QUANDO OS AVIÕES SE CANSAM - Tecnologia
Parte da fuselagem desaparece no ar - e expõe um problema que os engenheiros aeronáuticos aprendem a prevenir: a fadiga dos materiais. A segurança da estrutura, para eles, está acima de tudo.
O Boeing 737 da Aloha Airlines decolou do aeroporto da cidade de Hilo, no arquipélago do Havaí, naquele 28 de abril de 1988, e tudo levava a crer que seria mais uma breve viagem de rotina até Honolulu, numa ilha próxima. Alguns dos noventa passageiros reclamaram um pouco da turbulência no início do vôo, mas, minutos depois, olhavam já com impaciência o sinal luminoso que mandava manter os cintos de segurança atados. Santo mandamento. Pois, assim que o avião, com dezenove anos de uso, nivelou a 7 000 metros, a altitude prevista de vôo, ouviu-se um forte estrondo e, subitamente, o teto da primeira classe desapareceu no ar deixando um rombo de 6 metros na fuselagem acima e ao lado da fileira de assentos. Quase no mesmo instante, uma comissária, de pé no corredor, foi sugada para fora. O número de vítimas poderia ter sido maior, não fosse a perícia do piloto em fazer um pouso de emergência num aeroporto próximo; todos os passageiros e o restante da tripulação se salvaram. O acidente, por suas características, dramatizou um problema que há 36 anos vem tirando o sono dos responsáveis pela segurança do transporte aéreo. Em janeiro de 1954, de fato, um Havilland Comet, da família dos primeiros jatos comerciais, pertencente à hoje extinta companhia inglesa BOAC, explodiu no ar quando fazia a rota Roma-Londres. As investigações mostraram que o avião, embora não fosse idoso, apresentava sinais de desgaste - por culpa da concepção falha do modelo e da inexistência de certos testes, hoje em dia obrigatórios.
O atestado de óbito do Comet registrou como causa da morte uma doença implacável, até então desconhecida, que recebeu o nome fadiga de materiais e passou a fazer parte do vocabulário dos engenheiros aeronáuticos. Significa que, submetidos a esforços variáveis durante muito tempo, metais, plásticos e alguns tipos de madeira podem se romper subitamente, mesmo que o esforço com que estejam arcando naquele momento seja suportável. No caso do velho Comet, o desgaste na fuselagem trincou a ponta de uma das janelas, o que desencadeou a tragédia. Nas décadas seguintes, cientistas e engenheiros se debruçaram sobre as pranchetas na tentativa de evitar a repetição desse problema. Mas como, evidentemente não é possível blindar um avião feito um tanque de guerra, porque ele não sairia do chão, acidentes causados por fadiga de materiais continuam a engrossar as estatísticas dos desastres aéreos. Mesmo porque, jatos como o Boeing 737,o 727 e o DC-9, este da McDonnell Douglas, todos em operação há mais de vinte anos, apropriados para viagens curtas e médias, envelhecem rápido: as freqüentes decolagens e pousos provocam mais estresse na estrutura do que nos wide-bodies, geralmente utilizados em percursos maiores. Nem estes, porém, estão imunes ao problema. No ano passado, uma falha na trava da porta de um Jumbo 747 da empresa americana United Airlines, com dezoito anos de uso, provocou um rombo de 12 metros na fuselagem e a morte de nove passageiros. No caso da havaiana Aloha Airlines, ficou provado que parte da carcaça do Boeing 737 não agüentou o dano da fadiga acumulada de 35 000 horas de vôo, o equivalente, para os materiais, a 90 000 decolagens.
Nos tempos pioneiros, as lendárias máquinas voadoras não ofereciam dores-de-cabeça desse tipo. Afinal, o que iria corresponder à fuselagem neles não passava de uma armação de madeira normalmente reforçada com fios de aço e cantoneiras. Naqueles mais pesados que o ar, que certamente não eram projetados para durar vinte ou trinta anos, piloto e motor ficavam desconfortavelmente assentados sobre a asa inferior. Mais aperfeiçoados, os aviões de madeira continuaram a existir até os primeiros tempos da Segunda Guerra Mundial, quando os caças soviéticos Lavotchkin La-5 e La-7, feitos com esse material, deram muito trabalho aos alemães. Mas, em geral, a partir da década de 30, com o desenvolvimento das chapas de alumínio, o metal tornou-se componente obrigatório do revestimento dos aviões.
Apareceram os bimotores e trimotores metálicos, como o Junker Ju-52, alemão, e os americanos Douglas DC-2 e DC-3 - este último, o equipamento mais bem-sucedido da história da aviação, que ainda presta serviços em rincões perdidos do mundo.
Sob esse aspecto, não há novidades no ar. Os modernos aviões de transporte comercial, independente de tamanho, apresentam a mesma estrutura da época do inesquecível DC-3 e as ligas de alumínio continuam suportando a maior parte do esforço sobre a fuselagem. Embora sem a resistência do aço ou do titânio - usados para reforçar lugares críticos, como o enquadramento das portas -, tais ligas se moldam facilmente e possuem, no jargão dos engenheiros, maior tenacidade à fratura. Isso significa que a fuselagem constituída de uma pele de alumínio, mesmo afetada por uma trinca, demora mais para se romper. Depois da pele, vêm os ossos, por assim dizer. Formados de ligas longitudinais (as longarinas) e de anéis (as cavernas), naturalmente também em alumínio, dão estabilidade ao avião e distribuem a pressão pela fuselagem inteira. Por isso mesmo, as longarinas e as cavernas mais reforçadas ficam nas junções das asas, onde sempre é maior o esforço a que é submetido o material
Como um gigantesco brinquedo de montar, essa armação está presa por dezenas de milhares de rebites. Cerca de 90 000 deles entram por exemplo na construção do Brasília, o turboélice para trinta passageiros da Embraer, por sinal o campeão de vendas da empresa de São José dos Campos. Com tanto metal, não há como impedir a fadiga e a corrosão à medida que as estruturas envelhecem. Os técnicos costumam dizer que tais problemas estão para as aeronaves como a arteriosclerose para o homem. Mas a geriatria aeronáutica - é assim mesmo que se chama a técnica de prolongar a vida útil dos aviões -, conhecendo os dados vitais e a ficha clínica dos aparelhos pode pelo menos prever e controlar o desenvolvimento dessas doenças da terceira idade. E acidentes como o da Aloha Airlines oferecem o consolo de multiplicar as pesquisas sobre o assunto numa época em que muitos modelos em operação se aproximam dos limites de longevidade. O engenheiro aeronáutico Antônio Carlos Vieira Victorazzo, da Embraer, que há vinte dos seus 42 anos estuda e trabalha com estruturas de aeronaves, explica que, para cada projetista envolvido com a aerodinâmica de um aparelho, existem três outros preocupados com a carcaça. Eles passam centenas de horas estipulando as regras segundo as quais os futuros modelos poderão voar. "Os projetos devem conter obrigatoriamente informações sobre a carga exata durante as manobras, sob rajadas de vento, nos pousos e decolagens e em velocidade máxima. Isso vale para cada parte da superfície do aparelho", explica Victorazzo. "Muitas vezes, componentes estruturais são testados até serem destruídos, para se ter certeza de que suportam o esforço em vôo, assim como muitas chapas de metal tomam banhos de água salgada para se avaliar a proteção contra a corrosão."
Segurança nunca é demais. Para evitar riscos, não se fabrica um protótipo, mas vários, todos eles forçados nas provas em terra e no ar a dar tudo que podem. Para começar, os modelos são testados nos famosos túneis de vento, que fornecem, entre outras coisas. informações sobre a distribuição da pressão do ar em diferentes condições de vôo. Além de analisar o desempenho das aeronaves em condições extremas de temperatura e em freqüências de vibração, as quais provavelmente nunca serão experimentadas nas operações normais, simula-se o número de vôos diários efetivamente cumpridos nas companhias aéreas. Essas informações se acumulam nos computadores e mais tarde farão parte do currículo das naves. Assim, os protótipos do turboélice CBA-123, em construção nos hangares da Embraer, passarão por 60 000 horas de vôo simulado antes e enquanto o avião estiver em operação.
Na esteira das conferências e seminários que se seguiram ao desastre da Aloha, os fabricantes começaram a estudar até a influência da poluição e da chuva ácida sobre a fuselagem. E não foi propriamente surpresa descobrir que os jatos que operam nas proximidades de Tóquio e São Paulo precisam de uma faxina mais rigorosa. A poluição está despertando suspeitas ainda mais inquietantes: há quem alerte para a hipótese de maior corrosão e envelhecimento dos metais expostos à radiação ultravioleta, com o esgarçamento da proteção proporcionada pela camada de ozônio. Ao mesmo tempo pesquisam-se novos materiais especialmente resistentes que possam, no futuro, substituir com vantagem as estruturas metálicas convencionais. Compostos de fibras de carbono (material de mil e uma utilidades, empregado, por exemplo, em raquetes de tênis) ajudam hoje a emagrecer o A 320, a mais recente versão do Airbus europeu, e constituem os flapes inteiriços, de quase 9 metros de comprimento, que a Embraer está fabricando para os novos jatos americanos MD11. Se fossem de metal, esses flapes teriam não apenas um número maior de chapas, como também de rebites, multiplicando, portanto, os pontos potenciais de fadiga.
Por trás de todos esses estudos, esconde-se um conceito adotado obrigatoriamente há doze anos pelos fabricantes e considerado o grande responsável pela segurança de vôo. Trata-se da tolerância a danos (fail safe, em inglês), uma espécie de versão aeronáutica do dito a união faz a força. Assim, cada pequenino rebite, cada pedaço da fuselagem de um elefantino 747 são dimensionados para suportar o dobro da pressão normalmente sofrida durante sua vida. Se qualquer peça desse jogo de armar entrar em pane por algum motivo, as outras não podem substituí-la, mas têm força suficiente para sustentar o avião no ar. Orgulham-se os engenheiros da Embraer de que o Brasília foi desenhado para fazer um pouso normal, mesmo com um rombo de 80 centímetros na fuselagem. No começo de junho último, um desses aviões chocou-se com um Piper nos céus da Bélgica e, apesar dos estragos provocados na fuselagem, conseguiu pousar sem vítimas.
Fundamentais também para a segurança das aeronaves são as inspeções obrigatórias antes de cada viagem e as mais minuciosas, a intervalos regulares de horas de vôo. De posse dos manuais da indústria, os inspetores das companhias aéreas sabem quais os pontos críticos e têm condições de apanhar - com a ajuda de uma variedade de instrumentos, desde lupas a emissores acústicos, passando pelos raios X - as trincas microscópicas que podem surgir na fuselagem. Se houver uma suspeita, usa-se um líquido penetrante, capaz de denunciar a falha por microscópica que seja. "Quando se obedece a todas as regras do jogo, os problemas diminuem sensivelmente", lembra o engenheiro Victorazzo, da Embraer. "E, quando estes aparecem, devem-se a controles deficientes e verificações mal feitas." Novamente tomando como exemplo o acidente havaiano de 1988: ficou provado que a Aloha havia passado a hora de trocar as juntas, contrariando as recomendações da Boeing.
No pior desastre com uma única aeronave na história da aviação, ocorrido há cinco anos, morreram 520 pessoas. As investigações mostraram que a caverna de pressão traseira do aparelho, um Jumbo 747 da Japan Airlines, se rompeu devido a um reparo mal feito. O ar pressurizado da cabine entrou na cauda, arrebentando partes da fuselagem e danificando o sistema hidráulico. Segundo o relatório, a inspeção falhou ao não detectar a fadiga do metal. Tragédias como essa não desestimulam os especialistas. Como diz o engenheiro Victorazzo, que de avião entende tudo, menos pilotar, os desastres provocados por falhas estruturais são poucos. "Nos meus anos de serviço na Embraer não tive de lidar com nenhum", relata. "A gente que trabalha com isso sabe as precauções com segurança que existem por trás de cada aeronave e fica tranqüila", informa - sem se dar sequer o trabalho de bater na madeira para evitar a má sorte.
60 000 horas de ensaios
Nos próximos meses, os engenheiros encarregados do projeto do CBA123, o mais novo turboélice da Embraer, estarão de olho nos gráficos extraídos dos computadores da empresa. Eles mostrarão os resultados dos testes estruturais e de fadiga da fuselagem de quase 18 metros de comprimento do avião, sem contar as asas. As primeiras unidades do CBA-123 devem sair da linha de montagem em 1992. Até lá, cinco protótipos estarão sendo submetidos a uma bateria de provas no solo e no ar, que prosseguirão mesmo depois da entrega dos modelos encomendados, equivalente a 60 000 horas de vôo ou trinta anos de operações. Nos próximos meses, um dos hangares da Embraer estará ocupado por dois protótipos onde serão instalados macacos hidráulicos ligados a 10 000 medidores de tensão na fuselagem. Esses medidores registrarão em computadores qualquer alteração do metal. Segundo o engenheiro Walter Bartels, diretor do departamento de testes, quando começarem a voar para valer, os CBA-123 terão uma reserva de segurança de 50%, ou seja, poderão executar muito mais manobras do que as especificadas no manual de vôo, sem compremeter nem danificar a estrutura.
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