30 Anos da Chacina - Candelária e Vigário Geral
Após 30 anos, sobrevivente da Chacina da Candelária fala sobre massacre pela 1° vez e celebra vida em família: 'Sensação de vitória'
Em entrevista a sobrevivente, que não terá sua identidade revelada nesta reportagem, contou como sobreviveu ao ataque dos policiais, que terminou com 8 jovens mortos em 1993. Atualmente, ela se diz realizada, com emprego fixo e morando com 4 dos seus cinco filhos.
Medo, lembranças traumáticas e a busca de dignidade para construir uma família. Esses foram sentimentos constantes que Vanessa (nome fictício) teve que administrar nos últimos 30 anos. Ela é uma das sobreviventes da Chacina da Candelária, que completa três décadas no próximo domingo (23/07/2023).
Pela primeira vez ela decidiu falar sobre o massacre de 1993, que terminou com a morte de oito jovens, com idade entre 11 e 19 anos. Eles foram assassinados por quatro policiais militares na Região da Igreja da Candelária, no Centro do Rio (entenda a dinâmica do massacre no fim da reportagem).
"O que eu lembro daquele dia são os gritos. Eu estava acabando de levantar depois do acontecido. Dei uns três passos para o meio fio e o que eu vi eram gritos: 'corre, ta dando tiro'. Isso que eu lembro daquele dia", relembrou Vanessa.
Apesar de todas as dificuldades que viveu na infância e adolescência, Vanessa pode se considerar, além de uma sobrevivente, uma vencedora. Ela era umas das cerca de 70 crianças que viviam pelas ruas do Centro do Rio e dormiam na região da igreja na época do massacre e atualmente, com 43 anos, é mãe de cinco filhos e vive uma vida estável.
Ao lembrar do grupo de crianças que viviam juntas, Vanessa contou que aqueles jovens se aproximaram por dividirem dores e angústias muito parecidas.
Em sua maioria, meninos e meninas da Candelária foram abandonados por suas famílias ou fugiram de casa por viverem cercados pela violência e pela escassez de qualquer sentimento positivo.
"Naquela época eu encontrei uma família, junto com as outras crianças. Cada uma tinha sua marca, sua história, sua dor. E eu meio que me identifiquei pela dor que eles também sentiam", contou a sobrevivente.
Após a chacina, que ocorreu quando ela tinha 13 anos, Vanessa viveu sem um lar por muito tempo, perambulando entre abrigos, ruas e calçadas. Ao longo dos anos, ela seguia sendo ignorada pela sociedade e invisível para o poder público, que só notava adolescentes como ela quando esses cometiam algum delito.
Vanessa voltou para casa com 21 anos, após a morte do pai. A partir daí, conseguiu juntar forças para seguir vencendo barreiras. Com emprego fixo de empregada doméstica, Vanessa conta que atualmente se sente feliz com sua família.
"Eu tenho cinco filhas, consegui com 21 anos voltar para casa, depois que meu pai faleceu, e construí minha vida e minha família. Hoje em dia eu trabalho, tenho uma vida estável, é isso, acho que dei a volta por cima. É uma sensação de vitória por ter construído minha família", comentou a sobrevivente.
Além de Vanessa, o outro sobrevivente que se tem notícia é Wagner dos Santos, que mora fora do Brasil.
Reencontro emocionante
Durante o tempo que fez parte do grupo de jovens que morava na região da Candelária, Vanessa conheceu a artista plástica e voluntária Yvonne Bezerra de Mello, que oferecia seu tempo para educar e dar suporte para aquelas crianças.
Yvonne trabalhava em um projeto que ajudava menores em situação de rua e se aproximou dos jovens da Candelária meses antes da chacina. Para Vanessa, Yvonne era o modelo de um adulto preocupado, que por muitas vezes exercia o papel de mãe daquelas crianças.
E foi a ativista, que atualmente comanda o Projeto Uerê, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, que foi procurada pela jovem. Depois de quase 30 anos, Vanessa só queria agradecer pelo trabalho de Yvonne e apresentar sua família.
"Há pouco tempo atrás eu soube de um telefonema. Me disseram que alguém tava me procurando dizendo: ‘Olha, fala para a Tia Ivone, que eu sou a Vanessa da Candelária’. Foi uma surpresa enorme porque a Vanessa na época tinha dez anos (13) e eu achava que ela estava morta. E de repente ela disse ‘Olha, procurei por esse lugar, procurei, e agora achei o projeto'", contou Yvonne.
"Foi um encontro maravilhoso. Ela foi no Uerê com os filhos, foi muito legal. E desde então eu tenho contato com ela", disse Yvonne Bezerra.
Na opinião da ativista, esse carinho e reconhecimento são as maiores conquistas que ela poderia ter, após mais de 30 anos dedicados a educar e oferecer oportunidades para crianças vulneráveis.
"Aqueles meninos formavam um grupo que era acolhido por alguém e isso provocou neles muito amor por essas pessoas. Até hoje eu percebo. A Vanessa disse 'Tia Ivone, eu nunca vou esquecer o que a senhora me ensinou e o que a senhora fez por nós'”, comentou.
"Isso é muito gratificante. É o que faz com que eu ache que eu realmente tenho um caminho certo para continuar a acolher as crianças na rua”, completou Yvonne.
Carta com sonhos
Em contato com o g1, Yvonne revelou uma carta que Vanessa escreveu quando era criança, durante uma atividade proposta pela ativista. Na ação, a menina de 13 anos escreveu como ela imaginava que deveria ser o papel dos pais, além da importância de ter uma casa.
Ao olhar de uma criança que pouco viveu aquilo, é possível ler palavras verdadeiras. O texto é um exemplo de alguém cheio de esperança e sabedoria.
“Pai para dar escola, alimentação a família e comprar o que os filhos querem no Natal, no dia das crianças e no seu aniversário”, escreveu a menina sobre o papel de um pai.
“Mãe para dar carinho, amor, união e a educação. Com casa para dormir e ir ao banheiro para não ficar doente. Com alimentação, para se alimentar e não ficar roubando nas ruas”, completou Vanessa.
Relembre a chacina
A Chacina da Candelária aconteceu na madrugada do dia 23 de julho de 1993. Usando dois carros com as placas cobertas por plásticos, os criminosos chegaram até um grupo de mais de 40 meninos e jovens que dormiam na região da Igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro.
Eles saíram do carro e perguntaram por Marcos Antônio da Silva, o Come-Gato, um dos garotos. De acordo com testemunhas, eles atiraram e houve correria. Quatro meninos morreram no local. Ruço, outro apelido de Marcos, também foi atingido. Ele ficou internado em coma por dias, mas não resistiu aos ferimentos e acabou morrendo.
Um grupo com outros jovens foi levado no porta-malas de um dos carros e levados para o Parque do Flamengo, na Zona Sul, onde foram baleados. Apenas um deles sobreviveu.
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Jovens mortos na chacina:
Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos;
Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos;
Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos;
Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos;
"Gambazinho", 17 anos;
Leandro Santos da Conceição, 17 anos.
Paulo José da Silva, 18 anos;
Marcos Antônio Alves da Silva, 19 anos.
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Os assassinos condenados:
Marcos Aurélio de Alcântara, condenado a 204 anos. Está solto.
Marcus Vinícius Emmanuel Borges, condenado a 300 anos. Está foragido.
Nelson Oliveira dos Santos Cunha, condenado a 261 anos. Está solto.
Maurício da Conceição, conhecido como Sexta-Feira Treze, está morto.
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