quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O Ateneu - Parte 2 de 4 - Raul Pompéia


O Ateneu - Parte 2 de 4 - Raul Pompéia



Aquele sofrimento eu o desejava, na humildade devota da minha disposição atual. Chorava à 
noite, em segredo, no dormitório; mas colhia as lágrimas numa taça, como fazem os mártires 
das estampas bentas, e oferecia ao céu, em remissão dos meus pobres pecados, com as notas 
más boiando.


    No recreio, andava só e calado como um monge. Depois do Sanches não me aproximava 
de nenhum colega, senão incidentemente, por palavras indispensáveis. Rebelo tentou 
atrair-me; eu desviava. Sanches, rancoroso, perseguia-me como um demônio. Dizia coisas 

imundas. "Deixa estar, jurava entre dentes, que ainda hei de tirar-te a vergonha." Na qualidade 
de vigilante levava-me brutalmente à espada. Eu tinha as pernas roxas dos golpes; as canelas 
me incharam. Se Barbalho se lembra de vingar a bofetada, creio que me submetia à letra 
evangélica 1S
    Durante este período de depressão contemplativa uma coisa apenas magoava-me: não 
tinha o ar angélico do Ribas, não cantava tão bem como ele. Que faria se morresse. entre os 
anjos, sem saber cantar?
    Ribas, quinze anos, era feio, magro, linfático. Boca sem lábios, de velha carpideira, 
desenhada em angústia - a súplica feita boca, a prece perene rasgada em beiços sobre dentes; 
o queixo fugia-lhe pelo rosto, infinitamente, como uma gota de cera pelo fuste de um círio...
    Mas, quando, na capela, mãos postas ao peito, de joelhos, voltava os olhos para o 
medalhão azul do teto, que sentimento! Que doloroso encanto! que piedade! um olhar 
penetrante, adorador, de enlevo, que subia, que furava o céu como a extrema agulha de um 
templo gótico!
    E depois cantava as orações com a doçura feminina de uma virgem aos pés de Maria, alto, 
trêmulo, aéreo, como aquele prodígio celeste de garganteio da freira Virgínia em um romance 
do conselheiro Bastos.
    Oh! não ser eu angélico como o Ribas! Lembro-me bem de o ver ao banho: tinha as 
omoplatas magras para fora, como duas asas!
    E eu era feliz nesse tempo, quando invejava o Ribas.
    Havia na minha febre religiosa certo número de reservas, que pareciam o germe de futuro 
libertino, como dizem os padres mineiros; eu não admitia a confissão, não pensava em 
comunhão, estranhava os exageros do culto público, votava antipatia aos homens de batina. 
Santa Rosália era a minha devoção.
    Por que Santa Rosália? Não havia motivo: era uma pequena imagem em cartão, gravara 
de aço e aguadas de fino colorido, lembrança que me dera uma prima, então morta, e eu 
guardava em memória amável.
    Era boa a priminha. Mais velha do que eu três anos, carinhosa, maternal comigo. Brincava 
pouco, velava pelos irmãos, pela ordem da casa, como uma senhora. Tinha os olhos grandes, 
grandes, que pareciam crescer ainda quando fitavam, negros, animados de um movimento 
suave de nuvem sobre céu macio; o semblante claro, branco, puro, de marmórea pureza, 
coando uma transparência de sangue a cada face. Raro falava; desconhecia a agitação, 
ignorava a impaciência. Sabia talvez que ia morrer. Ao vê-la passar, sem rumor, como os 
espectros femininos do sonhador americano - leve na terra como o rogar da veste de um anjo, 
sentia-se com aperto de coração que não pertencia ao mundo aquela criança: buscava, errante 
na vida, buscava apenas o repouso da forma, sob a campa, em sitio calmo, de muito sol, onde 
chorassem as rosas pela manhã - e a liberdade etérea do sentimento.
    Um dia, não sei se do pranto que tinha nos olhos, vi animar-se o rosto à pequenina 
gravura. Eu pensava na prima; descobri na imagem uma identidade comovente de traços 
fisionômicos com a pequenina morta. Guardei então, como um retrato, Santa Rosália?
    Com a evolução de misticismo era natural completar-se a consagração da estampa, 
canonizada triunfalmente no concilio ecumênico dos meus mais íntimos votos.
    Era a sala geral do estudo, à beira do pátio central, uma peça incomensurável, muito mais 
extensa do que larga. De uma das extremidades, quem não tivesse extraordinária vista custaria 
a reconhecer outra pessoa na extremidade oposta. A um lado, encarreiravam-se quatro ordens 
de carteiras de pau envernizado e os bancos. À parede, em frente, perfilavam-se grandes 
armários de portas numeradas, correspondentes a compartimentos fundos; depósito de livros. 
Livros é o que menos se guardava em muitos compartimentos. O dono pregava um cadeado à 
portinha e formava um interior à vontade. Uns, os futuros sportmen, criavam ratinhos, 
cuidadosamente desdentados a tesoura, que se atrelavam a pequenos carros de papelão; 


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outros, os políticos futuros, criavam cameleões e lagartixas, declarando-se-lhes precoce a 
propensão pelo viver de rastos e pela cambiante das peles; outros, entomologistas, enchiam de 
casulos dormentes a estante e vinham espiar a eflorescência das borboletas; os colecionadores, 
Ladislaus Netos um dia, fingiam museus mineralógicos, museus botânicos, onde abundavam 
as delicadas rendas secas de filamentos das folhas descarnadas; outros davam-se à zoologia e 
tinham caveiras de passarinhos, ovos vazados, cobras em cachaça. Um destes últimos sofreu 
uma decepção. Guardava preciosamente o crânio de não sei que fenomenal quadrúpede 
encontrado em escavações de uma horta, quando verificou-se que era uma carcaça de galinha!
    Eu tive a idéia de armar em capela o compartimento do meu número. Havia 
compartimentos enfeitados de cromos e desenhos: o meu seria um bosque de flores, e eu 
acharia uma lâmpada minúscula para conservar li dentro acesa. Ao fundo, em dourado 
passe-partout alojaria Santa Rosália, a padroeira.
    O projeto caiu pela dificuldade das flores. Pagando a um criado, mal conseguia um 
bogari, um botão qualquer por dia. Tive de acomodar a gravura na gaveta do móvel que 
possuíamos ao dormitório, perto da cama, para as escovas e os pentes.
    E todos os dias, sobre o papel, testemunho de assídua veneração, depositava uma flor, 
mantendo na gaveta o clima tépido dos meus fervores, simbolizados num tributo de perfume.
    Quando, no dia primeiro, sorriram as rosas místicas de maio, saudei-as enternecido do 
alto das janelas do salão azul, como as mensageiras do amor de Maria.
    Iam começar os hinos pela manhã no oratório do Ateneu. Abençoados momentos de 
contrição e ternura, em que à disposição venturosa do corpo, depois do banho, vivia um pouco 
o recolhimento da poesia cristã, no magnífico salão, guardando ainda, como os vapores 
matinais das escarpas, as ultimas sombras da noite por entre os crespos do estuque.
    O sol vinha também à capela e colava de fora a fronte às vidraças, brando ainda do 
despertar recente, fresco da toilette da aurora, com medo de entrar, corado da vergonha de não 
rezar, pobre astro ateu. Pelas janelas abertas, esgalhavam-se para dentro frondosas ramas de 
jasmineiro, como uma invasão de floresta; e os jasmins da véspera, cansados, debulhavam-se 
conchinhas de nácar pelo soalho, mortos, expirando no ambiente a alma livre do aroma.
    Nós, ajoelhados, ressentidos da influência moral do cenário, orávamos sinceramente. Não 
havia muito mal a colher nos corações daquela mocidade, naquele instante, repousando na 
trégua da oração das miseriazinhas da hora comum.
    Eu não olhava para o altar. Li estava rica, no trono iluminado, sobre três ordens de 
palmas, a imagem da Senhora da Conceição imaculada, alteando à fronte a coroa de prata, 
onde engastavam pedraria os reflexos das luzes. A minha contrição, o meu canto pertenciam a 
Santa Rosália, ao querido cartão singelo que eu trazia dentro da blusa de brim, que comprimia 
ao peito com a mão, exacerbando o êxtase da fé pelo magnetismo do santo contato.
    O mês de maio foi a culminação do período anagógico de crença. Coincidiu com essa 
época levarem-no ao leito os incômodos de meu pai, impedindo-lhe as visitas do costume ao 
Ateneu. Eu pensava nos seus sofrimentos, e era isto mais um tema para as variações do 
misticismo.
    A neblina de melancolia, baixada sobre o colégio da altura da cordilheira, repercussão da 
tristeza verde das matas, pesava-me aos ombros como a loba de um seminarista, como o voto 
de um frade; eu passeava na circunscrição do recreio como num claustro, olhando as paredes, 
brancas como túmulos caiados, limitando as preocupações do espírito à minha humilhação 
diante de Deus, sem olhar para cima, na modéstia curvada dos brutos - anulando-me a mim 
mesmo na angústia do pensamento religioso, como no saco de pano bicudo, preto, do 
farricoco.
    O céu, que a imaginação buscara dantes, como os cânticos buscam os zimbórios, cala 
agora sobre mim como um solidéu de bronze.
    Triste e feliz.


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    Ninguém sabia dos sonhos e atribuíam à excentricidade o meu amor à solidão e ao 
sossego.
    Durante o hino do anjo da guarda, no recreio abrigado, ao meio-dia, os estudantes, 
afogueados e transpirando ainda dos folguedos, paletós empapuçados sobre a cinta de couro, 
cabelos revoltos, não tomavam o rito a sério, e era a dureza dos vigilantes que os constrangia ao 
respeito daqueles dez minutos de religião. Só o Ribas e eu... e se não diminuíam as aflições da 
terra e os nossos apertos, não é que o não pedíssemos ao Anjo...
    Cantávamos a primeira estrofe (o Ribas marcava o diapasão) e as seguintes, ate à última, 
que acabavam todas por uma longa nota esfusiada em foguete, cantávamos com um esforço de 
adoração que bem compensaria, em caso de balanço, a leviandade irreverente de todos os 
colegas.
    O diapasão do Ribas era uma deliciosa nota, tratada a pastilhas, guardada a cachenê nos 
dias frios, furto sem dúvida ao tesouro de gorjeios de algum sabiá descuidado. Aristarco 
adorava esta nota. Às vezes, na aula de música chamava o Ribas e pedia-lhe aquela, aquela... a 
do hino...
    Ribas candidamente, por agradar ao diretor, punha de fora a mimosa nota, como uma 
balinha de parto, cor de âmbar, na ponta da língua. Ao meio-dia era o momento. Ribas volvia 
os olhos e deixava partir, primeiro que todos, o preciso som. O colégio entoava depois, e as 
vozes iam todas, as nossas, em perseguição da primeira. Baldado esforço; que a do Ribas 
recolhia-se aos coros celestiais, festejada na cordialidade fraternal dos harmônicos, ao passo 
que as nossas, desenganadas, voltavam da investida num retrocesso icário, desmembradas, 
desengonçadas, espaços a baixo como um bando de garças tontas. A distancia, o conjunto 
podia passar por um cântico.
    Uma hora de oração que aborrecia era a da noite, antes do recolher.
    O movimento do dia sobrecarregava-nos com uma reação irresistível de fadiga. O sono 
chumbava-nos as pestanas como linhas de tarrafa. O harmônio da capela, dedilhado pelo 
Sampaio, hoje médico parteiro, e aplicado a extrair vagidos como outrora extraía os acordes - 
produzia vagarosamente roncos de soneira da sesta de um tigre, fungados sonoros da digestão 
dormida de um abade. Alguns meninos cantavam cabeceando, desmaiando a voz em vastos 
bocejos. Nas primeiras linhas, dos pequenos, estavam muitos de olhos fechados, bem longe 
dos cuidados da prece. Eu gozava o prazer da mortificação, sustendo-me fervoroso durante a 
reza noturna.
    Para isso, levava no bolso um punhado de pedrinhas, com que formava no soalho um 
genuflexório despertador, fitando arregaladamente os olhos, ardidos de sono, na lingüeta 
tiritante do fogo das velas...

    Aludi várias vezes ao revestimento exterior de divindade com que se apresentava 
habitualmente Aristarco.
    Era um manto transparente, da natureza daquele tecido leve de brisas trancadas de 
Gautier, manto sobrenatural que Aristarco passava aos ombros, revelando do estofo nada mais 
que o predicado de majestade, geralmente estranho à indústria pouco abstrata dos tecelões e à 
trama concreta das lançadeiras.
    Ninguém conseguiria tocar com o dedo a misteriosa púrpura. Sentia-se, porém, o influxo 
da realeza impalpável.
    Assim é que um simples olhar do diretor imobilizava o colégio fulminantemente, como se 
levasse no brilho ameaças de todo um despotismo cruento.
    O diretor manobrava este talento de império com a perícia do corredor sobre o pur sang 
sensível.
    A sala geral do estudo tinha inúmeras portas. Aristarco fazia aparições, de súbito, a 
qualquer das portas, nos momentos em que menos se podia contar com ele.


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    Levava as aparições às aulas, surpreendendo professores e discípulos. Por meio deste 
processo de vigilância de inopinados, mantinha no estabelecimento por toda a parte o risco 
perpétuo do flagrante como uma atmosfera de susto. Fazia mais com isso que a espionagem de 
todos os bedéis. Chegava o capricho a ponto de deixar algumas janelas ou portas como 
votadas a fechamento para sempre, com o fim único de um belo dia abri-las bruscamente sobre 
qualquer maquinação clandestina da vadiagem. Sorria então no intimo, do efeito pavoroso das 
armadilhas, e cofiava os majestosos bigodes brancos de marechal, pausadamente, como lambe 
o jaguar ao focinho a pregustação de um repasto de sangue.
    Nos momentos de ira e de exaltações eloqüentes é que sabia fazer-se em verdade divino. 
Era mais que uma revelação temerosa do Olimpo; era como se Júpiter mandasse Mercúrio catar 
à terra os raios já disparados e os unisse ao estoque inavaliável dos arsenais do Etna, para soltar 
tudo, de uma só vez, de uma só cólera, num só trovão, aniquilando a natureza sob a bombarda 
onipotente.
    Mas não somente parodiava ele os furores olímpicos Aquela alma dúctil de artista sabia 
decair até à blandícia, até à lágrima a propósito.
    Júpiter guardava para a oportunidade a carícia de edredom, o gesto flexuoso do soberano 
cisne. Expandia-se às vezes sobre o Ateneu em rompimento de amor paterno, tão derramado, 
tão jeitosamente sincero, que não tínhamos remédio senão replicar no mesmo tom, por um 
madrigal de enternecimento de filhos.
    E admirávamos.
    A hora solene do meio-dia Aristarco aproveitava para distribuir uma merenda de 
conselhos, depois do canto e antes de outra de fatias, incomparavelmente mais bem recebida. 
Muitas vezes não eram só conselhos. Também reprimendas em massa por culpas coletivas, 
arrecadações de cigarros, ou pequenos processos sumários em que se averiguava a autoria de 
delitos importantes, como encher de papel picado uma sala, cuspir às paredes, molhar a 
privada, e mesmo muito mais graves, como num episódio do Franco, que se prende ao período 
beato das minhas reminiscências.
    Assistia o Mestre com atenção do costume à reza cantada, fazendo girar nos dedos uma 
medalha do relógio sobre o colete, na abertura do fraque. Ao final, depois de um intervalo 
preparatório, aperitivo de emoções, tomou a palavra num tom solene de revelação e referiu, 
com toda a grandeza de que era suscetível, a hipótese, reclamando a indignação vingadora do 
Ateneu.
    Franco, no domingo da véspera, aproveitando a largura da vigilância no dia vago, fora 
vadiar ao jardim. E para tomar água de um poço aí existente, cuja bomba não funcionava em 
regra, deliberou, imaginem! umedecer a bucha aspiradora com um líquido que Moisés seria 
capaz de obter no árido deserto, sem milagre mesmo e sem Horeb. Agora considerem que o 
referido poço fornecia água para a lavagem dos pratos.
    Um murmúrio de horror elevou-se das alas de estudantes.
    "Adianta-te, Franco", mandou Aristarco.
    Com a insensibilidade pétrea que o encouraçava para as humilhações, saiu Franco do 
lugar e de cabeça baixa, como um cão, foi parar no centro da sala. Ali esteve por alguns 
segundos, exposto, no meio do enorme quadrado de alunos. Os olhares caiam-lhe em cima, 
como os projéteis de um fuzilamento.
    O que mais indignava, era pensar que se havia comido em pratos lavados depois da 
profanação irremediável da linfa. Passado este efeito, com que contava para a punição moral, 
o diretor concluiu o libelo. Ficássemos tranqüilos, estavam puros os lábios. Franco tinha sido 
surpreendido por um copeiro que o prendera, e fora a bomba incontinenti declarada - 
interdita.
    Muita gente duvidou da oportunidade da interdição. Limpavam com asco a língua no 
lenço, esfregavam a boca até esfolar.


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    "O porco!" bramia Aristarco. "O grandíssimo porco!" repetia como um deus fora de si. 
Em redor todos apoiavam a energia da corrigenda. Resolveu-se, porém, deixar com vida o 
criminoso.
    Aristarco marcou apenas dez páginas de castigo escrito à noite, e passar de joelhos as 
horas de recreio, a começar da presente.
    Formulado o veredicto, Franco caiu de rótulas no soalho com estampido, como se 
repentinamente se lhe houvesse estalado às pernas uma mola.
    "Ai não! aqui, tratante! " gritou o diretor, indicando a porta do salão. Cantava-se a oração 
do meio-dia, como sabem, na casa das recreações em dia de chuva, que alargava três boas 
portas para o pátio central. Aristarco estava perto da do meio.
    De joelhos neste ponto, Franco, ao pelourinho: diante das chufas dos maus e da alegria 
livre de todos. Como esta porta era caminho dos rapazes até as bandejas onde se elevavam as 
pilhas sedutoras da merenda, ficava ainda o condenado com um reforçozinho de pena. 
Passando por ele, os mais enfurecidos deram empurrões, beliscaram-lhe os braços, 
injuriaram-no. Franco respondia a meia voz, por uma palavrinha porca, repetida rapidamente, e 
cuspia-lhes, sujando a todos com o arremesso dos únicos recursos da sua posição.
    Até que um grande, mais estouvado, fê-lo cair contra o portal, ferindo a cabeça. A este, 
Franco não respondeu; pôs-se a chorar.
    Os inspetores fiscalizavam o serviço do pão, prevenindo espertezas inconvenientes.
    Escaparam-lhes os maus tratos.
    As desventuras do pobre rapaz e as minhas próprias haviam-me levado para o Franco. Eu 
me constituíra para ele um quase amigo. Franco era silencioso, como arreceado de todos, 
tristonho, de uma melancolia parente da imbecilidade; tinha acessos refreados de raiva, 
queixas que não sabia formular. Os livros, causa primeira de seus desgostos, faziam-lhe horror. 
A necessidade de escrever por castigo promovera nele a habilidade dos galés: adquirira um 
desembaraço pasmoso na faina de encher de garranchos páginas e páginas. Esta interminável 
escrita fizera-lhe calos ao canto das unhas: meus dedos perderam o brio, dizia ele nos 
momentos de amargo humor, em que improvisava sarcasmos contra si mesmo.
    A principio fugia de mim, resmungando coisas indecifráveis. Depois aceitou-me. Mas 
não excediam as suas confidências o restritíssimo limite de uns grunhidos de aversão, histórias 
de desastres pândegos que sabia, ingênuas observações a respeito de assuntos infantis, 
referências de ódio aos superiores.
    Uma vez recebeu carta da província, uma das poucas que lhe chegavam por ano. Depois 
da leitura percebi que tinha lágrimas nos olhos. O pranto era-lhe um acontecimento na 
fisionomia, invariavelmente de uma pasmaceira de máscara de arame. Interessei-me por aquele 
sofrimento; ele deu-me a carta a ler. O pai do Franco era um pobre desembargador desterrado 
nos confins de Mato Grosso, com oito filhos. Uma carta dolorosa. Fora entregue diretamente 
pelo caixeiro do correspondente, escapando à curiosidade do diretor, que gostava de espiar a 
correspondência dos alunos. Falava em vir à corte no fim do ano, com todos os sacrifícios, 
falava em encontrar o filho bom menino, educado, estudioso. Contava depois, entre 
exclamações consternadas, que uma filha, a mais velha, desaparecera do colégio onde estava, 
em companhia de um professor de piano, homem casado, sendo encontrada três ou quatro dias 
depois ao abandono. Em vão tinham feito perguntas à infeliz no interesse da punição do 
culpado; sepultara-se a mocinha num mutismo desolador, como se houvesse perdido a voz, 
recusando alimento, não tirando do chão os olhos desvairados, escravos da contemplação 
demente da vergonha.
    - Como tem descido Sérgio, lastimavam os inspetores, palestrando a ordem do dia com 
o diretor, é o intimo do Franco.
    Ainda que isso não fosse rigorosamente exato, não foi surpresa para mim ver o 
excomungado convidar-me para uma extraordinária empresa à noite. "Vingar-me da corja!" 


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murmurava, gargarejando um riso incompleto e azedo. Isto à tardinha, depois da ginástica, no 
mesmo dia do processo da bomba.
    Conseguira no lusco-fusco escapar à sala onde o haviam encerrado para a tarefa das 
páginas. E juntos eu e ele, porque eu lhe aceitara o convite com uma facilidade que ainda hoje 
não compreendo, galgamos um canto de muro que havia no pátio e saltamos para o jardim 
florestal.
    Embaixo das árvores era já noite espessa. Demos uma volta no escuro acompanhando a 
curva de uma alameda. O Franco ia adiante calado, andando leve e rápido como uma sombra 
no ar. Eu o seguia irresistivelmente como sonhando, num sonho de curiosidade e de espanto. 
Que ia fazer o Franco? Aonde ia ele? Chegamos ao capinzal, a um de cujos lados extremos 
ficava a natação. Logo ao portão de ingresso nesse terreno, havia um depósito de lixo, onde os 
jardineiros acumulavam as varreduras da chácara, negrejando putrefatas, virando estrume ao 
tempo.
    Franco deteve-se junto ao monturo. Sempre em silêncio e ativamente, como para não 
perder aquele raro estimulo de vontade que o impelia, foi examinando o lixo com o pé.
    A um canto, entre tocos de bambu, tiniram garrafas. Franco abaixou-se e como em ação 
mecânica, sem se voltar, apanhou uma garrafa, outra e outra; foi-me dando, sobraçou ainda 
outras e prosseguimos, o Franco adiante, leve e rápido, sempre no seu andar de sombra, como 
suspenso e difuso na névoa quase lúcida do campo aberto.
    Atravessamos o capinzal quase sumidos entre as altas bandas de capim-d'angola, cuja 
escura vastidão se constelava de vaga-lumes e vibrava da grita intensa dos grilos e do clamor 
dos sapos. Diante da natação o Franco parou e me fez parar. "A minha vingança!" disse entre 
dentes, e me indicou a toalha d'água do grande tanque. A massa liquida, imóvel, na calma da 
noite, tinha o aspecto de lustrosa calçada de azeviche; algumas estrelas repetiam-se na 
superfície negra com uma nitidez perfeita.
    Com o mesmo modo atarefado de todo aquele singular empreendimento, o Franco 
acercou-se de mim, tirou-me as garrafas que me dera e desapareceu da minha vista.
    Eu ouvi que ele quebrava as garrafas uma por uma. Daí pouco reaparecia, trazendo as abas 
da blusa em regaço. E começou a lançar então com o maior sossego ao tanque, para todos os 
lados, aqui, ali, dispersamente, como semeando, as lascas do vidro que partira. Um breve 
rumor de mergulho borbulhava à flor d'água, abrindo-se em círculos concêntricos os reflexos 
do céu. Eu vi muitas vezes contra o albor mais claro do muro fronteiro, passando, repassando, 
a sombra do sinistro semeador.
    "A minha vingança!" repetiu-me ainda o Franco. "Para o sangue, sangue, acrescentou 
com o risinho seco. Amanhã rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu 
me vingo!"
    Ao falar mostrava-me o lenço que enxugara o sangue do golpe à testa.
    O justo terror da aventura, em lugar vedado, por aquelas horas, só me assaltou quando, a 
pular o muro do pátio, fui cair entre as mãos do Silvino. Nos aparos da alhada, mal vi o Franco 
seguro pelo pescoço, como um ladrão em flagrante.
    Em presença do diretor, no escritório inquisitorial improvisei uma mentira. Fôramos 
colher sapotis, afirmei explicando à tremenda argüição a estranheza da surtida. O diretor 
marcou a pena de oito páginas. Franco, que andava com um déficit de vinte pelo menos, teve 
de acrescentar mais estas ao passivo insolvável. Pela vergonha da tentativa de furto e no 
sistema dos castigos morais, adicionou-se a observação suplementar: passaríamos, os 
delinqüentes, no outro dia, as horas do almoço e do jantar, ao refeitório, de pé carregando em 
cada mão quantos sapotis coubessem.
    Todo o requinte de punição não me deu cuidado; pelo contrário, estava nas condições do 
meu programa de pequeno mártir ad majorem gloriam. Ao deixar o escritório outra coisa 
preocupava-me. Ardia de remorsos; tinha cacos de garrafa na consciência. A armadilha 


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sanguinária de Franco obsedava-me como um delito meu.
    Depois das horas do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os 
dormitórios, fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. 
Devorava-me o remorso como uma febre; aterrava-me a idéia do banho na manhã seguinte, os 
rapazes atirando-se à vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais uma 
linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.
    A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que 
fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? 
Prevenir aos colegas pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava-me no crânio como 
uma inchação de meninges. Dar-se-ia caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse 
apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar o engodo da 
consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o 
primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectiva do sangue. Dez, vinte, 
trinta rapazes, à borda, gemendo, extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, 
cúmplice, que o permitira, e maior culpado, que me não cegava a razão, em suma, de justa 
desforra...
    Ergui-me da cama, e descalço nas tábuas frias, para ver se me acalmava o mal-estar, errei 
pelos salões adormecidos.
    Os colegas, tranqüilos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da 
anemia de um repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao 
lábio; alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras 
entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis 
alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se depois por um desses longos 
suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do coração. Os menores, 
mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no 
abandono do descanso uma atitude ideal de vôo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de 
aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar 
de fora chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; 
ouvia-se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de 
tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, 
bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava-se igual sobre as camas. doçura dispersa de 
um olhar de mãe.
    Que venturosa segurança naquele museu de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a 
volta, pés ensangüentados, listrando de vestígios vermelhos o caminho!
    Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa Rosália; beijei-a com lágrimas, 
pedi conselho como um filho. A inquietação não passava. Atravessei ainda os dormitórios, 
devagarinho, que me não ouvisse o Margal, acomodado num biombo a um dos ângulos do 
salão azul. Uma crepitação dos ossos do tornozelo esteve a ponto de me comprometer. Dentro 
do biombo, tossiram; parei um momento; curou-se a tosse; prossegui.
    Desci ao primeiro andar do edifício; entrei na capela.
    A capela em trevas, de um negrume absoluto de merinó preto. A escuridão dava-lhe uma 
amplitude de subterrâneo, misteriosamente sentida no espaço. Não tive medo. Fui até ao altar. 
Tropecei no estrado. Ajoelhei-me no chão e descansei a testa nos braços a um dos ângulos do 
estrado do oratório. Rezei.
     Na qualidade de mau estudante não sabia até ao fim nenhuma oração. Rogava por minha 
conta, improvisando súplicas, veementes, angustiosas, que deviam forçar a ombro a porta de 
São Pedro. Implorava de Deus diretamente, sem o intermediário empenho da minha padroeira. 
Até que, não posso dizer como, adormeci.
    Uma palmada acordou-me. Era dia. Ergui-me vexado, de camisola, diante do Margal e de 
uma porção de colegas que miravam. "É sonâmbulo, é sonâmbulo", explicavam.


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    Esta saída dispensava-me de dizer a que fora ali; encampei a explicação, concordando. 
"Que horas são?" perguntei. "Seis horas, responderam. Chegamos agora mesmo do banho." 
Tinham os cabelos empastados sobre os olhos. "E os cacos?!" gritei espavorido. Examinei os 
pés dos companheiros. Nas chinelas com que desciam ao banho não via sangue! Esclarecia-se: 
houvera ordem de banhos de chuva no competente banheiro, alojado em um dos cômodos 
baixos do Ateneu, pelo motivo de ter servido seis vezes a água da natação. Graças ao Senhor! 
Vinha-me do céu esta solução de águas sujas, alcançada pela minha prece. Dilatou-se-me a 
alma em ditoso alívio.
    À minha interjeição explosiva de cacos, os colegas supuseram tontura de sono. Não assim 
o inspetor, que me chamou a indagar. Nova mentira: durante a escapada dos sapotis, uma 
garrafa, que arremessei de mau jeito, fizera-se em cacos contra o muro, sobre o tanque. 
Providenciou-se. O criado encarregado de varrer o tanque, com o zelo da domesticidade, 
chamou atenção para o número dos fragmentos; tão extraordinária era a hipótese da intenção 
perversa que não pegou.
    No mesmo dia estive com o Franco, durante os recreios, a completar a pena. Não me disse 
palavra acerca da decepção da sua vingança. Julgando-se comprometido, concentrava-se na 
insensibilidade de carapaça que o defendia, esperando tudo, a minha delação, uma trovoada 
de doestos, a cafua, um acréscimo ao déficit permanente da divida penal. Aborrecia-se, porém, 
da necessidade de ser punido por um fiasco de tentativa.
    Quanto ao requinte da exposição no refeitório, mãos cheias de sapotis, não houve meio de 
obrigar-me Aristarco. Concordara em ficar de pé; não era pouco. Franco naturalmente 
submeteu-se e lá esteve, braços abertos, a fazer de fruteira no interesse do sistema das punições 
morais. Tanto melhor para o sistema.
    À vista da relutância, calculou-se em páginas de escrita quanto podiam valer dois 
punhados de sapotis; redução difícil, que a justiça colegial alcançou matematicamente, 
pronunciando uma condenação que me daria que fazer até mais de meia-noite.
    Este rasgo de vigor mentia ao meu religioso papel de submissão e sofrimento. Foi o 
repentino prenúncio de próxima reforma no interior espiritual. E, como as evoluções da 
vontade sabem extrair de qualquer fato a hermenêutica do determinismo, deu-se 
imediatamente uma ocorrência que ponderou muito na transformação.

    De noite, novamente ao lado do Franco, a fatigar-me na tarefa das páginas, tive que ficar 
até tarde numa das salas do primeiro andar. Pelas dez e meia, o diretor, antes de sair para casa, 
veio ver-nos. "Ainda escrevem... estes peraltas?..." disse-nos de enorme altura, à guisa de 
boas-noites, e desapareceu confiando-nos ao amável João Numa, bácoro, inspetor das salas de 
cima. Na sua qualidade de gorducho, o João não era diligente. Apenas viu parar Aristarco, 
trancou a última porta do Ateneu e foi dormir.
    Acabrunhado pela noitada anterior, estava eu de sono que mal podia erguer a cabeça. De 
uma vez que cedi ao cansaço fui despertado por sentir que me alisavam a mão. Adormecera 
sobre o braço direito contra a carteira, pousando o rosto na tinta do castigo, deixando cair o 
braço esquerdo para o banco. Um instante depois estava fora da sala, de um pulo, como se 
tivesse reconhecido em sonhos que o Franco era um monstro.
    Ao dia imediato saí da cama como de uma metamorfose. Imaginei, generalizando errado, 
que a contemplação era um mal, que o misticismo andava traidoramente a degradar-me: a 
convivência fácil com o Franco era a prova. O Ateneu honrava-me, por esse tempo, com um 
conceito que só depois avaliei. Eu não me julgava assim tão apeado, mas supus-me diretamente 
a caminho de um mergulho. Se a alma tivesse cabelos, eu registraria neste ponto um fenômeno 
de horripilação moral.
    Fiquei perplexo.
    O triunfo na escola podia ser o Sanches; em compensação, a humildade vencida era o 


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Franco. Entre os dois extremos repugnantes, revelavam-se-me três amostras típicas à linha do 
bem viver: Rebelo, um ancião; Ribas, um angélico; Mata, o corcunda, um policia secreta. Para 
angélico decididamente não tinha jeito, estava provado, nem omoplatas magras; para ancião, 
não tinha idade, nem óculos azuis, nem mau hálito; para ser o Mata, faltava-me o justo caráter 
e a corcova... Onde estava o dever? Na cartilha? Na opinião de Aristarco? Na misantropia senil 
dos óculos azuis?
    Salteou-me nisto, às avessas, o relâmpago de Damasco: independência. 

V
    
    
    Devo, entretanto, à minha efeméride religiosa a maior soma de gratidão. Suavizou-me 
com a complacência divina o período de vadiação profunda e amolecimento hipnótico com 
que me pesou a atmosfera do Ateneu. Toda a perseguição de castigos, sem prejuízo da minha 
delicadeza moral, resvalava pelo cilício da penitência; eu emergia forte das provações. Que 
tranqüilidade, na apatia, ter por fiador a Deus!
    Íamos à missa nos domingos. Todos abriam os livrinhos, para que o diretor os visse 
atentos. Eu não abria o meu. Deixava apenas fugir-me o espírito para o alto e aderir à abóbada 
como as decorações sagradas, ajustar-se estreitamente nos detalhes da arquitetura do templo 
como o ouro sutil dos douradores, conservar-se lá em cima, ávido ainda de ascensão, 
ambicioso de céu como a baforada dos turíbulos.
    Havia acessos comunicativos de tosse que lavravam nas fileiras. Eu não tossia. Havia 
convulsões de riso, mal contidas no lenço, mal dominadas por um olhar de Aristarco, de 
joelhos à frente do colégio e mãos cruzadas sobre o castão do unicórnio; como certa vez que 
um cão brejeiro e sem princípios, mesmo ao elevar-se a santa Partícula, entrou e escapou-se 
com o casquete de um fiel contrito. Eu resistia ao riso.
    Cantávamos ao coro em dias solenes. Melhor organização vocal possuiria o Orfeão do 
que a minha; mas se cantassem os corações em vez dos lábios, nenhum hino evolaria mais largo, 
mais belo que o meu. Traziam-nos água com açúcar num jarro de vidro para molhar as cordas 
vocais. Eu rejeitava esta doçura terrena.
    O Ateneu concorria para o brilhantismo das procissões. Eu me embrulhava amplamente na 
opa, encarnada como os sacrifícios, que me podia enrolar três vezes: empunhava uma tocha 
que me martirizava os dedos com os pingos ardentes de cera. E lá ia, cobiçando ainda a força 
lombar dos mascates para ter às costas, eu só, aqueles pesados andores; invejando o garbo ao 
presidente da Filarmônica particular Prazer do Rio Comprido, que vinha após no préstito, com 
o estandarte S.P.M.P.R.C., e o punho atlético de um equilibrista de perchas para levar correto 
e rijo os balançados guiões.
    Com que tristeza, ao entrar a procissão, quando o diretor nos mandava seguir para o 
colégio, com que tristeza não espiava de longe, pela porta, o interior flamejante do templo! Lá 
ficava a festa de Deus... e nós para o Ateneu soturno, em marcha inexorável! Eu sacudia a 
cabeça com desespero; não podia sofrer a privação daquela alegria, gozar na alma a orgia de 
fogo dos altares, subir com o pensamento, degrau, degraus, ao trono cintilante, arrojando-se 
para cima na escalada da Glória.
    Depois desses entusiasmos foi-se-me a religião escurecendo.
    Era meu vizinho, na sala geral do estudo, Barreto, um personagem duplo, que 
representava, nas horas de recreio, a folgança em pessoa e tinha momentos de meditação 
trevosa com esgares de terror e falava da morte, da outra vida, rezava muito, tinha figas de 
pau, bentinhos, medalhazinhas em cordões, que saltavam fora do seio ao brinquedo.
    Iniciara-me Sanches no Mal; Barreto instruiu-me na Punição. Abria a boca e mostrava 
uma caldeira do inferno; as palavras eram chamas; ao calor daquelas práticas, as culpas ardiam 


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como sardinhas em frege.
    Barreto andara num seminário rigoroso, regime de nitro para congelar as ardências da 
idade. Era magro, testa de Alexandre Herculano, beiços finos, olhos pretos, refulgentes, 
saídos, fisionomia geral de caveira em pele ressecada de múmia. No queixo viam-se-lhe dois 
fios únicos de barba, em caracol, cada um para a sua banda.
    Só ele, talvez, conheceu-me as preocupações beatas. Senhor do meu fraco, pôs-se a 
informar dos pavores da fé com a ênfase satisfeita de um cicerone. Recordo-me de um 
assunto: a comunhão sacrílega! A propósito, Barreto me deu um livro a ler, um livro cruel, que 
descrevia coisas dignas de Moloc: crianças diretamente justiçadas pela celeste cólera, uma 
delas que, por haver comungado sem confissão prévia, iludindo ao sacerdote, fora apanhada 
pela roupa entre dois cilindros de aço duma máquina e reduzida a pasta, acabando 
impenitente, maldita, sem tempo para um ai-jesus... Era-me incrível que de uma simples hóstia 
pudesse a taumaturgia da crendice obter tantos efeitos de terror.
    Barreto comentava reforçando. Metia medo aceso em iras santas de pregador, 
demonstrando quão longe ainda estavam os castigos da Providência, na terra, dos suplícios da 
eternidade. Descrevia o inferno como se tivesse visto. Rúbida caverna, dragões verde-negros, 
cor de limo, serpentes de ferro em brasa enroscando os condenados, demônios fulvos 
revolvendo tachos de asfalto em fusão, outros espíritos caudatos levando a chuço magotes, 
para os tachos, de inconsoláveis réprobos.
    Li a Nova floresta, de Bernardes. O reverendíssimo autor veio retocar a obra do Barreto, 
com as suas narrativas de iluminado terrifico.
    Comecei a achar a religião de insuportável melancolia. Morte certa, hora incerta, inferno 
para sempre, juízo rigoroso; nada mais negro!
    Era cedo demais, para que eu pudesse pesar filosoficamente a revelação; encontrei, 
todavia, embaraço invencível no ritual das cerimônias. Eu que, nos melhores dias, não 
conseguira formular literalmente uma só prece do catecismo, esbarrei definitivamente, na 
prescrição fastidiosa do preceito. Ir à missa, muito bem; mas o resto e ainda mais a 
dependência dos senhores ministros do culto... Em duas palavras: a sacristia e o inferno, 
prováveis escândalos e horrores inevitáveis, desgostaram-me de tudo. Demais, eu tinha por 
vezes tentado dar boa conta, estudando um pouco e rezando muitíssimo, com um pequeno 
jejum ainda por cima; ao dia seguinte, nota má! Era um descrédito para o favor divino. Que 
custava à suma Onipotência modificar em lição sabida uma ignorância sofrível, como 
transmutara em fartura sem conta uma miséria de cinco pães?
    Ia-se por esta forma a exaltação dos meus fervores, quando me achei envolvido no 
episódio dos cacos. A atribulação do remorso reacendeu por um momento a chama decadente; 
o resultado da minha súplica nesse duro transe não provara mal; muito adiantada, porém, ia a 
decomposição do meu êxtase. Eu esqueci a circunstância com a ingratidão fácil dos 
pretendentes servidos. E cheguei à conclusão audaz.
    Não tendo força para estacar de arranco a torrente dos séculos cristãos, consegui ao 
menos ficar a margem. Ignorante do ateísmo, limitei-me a voltar o rosto aos fantasmas do 
eterno. Subi ao dormitório, tirei da gaveta Santa Rosália, guardei a flor da última oferenda, 
seca, porque a minha pontualidade de culto falseava já, depus-lhe em despedida um ósculo, e, 
sem mais profanação, fi-la baixar à sala de estudo, onde lhe cometi o modesto encargo de 
marcar as páginas de um volume. Estava demitida a minha padroeira!
    Pouco depois, algum apaixonado de gravuras raptou-ma, e eu lamentei apenas perder a 
lembrança da saudosa prima.
    Maio tinha passado e as rosas; acabaram-se as orações à Virgem. Sem os hinos da manhã, 
sem o sorriso a cores de Santa Rosália, restava-me o Deus dos novíssimos, das comunhões 
sacrílegas, o Deus selvagem do Barreto. Positivamente não quis saber do carrasco, alijei a 
metafísica como um pesadelo. E me achei de novo sozinho no Ateneu; sozinho mais do que 


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nunca. Com os astros apenas do meu compêndio, panorama da noite consoladora.
    E ainda bem, que voltava da crença pela via-láctea, como para a crença fora. Retirada 
honrosa de um desengano.
    Os dias de saída eram de quinze em quinze. Partia-se ao domingo, depois da missa; 
voltava-se à segunda-feira, antes das nove da manhã. Os dias santos de guarda ocasionavam 
saídas de véspera. O comissário dos gêneros e despenseiro insistia com o diretor afrouxasse 
mais o sistema de feriados. Os rapazes precisam passear, grifava ele, com a liberdade de 
mordomo confidente. Aristarco replicava com a invenção cordata dos gêneros de terceira, 
elasticidade insensível dos orçamentos.
    Havia, porém, saídas extraordinárias de prêmio ou de obséquio.

    A cada lição julgada boa, o professor assinava um papelucho amarelo, bom ponto, e 
entregava ao distinto. Dez prêmios destes equivaliam a um cartão impresso, boa nota, como 
dez vezes vinte réis em cobre valem um níquel de duzentos. O sistema decimal aplicava-se 
mais à conquista de um diploma honroso, equivalente a um baralho de dez cartões de boa nota. 
Com tal diploma era o estudante candidato à condecoração final de uma medalha, de prata ou 
de ouro, conforme fosse mais ou menos ótimo nos diversos superlativos do merecimento 
escolar. Reduzia-se assim a papel o valor pessoal, na clearing house da diretoria; ou, melhor: 
adaptava-se a teoria de Fox ao processo das recompensas, com todos os riscos de um câmbio 
incerto, sujeito aos pânicos de bancarrota, sem um critério de justiça a garantir, sob a 
ostentação do papel-moeda, a realidade de um numerário de bem aquilatada virtude.
    Fosse como fosse, certo é que, com os bilhetes de boa nota, comprava-se uma saída, e isto 
era o importante, como nos países de más finanças: desde que o papel tem curso, de que vale o 
valor?
    Inútil é dizer que me não chegavam nunca as saídas de prêmio. Tanto melhor me sabiam 
as outras.
    Durante a primeira quinzena de colégio, o pensamento de um feriado e regresso à família 
inebriou-me como a ansiedade de um ideal fabuloso. Quando tornei a ver os meus, foi como se 
os houvesse adquirido de uma ressurreição milagrosa. Entrei em casa desfeito em pranto, 
dominado pela exuberância de uma alegria mortal. Surpreendia-me a ventura incrível de 
mirar-me ainda nos olhos queridos, depois da eternidade cruel de duas semanas. Não! A 
magnanimidade do cataclismo temido favorecera o meu teto. Deus permitira, na largueza 
pródiga da sua bondade, que eu revisse a nossa casa sobre os alicerces, o nosso tão lembrado 
teto e a chaminé tranqüila a fumar o esplim infinito das coisas imóveis e elevadas.
    Com o tempo habituei-me à feliz probabilidade de achar na mesma os prezados lares, e 
ousei nos momentos da cisma colegial fundamentar projetos de divertimento sobre a esperança 
de que, abusando a minha ausência e só para me atormentar o coração, a terra se não havia de 
abrir e devorar exata e exclusivamente o que me era mais caro.
    Não foram, porém, preocupações pueris de temor, nem prospectos de folguedo que levei 
ao primeiro dia de saída depois da demissão de Santa Rosália.
    Vinha buscar-me um criado. Eu, adiante do portador, na minha fardeta de botões 
dourados, parti do Ateneu, grave e mudo como um diplomata a caminho da conferência. Ia 
efetivamente ruminando a mais séria das intenções: afrontar uma entrevista franca com meu 
pai, descrever-lhe corajosamente a minha situação no colégio e obter um auxilio para reagir.
    Meu pai acabava de deixar o leito. Nada sabia dos meus últimos insucessos. Ficou 
admirado e consternado. Daí o êxito completo da minha entrevista.
    Dias depois, no colégio, eu era um pequeno potentado. Derrubei o Sanches; consegui 
revogação da disciplina das espadas; reconquistei a benevolência de Mânlio; levantei a cerviz! 
Desembaraçado do arbítrio pretensioso de um vigilante, o trabalho agradou-me. Um conselho 
de casa afirmou-me que havia a nobre opinião de Aristarco e a opinião ainda melhor da 


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cartilha, mas havia uma terceira - a minha própria, que se não era tão boa, tão abalizada como 
as outras, tinha a vantagem alta da originalidade. Com uma palavra fez-se um anarquista.
    Daí por diante era fatal o conflito entre a independência e a autoridade. Aristarco tinha 
de roer. Em compensação, adeus esperanças de ser um dia vigilante! principalmente: adeus 
indolência feliz dos tempos beatos!
    Para a campanha da reação, armazenei uma abastança inextinguível de vaidade e 
deliberei menosprezar do melhor modo prêmios e aplausos com que se diplomavam os grandes 
estudantes Habituado à vida do internato, nutria a certeza de conseguir sozinho quanto não 
pudera com o amparo de um amigo, nem com a ajuda de Deus. No firme propósito de me não 
fazer exemplar nem me aplicar ao cobrejamento de habilidade a que o papel de modelo 
obrigava, estabeleci, contudo, a razoável mediocridade sem compromissos, de um novo 
programa.
    Poucos prêmios ganhava dos papeluchos amarelos; em contrapeso facilitava aos poucos 
que me vinham a emancipação boêmia do cisco. Por esta escala foram ter alguns com o meu 
nome ao gabinete do diretor. Agravo de desdém que se não perdoaria jamais.
    Desenvolveu-se nas alturas uma antipatia por mim, que me lisonjeava como uma das 
formas da consideração. Chegava eu assim, por trajeto muito diferente do que sonhara, à 
desejada personificação moral de pequeno homem.
    Invejosos da minha altivez, os inimigos fizeram partido. Sanches era o chefe, na cortina; 
Barbalho era o líder abertamente. Eu sorria vaidoso, levando de vencida a guerrinha, como a 
espuma à proa de um barco.
    Este foi o caráter que mantive, depois de tão várias oscilações. Porque parece que as 
fisionomias do caráter chegamos por tentativas, semelhante a um estatuário que amoldasse a 
carne no próprio rosto, segundo a plástica de um ideal; ou porque a individualidade moral a 
manifestar-se, ensaia primeiro o vestuário no sortimento psicológico das manifestações 
possíveis.
    Reinavam no Ateneu duas perniciosas influências que contrabalançavam eficazmente o 
porejamento de doutrina a transudar das paredes, nos conceitos de sabedoria decorativa dos 
quadros, e ainda mesmo a policia das aparições ubíquas e subitâneas do diretor. Coisa difícil 
de precisar, como a disseminação na sociedade, do principio do mal, elemento primário do 
dualismo teogônico. O meio, filosofemos, é um ouriço invertido: em vez da explosão 
divergente dos dardos - uma convergência de pontas ao redor. Através dos embaraços 
pungentes cumpre descobrir o meato de passagem, ou aceitar a luta desigual da epiderme 
contra as puas. Em geral, prefere-se o meato.
    As máximas, o diretor, a inspeção dos bedéis, por exemplo, eram três espinhos; as 
referidas influências eram mais dois. A mocidade ia transigindo do melhor jeito com as 
bicudas imposições das circunstâncias.
    Representavam-se as influências dissolventes por duas espécies de encarnação, fundidas 
em hibridismo de disparate - a da forma feminina personificada em Ângela, a canarina, ou 
antes a camareira de D. Ema, e a de um encontro de tábuas humildes, conjuntadas às pressas, 
por força do prosaísmo incivil de um episódio da economia orgânica.
    Falavam assim à imaginação, impressões de relance, um olhar banhado de lascívia, a 
tempestade galopante das roupas, em desordem de fuga, calculada para efeitos de irritação, 
um descuido de alças afrouxadas ao corpinho, um propósito de poças d'água em dias de 
chuva, obrigando a saias curtas e canelas nuas; ora a uma porta em rápida passagem, ora através 
do parque frondoso; ou ao escritório, por motivo de recados de D. Ema cuja freqüência 
desesperava o diretor; ou sobre o muro da natação, ou a qualquer canto com os copeiros, em 
dueto de idílio que se espiava; ou em graçola aventurada aos inspetores, que se babavam.
    Os grandes pilheriavam; os pequenos, sérios, olhavam como quem aprende.
    Depois, a conspiração dos sarrafos, o favor ao vicio à sombra do pinho alcatroado, a 


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penúria do fumo, a mendicidade das fumaças concedidas por beneplácito de dedicação, a 
pontinha do bird's eye de boca em boca, como o chimarrão do Rio Grande, mordida, salivada, 
saboreada com todo o gosto acre do que se esconde e que é vedado, e a lembrança solitária, 
devastadora das imagens do mal, distantes, inalcançadas, dança de flores doidas ao vento; a 
correspondência covarde acolhida num interstício de traves como em asilo de ínfima miséria; 
as obscenas leituras, e o alvoroço do receio perpétuo, adubo cáustico de prazer mau; a vaidade 
de iludir, a secreta mofa, o apetite de cupim pela demolição invisível do que está constituído, 
a urdidura preocupada, extenuante de uma tramazinha de hipocrisias mínimas e complicadas 
- vivescência vermicular dos estímulos torpes, respirada no ambiente corrompido do retiro, 
nascida de baixo, de um buraco, propaganda obscura da lama.
    E diluía-se pelos semblantes a palidez creme, cavavam-se olhares vítreos das regiões do 
impaludismo endêmico.
    Soavam-me ainda aos ouvidos as prédicas de ascetismo do Barreto. Para ele o mal era 
fêmea. O Sanches entendia que era macho. Amarrava-lhe um rabo ao cóccix e criava o Satanás 
bilontra, imoral e alegre. A cauda do demônio do Barreto era de rendas. Na Rua do Ouvidor, 
faria o Satanás - fanfreluche. Uma coisa horrível, com dois olhos, destinados à perdição dos 
homens. Saia digna de consideração, só a de padre, que, por sinal, é batina, não é saia. O mais 
não passava de pretexto da moda parisiense para disfarçar o pé de cabra. Cuidado com Satanás 
sorriso! um sorriso com duas pernas, um abraço com dois seios, uma pantomima do inferno, 
faceira e traidora, graciosa e comburente, donde por descuido e por acaso vai-se desprendendo 
a humanidade, como as cobrinhas pirotécnicas de Faraó. O menor descuido, desgraça eterna!
    Contou-me que o porteiro do seminário em que estivera, para não ser despedido, fora 
intimado a separar-se da própria irmã. Deus, para vir ao mundo, tinha severamente elaborado o 
mistério excepcional de uma virgindade sem mancha. E, se não fossem as profecias, que não 
podiam ficar comprometidas, o veículo a Conceição, por amor da insexual pureza, teria sido o 
carapina José, ou mesmo o velho Zacarias, ainda mais respeitável pela calva.
    A teologia do Barreto me calara fundo, e eu resolvera piedoso enxotar quanta imagem de 
sorriso viesse pousar-me à idéia. Virando a página dos fervores, a teoria ficou-me de resto, do 
Satanás feminino. Com a pureza a mais, natural da idade, ia zombando de Ângela e pompas 
adjacentes. Fechado o peito como a paz de Jano, e exteriormente a vaidade me amparava.
    Para me prevenir ainda mais, veio uma ocorrência provar pelo fato que o Barreto tinha 
razão acerca da influência feminina; uma ocorrência que ensangüentou os anais do 
estabelecimento, entristecendo o diretor, embora afinal se lhe tornasse agradável pelo muito 
que fez falar do Ateneu.
    Tínhamos acabado de jantar e corria como sempre a recreação, que precedia a hora da 
ginástica. Das bandas da copa, ordinariamente sossegada, chegou-nos subitamente um rumor 
de algazarra. Era estranho.
    O alarido cresceu; uma altercação violenta; depois fragor de luta, o estrondo de uma mesa 
tombando. Depois gritos de socorro; mais gritos; a voz de Aristarco aguda, dando ordens 
como em combate. Estávamos atônitos.
    De repente vimos assomar à porta, que dominava o pátio sobre a escada de cantaria, um 
homem coberto de sangue. Um grito de horror escapou a todos. O homem precipitou-se em 
dois pulos para o recreio. Trazia um ferro na mão gotejando vermelho, uma faca de lamina 
estreita ou um punhal.
    "Matou! matou!" gritavam da copa; "Pega o assassino!"
    Sobre os passos do fugitivo vinham diversas pessoas. João Numa, gordinho, lívido e 
trêmulo, ao descer a escada, rolou, partindo os óculos na pedra.
    Aristarco, a uma janela, bem certo da inviolabilidade pessoal, ao peitoril, desenvolvia 
uma energia sem limites, mandando pegar o homem da faca. Os inspetores do recreio tinham 
azulado. Os rapazes berravam como loucos.


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    Inesperadamente reaparece o Silvino, muito branco, com as suíças mais pretas, pelo 
contraste do medo.
    "Esperem! esperem!" dizia convulso, como quem traz na algibeira um expediente 
salvador. "Esperem!"
    Exatamente no meio do pátio abriu as imensas pernas de Rodes magro, e levou à boca um 
apito.
    Infelizmente, com a força do sopro engasgou-se o assobio, depois de dois chilros falhos.
    Cercado pelos criados que o perseguiam com trancas e cacetes, o homem da faca, cuja 
intenção era escapulir para o jardim, encostou-se a uma parede. "Deixem-me passar, que mato 
mais um", rosnava, com a fisionomia faiscante. "Caminho para mim!" repetia, agitando o ferro 
num frêmito de cascavéis.
    Alguns moços destemidos tinham-se avizinhado e completavam o imprudente cerco.
    "Abre!" rugiu praguejando o criminoso acuado. E, de um salto de fera, arremessou-se 
contra os sitiantes, brandindo a faca.
    Com a milagrosa destreza do instinto de conservação, cada um safou-se como pôde; o 
perseguido passou como um tiro. "Fugiu!" clamavam de todos os lados.
    Quando o vimos cair de braços.
    Alguém se precipitara inesperadamente ao seu encontro e, escorando-o com o joelho e 
empolgando-o pelo gasnete, com o punho o fizera rodar por terra.
    Era o Bento Alves!... com uma das mãos, o bravo colega oprimia a cara ao sujeito contra 
o solo, ralando-a na areia, com a outra, por um prodígio de vigor, imobilizava-lhe o braço 
armado. Com o esquerdo livre, o criminoso firmava, tentando erguer-se. Esmagava-o a pressão 
de um monólito.
    Quando foram em auxilio, já o Bento Alves desarmara o adversário, coagindo por meio 
da tenaz dos dedos com que lhe ferrava o congote.
    De toda parte, aclamavam-no herói. À janela, de longe, Aristarco, entusiasmado, 
esquecia o divino aprumo e bracejava como um moinho de vento, sem conseguir dar voz à 
emoção.
    Bento Alves retirou-se com a faca em troféu, deixando o criminoso sob uma pilha de 
valentes da última hora e criados que o sufocavam.
    Quando o pobre-diabo pôde tomar pé, manietado, amarrado de mil maneiras por cintas 
de couro, como as múmias no envoltório de tiras, acercou-se dele o Silvino e o agrediu 
covardemente com sermão de moral.
    Era criminoso, dizia-se. De que crime? Dentro de alguns momentos o colégio inteiro o 
sabia.
    O homem da faca era um dos jardineiros do Ateneu. Durante o jantar enfrentara-se de 
razões com um criado da casa de Aristarco e o matara. Havia algum tempo que disputavam os 
dois a primazia no coração de Ângela uma terrível pendência. O criado de Aristarco julgava-se 
na legítima posse desse escrínio de afetos, pela convivência ao lado da bela, consorciados 
maritalmente na intimidade dos alguidares, onde as mãos se confundiam como as louças ou na 
sociedade afetuosa do serviço dos aposentos do diretor e da senhora, permutando entre si 
dichotes açucarados, à flagelação dos tapetes.
    O jardineiro, patrício da camareira, dava por si a razão de nacionalidade, o fato de 
haverem chegado à América na mesma turma de imigrantes e uma autuação completa de 
juramentos idôneos da sedutora.
    Levados a tal aperto os nós da paixão não se desatam; cortam-se. O jardineiro cortou. Por 
mor azedume da situação, dizem que Ângela de parte a parte estimulava os adversários 
declarando a cada um por sua vez preferi-lo exclusivamente.
    Confiado o assassino aos urbanos, tornou-se a vitima o objeto das atenções.
    Era este um rapagão de trinta anos, pardo e simpático. O assassino era mais escuro, 


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espécie de andaluz de touradas, baixo, sólido, grosso como um cepo de açougue.
    Apenas desapareceu o criminoso, o colégio inteiro assaltou a escada, desejosos de ver o 
assassinado À porta do refeitório, porém, Aristarco despachou: "não têm que ver!" Ao mesmo 
tempo a sineta importuna badalava chamando à forma. O Professor Bataillard, de branco, no 
cinturão vermelho, apareceu ao lado do diretor. Os rapazes morderam-se de raiva. E não houve 
nunca no mundo dois superiores mais odiados.
    Mas a teia da disciplina tinha malhas de maior largura. Alguns rapazes acharam meio de 
se esgueirar até à copa, e eu também com eles.
    Desde muito, andava querendo ver um cadáver, espetáculo real, de mãos contraídas, 
revirados beiços. As cartas iconográficas de parede deixavam-me impassível, com as estampas 
teóricas de cérebros a descoberto, globos oculares exorbitados, ventres golpeados em abas, 
mostrando vísceras, figuras humanas de pé, descansando a um quadril, movendo a supinação 
num jeito de complacência passiva, esfolados para que lhes víssemos as veias, modelos vivos 
da ciência em pose de suplício, constância de brâmane, como à espera que houvéssemos 
aprendido de cor a circunvolução do sangue, para vestir de novo a pele e os músculos 
deslocados. Não me bastava.
     Nos grandes armários havia melhor: peças anatômicas de massa, sangrando verniz 
vermelho, legitima hemorragia; corações enormes, latejantes, úmidos à vista, mas que se 
destampavam como terrinas; olhos de ciclope, arrancados, que pareciam viver ainda 
estranhamente a vida solitária e inútil da visão; mas olhos que se abriam como formas de 
projéteis de entrudo Mas eu queria a realidade. a morte ao vivo.
    Lembrava-me de ter visto um anjinho, entre velas no caixão agaloado, simples carinha 
amarelenta, sombreada de azul em nódoas dispersas, em mãos crispadas numa fita, 
cobrindo-se de flores a imobilidade do último sono. Vira ainda uma velha, na essa elevada, 
uma opulenta velha que morrera sem herdeiros. Ao redor, choravam muito as tochas pranto de 
cera cor de mel, inconsoláveis, espichando compridas chamas, que pareciam subir ao teto com 
um filete de fumo. Distinguiam-se bem os dois pés para dentro, em botinas de pano; e o nariz 
pronunciando-se sob o lenço de rendas.
    Isto não era ter visto cadáver. Eu queria o cadáver flagrante, despido dos artifícios de 
armação e religiosidade, que fazem do defunto simples pretexto para um cerimonial de 
aparato. O que me convinha era o galho por terra, ao capricho da queda, decepado da árvore da 
existência, tal qual.
    O cadáver do criado estava em condições; com a vantagem do adereço dramático do 
sangue e do crime, como nos teatros.
    Encaminhava-me, pois, para a cozinha e sentia palpitações fortes, abalando-me certo 
modo de agradável pavor. A cozinha do Ateneu, além dos alojamentos da copa, era espaçosa 
como um salão. Às paredes cintilava o trem completo de cobre areado, em linha as peças 
redondas como uma galeria de broquéis. No centro uma comprida mesa servia de refeitório à 
criadagem.
    Naquela ocasião havia muita gente perto da mesa. Vi pelas costas pessoas alheias ao 
estabelecimento. Disseram-me que estava presente a autoridade e tratava de remover o morto. 
Aquela gente toda devia ser, de costas, a autoridade policial, feição do poder público que eu 
não discriminava ainda bem, mas já considerava. Caído ao soalho, vi o cadáver sobre uma 
esteira de sangue.
    Guardava ainda a contorção esquerda da agonia; à boca fervia-lhe um crivo de espuma 
rosada; trajava colete fechado, calças de casimira grossa. Os ferimentos não se viam. Os olhos 
estavam-lhe inteiramente abertos e de tal maneira virados que me fizeram estremecer.
    Alguns minutos depois de minha entrada, chegaram dois sujeitos com uma rede. Os 
copeiros ajudaram a apanhar o corpo; os homens da rede o levaram.
    Impressionou-me para sempre o desfalecimento flácido dos membros, quando 


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levantaram o cadáver, a moleza da cabeça, rodando nos ombros, com um movimento próprio 
dos que padecem intolerável angústia, e um choque súbito para trás que me gelou o sangue, 
empinando-se o queixo e o nó da garganta, rasgando-se a boca, brusco, como se o ferido 
vomitasse um resto tenaz da vida.
    Após a rede, pela escada da cozinha, saíram todos; eu fiquei. Examinava ainda o chão 
alagado de sangue quando alguém, passando, afagou-me os cabelos: era Ângela!
    - Morió, disse, indicando o sangue, arregalando as sobrancelhas, e desapareceu com o 
andar de bamboleio.
    Primeira vez que reparei que era bonita a canarina. Sim, senhor! E para o demônio culpado 
de tão horrível, incidente fui de uma benevolência tal de opinião que me nasceram remorsos.
    Ângela tinha cerca de vinte anos; parecia mais velha pelo desenvolvimento das 
proporções. Grande, carnuda, sanguínea e fogosa, era um desses exemplares excessivos do 
sexo que parecem conformados expressamente para esposas da multidão - protestos 
revolucionários contra o monopólio do tálamo.
    Atirada de modos, como o ditirambo do amor efêmero; vazia como as estátuas ocas; sem 
sentimentos, material e estúpida, possuía, entretanto, um segredo satânico de graduar os largos 
olhos de sépia e ouro, animar expressões no rosto que dir-se-ia viver-lhe na face uma alma de 
superfície, possante, capaz dos altos martírios da ternura e de interpretar os poemas trágicos da 
dedicação.
    Gostava de arregaçar as mangas para mostrar os braços, luxo de alvura, braços perfeitos 
de princesa, que davam que pensar ao espanador humilde no serviço da manhã. Exposta às 
soalheiras, revestia-se a cor branca do rosto de um moreno cálido, tom fugitivo de magnólias 
fanadas, invulnerável aos rigores de ar livre, como deve ter sido outrora a epiderme de Ceres. 
Ferissem-lhe a tez os dardos corrosivos da insolação, vinha-lhe apenas ao rosto um rubor mais 
belo, e não lhe tirava mais o sol à mocidade da carne do que à própria terra, sob a calcinação 
dos ardores: uma primavera de rosas.
    Consciente da formosura, Ângela abusava.
    E era do mal livrar-se. Começava por um jogo de virtude. Enxugava em ar de seriedade os 
lábios úmidos; as pálpebras, de longas pestanas, baixavam sobre os olhos, sobre o rosto, viseira 
impenetrável do pudor. Convidava à adoração colhendo aos ombros o manto da candura, 
refugiando-se na indiferença hierática das vestais. Depois, uma pontinha de ingênuo sorrir, 
olhos fechados ainda; gradação de infantilidade que substituía à vestal uma criança esquiva e 
tímida, rindo, voltando a cara. Os olhos, por fim, aventuravam-se de relance, uma temeridade 
de noiva possível, nada mais, volvendo ao retraimento cismador. Depois, a contemplação 
confiada; romance inteiro, linha por linha, de uma virgindade. Até que súbito, meu castíssimo 
Barreto! aquela virtude, aquela meiguice, aquela esquiva candura, aquela nubilidade 
melancólica, aquela fisionomia honesta, pesarosa talvez de ser amável, fendia-se em dois 
batentes de porta mágica e rodava em explosão o sabbat das lascívias.
    Os olhos riam, destilando uma lágrima de desejo; as narinas ofegavam, adejavam 
trêmulas por intervalos, com a vivacidade espasmódica do amor das aves; os lábios, animados 
de convulsões tetânicas, balbuciavam desafios, prometendo submissão de cadela e a doçura 
dos sonhos orientais. Dominava então pela oferta abusiva, de repente; abatia-se à derradeira 
humilhação, para atrair de baixo, como as vertigens. Ali estava, por terra, a prostituição da 
vestal, o himeneu da donzela, a deturpação da inocente, três servilismos reclamando um dono; 
apetite, apetite para esta orgia rara sem convivas!
    Não escolhia amores. Era de todos como os elementos; como os elementos, sem remorso 
das desordens e depredações. Franqueava-se à concorrência. Havia lugar para todos à sombra 
dos cabelos castanhos, que lhe podiam vestir as copiosas formas, fartos, perpetuamente secos, 
que ela sacudia a correr como uma poeira de feno.
    Aquele modo de olhar, passando, de Ângela! clarificou-me a imaginação das sombras de 


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terror em que me enleava o alvoroço do acontecimento da tarde e a vista horrível, do cadáver.
    Depois da façanha, Bento Alves, o herói, sumiu-se; comentavam-lhe demais a bravura. 
Nem aos exercícios do campo compareceu.
    Bento Alves era um misterioso. Misteriosos são no colégio os que não andam a atravancar 
o espaço com as gatimanhas das suas expansões. Freqüentava as aulas superiores; sem que 
fosse um estudante de rumoroso mérito, fazia-se respeitar dos mestres e condiscípulos. Sisudo 
como certos rapazes de inteligência menor que se arreceiam do ridículo, não somente pela 
sisudez impunha-se ao respeito. Consideravam-no principalmente pela nomeada de hercúleo. 
Os fortes constituem realmente uma fidalguia de privilégios no internato. No tumulto da 
existência em comum, fundem-se as distinções de classe na democracia do coleguismo: as 
cambiantes de fortuna apagam-se no figurino geral das blusas pardas. Os títulos de 
superioridade prevalecem primitivamente no critério semibárbaro dos verdes anos; o punho 
válido chega a fazer vantagem sobre a própria vantagem do favoritismo.
    Alves não alardeava de forte; evitava disputas, não jogava o pulso, preferia exercitar-se à 
ginástica sem espectadores. Às vezes, por ginástica sem espectadores. Às vezes, por 
brinquedo, cingia o braço a um colega entre o polegar e o médio e fechava-lhe sob a manga um 
bracelete roxo dolorido. Aqueles que se sujeitavam ao formidável ensaio de tatuagem por 
compressão, acercavam-se, Daí por diante, de Bento Alves com os escrúpulos da mais 
reservada prudência.
    Entretanto era mole, da preguiça monumental dos animais pujantes. Veloz, detestava a 
carreira; alegre, fugia aos folguedos. Gostava do seu sossego; desviava os incômodos da 
convivência distribuída, transbordante dos estimados. Não se falava dele no Ateneu. 
Limitavam-se a temê-lo em silêncio.
    Depois da valorosa façanha a que o tinha levado a casualidade, teve de ver-se herói à 
força. Um desespero. Se algum companheiro caia na tolice de dizer-lhe alguma coisa 
relativamente ao crime do jardineiro, Bento Alves rasgava a conversa com um monossílabo de 
impaciência, encrespando-se como um javali. Apesar de tudo foi o pobre modesto percutido, 
laminado sobre a bigorna da notoriedade.
    Felizmente o barulho da entrada para o Ateneu de um moço célebre veio modificar a 
odiosa voga.
    Acabava de matricular-se Nearco da Fonseca, pernambucano de ilustre estirpe.
    Apresentou-se com o pai, vulto político em galarim no tempo. Era um mancebo de 
dezessete anos, rosto cavado, cabelos abundantes, de talento não comum, olhar vivo, moroso 
de importância, nariz adunco, avançado, seco, quase translúcido como um nariz de vidro. 
Franzino como a infância desvalida, magro como uma preleção de osteologia, 
surpreendeu-nos, entre outras, uma recomendação a seu respeito, pelo próprio diretor às barbas 
do pai: - Nearco da Fonseca era um grande ginasta!
    Talentoso que fosse, concebíamos, se por nada mais, ao menos pela cabeleira... Mas um 
ginasta aquele espectro da necessidade!
    A juventude, entretanto, é a eterna esperança; nós esperamos por uma exibição 
comprobante.
    Abalou-se a tribo dos acrobatas, dos atletas; toda a rapaziada de brio, o Luís à frente, que 
localizava na protuberância nodosa do bíceps o pundonor supremo da criatura, preparou na 
mais vasta admiração um aposento considerável para acolher o confrade.
    Formados trezentos, à tarde, diante dos aparelhos, foi em movimento de avidez que 
ouvimos Bataillard, com o cavalheirismo que o distinguia, convidar a exibir-se o grande 
Nearco.
    Estava presente o diretor; estava presente o respeitável progenitor de Blondin. O Ateneu 
olhava. Nearco deixou a forma, rompendo a marcha com o pé esquerdo, a regra, mãos à 
ilharga, sério como um bispo, e encaminhou-se para o trapézio com o passo medido das emas, 


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imperturbável como quem sabe profundamente a técnica do marchar. Perto do aparelho, 
sempre de mãos à cinta, volta a volver! virou-se para o colégio, teso, e quebrou para nós um 
duro salamaleque, conservando por segundos a efracção angular das figurinhas delineadas, 
representando a lavoura, na cantaria histórica do Egito.
    Assuntávamos ansiosos.
    Depois do cumprimento, Nearco empunhou a barra do trapézio, polegar para baixo, 
segundo a pragmática das posições. E fez uma flexão. Ah! não sabeis, profanos que sois, 
quanto vale a flexão dos membros superiores! A fórmula no mundo ideal da mecânica é a 
alavanca de Arquimedes; da aplicação prática e contundente é o marro britânico. Consiste 
nisto: encolher as munhecas.
    Nearco fez uma, duas, fez cinco! seguiu-se uma viravolta, e Nearco ao trapézio, de 
cócoras, pôde perambular sobre o pasmo circunstante o pausado beque... Não era tudo, porém! 
Nearco arranjou mais umas fantasias de cambalhotas, capazes de transformar radicalmente os 
princípios fumados da arte dos trambolhões, e beneficiou-nos, suando, com um sorriso 
triunfal.
    Faltava a sorte do fim. Nearco espichou quanto pôde a lamentável ausência de músculos 
e deu-nos... uma sereia! A sereia é tudo que há de mais elementar, de mais pulha, de mais 
tolamente ostentoso em matéria de aparelhos. O sujeito segura-se às cordas, levanta os pés da 
barra, mete os pés pelas mãos e de cabeça para a terra empurra o ventre. O pobre Nearco, 
desbarrigado, não tinha ventre para empurrar.
    Não empurrou coisa nenhuma; quando muito uns ossinhos que lhe saíam à altura do 
umbigo como cabos de faca. Pulou ao chão.
    Estava exibido o acrobata! Nós olhávamos uns para os outros, bestificados, em 
compostura abatida de caras-de-asnos. Aristarco percebeu e repreendeu-nos com o 
sobrecenho. Nós compreendemos delicadamente: estava ali o respeitável pai de um colega...
    Uma roda de palmas, claras, estrepitantes, inacabáveis, percorreu as fileiras com a 
eletricidade comunicativa das aclamações.
    Nearco, altivo, agradeceu com o nariz.

VI


    O futuro tinha reservado para Nearco um feixe de melhores palmas, uma galhada de 
louros mais legítimos como tempero de vitória.
    O Grêmio Literário Amor ao Saber, instituição recente, seria o verdadeiro teatro dos seus 
soberbos alcances.
    Duas vezes ao mês congregavam-se os amigos das letras, numa das salas de cima; a 
mesma das lições astronômicas de Aristarco. Havia ainda para iluminar as sessões pedaços de 
matéria cósmica pelos cantos, esfrangalhada pela análise do mestre. Não quer dizer que 
merecesse as eternas luminárias da ironia a benemérita associação.
    Às suas reuniões comparecia eu timidamente, para nada mais que simplesmente abusar, 
por excessivo consumo, de um direito dos estatutos: podiam os alunos, todos do Ateneu, em 
silêncio humilde, mariscar o que fossem deixando os segadores do trigal das literaturas.
    Assistente infalível, saia cheio com a retórica espigada, que ia espalmar, prensando no 
dicionário, conservas de espírito, relíquia inapreciável do Belo.
    A dificuldade que encontrava um estudante para forrar-se ao privilégio de gremista, 
fazia-me mais a fundo venerá-lo.
    Nearco não teve o menor embaraço. Entrara para o estabelecimento muito adiantado. Foi 
imediatamente proposto, aceito e empossado. À primeira sessão, depois do triunfo ao trapézio, 
tive ocasião de apreciá-lo à ginástica do verbo.


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    Debatia-se este problema, dos inesgotáveis das agremiações congêneres. Quem foi maior, 
Alexandre ou César? indagação histórica difícil evidentemente de levar a cabo sem o auxilio 
da trena.
    Nearco arranjou a coisa a olho e distinguiu-se com a esperada galhardia. Falou durante 
hora e meia com uma fluência que lhe angariava para sempre o epíteto de facundo. Justapôs 
com o primor de um varejista de fazendas - César sobre Alexandre. César protestou contra a 
maneira, de barriga para o ar, que nada tinha de artística; além disso espetava-o a armadura de 
Alexandre. Aquilo faria rir a Pompeu no armário das legendas e a maledicência do senado, 
comprometendo-se a seriedade secular do homem que foi, viu e venceu... Nearco manteve-o 
inexoravelmente durante o percurso do paralelo critico. César não podia contar com os 
legionários do bom tempo; ali esteve a fazer caretas na sujeição inerme, anima vilis dos 
documentos. Alexandre, que afora o capacete, via-se ainda maiorzinho que o outro, teve mais 
paciência, deixando-se medir até à peroração, com a boa vontade de um defunto. Venceu com 
efeito. Nearco proclamou-o magno dos magnos, diversas polegadas maior que o temerário do 
Rubicon.
    O Grêmio esclarecido rejubilou. A discussão encerrou-se, não havendo mais quem 
falasse. Também havia cinco sessões que eram os pobres guerreiros tratados a metro.
    Por este memorável dia arvorou-se Nearco em notabilidade firmada. Esqueceram todos 
que ele fora matriculado sob o quase compromisso de não dar um passo que não fosse um 
salto-mortal, não descansar senão de pernas para cima em cadeiras equilibradas sobre garrafas, 
não ter outro recreio que não fosse a corda bamba, por não destoar da percorrida fama. Ficou 
em olvido a estréia acrobática. O Grêmio Amor ao Saber tomou-o a si, em posse exclusiva, 
como um orgulho.
    Não faltavam, entretanto, poetas, jornalistas, polemistas, romancistas, críticos, 
folhetinistas. A sociedade tinha o seu órgão, O Grêmio, impresso no Lombaerts, de que 
podiam ser canudos à vontade os sócios quites e ainda, por maior riqueza de harmonias, os 
honorários.
    Entre os honorários figurava Aristarco, presidente, colaborando sempre no periódico com 
a transcrição em avulso das máximas de parede, e mandando sempre para a quarta página um 
anúncio garrafal do Ateneu, que pagava para auxiliar à empresa. Na interessante publicação 
apareciam quadrinhas místicas do Ribas e sonetos lúbricos do Sanches. Barreto publicava 
meditações, espécie de harpa do crente em prosa arrebentada.
    O rodapé-romance era uma imitação d'O Guarani, emplumada de vocábulos indígenas e 
assinada - Aimbiré.
    Nearco atirou-se à especialidade dos paralelos. Começou logo por dois de pancada: Cila 
e Mário, Tito e Nero. No expediente prometia-se um terceiro curiosíssimo: Plutarco e os 
beócios.
    Esta queda para as linhas eqüidistantes, talento aliás de carril urbano e anexos muares, foi 
mais uma razão de prestigio para o extraordinário rapaz.
    A eloqüência representava-se no Grêmio por uma porção de categorias. Cícero tragédia 
- voz cavernosa, gestos de punhal, que parece clamar de dentro do túmulo, que arrepia os 
cabelos ao auditório, franzindo com fereza o sobrolho, que, se a retórica fosse suscetível de 
assinatura, acrescentaria ao fim de cada discurso pesadamente: a mão do finado; Cícero 
modéstia - formulando excelentes coisas, atrapalhadamente, no embaraço de um perpétuo 
début, desculpando-se muito em todos os exórdios e ainda mais em todas as confirmações, 
lágrimas na voz, dificuldade no modo, seleto e engasgado; Cícero circunspecção - 
enunciando-se por frases cortadas como quem encarreira tijolos, homem da regra e da 
legalidade, calcando os que e os CUJO, longo, demorado, caprichoso em mostrar-se mais raso 
do que o muito que realmente é, amigo dos períodos quadrados e vazios como caixões, 
atenuando mais em cada conceito a atenuante do conceito anterior, conservador e 


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ultramontano, porque as coisas estabelecidas dispensam de pensar, apologista ferrenho de 
Quintiliano, retardando com intervalos o discurso impossível para provar que divide bem a sua 
elocução, com todos os requisitos da oratória, pureza, clareza, correção, precisão, menos uma 
coisa - a idéia; Cícero tempestade - verborrágico, por paus e por pedras, precipitando-se 
pela fluência como escadas abaixo, acumulando avalanches como uma liquidação boreal do 
inverno, anulando o efeito de assombroso destampatório pelo assombro do destampatório 
seguinte, eloqüência suada,  ofegante, desgrenhada, ensurdecedora, pontuada a murros como 
uma cena de pugilato; Cícero franqueza - positivo, indispensável para o encerramento das 
discussões, dizendo a coisa em duas palavras, em geral grosseiro e malfalante, pronto para 
oferecer ao adversário o encontro em qualquer terreno, espécie perigosa nas assembléias; 
Cícero sacerdócio - sacerdotal, solene, orando em trêmulo, alçando a testa como uma mitra, 
pedindo uma catedral para cada proposição, calçando aos pés dois púlpitos em vez de sapatos, 
espécie venerada e acatada.
    Nearco introduziu o tipo ausente do Cícero penetração - incisivo, fanhoso e implicante, 
gesticulando com a mãozinha à altura da cara e o indicador em croque, marcando precisamente 
no ar, no soalho, na palma da outra mão o lugar de cada coisa que diz, mesmo que se não 
perceba, pasmando de não ser entendido, impacientando-se até ao desejo de vazar os olhos ao 
público com as pontas da sua clareza, ou derreando-se em frouxos de compaixão pela desgraça 
de nos não compreendermos, porcos e pérolas.
    O gesto incisivo, mais a facúndia desimpedida, mais o talento histórico dos paralelos, 
consagrou a primazia do gremista.
    O presidente efetivo da sociedade era o Dr. Cláudio, professor da casa, homem de 
capacidade, benévolo para os desgarros de tolice da juventude, que teria desgosto para uma 
semana, se imaginassem que faltara a uma sessão por menosprezo. Esta constância do chefe era 
o grande elemento de prosperidade do Amor ao Saber. O Dr. Cláudio conduzia os trabalhos 
com verdadeira perícia de automedonte, esclarecia os imbróglios, forjava adjetivos de 
encômio que ia dando a cada um por sua vez e a todos os estimáveis consócios, propunha 
algumas teses e achava graça em outras. Nas sessões solenes pronunciava o discurso oficial.
    A maior utilidade do Grêmio para mim era a biblioteca. Uma coleção de quinhentos a 
seiscentos volumes de variado texto, zelados pela vigilância cerberesca do Bento Alves, 
bibliotecário, eleito de voto unânime.
    Alves era da associação como quase todos os alunos do curso superior. Filiava-se ao 
grupo simpático dos silenciosos, usufruindo os lucros da circunstância de não ser do regimento 
a taramela obrigatória. Fora da biblioteca, os seus serviços aos intuitos do Grêmio resumiam-se 
no apoiado! consciencioso e firme, à disposição sempre da melhor idéia em questões elevadas, 
e do mais sábio alvitre em questões de ordem.
    Alguns rapazes, não do Grêmio, e que não houvessem, nas letras, manifestado 
gramaticalmente notável jeito para a conjugação sub-reptícia do verbo adquirir, podiam obter 
do presidente o direito de ingresso na sala dos livros. Eu, como amigo que era das bonitas 
páginas impressas, apresentei candidatura. E como não divertia bastante o jogo da barra ao sol, 
nem o rapa-tira-deixa-põe das penas de aço e das carrapetas, nem o correr à panelinha das bolas 
de vidro espiraladas de cores, fez-se-me a biblioteca a recreação habitual.
    Esta freqüência angariou-me dois amigos, dois saudosos amigos - Bento Alves e Júlio 
Verne.
    Ao famoso contador do Tour du Monde devo uma multidão numerosa dos amáveis 
fantasmas da primeira imaginação, excêntricos como Fogg, Paganel, Thomas Black, alegres 
como Joe, Passepartout, o negro Nab, nobres como Glenarvan Letourneur, Paulina Barnett, 
atraentes como Aouda, Mary Grant. Sobre todos, grande como um semideus, barba nitente, 
luminosa como a neblina dos sonhos, o lendário Nemo da Ilha Misteriosa, taciturno da 
lembrança das justiças de vingador, esperando que um cataclismo lhe cavasse um jazigo no 


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seio do Oceano, seu vassalo, seu cúmplice, seu domínio, pátria sombria do expatriado.
    Possuía minha literatura completa de tesouros de meninos, contos de Schmidt; visitara 
uma por uma no meu burrinho as feiras da sabedoria de Simão de Nântua; estudara 
profundamente pelas aventuras de Gulliver as vacilações da vida, onde, mal acabamos de 
zombar da pequenez extrema, vem sobre nós o ludibrio da extrema grandeza, espécie de Pascal 
de mamadeira entre Liliput e Brobdingnak; chegara à perfeição de duvidar das empresas de 
Münchhausen. Isto tudo sem falar nos Lusíadas do Sanches, no reverendo Bernardes, na 
refinada pilhéria do Bertoldo e no Testamento do Galo, símbolo aliás muito filosófico da 
odiosidade das sucessões, que por ventura do herdeiro autoriza o destripamento do galináceo 
como a tortura skakespeariana de Lear.
    Júlio Verne foi festejado como uma migração de novidade. Onde quer que me levasse o 
Forward ou o Duncan, o Nautilus ou o balão Vitória, a columbíada da Florida ou criptograma 
de Saknussen, lá ia eu, esfaimado de desenlaces, prazenteiro, ávido como os três dias de 
Colombo antes da América, respirando no cheiro das encadernações as variantes climatéricas 
da leitura, desde as areias africanas ate aos campos de cristal do Ártico, desde os grandes frios 
siderais até à aventura do Stromboli.
    A amizade do Bento Alves por mim, e a que nutri por ele, me faz pensar que, mesmo sem 
o caráter de abatimento que tanto indignava ao Rebelo, certa efeminação pode existir como 
um período de constituição moral. Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo; 
porque me podia valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não tivesse animo de ser 
amigo. Para me fitar esperava que eu tirasse dele os meus olhos. A primeira vez que me deu um 
presente, gracioso livro de educação, retirou-se corado, como quem foge. Aquela timidez, em 
vez de alertar, enternecia-me, a mim que aliás devia estar prevenido contra escaldos de água 
fria. interessante é que vago elemento de materialidade havia nesta afeição de criança, tal qual 
se nota em amor, prazer do contato fortuito, de um aperto de mãos, da emanação da roupa, 
como se absorvêssemos um pouco do objeto simpático.
    Na biblioteca, Bento Alves escolhia-me as obras: imaginava as que me podiam interessar; 
e propunha a compra, ou as comprava e oferecia ao Grêmio, para dispensar-se de mas dar 
diretamente. No recreio não andávamos juntos; mas eu via de longe o amigo, atento, 
seguindo-me o seu olhar como um cão de guarda.
    Soube depois que ameaçava torcer o pescoço a quem pensasse apenas em me ofender; seu 
irmão adotivo! confirmava.
    Eu, que desde muito assumira entre os colegas um belo ar de impávida altania, 
modificava-me com o amigo, e me sentia bem na submissão voluntária, como se fosse artificial 
a bravura, à maneira da conhecida petulância feminina.
    A malignidade do Barbalho e seu grupo não dormia. Tremendo de represália do Alves, 
faziam pelos cantos escorraçada maledicência, digna deles.
    Às vezes na biblioteca, enquanto eu lia, Alves olhava-me do outro lado da mesa central 
de pano verde, com a mão à fronte e os dedos mergulhados nos cabelos. Olhava-me e eu o 
sentia sem levantar a vista, compreendendo no mais fino refolho de ninada vaidade que aquela 
contemplação traduzia o horror do ridículo, proverbial em Bento Alves, manietando-lhe 
rijamente uma demonstração efusiva. Não fosse a critica uma criatura do tempo, eu poderia 
achar cômica a situação dos personagens desta cena de platonismo. Não havendo a critica para 
falsear a psicologia por desdobramento, limitava-me a ser sincero, como o pobre amigo. Às 
vezes vinha-lhe a pálpebra uma lágrima sem origem.
    No movimento geral da existência do internato, desvelava-se caprichosamente; sabia ser, 
de modo inexprimível, fraternal, paternal, quase digo amante, tanta era a minudência dos seus 
cuidados. Não havia regalo, dessas mesquinhas coisas de preço enorme na carestia perpétua da 
prisão escolar, de que se não privasse o Alves, em meu proveito, desesperando-se, a fazer pena, 
se eu tentava recusar. À conversa, falava da família no Rio Grande do Sul; tinha duas irmãs; 


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falava delas, do tempo passado que não as via, muito claras, de belos olhos, uma de quinze 
anos, outra de doze; ele tinha dezoito. Falava de cuidados higiênicos meus, mudar de cama no 
salão azul, que estava muito perto das janelas, e isto havia de ser nocivo... Outras ninharias, em 
tom de sentida brandura, como se desejasse decrescer das proporções sólidas de sua 
conformação para reduzir-se à exigüidade balbuciante de uma carcaçazinha de avó, minguada 
de velhice, animada, ainda e apenas, pela febre do último alento, pela necessidade de carregar 
ainda alguns dias um coração, um afeto.
    Os estatutos do Grêmio marcavam duas ocasiões de solenidades: as festas anuais de 
abertura e do encerramento dos trabalhos. Além destas, as sessões comemorativas que a casa 
resolvesse.
    Para as festas literárias, levava-se ao pavilhão do recreio um grande estrado, três mesas 
que se alinhavam para a diretoria, sob um rico pano cor de vinho, de ramagens negras que 
lembravam tinteiros entornados de mau agouro, e uma tribuna familiarmente apelidada 
caranguejola.
    Esta caranguejola, enorme e pesada, que parecia protestar, a cada solavanco, contra o 
caráter de móvel que lhe queriam à força impingir, fazia figura em todas as salas do Ateneu, 
conforme as exigências da retórica. Localizada a conferência, a preleção, a prática solene, 
abalava-se a mísera e punha-se em caminho, aos encontrões, seguindo o fadário de mostrador 
ambulante de eloqüência. Nestas circunstâncias não era uma simples tribuna, era um 
verdadeiro prognóstico. Em se movendo a caranguejola, discurseira iminente. Teve um dia de 
razoável orgulho: dela serviu-se no Ateneu o Professor Hartt, para uma conferência de 
antropologia.
    Quando a vimos andar um dia e soubemos que aquilo significava a instalação do Amor ao 
Saber, congregou-se o Ateneu, unificado no mesmo impulso de entusiasmo, e pela primeira vez 
a tribuna marchou sem o cerimonial das topadas. Despedimos os criados. tomamo-la nós aos 
ombros: levamo-la em ovação.
    A festa inaugural esteve animada. Mais do que se esperava, infelizmente.
    Encheu-se de bancos e cadeiras austríacas o vastíssimo salão. Ao centro, em frente, a 
mesa da diretoria; à esquerda, os convidados; à direita, os outros alunos, o resto, como se diz 
das maiorias, sem voz ativa.
    Sobre o pano avinhado de ramagens, abria-se a pasta do secretário; sobre a tribuna 
cintilava cristalino o copo das urgências instantes.
    Poucos oradores. Aristarco, presidente honorário, abriu a sessão com a chave do 
peregrino verbo, recomendando a nova associação como um tentame honroso e de muito fruto 
para os moços aplicados, que teriam ensejo de se dar ao cultivo da oratória e das belas-letras.
    Subiu em seguida à tribuna o presidente efetivo.
    Com a facilidade da sua elocução, fez o Dr. Cláudio a critica geral da literatura brasileira: 
a galhofa de Gregório de Matos e Antônio José, a epopéia de Durão, o idílio da escola mineira, 
a unção de Sousa Caldas e S. Carlos, a influência de Magalhães, os ensaios do romance 
nacional, a glória de Gonçalves Dias e José de Alencar.
    E passou a estudar a atualidade.
    O auditório que escutava, interessado, mas tranqüilo, começou a agitar-se.
    O orador representava a nação como um charco de vinte províncias estagnadas na 
modorra peludosa da mais desgraçada indiferença. Os germes da vida perdem-se na vasa 
profunda; à superfície de coágulos de putrefação, borbulha, espaçadamente, o hálito mefítico 
do miasma, fermentado ao sol, subindo a denegrir o céu, com a vaporização da morte. Os 
pássaros calados fogem; as poucas árvores próximas no ar parado, debruçam-se uniformes 
sobre si mesmas num desanimo vegetativo, que parece crescer, descendo, - prosperidade 
melancólica de salgueiros. O horizonte limpo, remato, desfere golpes de luz oblíqua, reptil, que 
resvalam, espelhando faixas paralelas, imóveis, sobre o dormir da lama.


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    Por entre os raros caniços, emergem olhos de sapo, meditando a vantagem daquela paz 
sombria, indolência negra, em que chega a ser vigor de vontade estrebuchar quatro arrancos 
através da onda grossa em busca da fêmea. A arte significa a alegria do movimento, ou um 
grito de suprema dor nas sociedades que sofrem. Entre nós, a alegria é um cadáver. Ao menos 
se sofrêssemos... A condição da alma é a prostração comatosa de uma inércia mórbida. Quem 
nos dera a tonicidade letal de uma vasca. Trituramos a vida por igual como um osso; roemos o 
dia, pacientes, de rojo, sobre o ventre, como cães ao pasto. Fosse manjar o crânio de Rogério, 
ao menos teríamos a tragédia... Nada! A condição é o descanso ininterrupto do aniquilamento 
no plano infinito da monotonia. E não é o teto de brasa dos estios tropicais que nos oprime. 
Ah! como é profundo o céu do nosso clima material! Que irradiação de escapadas para o 
pensamento a direção dos nossos astros! O pântano das almas é a fábrica imensa de um grande 
empresário, organização de artifício, tão longamente elaborada, que dir-se-ia o empenho 
madrepórico de muitos séculos, dessorando em vez de construir. É a obra moralizadora de um 
reinado longo, é o transvasamento de um caráter, alargando a perder de vista a superfície moral 
de um império - o desmancho nauseabundo, esplanado, da tirania mole de um tirano de 
sebo!...
    Calculem agora que estava entre os convidados o Dr. Zé Loto, pai de um aluno, devoto 
jurado e confirmado das instituições, irmão de não sei quantas ordens terceiras, primo de todos 
os conventos, advogado de causas religiosas, conservador em suma, enraivado e militante. O 
sebo da tirania caiu-lhe nos melindres como um pingo de vela benta.
    "Protesto!" rugiu, rubro e rouquenho, dilacerando as barbas e erguendo o punho. Não 
podia admitir que viessem à sua vista ensebar as instituições! Por maior desgraça estava 
também presente o Senador Rubim, avó de outro aluno, senador de maus bofes, um pai da 
pátria padrasto, sem considerações nem papas na língua.
    "Quem protesta contra o sebo da tirania é barro! " redargüiu ao apartista com a pachorra 
temível dos velhos insolentes.
    - Burro, não! clamou o outro, empalidecendo sob a vergasta da injúria, nervoso, 
perturbado pela atenção da sala inteira que o encarava. Burro, não! tais expressões são indignas 
de V. Ex.a, um senador e um velho!...
    - Burro, sim!... repetia o outro vagarosamente, com um arreganho enfastiado de insulto. 
Burro, sim!...
    Aristarco conservava-se a presidência, na pasmaceira de pau dos ídolos afrontados. O 
salão enorme, alunos e convidados, tumultuava em vagalhões, fragmentado em partidos 
opostos, uns pelo senador e pela anarquia, outros pelo advogado e pela ordem pública. Muitos 
gesticulavam de pé; havia estudantes gritando em cima dos bancos. Os insultos voavam como 
pelouros; os protestos rangiam como escudos feridos; havia mãos pelo ar que pediam espadas.


    Aproveitando-se do escarcéu, o advogado ousara arremessar uns desaforos ao senador. O outro, 
sem ouvir bem, ia replicando com a impertinência do seu estribilho: "Burro, sim", até que, impaciente, 
pôs remate à polêmica com as cinco letras da energia popular que Waterloo fez heróicas, Vítor Hugo 
fez épicas e Zola fez clássicas.
    Sob o peso da conclusão, Zé Loto cedeu.
    Aristarco achou que era tempo de funcionar a presidência e sacudiu sobre o tumulto o badalo da 
ordem.
    O orador na tribuna, ereto e calmo, promontório sobre a tormenta, esperava que o alvoroço 
chegasse a termo. Apenas viu arrefecer o furor dos impropérios: "Corramos um véu sobre o cenário 
desolador", continuou; "venha em socorro a esperança de um renascimento". E por ai 
habilidosamente conduzindo a oração, acabou por um quadro de futuro, armado em aurora sobre a 
tribuna, pórtico de luz, jorrando um deslumbramento que extasiou os ouvintes com o encanto dos 


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vaticínios felizes, levando o sopro da viração matutina as nuvens do desanimo esfumadas antes sobre 
o panorama.
    Tiveram a palavra, ainda, dois estudantes, que moeram uma quantidade profusa de frases 
comuns a propósito de letras e literatos. O filho do diretor, o republicanozinho que conhecem, tinha 
no bolso dez tiras, dez brulotes de eloqüência incendiária, que resolveu sufocar depois do escândalo 
colossal do sebo.
    A segunda sessão solene do Grêmio, conquanto mais pacifica, não foi menos importante.
    Realizou-se em princípios de outubro, pelas imediações das férias. A concorrência foi maior, 
compareceram senhoras em grande número, o que não sucedera na de instalação; houve mais 
capricho de ornatos nas salas; forrou-se a tribuna de verde e amarelo; inscreveram-se os mais 
aproveitados campeões da oratória do Amor ao Saber. O colégio compareceu fardado; a diretoria, de 
casaca.
     A conferência do Dr. Cláudio foi subversiva, mas em sentido diverso da primeira. Versou não mais sobre a 
literatura no Brasil, porém sobre a arte em geral:

..................................................................................................
    
    Arte, estética, estesia é a educação do instinto sexual.
    A manutenção da existência indivídua tem a razão de ser no instinto de vitalidade da espécie. O 
momento presente das gerações nada mais é que a ligação prolífica do passado com a posteridade. E 
a razão de ser das espécies? A indagação não perscruta.
    Para que o indivíduo perdure, momento genésico da existência especifica no tempo, é 
indispensável adaptar-se as imposições do meio universal. O rio a correr não despreza o detalhe do 
mais insignificante remanso, nem pode sofismar o obstáculo do menor rochedo no alvéu. O critério 
inconsciente do instinto é o guia da adaptação.
    O esforço da vida humana, desde o vagido do berço até o movimento do enfermo, no leito de 
agonia, buscando uma posição mais cômoda para morrer, é a seleção do agradável. Os sentidos são 
como as antenas salvadoras do inseto titubeante; vão ao encontro das impressões, avisadores 
oportunos e cautelosos.
    A cada mundo de sensações notáveis corresponde um sentido. Os sentidos, teoricamente 
delimitados, são cinco, múltipla transformação de processo de um único - o tato, exatamente o 
sentido rudimentar das antenas.
    Faz-se, tateando instintivamente à procura dos agradáveis: agradável visual, agradável 
gustativo, agradável tangível, em suma. O agradável é essencialmente vital; se é às vezes funesto, é 
porque o instinto pode ser atraiçoado pelas ilusões.


CONTINUE A LEITURA NA PARTE 3 DE 4 NO LINK ABAIXO:

O Ateneu - Parte 3 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 1 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 2 de 4 - Raul Pompéia
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O Ateneu - Parte 3 de 4 - Raul Pompéia
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