O SALVAMENTO DO HUBBLE - Astronomia
As ferramentas que os astronautas pretendem manusear no vácuo para dar novos olhos e melhor equilíbrio ao telescópio espacial.
Enfiar-se debaixo de um carro e tentar consertá-lo em movimento, a mais de 27 000 quilômetros por hora, é uma sensação que mecânico nenhum experimentou. Mas essa é a tarefa que espera a americana Kathryn Thornton, 40 anos, doutora em Física e mãe de cinco filhos. Este mês, se tudo correr como previsto, ela e outros cinco astronautas vão arregaçar as mangas, a 540 quilômetros de altura, e tentar reduzir a miopia do Telescópio Espacial Hubble. Um magnífico instrumento, que deu grande impulso à ciência e é avaliado em 2 bilhões de dólares, o Hubble geraria imagens ainda mais revolucionárias se seu principal espelho não fosse mais plano do que deveria ser. Certamente não se muda a forma de uma peça desse porte e acuidade - o espelho pesa 800 quilos, mede 2,4 metros de diâmetro e sua deformação se resume a inacreditáveis 2 milésimos de milímetros. Assi, será preciso uma reforma em regra, tanto mais difícil por ter de ser feita num objeto de 11 toneladas no espaço, onde a mera coordenação dos movimentos pode tornar-se um pesadelo.
Para enfrentar o problema da miopia do Hubble, os engenheiros contratados pela Nasa (agência espacial americana) criaram uma peça mágica. Denominada Costar, ela se monta por conta própria, ou quase isso, pois deverá se ajustar automaticamente, por meio de braços metálicos, dentro da estrutura do Hubble. Já na posição, ela terá o tamanho de uma cabine telefônica. A precisão do ajuste é decisiva, pois a função da nova peça é justamente rebater na direção certa a luz que o espelho principal hoje desvia por ser plano demais. A correção de rota, para colocar a luz em foco, será feita por meio de oito espelhos menores - não maiores que uma moeda, de fato - existentes na "caixa de truques óptica", apelido que os engenheiros deram à Costar.
"Os espelhos são perfeitamente capazes de corrigir a deficiência óptica do Hubble", aposta Charles Bradford, responsável pela construção da Costar na empresa Ball Aerospace, do estado do Colorado, Estados Unidos. Ele diz que a eficiência do aparelho ficou comprovada em inúmeros testes previamente realizados em terra. É verdade que, mesmo depois do reparo, nem toda a luz captada poderá ser dirigida para as câmaras formadoras de imagem - cada câmara enxerga numa certa faixa de luz, como se o Hubble fosse quatro telescópios em um. Duas das câmaras enxergam luz visível, com um campo de visão mais amplo ou mais estreito, conforme a conveniência; as outras enxergam na faixa dos raios ultravioleta e infravermelhos.
Mas a perda de luz não é muito grande - menos de 20% do que chega ao telescópio principal, informam Pierre-Yves Bély e Duccio Macchetto, da Agência Espacial Européia, que trabalham no projeto Hubble. Outra mudança importante: para que a Costar possa ser introduzida na estrutura do telescópio, uma das câmaras terá de ser retirada: aquela que trabalha com luz visível e tem largo campo de visão, conhecida pela sigla Wifpic.
O sacrífico, porém, trará mais benefícios que prejuízos, pois uma nova Wifpic será integrada ao telescópio. Ela não contará com a magnífica ampliação proporcionada pelo espelho principal, mas é muitíssimo mais eficiente que a antiga câmara, concebida no início dos anos 70. Equipada com captadores eletrônicos de luz, chamados CCD, a Wifpic II fará imagens melhores do que se havia cogitado para a Wifpic I, explica John Trauger, responsável pelo projeto desses instrumentos. Afinal, contabilizam Bély e Macchetto, as correções deixarão o telescópio exatamente como deveria ser se não tivesse sido mal construído. Além disso, o desenho da Costar assegura que, mesmo se tudo der errado, nada se perderá, pois no futuro os espelhos auxiliares da Costar poderão ser automaticamente afastados de sua posição. Assim, na pior das hipóteses, o desempenho do telescópio ficará como está. E já está muito bom, a julgar pelo interesse dos astrônomos e astrofísicos.
As contas divulgadas por Bély e Macchetto mostram que, para atender a todos os que querem usar o telescópio, atualmente, seria preciso construir mais oito instrumentos iguais. Não se deve esquecer que as atuais imagens do Hubble estão sendo corrigidas por computador, com resultados que, se não equivalem aos que serão obtidos depois do conserto, são de boa qualidade. Menos conhecido que a miopia de "nascença" é o fato de o Hubble estar ficando velho - e talvez de forma prematura. Diversas peças, em vista disso, terão de ser repostas, inclusive duas essenciais ao seu equilíbrio: os giroscópios que impedem o telescópio de girar arbitrariamente e assim o mantêm na direção desejada.
Três giroscópios estão em uso permanente e três outros servem de reserva. O problema é que exatamente metade dos aparelhos quebrou, e a Nasa agora terá de repor pelo menos dois dos estepes. Não é novidade que o Hubble exigiria manutenção constante, ao longo de seus projetados quinze anos de vida. Mas as panes parecem estar surgindo mais velozmente do que se esperava, e algumas delas, ao que tudo indica, são definitivas. Elas estão em toda parte, de medidores de forças magnéticas e comandos elétricos de motores a componentes de computadores. Particularmente grave, de acordo com os especialistas da agência espacial européia, são as falhas de dois geradores de tensão elétrica.
Esses danos, por sua vez, prejudicam o funcionamento de dois instrumentos científicos: um espectrógrafo, ou analisador de luz, e uma câmara especial para fotografar estrelas muito fracas. Felizmente, as panes não afetam de modo significativo o desempenho dos instrumentos, já que os geradores dificilmente poderiam ser consertados. Essa possibilidade chegou a ser cogitada, informam Bély e Macchetto, mas esbarrou na necessidade incontornável de se desmontar a estrutura do Hubble para chegar às peças, proeza que nenhum mecânico do espaço poderia realizar.
Já não será fácil substituir os painéis de 70 metros quadrados que captam energia do Sol e alimentam os complexos sistemas do telescópio. Devido a um erro de concepção, os painéis são sensíveis à variação de temperatura, e isso, por incrível que pareça, faz o Hubble tremer. O motivo é que, por estar em órbita, o telescópio fica parte do tempo à sombra da Terra, e outra parte exposto ao Sol. Sempre que passa de um lado para outro o choque térmico provoca a contração ou a expansão das grandes placas coletoras de energia, e conseqüentes oscilações em toda a estrutura do telescópio. O efeito dura apenas alguns minutos e é pequeno.
Mas a orientação do Hubble é absurda: normalmente, ele não oscila mais que 5 milésimos de segundo de arco, ou seja, o ângulo pelo qual se veria uma moeda a 650 quilômetros de distância. Nesse caso, portanto, os astronautas terão de enfrentar as dificuldades orbitais e, no lugar dos velhos, colocar painéis novos, cobertos por um isolante térmico. É essa tarefa que Kathryn Thornton comparou a consertar um veículo em movimento. Ela será um dos quatro astronautas encarregados de sair do ônibus espacial aos pares, em trajes adequados, e lutar em pleno vácuo contra os caprichos da falta de peso. Thomas Akers, também na equipe, sabe o o que isso significa.
Ele viu de perto a estafante batalha de nada menos que três dias apenas para capturar e corrigir a órbita do satélite Intelsat, há cerca de um ano. Mexer uma perna, contam os astronautas, pode ser suficiente para fazer rodar o homem e a peça que ele segura, por pesada que seja. É certo que o astronauta europeu Claude Nicollier usará o braço mecânico do ônibus espacial para escorar o Hubble enquanto se introduz a Costar em suas entranhas. O telescópio também possui uma espécie de corrimão à volta, que facilita a coordenação dos mecânicos fora do ônibus. Mas o trabalho, desta vez, é mais meticuloso do que simplesmente apreender um satélite à deriva, e não será muito mais fácil.
"Estamos esperando surpresas", adverte um dos participantes da missão, o experiente Story Musgraves. Ele se conforma com fato de que, como diz, "nenhum vôo jamais sai como planejado". Por isso mesmo, essa missão conta com um plano recheado de alternativas: 150 possibilidades diferentes de executar as mesmas tarefas. Durante meses, os astronautas treinaram tais operações usando maquetes em tamanho natural do Hubble e imersos numa grande piscina onde a água simulava a falta de peso. Outro meio excelente de conferir traquejo em ações orbitais é a realidade virtual: visores onde as manobras são simuladas e conectadas eletronicamente aos movimentos dos braços por meio de luvas.
Empregada pela primeira vez, a realidade virtual ensina as conseqüências de atos tão inofensivos e impensados em terra firme, quanto estabanados no espaço. Mesmo assim, talvez não seja possível cumprir o esquema idealizado, de etapas e prazos rígidos, a ser executado num máximo de treze dias e em não mais que cinco saídas do ônibus espacial - um recorde na categoria. Alguns especialistas, em vista disso, sugerem que a missão seja completada em um vôo preparado para o final do próximo ano. Não é o que a Nasa quer, mas pode não ter saída. Com toda a razão, a agência americana joga pesado no salvamento do Hubble. Nesse caso, diante de tudo o que ele já se mostrou capaz de fazer, e das perspectivas ainda mais brilhantes propiciadas pelo reparo, os cientistas certamente estarão a seu lado. É o que sugerem Bély e Macchetto ao dizer que a investigação do Universo avançará muito mais se não depender apenas dos instrumentos em terra. E que é preciso estar no céu, mesmo que isso custe muito caro.
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