Com libertação dos prisioneiros de Auschwitz, há 70 anos, mundo conhecia o horror
Crianças recém-libertadas em janeiro de 1945 atrás de cerca de arame farpado em Auschwitz: no fim, prisioneiros eram até cremados vivos no campo de concentração, tamanha era a pressa dos carrascos nazistas - SUB / AP
Total de 1,1 milhão perderam a vida entre 1940 e 1945 no complexo perto de Cracóvia, no Sul da Polônia
Com a chegada do exército da União Soviética, no dia 27 de janeiro de 1945, terminava para os sete mil prisioneiros que restaram no campo de concentração de Auschwitz um martírio indescritível. Durante toda a madrugada, os crematórios do campo haviam funcionado a pleno vapor, matando cerca de dez mil pessoas - as últimas de um total de 1,1 milhão que perderam a vida entre 1940 e 1945 no complexo perto de Cracóvia, no Sul da Polônia.
Na pressa de liquidar o maior número possível de prisioneiros, os homens e mulheres das SS encarregados do campo chegaram a enviar para os crematórios prisioneiros ainda vivos. Milhares de outros tinham sido transferidos, nos dias anteriores, em longas caminhadas de centenas de quilômetros, para outros campos de concentração na Alemanha, como Bergen Belsen ou Buchenwald. Com a libertação, o mundo conheceu de vez a dimensão do plano de extermínio de Adolf Hitler. A data da liberação se tornou o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto.
Exatas sete décadas depois, a vítimas serão lembradas numa cerimônia transmitida para o mundo inteiro, que contará com a presença de sobreviventes da tragédia e representantes de 28 países. Segundo Piotr Cywinski, diretor do Museu Auschwitz-Birkenau, o encontro é importante porque Auschwitz deve continuar servindo de “advertência para o futuro, a fim de que nunca mais se repita”.
Para o historiador e cientista político Arnd Bauerkämper, da Universidade Livre de Berlim, os temas Auschwitz, Holocausto e Terceiro Reich eram, antigamente, tabus na Alemanha.
- As pessoas evitavam falar porque associavam (tal assunto) ao sentimento de culpa. Era a geração dos criminosos nazistas. Já na Alemanha Oriental, comunista, o Holocausto era mais lembrado. No entanto, o foco não eram as vítimas judias, mas sim a resistência comunista — diz Bauerkämper.
Hoje, a geração dos criminosos está quase toda morta, e os atuais alemães encaram o assunto sem nenhum bloqueio. Entretanto, o relacionamento com os judeus nada tem de simples. Se o anti-islamismo cobra força por meio de movimentos como o Pegida (Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente), que organiza marchas islamofóbicas em diversas cidades alemãs, uma nova onda de antissemitismo também preocupa o país. Bauerkämper diz, porém, que o antissemitismo contemporâneo é influenciado pelo conflito entre judeus e palestinos, não tem a mesma natureza de ódio do período nazista:
- Muitos são contra a política de Israel, e não contra os judeus da Alemanha.
O VIOLONCELO QUE SALVOU UMA VIDA
Na próxima terça à noite, a Orquestra Filarmônica de Berlim fará um concerto em memória das vítimas, com leitura de trechos do livro “A noite”, em que Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz, abordou a vida no campo para onde foi deportado junto com a família quando era adolescente. O concerto também lembrará Alma Rosé, sobrinha do compositor Gustav Mahler morta no campo, onde regeu uma orquestra de moças. Um dos violinos dessa orquestra será tocado no concerto, bem como outros instrumentos que pertenceram a vítimas.
A caminho da Polônia, onde deverá participar de um evento da próxima sexta-feira, a violoncelista Anita Lasker-Wallfisch, de 89 anos, conta que tinha 18 quando chegou a Auschwitz. Seus pais tinham sido deportados e mortos dois anos antes. Ainda na rampa da seleção — momento mais temido pelos judeus, porque um movimento de mão tinha o poder de significar vida ou morte —, a jovem ouviu a pergunta que salvou a sua vida e, mais tarde, também a de sua irmã Renate, um ano mais velha.
- A encarregada da orquestra perguntou o que eu fazia antes. Eu respondi que tocava violoncelo. Ela disse que a orquestra precisava de uma violoncelista. Minha vida estava salva - lembra.
Sob a regência de Alma Rosé, que já era uma violinista famosa em Viena quando foi deportada, a orquestra de moças no campo era amada até por Josef Mengele, o abominável médico de Auschwitz. Frequentemente, Anita era solicitada por Mengele para tocar “Träumerei”, de Robert Schumann.
- Os nazistas amavam a música. Nós não tocávamos diretamente para os deportados que chegavam, mas eles nos ouviam porque treinávamos todo dia perto da rampa. Nossa música era a última coisa que ouviam antes de morrer - diz Anita.
Esther Bejerano, nascida na Alemanha, perto da fronteira com a França, em 1924, chegou a Auschwitz mais ou menos na mesma época de Anita e Renate. Quando chegou, foi indagada pela polonesa Zofia Tchaikowska, que tinha recebido das SS a ordem de tirar da rampa da morte as mulheres jovens que podiam ser “aproveitadas” na orquestra. Respondeu que sabia tocar piano, função de que a orquestra não precisava. Em seguida, veio a pergunta: “E acordeão?”
- Aí eu respondi: “acordeão também”. Eu nunca tinha pegado num acordeão, mas, por sorte, consegui tocar mais ou menos bem a música solicitada, a canção alemã “Du hast Glück bei den Frauen” (“Você tem sorte com as mulheres”). Fui aceita - lembra Esther.
Mas o preço da sobrevivência foi alto. Ela recebeu dos nazistas a ordem de tocar logo no portão de entrada do campo.
- As pessoas que desciam dos trens acenavam aliviadas, porque pensavam: “onde se toca música a situação não pode ser muito ruim”. Essa era a tática dos nazistas para que todos os “selecionados” entrassem sem nenhuma resistência nas câmaras da morte - conta. - Mas nós sabíamos o que ia acontecer. Acompanhávamos de perto a tragédia dessas pessoas. Eu tocava com lágrimas nos olhos, mas não podia me recusar ou avisar às vítimas porque tinha atrás de mim os SS com as armas apontadas.
PIOLHOS E HUMILHAÇÃO
A situação piorou em outubro de 1944, quando Alma Rosé foi morta, e a orquestra não conseguia mais atrair a simpatia dos SS. Anita e Renate foram obrigadas a participar da “marcha da morte”, no frio do inverno, para Bergen Belsen, onde morreu Anne Frank.
Renate lembra as últimas semanas de prisão:
- Em Bergen Belsen não havia mais câmaras de gás, mas as pessoas morriam de doença e fraqueza. Tínhamos piolhos, sofríamos de disenteria, e as moças não tinham nenhum produto para se proteger durante a menstruação. Mas o pior era a humilhação nas mãos dos nazistas.
Em meados de abril de 1945, as duas foram libertadas por tropas inglesas. Foram para a Inglaterra em 1946. Anita fez parte de uma orquestra inglesa até a sua aposentadoria. E o violoncelo continua sendo parte da família. O filho e o neto são violoncelistas. Já Renate se tornou jornalista, tendo sido, até a sua aposentadoria, correspondente de importantes jornais alemães.
Esther foi libertada no campo de concentração de Buchenwald, para onde a transferiram depois de Auschwitz. Ela morou algum tempo em Israel e voltou para a Alemanha, que nunca deixou de ver como sua pátria.
- O perigo da extrema direita é grande de novo - avalia.
Para esclarecer os jovens sobre os resultados do extremismo, ela dá concertos de músicas judaicas, que mistura ao hip hop. Seu próximo concerto será na semana que vem, lembrando a data.
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