Equipes que pesquisam 'partícula de Deus' competem por resultados.
Grupos desenvolvem tecnologias diferentes com os mesmos objetivos.
Para um leigo, é difícil perceber as diferenças entre o Atlas (esq.) e o CMS (dir.) (Foto: Cern/Divulgação)
A concorrência entre duas equipes de cientistas é um dos motores das descobertas feitas no Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), um túnel circular com 27 km de comprimento, construído debaixo da terra, entre a França e a Suíça, pelo Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês).
Nele, os pesquisadores aceleram e colidem partículas subatômicas para testar teorias da física. Brasileiros que trabalham em pesquisas nesse centro contaram a nos como é o ambiente de competição no que é considerado o maior laboratório do mundo.
Em julho, foi anunciada a descoberta mais impactante já feita no Cern. Foi encontrada uma partícula até então desconhecida, que, até o momento, tem tudo para ser o bóson de Higgs – apelidada de “partícula de Deus”, uma peça-chave para explicar como os objetos adquiriram massa.
O CMS e o Atlas são dois detectores colocados em posições opostas no túnel, com o mesmo objetivo, que é encontrar novas partículas. Embora o acelerador de partículas seja o mesmo, os dois projetos são completamente independentes. Foram construídos com tecnologias diferentes e são operados por equipes separadas, usando modelos distintos.
'Um pouco na frente'
Como tentam descobrir as mesmas partículas, os dois experimentos funcionam como concorrentes. “Quando você só quer ser melhor que o concorrente, isso é extremamente positivo”, afirmou Sérgio Novaes, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que faz parte do experimento CMS.
O pesquisador Denis Damazio é brasileiro, mas trabalha para o Laboratório Nacional Brookhaven, dos Estados Unidos, e fica na sede do Cern, em Genebra, na Suíça. Integrante do Atlas, ele contou que, nas semanas que antecederam o anúncio da descoberta do novo bóson, o clima era de tensão entre os dois grupos.
“Em uma reunião que fui, a Fabiola Gianotti [coordenadora do Atlas] disse: 'quando estiverem passando pelo pessoal do CMS, façam cara triste para não estimulá-los’”, lembrou. Na época, surgiu também um boato nos corredores de que o CMS teria resultados mais precisos do que os obtidos pelo Atlas. Até a publicação oficial, esses resultados são sigilosos e são conhecidos pelos membros do próprio grupo, que podem fazer eventuais correções e sugerir alterações.
Não sei quem criou esse boato, se bobear foi o próprio pessoal do Atlas para nos estimular”, afirmou Damazio. De toda forma, o episódio ilustra como os dois grupos se esforçam na luta pelos melhores resultados. “A graça não seria chegar muito à frente dos caras, tem que chegar um pouco à frente só”, completou o pesquisador. De fato, os dois grupos divulgaram resultados muito parecidos.
Redundância
A realização de estudos semelhantes em paralelo se justifica por uma questão científica. Toda experiência, para ser comprovada, precisa ser reproduzida por outros pesquisadores. Como se trata de umas das máquina mais poderosas do mundo, a melhor forma de criar essa redundância era construir dois detectores no mesmo túnel.
“A existência de dois detectores é praticamente obrigatória”, afirmou Alberto Santoro, líder do grupo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) junto ao CMS. Isso explica porque não é bom “chegar muito à frente”. “A gente fica curioso para confirmar se o resultado está semelhante. Se for muito diferente, um deles pode estar errado”, ponderou Fernando Marroquim, professor das universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e de São João Del Rey (UFSJ), em Minas Gerais, que coordena as pesquisas do Atlas no Brasil.
No caso do anúncio do novo bóson, em julho, a própria direção do Cern só aceitou publicar os resultados porque eles eram muito semelhantes. Se só um dos experimentos tivesse chegado à conclusão da existência do bóson, a descoberta não teria sido divulgada – outra hipótese seria divulgar dois artigos, explicando as diferenças nos resultados.
Recentemente, uma falsa descoberta que abalaria o mundo da física deu um bom exemplo de por que essa redundância é necessária. Em setembro de 2011, uma experiência realizada no próprio Cern – mas não no LHC – identificou partículas que se moviam acima da velocidade da luz. De acordo com a teoria da relatividade de Einstein, isso seria impossível.
Cientistas tentaram reproduzir os resultados daquele estudo, sem sucesso. Em março de 2012, o físico italiano Antonio Ereditato, responsável pelo experimento, pediu demissão depois que ficaram comprovados problemas técnicos nos aparelhos usados na descoberta
'Fronteira do conhecimento'
Mesmo os físicos têm dificuldades para explicar a importância de uma descoberta como a do bóson de Higgs. A experiência serve para confirmar uma teoria da física de partículas, mas, para a sociedade, não deve ter uma consequência direta em breve.
No entanto, ainda é difícil prever os resultados práticos que os estudos do LHC vão gerar. “É uma fronteira do conhecimento. Daqui pra frente, ninguém sabe de nada”, destacou Alberto Santoro, da Uerj e do CMS.
O desafio de lidar com fenômenos complexos e desconhecidos exige o desenvolvimento de novas tecnologias. As telas touchscreen, sensíveis ao toque, e a rede de computadores World Wide Web deram seus primeiros passos no Cern, onde foram feitas como ferramentas para os pesquisadores. Atualmente, o uso de tecnologias ligadas à aceleração de partículas se mostra promissor na medicina. As técnicas elaboradas pelos físicos podem resultar tanto em tratamentos contra o câncer – os prótons acelerados seriam uma alternativa mais eficaz à radioterapia – quanto em novos tipos de exame – cientistas trabalham em um novo tipo de escaneamento que promete ser melhor que a ressonância magnética.
Como o CMS e o Atlas desenvolvem tecnologias diferentes, isso aumenta a chance de que eles criem esse tipo de oportunidades. “Não chega a dobrar o potencial de descobertas, porque muita coisa se reaproveita [de outros aceleradores]”, explicou Denis Damazio, do Atlas.
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