geralmente são o resultado das iniciativas de alguns professores, que
buscam ajustá-la às razões pelas quais praticam a Capoeira, sejam a
promoção de shows ou o ensino de pugilato. Isso contraria o
fundamental: a arte se presta à luta e pode ser vista como
demonstração, mas sua natureza vai muito além destas meras
possibilidades.
Qualquer comparação que implique em limitação, exclusão de
componentes do seu conteúdo, provoca deturpações. Principalmente se
referentes a modalidades pugilísticas, por relacionarem a Capoeira com
manifestações inseridas em outro contexto cultural.
Não serão menos equivocadas comparações com outras danças,
entendidas conforme os conceitos geralmente adotados para sua
compreensão. Isso importaria em excluir a possibilidade do emprego
ofensivo-defensivo, existente desde o surgimento do jogo, de forma
implícita ou explícita.
É importante observar a ginga, notando o intenso magnetismo a
desprender-se do capoeira dançando com todo o corpo, balançando os
braços, sorridente frente ao adversário que por força quer atingi-lo.
Os braços se posicionam sempre de forma tal que fica garantida
proteção à cabeça, quando se faça necessário, para - na ocasião
apropriada - prepararem um ataque. As pernas alternam passos que
permitem a execução de outros movimentos. Na mobilidade dos quadris
se encontra uma das causas da agilidade com que os capoeiras se
esquivam ante ataques, sendo recurso auxiliar no arremesso de
movimentos com os pés, mãos ou cabeça.
Além de incluir uma sucessão de posições de guarda do capoeira,
a ginga possibilita o início e velocidade nos ataques e defesas. Esta
premissa estabelece, portanto, a necessidade do pleno conhecimento
da sua mecânica. À medida que o jogador se entrega ao ritmo de forma
descontraída, deve personalizá-la, ajustando-a sempre conforme seu
temperamento e intenções.
Ao gingar o capoeira se permite improvisos e inovações,
considerando o essencial: defender um lado do corpo enquanto o outro
se prepara (ou executa) um ataque. Deve ser considerada
imprescindível a manutenção do equilíbrio do corpo. Nestas condições,
o emprego de figurações e gestos destinados a desviar a atenção do
adversário, camuflando o propósito de ataques e defesas, acontece de
acordo com a criatividade de cada um. O desenvolvimento da maneira
própria de gingar depende de imaginação e prática constante.
É importante o treinamento da ginga pelo capoeira defronte a um
camarada, executando apenas gestos destinados a desviar a atenção do
adversário, aplicando diversas formas de truques ao seu alcance, para
enganar o oponente, assim como a execução intensiva individual.
AÚ
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Movimento de locomoção do capoeira na roda, permite
aproximar-se ou afastar-se do oponente, armando ataques e
executando uma defesa.
NEGATIVA
Aqui o capoeira desce sobre uma perna, que flexionará sob o peso
do corpo, ao abaixar-se. Com isto, temos o corpo sobre uma perna,
apoiado no calcanhar, enquanto a ponta do pé (flexionada) firma a base
no chão. A outra perna é lançada à frente, esticada, o calcanhar
tocando o solo. O braço deste lado apoia a mão ao solo, garantindo ao
capoeira três pontos de apoio e uma posição que permite locomoção
rápida.
Geralmente os capoeiras aperfeiçoam a execução da negativa
treinando a troca de negativas, que consiste em alternar
sucessivamente os pontos de apoio do corpo, de um lado e de outro, em
rápidos movimentos
RESISTÊNCIA
É uma defesa onde o capoeira se abaixa sobre as pernas
flexionadas, colocando o peso do corpo sobre uma perna. O braço
correspondente a esta perna mantêm a mão apoiada no solo, enquanto
o tronco é ligeiramente curvado, a outra mão à frente da cabeça.
Ao treinar a resistência o capoeira se prepara para outros
movimentos, sendo comum conjugar sua execução com o aú.
MEIA-LUA DE FRENTE
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Ao fazer este movimento o capoeira descreve uma meia-lua com
uma perna estirada, arremessada com o pé passando à altura do
adversário e completando um semicírculo, para então voltar com o pé
ao ponto inicial, retornando à ginga.
BÊNÇÃO
O capoeira ao aplicar a Bênção levanta a perna que se encontra
atrás na ginga, puxa-a em direção a si e - num movimento rápido -
empurra-a contra o peito do adversário, buscando atingi-lo com o
calcanhar.
ESQUIVA
Neste movimento o capoeira se desloca sem recuar o corpo,
porém evitando a trajetória de um gesto contrário, se abaixando
lateralmente.
CABEÇADA
Em uma posição semelhante à da esquiva, o capoeira projeta seu
tronco para a frente, sobre uma perna flexionada servindo como base,
buscando atingir o adversário com a cabeça.
RASTEIRA
Na execução da rasteira o capoeira cai sobre uma das pernas, que
se flexiona sob o peso do corpo.
Se a perna flexionada for a esquerda, tendo por pontos de apoio o
pé desta perna e as duas mãos sobre o solo, o capoeira traça um
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semicírculo à sua frente, com a perna direita, o pé desta perna
passando rente ao solo, buscando varrer o adversário. O movimento
prossegue até que se complete o círculo, quando o capoeira se levanta
já defronte ao oponente.
MARTELO BAIXO
O capoeira desce ao solo, apoiando-se às mãos, executando um
giro sobre o pé da perna que se encontra à frente, arremessando a
perna de trás, até voltar à posição inicial.
CHAPÉU DE COURO
Na execução do chapéu de couro, o capoeira principia uma
rasteira e interrompe a certa altura, para voltar com a mesma perna em
direção contrária à inicial, desferindo um movimento idêntico ao
anterior.
QUEIXADA
Aqui o capoeira se posiciona defronte ao adversário, dá um passo
lateral e em seguida, numa torção do tronco, arremessa a perna da
frente, desferindo um movimento semicircular à altura da cabeça do
adversário.
O golpe prossegue até a descida da perna até o solo.
ARMADA
O capoeira executa um giro de todo o corpo, aparentemente
dando as costas ao adversário, posicionando-se sobre a perna que se
encontra à frente, arremessando a outra perna, em um movimento que
completa o giro do corpo, tendo como objetivo a cabeça do oponente.
MEIA-LUA DE COMPASSO
Neste movimento o capoeira se abaixa até o solo, apoiando as
duas mãos ao solo e desferindo um giro com a perna de trás,
arremessando-a à altura do tronco do adversário. O giro é executado
sobre a perna base, como se fosse um compasso. Durante todo o
movimento a cabeça se encontra entre os braços, os olhos atentos ao
adversário.
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No treinamento básico, é útil a execução em seguida à
resistência, exigindo um maior controle da meia-lua e mantendo o
corpo bem próximo ao solo durante toda a movimentação.
Ao treinar contra-ataques à meia-lua, um movimento pouco
convencional, porém de certa utilidade, é o de puxar a perna de apoio
de quem arremessa o golpe, com a mão, provocando a interrupção e
queda do capoeira.
CHAPA LATERAL
Este movimento é executado de forma semelhante à Bênção. A
perna é puxada pelo capoeira (joelho flexionado) e distendida em um
gesto súbito, procurando atingir o oponente com a parte inferior do pé.
CHAPA DE COSTAS
Neste movimento o capoeira se abaixa até o solo, numa posição
próxima à da meia lua de compasso, quando então desfere um golpe
idêntico à chapa lateral, agora contando com o apoio das duas mãos ao
solo e se aproveitando do fato de estar de costas para o adversário.
CHAPA-PÉ RODADO
Ao executar este chute o capoeira faz um giro de todo o corpo
sobre uma perna base que se encontra à frente, dando as costas ao
adversário. Neste momento, aproveitando o impulso do movimento de
rotação do corpo, desfere vigoroso chute na posição da chapa lateral,
em direção ao tronco do adversário.
TESOURA DE COSTAS
Na tesoura o capoeira parte de um aú ou de posição idêntica
àquela inicial da meia-lua de compasso. Em um rápido salto, deve
buscar prender entre suas pernas as do adversário, mantendo a frente
do corpo para o solo, apoiando-se sobre as mãos.
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Em seguida, encaixado o movimento, um dos braços é levantado
do solo para fazer um gesto no sentido de rotação do tronco, servindo o
outro como base para o corpo ser girado de lado, tesourando a base de
apoio do adversário e arremessando-o ao solo.
PONTE
Movimento usado como fuga de um ataque, onde o capoeira -
saindo de uma posição igual à da resistência - executa uma curvatura
do tronco e coluna, apoiando as mãos ao solo, para levantar-se com o
apoio dos braços.
COICE
Como se percebe pelo nome, o coice é um movimento onde o
capoeira se apoia sobre os braços e desfere um potente chute duplo.
As pernas são encolhidas e depois arremessadas contra o
adversário.
RABO DE ARRAIA
No rabo de arraia o capoeira se aproxima do adversário e se atira
ao solo, apoiado às mãos, lançando um dos pés em direção ao rosto do
oponente, enquanto a outra perna dá equilíbrio ao movimento.
VÔO DO MORCEGO
Na execução deste movimento o capoeira pula em direção ao
adversário, com as pernas e braços encolhidos. No ar, as pernas são
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distendidas e os pés empurrados com força contra o oponente. Ao cair
no solo, o capoeira amortece a queda com as mãos.
PARAFUSO
O capoeira executa um giro em tudo semelhante ao da armada.
Quando a perna começa a efetuar o semicírculo, o capoeira dá um salto
e desfere um pontapé lateral com a outra perna, girando no ar, graças
ao impulso obtido durante toda a movimentação.
MEIA-LUA SOLTA
Na execução do giro, o calcanhar da perna que descreve a
meia-lua procura passar à altura da cabeça do oponente.
Neste movimento o capoeira faz um giro de tronco, preparando-se
para executar a meia-lua solta. Em seguida arremessa o corpo num giro
sobre uma perna flexionada, no ar, como se fizesse uma meia-lua de
compasso acima do chão.
VARIAÇÕES DO AÚ
Em geral os movimentos da Capoeira são executados pelo jogador
de forma pessoal, cada um acrescentando características que os tornem
mais adequados a um momento particular do jogo. O aú é um dos
movimentos que já tem consagrado o uso da maior quantidade de
variantes. Temos assim o aú aberto, o aú fechado, o aú com martelo, em
que o capoeira na posição do aú desfere um pontapé no adversário, o
aú com rolê, quando o capoeira conclui o movimento na posição de
negativa, aú compasso, executado sobre uma das mãos, procurando
cair com uma perna esticada atingindo o oponente com o calcanhar, aú
com queda de rins e aú camaleão.
A CAPOEIRA NO SÉCULO XX
Não é karatê e não é kung-fu
maculelê, maracatu...'
A Capoeira permaneceu na ilegalidade até os anos 30 e 40 deste
século, quando foram abertas em Salvador, Bahia, as primeiras
"academias" com licença oficial para o ensino da capoeira como uma
prática esportiva.
Neste empreendimento destacaram-se dois mestres baianos
negros e originários das camadas pobres da cidade, Bimba e Pastinha,
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considerados pelos capoeiras atuais como os "heróis culturais" desta
luta.
Para viabilizar seu projeto regional e étnico, estabeleceram duas
estratégias diferentes.
O criador da capoeira Regional Baiana, mestre Bimba, não viu
nenhum inconveniente em "mestiçar" essa luta, incorporando à mesma
movimentos de lutas ocidentais e orientais (tais como box, catch,
savate, jiu-jitsu e luta greco-romana).
Por outro lado, o mestre Pastinha, outro nome famoso da capoeira
baiana, contemporâneo de Bimba e igualmente empenhado na
legitimação da prática do jogo, reagindo àquela "mestiçagem" da
capoeira, afirmou a "pureza africana" da lute, difundindo o estilo da
capoeira Angola e procurando distingui-lo da Regional.
Diferentemente do século XIX, quando a prática da Capoeira,
tolerada como contravenção ou criminalizada, empurrava os negros
pare fora da sociedade brasileira, com a capoeira esporte os negros
foram absorvidos: estão do lado de dentro, "no jogo".
Bimba e Pastinha serviram-se de táticas distintas, defendendo
maneiras diferentes de inserção social. Suas escolas propuseram por
intermédio da Capoeira, estratégias simbólicas e políticas diferenciadas
que visavam, em última instancia, ampliar o espaço político dos negros
na sociedade brasileira, indicando dois caminhos possíveis. De um lado
foi organizado o estilo Regional, que embora incorpore elementos de
lutas ocidentais, guarda elementos que reafirmam a identidade étnica
negra nas músicas, nos toques do berimbau e nos próprios movimentos
que, conforme depoimento de mestre Bimba, são provenientes também
do batuque e do maculelê.
A Capoeira Regional coloca em contato sistemas de valores
distintos e, portanto, construções corporais distintas (movimentos
corporais de brancos e negros), operando uma mediação, criando um
campo simbólico ambíguo e ambivalente.
Sob esse aspecto a Capoeira Regional oferece uma afirmação de
identidade mais ampla que a da Capoeira Angola afirmando a presença
do negro enquanto parte da sociedade brasileira e, finalmente,
enquanto símbolo da nação como um todo. A Regional admite por
exemplo, a incorporação de elementos de outras formas de luta e novos
conceitos quanto à maximização dos efeitos dos golpes; e permite a
construção de uma nova presença negra no cenário nacional. Um preço
foi pago por isso, no plano político: renunciar à afirmação de uma
diferença na identidade negra.
A Capoeira que se quer pura, representada pelo estilo Angola é
uma forma inequívoca de afirmação da identidade étnica: em sua
própria designação os praticantes reafirmam sua origem e ao conservar
a pureza da construção corporal negra, demarcam uma forma
culturalmente distinta de jogar capoeira. Os defensores da Capoeira
Angola consideram que existindo como resistência no momento de
inclusão do negro na sociedade brasileira, ela só é revalorizada como
reafirmação dessa mesma resistência em função da recuperação de
uma identidade negra específica, no bojo da construção política de uma
consciência negra. A construção dessa identidade é possível a partir
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de uma postura conservadora, que reinventa a tradição e só se mantém
com a recuperação simultânea dos outros elementos que, no plano
simbólico, organizam essa visão de mundo negra. Exemplo disso é a
afirmação da origem africana da capoeira a partir do ritual de iniciação
denominado dança da zebra ou N'Golo.
A oposição Capoeira Angola versus Capoeira Regional é matizada:
o estilo Regional preserva as características ambíguas e mantém
elementos que assinalam as fronteiras culturais e étnicas dos negros,
mesmo com a incorporação de movimentos corporais de lutas brancas.
A prática da Capoeira Angola não é tão somente voltar ao
passado, mas buscar na Capoeira uma visão do mundo que questionou,
desde o princípio, diversos conceitos e padrões da cultura ocidental.
Afinal, quando surgiu a Regional, já existia uma tradição consolidada
na Capoeira, principalmente nas rodas de rua do Rio de Janeiro e da
Bahia
Depoimentos obtidos junto aos velhos mestres de Capoeira da
Bahia lembram personagens importantíssimos na história da luta no
século XX, tais como Traíra, Cobrinha Verde, Onça Preta, Pivô, Nagé,
Samuel Preto, Geraldo Chapeleiro, Daniel Noronha, Totonho de Maré,
Juvenal, Canário Pardo, Aberrê, Livino, Bilusca, Cabelo Bom e outros.
Inúmeras cantigas lembram os nomes e as proezas destes capoeiras,
mantendo-os vivos na memória coletiva da Capoeira.
Destacou-se entre os que defendiam a escola tradicional o
mestre Waldemar, do bairro da Liberdade, em Salvador, falecido em
1990. Desde 1940 conduzindo a roda de Capoeira que viria a ser o mais
importante ponto de encontro dos capoeiras da capital bahiana,
infelizmente mestre Waldemar não teve na velhice o reconhecimento
que merecia. Não foram muitos os capoeiras mais jovens que tiveram a
honra de conhecê-lo e ouvi-lo contar suas histórias. Lamentavelmente,
morreu na pobreza, como os mestres Pastinha, Bimba e muitos
outros.
Alguns mestres-capoeiras, antigos freqüentadores das famosas
rodas de Capoeira tradicional de Salvador, apesar da idade avançada
ainda dão sua contribuição ao desenvolvimento do jogo, ministrando
cursos, palestras e mesmo ensinando regularmente em instituições no
Brasil e em outros países.
Com a boa aceitação obtida pela escola de mestre Bimba,
dividiu-se o universo da Capoeira em tendências divergentes: alguns se
voltaram para a preservação das tradições e outros procuraram
desenvolver um estilo mais direcionado para o combate, à feição das
lutas marciais. Conforme ensinam os velhos mestres da Capoeira
baiana, a expressão 'Capoeira Angola' ou 'Capoeira de Angola' somente
surgiu após a criação da 'Regional', com o objetivo de estabelecer-se
uma designação diferente entre esta e a Capoeira tradicional, já
amplamente difundida. Até então não se fazia necessária a
diferenciação e o jogo se chamava simplesmente Capoeira.
Se o trabalho desenvolvido por mestre Bimba mudou os rumos da
Capoeira, muitos capoeiras se preocuparam em mostrar que a Angola
não precisaria sofrer modificações, pois já continha elementos para
uma eficaz defesa pessoal. A cisão ficou mais intensa, levando a uma
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autêntica polarização, a partir da fundação, em 1941, do Centro
Esportivo de Capoeira Angola, em Salvador, sob a liderança do mestre
Pastinha, reconhecido como o mais importante representante dessa
escola.
A ampla expansão da Regional, principalmente como uma
modalidade de luta, contribuiu para difundir a falsa idéia de que a
Angola não dispunha de recursos para o enfrentamento, afirmando-se
ainda que as antigas rodas de Capoeira, anteriores a mestre Bimba, não
apresentavam situações reais de com ate. Entretanto, os velhos mestres
fazem questão de dizer que estes ocorriam de uma forma diferente da
atual, em que os jogadores se valiam mais da agilidade e da malícia, da
mandinga, do que da força propriamente dita.
No seu livro Capoeira Angola, mestre Pastinha afirma que "sem
dúvida, a Capoeira Angola se assemelha a uma graciosa dança onde a
ginga maliciosa mostra a extraordinária flexibilidade dos capoeiras.
Mas, Capoeira Angola é, antes de tudo, luta e luta violenta".
Prática comum no cotidiano das primeiras décadas do século XX,
a Capoeira não exigia de seus praticantes nenhuma indumentária
especial. O capoeira entrava no jogo calçado com a roupa do dia-a-dia.
Nas rodas mais tradicionais, aos domingos, alguns dos capoeiras mais
destacados faziam questão de se apresentar trajando refinados ternos
de linho branco, como era comum até meados desse século.
O ensino da antiga Capoeira Angola ocorria de forma espontânea.
Os mais novos aprendiam com os mais experimentados, diretamente,
com a participação na roda. O aprendizado informal nas ruas e praças
das cidades brasileiras predominou até 1960.
Expressivo número de capoeiras se refere atualmente à Angola
como uma das formas de jogo, não propriamente como um estilo
metodizado de Capoeira.
Lembramos, como já foi dito neste livro, que a velocidade e outras
características do jogo da Capoeira estão diretamente relacionados com
o tipo de 'toque' executado pelo berimbau. Entre outros, existe aquele
denominado toque de Angola, que tem a característica de ser lento e
compassado. Jogar Angola consiste, na maioria dos casos, em jogar
Capoeira ao som do toque de Angola.
A compreensão do autêntico significado da Capoeira Angola vem
mudando com o enorme trabalho das escolas tradicionais, que realizam
um sério e valioso trabalho de divulgação e difusão dos fundamentos
dessa modalidade.
No meio da Capoeira, durante décadas os discípulos de mestre
Bimba e de mestre Pastinha alimentaram divergências. A Angola,
desvalorizada durante as décadas de 60 e 70, momento do auge da
Regional - que procurava conquistar o mercado então aberto às
chamadas artes marciais - seria, ao longo da década de 80 e desde o
início dos anos 90, revalorizada como depositária da tradição, no bojo
da valorização da negritude e do crescimento da consciência negra.
A grande parte das academias, escolas e associações de Capoeira
dedicam algum tempo ao jogo de Angola quando realizam suas rodas,
que nem sempre corresponde àquilo que os antigos capoeiristas
denominavam Capoeira Angola. E o jogo acaba resumindo-se à
[Linha 3650 de 3846 - Parte 3 de 3]
constante utilização das mãos como apoio no chão e execução de
movimentos de pouca eficiência combativa, golpes mais baixos e lentos,
realizados visando maior efeito estético com a exploração do equilíbrio e
da flexibilidade do capoeira.
Evidentemente, seria tarefa dificílima reproduzir detalhadamente
antigas movimentações e rituais da Capoeira. Afinal, como qualquer
manifestação dinâmica, o jogo tem sofrido modificações ao longo de sua
história. O esforço dos capoeiras dedicados ao ensino da arte
que viveram uma intensa preocupação de recuperar o saber ancestral
da Capoeira, mediante o contato com os velhos mestres, demonstra
uma saudável preocupação com a preservação das suas raízes
históricas, recuperando informações junto aos antigos capoeiras, que
vivenciaram inúmeras situações interessantes, acumulando experiência
valiosa ao longo de muitos anos de prática e ensino.
Graças a essa proveitoso intercâmbio podem ser encontradas na
maioria dos capoeiras algumas das mais relevantes características da
Angola, como a continuidade do jogo, quando os jogadores procuram
explorar ao máximo a movimentação evitando interrupções na dinâmica
do jogo; as esquivas, fundamentais na Angola, em que o capoeira evita
ao máximo o bloqueio dos movimentos do adversário, procurando
trabalhar dentro dos golpes, aproveitando-se dos desequilíbrios e falhas
na guarda do outro; a improvisação, típica dos jogadores de capoeira
ambientados nas "rodas de rua" e que pela experiência diante de
situações de enfrentamento real sabem que os golpes e outras técnicas
treinadas no dia-a-dia são um ponto de partida para a luta, mas
precisam ser moldadas rápida e criativamente à situação de momento.
A maioria das escolas não adotam a denominação de Angola ou
Regional para a Capoeira que ensinam. E entre as que se identificam
como Regional, poucas demonstram relação direta com o trabalho de
mestre Bimba: na imensa maioria, os mestres afirmam jogar e ensinar
uma forma mista, conciliando elementos tradicionais com as inovações
introduzidas por mestre Bimba.
Os fundamentos da luta tradicional ensinados às novas gerações
pelos velhos mestres da Bahia, como Waldemar, Caiçara,
Canjiquinha, João Grande, João Pequeno, Paulo dos Anjos, Ferreirinha
e Curió, entre outros, contribuíram decisivamente para o avanço na
organização dos grupos e na retomada das antigas tradições.
Nas últimas décadas do século XX a tendência constatada na
grande maioria das escolas foi de que a Capoeira incorpore as
características das duas escolas. Importante, portanto, que os capoeiras
conheçam a sua história, praticando sua luta de forma consciente.
Angola e Regional possuem valioso conteúdo histórico e não se
excluem: completam-se
Indiscutivelmente, o jogo da Capoeira é uma das mais
significativas contribuições dos africanos e seus descendentes para a
formação da nossa identidade cultural, inserindo-se na nossa história e
preservando a lembrança das lutas sociais que forjaram a cidadania
brasileira. Promover o resgate das tradições da Capoeira significa
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recuperar a consciência da identidade brasileira. Divulgando essa
belíssima linguagem corporal estamos expressando a voz de uma
nacionalidade construída na luta de resistência à dominação cultural.
Lutar pela recuperação da memória brasileira é lembrando dos heróis
saídos do seio do povo. Não nos esqueçamos do exemplo recente de
Pastinha, Bimba, Querido de Deus, Besouro e tantos dos nossos irmãos
que corporificam a cultura brasileira.
A ação desses mestres permitiu a preservação da Capoeira
enquanto luta e arte, jogo e dança, aspectos essenciais numa
manifestação cultural cujo valor depende dessa complexa dubiedade.
Vale ressaltar a importância do trabalho desenvolvido pelos
mestres e capoeiras espalhados por todo o mundo, que têm
desenvolvido esforços proveitosos pela continuidade dessa luta, única e
original.
A sobrevivência da Capoeira estará assegurada pela ação dos
inúmeros praticantes que compreendam a importância dessa forma
exclusiva e magnífica de expressão corporal, cultivando a graça e leveza
dos movimentos, as possibilidades técnicas e plásticas de traduzir
fisicamente elasticidade, flexibilidade e controle. Tudo isso temperado
com muita malícia. E o que é mais importante, sem esquecer a
finalidade da luta: a liberdade - que resume o objetivo a ser alcançado e
o caminho a percorrer.
Fortalecido pelas tradições ricas em caracteres e componentes, os
negros construíram a unidade da sua resistência em torno dos seus
valores, determinando assim as ações da sua resistência social e
cultural. Mesmo assumindo uma língua que não era a deles, adotando
uma forma de comunicação totalmente estranha aos seus costumes - a
escrita -, o negro preservou no corpo a memória da sua identidade.
Essa memória corporal constitui-se na fonte de saber, no banco de
dados que dá suporte à memória dos usos, costumes e tradições. tem
na Capoeira o mais importante discurso de liberdade e autonomia
memorizado no corpo. E é a partir dessa significativa interferência
não-verbal que os negros participaram da definição da nossa cultura:
sentindo na pele a emergência dos problemas políticos e sociais,
resgataram da sua memória corporal a luta de resistência da Capoeira.
O jogo da capoeira é um dos caminhos para a grande aventura da
redescoberta: a construção da cidadania brasileira Por que não tentar?
BIBLIOGRAFIA
AGOSTINHO NETO. Fogo e Ritmo. Poetas e Contistas Africanos,
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(FIM DA OBRA - OBRA COMPLETA)
A Arte da Capoeira - Parte 1 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-1-de-3-camille.html
A Arte da Capoeira - Parte 2 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-2-de-3-camille.html
A Arte da Capoeira - Parte 3 de 3 - Camille Adorno
http://publicadosbrasil.blogspot.com.br/2017/07/a-arte-da-capoeira-parte-3-de-3-camille.html
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