sábado, 18 de janeiro de 2014

Corte & Costura na sala de cirurgia - Medicina


CORTE & COSTURA NA SALA DE CIRURGIA


Não é fácil fazer emendas nos rasgos do corpo humano. Os pontos não podem ficar frouxos ou apertados. É preciso escolher  a linha certa para cada tipo de tecido. E, no final, o arremate tem de ser feito na maior rapidez.


Estudante de Medicina que se preze passa ho-ras e horas entre linhas, agulhas e pedaços de pa-no. Treina a mão para pontos e arremates, com mais afinco do que moças casadoiras do século passado ou do que caprichosas vovós. "Qualquer um pode cortar, até um assaltante com uma faca na mão", costuma dizer o professor Flávio Luis Ortiz Hering, aos alunos da Faculdade de Ciências Médicas de Santos, litoral de São Paulo, onde leciona. "Mas costurar o corpo humano é privilégio do cirurgião", acrescenta o jovem mestre, de 34 anos. Há um exagero evidente na primeira afirmação: os médicos, em geral, não ferem como bandidos e, sim, fazem cortes precisos, desviando o bisturi dos órgãos internos. No entanto, dessa maneira Hering alcança a meta de mostrar a importância da sutura. 
O momento de suturar é, de fato, um dos pontos altos de uma operação. Hering percebeu isso quando ainda estava no segundo ano de faculdade. "Naquela época, comecei a me interessar por Cirurgia", diz ele, que acabou se tornando urologista, médico encarregado dos rins e das vias urinárias. Um detalhe sempre chamou a sua atenção: havia livros especializados que eram uma verdadeira aula de corte, jamais de costura. Por isso, quando passou a lecionar, Hering amarrou tudo o que havia reunido sobre o assunto, na forma de uma apostila. Esta, por sua vez, foi o embrião do trabalho que publicou recentemente pela Editora Roca, de São Paulo. O livro Bases Técnicas e Teóricas de Fios e Suturas redigido com os pro-fessores David Rosenberg e Silvio Gabor procura desatar dúvidas e mitos sobre a costura na cirurgia.
 A rigor, a sutura médica nem é fundamental. Pois qualquer corte é capaz de se fechar sozinho, sem a ajuda de pontos. Mas isso poderia levar meses ou anos - o que, além de incômodo, significa manter uma porta aberta para a entrada de micróbios nocivos. "A sutura serve justamente para aproximar as bordas de uma ferida, acelerando o fechamento dessa brecha", explica Hering, que também trabalha no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. "Talvez por isso as pessoas imaginam que o melhor é apertar bem os pontos, para o corte não voltar a abrir. O que é, porém, um terrível engano." É verdade que, se ficar frouxa, a sutura não cumprirá direito o seu papel de unir as bordas. 
Mas o extremo oposto também é ruim. Pois, quando os pontos estão muito apertados, o fio estrangula os vasos, impedindo a passagem do sangue. É o líquido vermelho, afinal, que transporta as substâncias construtoras da cicatriz. Sem a chegada da matéria-prima, a obra da cicatrização fica atrasada, o corte demora para fechar. Depois de consumir muitos metros de tecido, acostumando-se a não apertar os pontos demais, nem de menos, os futuros médicos continuam seu treinamento em animais de laboratório. Aí, as dificul-dades aumentam por vários moti-vos, um deles óbvio - pano não san-gra. Para evitar hemorragias, especialmente na hora de emendar veias e artérias, as mãos do cirurgião têm de ser tão ágeis quanto as de um mágico. Além disso, o ser vivo é comparável a uma colcha de retalhos, com os mais diferentes tecidos - uns mais frágeis, outros muito duros e resistentes ou ainda, bastante elásticos. Ou seja, o je-i--to de costurar não é sempre o mesmo.
Há uma agulha e um ponto mais adequado para cada uma das partes, na tapeçaria médica. No passado, a maioria dos pontos cirúr-gicos foi copiada dos bordados e da te-celagem. Além de pontos, existe uma variedade de nós, usados no arremate - alguns rebuscados, parentes próximos dos nós-de-marinheiros, que terminaram sendo conhecidos como nós-de-cirurgião. "Na realidade, existe um ponto certo para cada situação", diz Hering. "Mas, quanto ao nó, é permitido dar qualquer um. Em geral, o médico escolhe aquele de que tem mais prática e que, por isso, consegue fazer mais rápido." O eleito pela maioria dos cirurgiões é o velho nó-de-sapateiro - aquele que se dá nos cadarços de tênis
Se a escolha do nó é fácil, por ser de acordo com o gosto de quem costura, o mesmo não acontece com a seleção dos fios. Há cerca de trinta tipos no mercado, incluindo linhas que são da mesmíssima espécie, porém apresentadas em tonalidades diferentes, como roxo, preto ou verde. O colorido é justificável: quando se costura um órgão sangrando, a linha branca termina tingida de vermelho e fica difícil para o médico enxergar direito o que está fazendo. No entanto, mesmo com tantas opções, não existe um fio perfeito. Cabe ao médico pesar vantagens e desvantagens de cada tipo, em cada caso. 
Nos filmes de caubói, por exemplo, existe uma cena típica: o mocinho leva um tiro e seu melhor amigo, ou a heroína, bancam médicos de pronto-socorro. Enquanto a vítima cerra os dentes de dor, eles consertam o ferimento com meia dúzia de pontos improvisados. Mas a vida nem sempre imita a ficção. No mundo real, a sutura poderia arrebentar: os músculos se contraem e se estendem, e a pele acompanha esse vaivém. Os órgãos internos também se mexem um pouco ao trabalhar. Enfim, com o passar do tempo, o fio pode não agüentar a agitação. Por isso, os cirurgiões levam em conta a elasticidade de uma linha de sutura.
Outro fator importante é a chamada memória, a capacidade do fio de voltar à forma em que estava, antes de ser usado. Assim, algumas linhas entram na sala de cirurgia enroladas, como se estivessem em carretéis. Os médicos conseguem esticá-las com os dedos; mas, quando as soltam, elas voltam a se enrolar. Às vezes, ter boa memória é defeito: "Dar pontos com esse tipo de fio é muito mais demorado, porque ele vive se enroscando nos nossos dedos", conta Hering. Em certos casos, porém, essa característica se transforma em vantagem. É quando se costura uma mucosa ou qualquer tecido inflamado do corpo - estes, uma vez cortados, tendem a inchar muito. O fio, então, fica esticado enquanto a área está inchada, mas depois os pontos podem ficar frouxos. "No caso, a boa memória, isto é, a tendência de o fio enrolar de novo, ajuda a apertar a sutu-ra outra vez", explica o cirurgião.
Um antigo temor dos médicos é a reação provocada pelo material de costura no organismo. Porque, para este, qualquer linha é uma estranha e o sistema imunológico nunca parece disposto a fazer acordos. Segundo um famoso documento do Antigo Egito, o papiro de Edwin Smith, 3 500 anos antes de Cristo já se observava que a sutura era capaz de causar infecções fatais. Em busca do fio ideal, Claudius Galeno, médico que viveu no século II a.C., em Roma, criou o chamado categute, inspirando-se em uma espécie de violino pequeno, conhecido por esse nome. As cordas do instrumento eram feitas de intestino de boi, material com que se fabrica o categute até os dias de hoje. Este fio é absorvível: o sistema imunológico o destrói sem deixar rastros, depois de uma ou duas semanas. Mas seu terrível defeito é justamente atiçar essas células de defesa, causando inflamações que facilitam a infecção por micróbios. 
Atualmente, já existem fios absorvíveis sintéticos. As reações do corpo humano a esses materiais sintetizados em laboratório costumam ser muito menos violentas. Além disso, os fios absorvíveis sintéticos levam mais tempo para desaparecer - algo entre um e seis meses. Para os pacientes, o prazo maior acaba sendo uma segurança extra. Pois diminui a chance de o fio ser absorvido pelo organismo, antes de se completar a cicatrização. Mesmo assim, os médicos preferem não correr riscos e costuram as grandes artérias do coração com fios indestrutíveis, que o acom-pa-nharão enquanto ele bater.

Em busca da linha ideal

Há cerca de trinta tipos de fios de suturas, usados pelo médico de acordo com as características do que vai ser costurado 

Absorvíveis
São os fios que vão se desfazendo aos poucos dentro do organismo, até desaparecerem como um comprimido efervescente. Empregados na sutura de órgãos internos, eles se dividem em orgânicos e sintéticos

Categute
É o fio absorvível feito de mucosa de boi. Atacado por células de defesa do organismo, ele some depois de uma ou duas semanas

Sintéticos
Os laboratórios produzem linhas feitas de substâncias que vão se dissolvendo em contato com as moléculas de água presentes no organismo

Monofilamentadas
Como o nome indica, são as linhas sintéticas com um único filamento. Nesses fios lisos, as bactérias escorregam e não se fixam 

Multifilamentadas
Já essas linhas são formadas por uma trança de vários fiozinhos, entre os quais as bactérias se instalam. A vantagem: são mais resistentes

Inabsorvíveis
Também divididos em orgânicos e sintéticos, esses fios podem permanecer para o resto da vida no organismo. São preferidos quando se trata de costurar órgãos vitais, para não haver risco de a linha se dissolver antes da hora

Orgânicos
Em geral, são fios de seda ou de algodão. Esses materiais não são absorvidos. Mas, com o tempo, ficam frouxos. Perdem o viço como uma flor que murcha

Mistos
Trata-se de uma combinação de materiais orgânicos e sintéticos, como nos fios de algodão encapados com poliéster 

Sintéticos
São fios especiais de náilon, mono e multifilamentados

Mineral
É o fio de aço, usado na cirurgia de ossos, por exemplo


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