sábado, 21 de abril de 2018

Luzia Homem - Parte 5 de 5 - Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 5 de 5 -  Domingos Olímpio



Pela estrada, abeirada à casa, passavam mulheres e meninos conduzindo as rações. Vinham 
da cidade ou do morro do curral do Açougue; deviam de saber de Alexandre e Teresinha, 
mas Luzia não ousou interrogá-los. Apareceu, depois, Romana à frente do grupo de 
bandoleiras desenvoltas. A roliça cabocla, de dentes aculeados não ria dessa vez.

(SEGUE ABAIXO A PARTE FINAL DESTA OBRA)


Lamentava, com as outras, a sorte de Crapiúna, que se desgraçara, apanhado na arapuca 
armada ao outro. Metia-lhes intenso dó o Belota, tão bom para elas, uma vítima da amizade, 
ou das más companhias. Nada diziam em defesa de Crapiúna; consideravam, entretanto, 
injustiça prenderem o outro, homem incapaz de fazer mal e sempre, bem procedido no 
serviço. Só tinha o defeito de jogar, mas o Governo devia saber que ele não se podia manter 
com o reles soldo; era homem como os paisanos. Ninguém vive enchendo a barriga de vento 
como os camaleões.

- Olha a Luzia! - observou uma - Nem parece que o homem dela foi solto!

- Vote! - atalhou outra - A modos que estaria mais alegre se ele ficasse na cadeia toda a 
vida.

- Qual o quê! - ponderou Romana. - Aquilo é soberbia. Quer mostrar que não faz caso de 
nada neste mundo. Impáfia ali é mata. Deixa estar que há de ser castigada.

- Aquilo, mulher, é calibre do sangue. Nem o demônio tira. Por isso é que vive sempre 
apartada das outras, metida com ela cheia de coisas como se fora uma senhora dona.

- Conheço muitas mais melhores que não se desprezam de tratar bem e falar com a gente.

- Só a Teresinha lhe caiu em graça. As duas se entendem. Deus as fez...

Esses comentários eram feitos em voz alta, para que Luzia os ouvisse; esta, porém, minada 
embora de rancor surdo a Romana que não a poupava com insinuações perversas, duma 
ironia picante, e passava por ali de propósito para molestá-la, fingia não ouvir, resistindo ao 
impulso de assaltá-la, arrancar-lhe a língua danada, esmagá-la aos pés, como réptil nojento e 
venenoso.

O grupo desapareceu. Passaram depois desconhecidos que, confundidos ao lusco-fusco, a 
saudavam com boa noite.

A velha mãe reclamava os seus cuidados, para iluminar o quarto e dar-lhe o remédio, que, 
abaixo de Deus, a salvara.

- Tiveste notícias de Alexandre? - perguntou-lhe ela, interrompendo o terço, rezado a meia 
voz.

- Não - respondeu Luzia, com fingida indiferença - Depois de saber que estava solto, fiquei 
descansada... tirei dele o juizo...

- E Teresinha?

- Sei lá!...

- Estou tão acostumada com ela, que já lhe sinto a falta quando se demora...

- Ainda é cedo. Virá quando a lua sair...

- Sabes que mais, filha? Acho-te hoje tão mudada!

- É que estou maginando no que devemos fazer, agora que não temos já obrigação de velar 
por ele. O coração me pede que vamos embora; mas não podemos. Não há remédio senão 
ficarmos. Será como Deus quiser. Eu terei sempre forças para trabalhar e viver... sem ser 
pesada a ninguém, apesar de me desprezarem e fazerem pouco de mim.

- Não fales assim, filha. Os fortes também enfraquecem quando Deus os desampara.

- Deus! Deus já não se lembra de nós, que somos cristãos, que o adoramos e amamos...



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- Tem fé nele, que é pai de misericórdia.

- Para falar a verdade, mãezinha, eu, às vezes, não acredito em nada. A desgraça endurece o 
coração. Por causa dela, os pais abandonam os filhos; maridos desprezam as mulheres e as 
criaturas viram bichos, ou ficam piores que eles. Para o fim do mundo, só falta que as 
mulheres não tenham mais filhos, pois já ninguém ama.

- E eu que pensava...

- Em quê?

- Não te quero pôr de confissão, mas... sempre desejava saber se Alexandre nunca te falou 
em casamento.

- A mim?

- Pensei que se engraçara de ti. Fiquei com a mosca na orelha desde aquele mimo dos 
cravos.

- Os cravos! É verdade que, um dia, ele me disse: "se casássemos, iríamos viver juntos em 
uma casinha da ladeira da Mata-fresca." Não respondi sim, nem não. Depois apareceu o 
impute, e foi preso. Sofri mais com essa desgraça do que ele; até parecia que todos me 
olhavam como ladra, e só o abandonei quando suspeitei que era igual aos outros homens, 
queria bem a outra e me enganava cruelmente. A última vez que vi ele, deixei-lhe os cravos 
na grade da cadeia. Essas pobres flores, guardadas no meu seio, como um breve milagroso, 
não podiam mais ficar comigo. Ele que as desse a outra. Mais tarde arrepeiidi-me: 
revoltei-me contra esse ciúme à-toa, que não me envergonhava, porque as mulheres ricas 
também se enciumam; mas era uma fraqueza. Tive ímpetos de pedir-lhe perdão. Uma voz, 
que vinha daqui, do coração, aconselhava que eu quebrasse a teima de abandoná-lo e fugir 
dele... Seria rebaixar-me, fazer como essas que continuam a querer bem ao homem que as 
despreza, surra e maltrata; seria contra o meu gênio de não dar braço a torcer, de não dar 
parte de fraca, de sofrer calada.

- E é por isso que tens andado capionga? Ah! coração de mãe adivinha.

- Era ...

- Pois foi muito feia ação desconfiar dele.

- A gente não suspeita por querer.

- Quando se quer de verdade, não há suspeita que entre no coração. Eu nunca maldei do 
defunto teu pai, quando ele passava meses ausente, comprando garrotes no Piauí. Só 
pensava que poderia apanhar moléstias, morrer sem confissão e em não estar eu a seu lado 
para tratar dele.

- Era seu marido. Alexandre não é nada meu. Ninguém me tira da cabeça que, agora, limpo 
de pena e culpa e por ser bom, caridoso e bonito homem, todas as mulheres querem bem a 
ele. Homem que sofre é, comparando mal, como Jesus Cristo. As mulheres andam atrás 
dele.


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Houve, então, longa pausa. Nos pequeninos olhos parados da velha, desanimados, 
demorava uma funda impressão de surpresa, com um brilho gasto de mágoa.

- Além disso - continuou Luzia, com um ligeiro movimento, dos ombros - Elas têm o 
mesmo direito que eu. Mas não me conformo... Pode mais do que a minha vontade essa 
suspeita, que me põe o coração escuro e mau... Sabe, mãezinha, em que estou pensando 
agora?... Um horror, que até tenho vergonha de dizer... Antes uma boa morte que descobrir 
a outra pessoa o que me passa pela mente... Olhe...

E sussurrou, com voz soturna, como um sopro de cansaço, ao ouvido da velha:

- Imagino que, neste momento ele está com Teresinha...

- Credo! filha!

- É um horror, não é?... Parece que estou vendo eles juntos, alegres e satisfeitos. Ele todo 
agradecimentos; ela cheia de si... Sim, porque se está solto a ela o deve... Ela tem direito à 
recompensa. É justo que não se lembrem de mim...

- Que maldade, filha de minha alma...

- Sim, como não hei de ser má, de ter más entranhas, se uma cobra venenosa me morde o 
coração! E sou culpada de tudo por ser desconfiada... soberba... maldita... Luizia-Homem é 
o que eu sou... uma bruta desalmada...

- Que coisa sem pé nem cabeça? Estou estranhando isso... Sossega... Teresinha, tão boa para 
nós, não tarda aí, quando a lua nascer.

- Veja aquele clarão... Já está fora.

- Ela foi cheia tresantonte. Aquilo é fogo no pasto.

Havia, com efeito, no horizonte, um clarão de incêndio, onde surgia, lentamente, um 
enorme disco.

- Qual - exclamou Luzia, com uns gestos violentos, e um amargo tom de sarcasmo - Aquela 
mesma? Onde está, está muito bem... gozando o que muito lhe custou ganhar... Não se me 
dava de apostar...

- Não faças juizo à toa - disse a velha, com energia - maldando da outra...

- Não maldo por querer. É uma coisa que me vem à cabeça e que me tira o juizo... Ah! Eu 
não era assim. Não era. Em nada pensava, nada tinha, que me afligisse ou me tirasse noites 
de sono. Não fora o seu puxado, vivia sossegada, pensando somente no dia d'amanhã, em 
ganhar a vida. Era feliz, consolada com a minha sorte.

- Não eras, não. Nunca te vi assim... São repiquetes de mau gênio que passam depressa. 
Agora, se não te dás bem aqui, se te sentes mal, iremos, como querias, para as praias. 
Raulino irá conosco...


[Linha 5750 de 6979 - Parte 5 de 5]



- Para a praia! Não vou mais, não... posso. Hei de ficar aqui até quando Deus permitir... 
Até... morrer. Quem sabe?

- Aí está! Não te entendo. Há bocadinho, falavas nessa viagem que não te saía da cabeça... 
Agora...

- Pensei melhor.

- Qual, filha! Andas tão atarantada que já não pensas coisa com coisa.

- É mesmo, mãezinha. Até parece que estou lesa. Ah! se eu pudesse esquecer tudo como se 
fora um sonho, desses que a gente dá graças a Deus e cria alma nova, quando se acabam... 
ou se desperta...

- Tu estás, mas é muito alterada. Vem dormir, anda, que Teresinha rebenta por aí sem 
demora, e as duas vão levar a noite grazinando como duas amigas.

A velha Josefa benzeu-se ao terminar o terço, interrompido pelo diálogo com a filha. 
Ergueu-se apoiada ao portal, e gemendo, tanto lhe custava distender as articulações 
emperradas; e, arrastando as grandes chinelas, dirigiu-se, claudicante, para a rede. O quarto 
estava iluminado pela candeia mortiça, crepitando na cantoneira, asseado, muito arrumado; 
as malas encostadas à parede, duas redes armadas nos ângulos, e, no chão, a esteira de 
Teresinha, a pele de carneiro, um simples tapete para se não resfriarem os pés da enferma. 
De uma corda, pendiam várias peças de roupa.

- Deixa-me - disse a velha, arfando de fadiga e afastando a filha que pretendia ajudá-la. - 
Deixa-me andar sozinha para experimentar as minhas forças. Se me acostumo a estar 
sentada e a andar pelas mãos dos outros, fico mesmo enferrujada de todo... Ah! Se Nossa 
Senhora me tirasse esta canseira, podia eu dizer que estava sarada... Isto vai devagarinho... 
Moléstia é como preaca de frecha: entra no corpo de repente, e custa a sair.

- Tenho fé - disse Luzia, mais calma e com meiguice, abrindo a rede para que ela se sentasse 
- isto vai passar.

Quem a viu e quem a vê, nota logo grande melhora.

- Tenho esperança de rolar mais alguns dias por este mundo, e só peço a Deus que me não 
faça sofrer, quando chegar a minha hora. Bem sei que não hei de ficar para semente... Tu, 
que és o meu sangue, tomarás o meu lugar, sendo o que eu fui, uma mulher de bem, 
trabalhadeira e temente a Deus.

- Não fale nisso.

- Como não fala!, se não me sai da cabeça o pensamento de morrer, deixando-te sozinha, 
sem encosto, sem proteção.

- Quando tal acontecesse, quando Deus me castigasse com essa desgraça, eu teria coragem 
para suportá-la. O trabalho não mete medo a Luzia-Homem.



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- Bate na boca, filha. Luzia, mulher e bem mulher, fraca como as outras, é o que tu és.

Ela sentia a verdade das palavras da mãe. A ansiedade, as dúvidas, as suspeitas cruéis em 
tumulto absurdo e monstruoso comprovavam a sua debilidade de mulher amorosa. 
Compreendia, então, a perversidade de Gabrina, vingando-se de Alexandre por meio da 
declaração falsa; compreendia por que havia mulheres criminosas, que se rebaixavam 
satisfeitas, que se depravavam despudoradas, arrojadas, por impulsos de paixão irresistivel, 
fora da senda do dever, olvídando honra, família e o decoro, que é o esmalte das almas boas 
para tombarem, desfigurados o coipo e a alma, até à lama do enxurro humano, como 
nojentos dejetos do vicio.

Havia, entre essas míseras, culpadas por depravação moral, desviadas pela educação, 
contaminadas pelo contágio do exemplo. A maioria, porém, era de inconscientes, sem 
imputação, dignas de perdão como pensava ela, que não podia expungir do coração os maus 
instintos, que o dominavam e ali grelavam, como ervas daninhas, à sombra propícia da 
suspeita e do despeito. E Luzia que padecera pela prisão do homem amado, que sentira nas 
próprias carnes o estigma com que o pretendiam marcar, que seria capaz de fazer por ele o 
extremo sacrifício da própria vida, seria capaz de estrangulá-lo, de arrancar-lhe as entranhas, 
de cevar-se no seu sangue, à simples idéia de vê-lo nos braços de outra mulher.

- Eu morreria descansada - disse a mãe, suspirando - se te deixasse casada com Alexandre, 
que seria incapaz de te dar má vida.

- Casada! - retrucou a filha, arrancada, de súbito, às tristes idéias. - Quem quererá se casar 
comigo?...

- Não digas semelhante coisa, tamanhas asneiras... A mim, me palpita o coração que amanhã 
terás vergonha dessas suspeitas, porque Alexandre virá e tudo passará, como se nada 
houvesse acontecido. Tu, então, arrependida, reconhecerás que, quando moça está influída 
para casar, não tem o juizo assente; vê tudo pelo avesso, de pernas para o ar, e fica mouca 
aos conselhos. No meu tempo, as raparigas não pensavam nisso; quando davam fé estavam 
na igreja com o moço escolhido pelos pais. Hoje, está tudo mudado... Meninas. que ainda 
cheiram a cueiros, já têm opinião e caprichos como qualquer mulher feita. Deus louvado, 
sempre foste muito bem procedida e obediente. Veio-te, agora, essa influência de querer 
bem... Já não veio sem tempo... já tardava e não tem nada de mal; mas, é preciso ter juizo 
para não desmanchar o que esta tão bem principiado. Vê bem o que te digo; deixa-te de 
histórias e teimas. Se procurares com uma candeia, não encontrarás outro tão do meu gosto.

- E se ele não me falar mais em casamento?

- Paciência! É porque não tinha de ser.

- E eu?...

- Tu!... Pois não és mulher forte, capaz de viver sozinha, sem ser pesada a ninguém, 
trabalhando para comer?... Não és Luzia-Homem?...

- Eu não sou nada - murmurou Luzia, abraçando a mãe e escondendo-a quase na onda de 
cabelos revoltos. - Sou uma infeliz, que está sendo castigada, sou uma doida, que não sabe 
o que faz... Perdoe-me, mãezinha da minha alma...


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- Ai que me tiras o fôlego - gemeu a velha, sufocada pela veemente carícia da filha. - Não 
reparas que só tenho de gente a figura com a pele sobre os ossos? Deixa estar que tudo há 
de sair bem, se Deus não mandar o contrário... Dá-me outra colher de remédio. Quero ver se 
pego no sono. Fecha a porta e vem dormir.

- E Teresinha?

- Deixa estar que ela não se perde. Sabe de olhos fechados o caminho da casa.

- Tem razão, mãezinha. O melhor é esperar sossegada o que tem de acontecer.

Depois de dar o remédio à mãe e acomodá-la para passar a noite, Luzia saiu ao terreiro a 
passear em roda da casa, a contemplar a lua, que ascendia em pleno esplendor. Interrogou o 
céu e a terra, silenciosos, impassíveis; espreitou em todas as direções, até aonde a sua vista 
alcançava, e prescrutou os mais leves rumores que a viração lhe trazia em rajadas violentas. 
Nada correspondia à sua ansiedade. A solidão lhe recusava alento às débeis esperanças e 
conforto às mágoas, que os conselhos maternais não conseguiram aplacar de todo. 
Entretanto, a confidência à mãe idolatrada, fora um transbordamento salutar, e ela 
experimentava a sensação de desafogo, como se o coração, libertado de cruciante aperto, 
pudesse pulsar sem se, contentar em estreito âmbito. Ligeiro torpor lhe invadia os membros 
que ela tentava em vão estimular, distendendo-os em contorções preguiçosas a lhe 
desenharem, com harmonioso relevo, as linhas vigorosas, exuberantes de graça.

- Não teimes em esperar, filha - observou a mãe - até fora de horas. - Anda, e fecha bem a 
porta. Eu não descanso enquanto estiveres aí a rondar de um lado para outro, como quem 
está rnalucando.

- Amanhã é domingo, mãezinha. O luar está tão bonito que a gente tem pena de se deitar. 
Parece dia...

- Que horas são?

- O Setestrelo já está alto e as Três Marias estão descambando. Ainda agorinha tive um 
susto! Correu uma zelação, que parecia uma tocha.

- Deus a guie. É sinal de desgraça. Anda, anda, vem para dentro, que a friagem te pode 
fazer mal.

Luzia obedeceu. Depois de fechar a porta, tomou a bênção à mãe; e, desatando os cordões 
da saia branca, estirou-se, extenuada, na esteira, onde Teresinha dormira tantas noites. E, 
todavia, mole de fadiga, não pôde conciliar, calmamente, o sono. Torcia-se, mudava de 
postura, como se o seu corpo robusto excedesse ao molde ali deixado pela amiga ausente, 
cuja recordação, engastada em seu cérebro, era o carvão da suspeita, comburente, agora, em 
brasa de remorso.

Ela imitava as desenvolturas da outra, da criatura dedicada, que renunciara a todos os seus 
hábitos para participar, com a placidez de uma consciência satisfeita, da pobreza e das 
tristezas daquele mísero lar. Julgava ouvir passos cautelosos, abafados pelo ruído das folhas 
agitadas pelo vento, e Teresinha e Alexandre lhe apareciam como espectros, exprobando-lhe 


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a injusta desconfiança, e exigindo reparação. Acusada por si mesma, Luzia não se podia 
defender; a culpa era demasiado evidente. Abandonada pelas energias musculares, que eram 
o seu estigma, oberada de vergonha, ela suplicou, em atrição, lhe perdoassem; e, como se 
um filtro purificador lhe lavasse a alma da mácula do cruel pecado, adormeceu no delicioso 
enlevo de um sonho de ventura inefável.





XXVI



Não acabara Luzia de pentear os cabelos que, depois de vendidos eram tratados com maior 
carinho, quando chegou Raulino, conduzindo a troixa de mantimentos e uma grande cabaça 
d'água.

- Muito bom dia, sa Luzia!

- Bom dia, seu Raulino. Você vem hoje carregado.

- É que aumentei a troixa com a cabaça e contrapeso que lhe mandaram.

- Para mim?

- Sinharsim. Meti os pés da rede quando vinham quebrando as barras e maginei que 
vosmecês estariam carecidas d'água. Como estou morando, agora, na cadeia nova, para 
botar sentido nas obras, de noite, enchi a cabaça na jarra e fui à cidade receber as rações 
porque as do armazém da Comissão são melhores e medidas com lavagem. Foi uma 
lembrança mandada por Deus, porque, chegando lá, topei na porta o Alexandre...

- Alexandre!

- Em carne e osso. Depois de dar-lhe mão de amigo, pedi-lhe que me aviasse depressa para 
poder eu chegar aqui cedinho. Ele, meio banzeiro, perguntou por vosmecê, pela tia Zefinha 
e pelos outros conhecidos. Coitado! Está branco, com a cara encerada, que mete dó ver, tão 
desfeita uma criatura, que vendia saúde...

- Está doente?

- Como quem passou obra de um mês enterrado naquela prisão porca e fedorenta que mais 
parece um chiqueiro que morada de cristãos.

- É horrível!

- Mas a demora foi dar notícias de vosmecê, ficou ligeiro e alegre que não parecia o mesmo. 
Mediu... Mediu é um modo de falar: fez a olho, as rações. Era o que a mão dava. Ele por 
uma banda e eu pela outra. E não fomos mais longe porque já era uma dor de consciência. O 
homem quer bem a vosmecês mesmo de verdade. Fez perguntas e reperguntas; quis saber do 


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puxado da tia Zefinha; se sa Luzia ainda estava na obra, se passou lá trabalhando o dia de 
ontem, um horror de coisas que fui respondendo só para dar-lhe gosto. Agora está como 
quer. Há males que vêm para bem. Melhorou no emprego e recebeu uma dinheirama de 
coiro e cabelo.

Luzia desembrulhava os gêneros e os arrumava, aparentando indiferença à loquacidade de 
Raulino, que falava pelos cotovelos. Os sertanejos ladinos são, em geral, admiráveis 
narradores, de imaginação acesa, fecundos em descrição, cujos menores incidentes são 
debuxados com vigor.

- Que é isto? - perguntou Luzia, indicando um guardanapo de linho amarrado nas quatro 
pontas.

- Isto é pães - respondeu Raulino. - Quando eu vinha vindo, a dona do Promotor 
chamou-me e deu-me essa frouxinha, dizendo por aqui assim: "Leve isto para Luzia, seu 
Raulino, diga-lhe que estou muito agradecida pelo trabalho da roupa para os pobres, uma 
perfeição de costura. Diga-lhe mais que apareça: desejo muito ver os meus bonitos cabelos."

Luzia baixou os olhos, e estremeceu ligeiramente.

- Ora, - continuou o sertanejo - eu não entendi bem o que a dona queria dizer, mas fiquei 
malinando que também gosta, como todo o mundo, dessa sua cabeleira, comparando mal, 
parecida com as das mães-d'águas encantadas, lavando-se na lagoa em noite de luar, com os 
cabelos de vara e meia boiando e embaraçando-se nos aguapés cheirosos, como eu vi com 
estes olhos, que a terra fria há de comer, de uma feita, que eu estava de tocaia, esperando 
patarrões brabos. A noite estava clara que nem dia. Cansado de esperar e resfriado pela 
fresca do sereno, passei por uma modorra.

Quando dei fé, ouvi o barulho de um corpo espalhando a água; levei a lazarina à cara, e, 
pensando que eram os patos, ia papocar fogo. Divulguei, então, o corpo de uma mulher, 
luzindo molhado e nadando como uma marreca. Ainda fico frio quando me lembro dessa 
visagem. Os meus cabelos se arrepiam como espinho de cuandu. Quis gritar, mas tinha um 
nó na garganta. Passou-me uma névoa pelos olhos e deixei cair a espingarda. Quando dei 
acordo de mim, afirmei bem a vista para ver o que era. A lagoa estava serena como um 
espelho. Tudo quieto. Só ouvia sapos ateimando: foi, não foi, e os cururus roncando. Não 
quis mais saber de histórias; apanhei a arma e meti o pé na carreira. Só tomei fôlego quando 
avistei a casa. Sa Luzia a modos que não me acredita?

Luzia sorriu, com branda ironia.

- Pois fique sabendo - continuou Raulino, com muita convicção - que não foi só a mim que 
ela apareceu. O Isidro, rapaz destemido e caçador de fama, também viu a mãe-d'água de 
uma feita que estava tarrafeando curimatãs. Por sinal que não apanhou uma triste piaba 
naquela lagoa, que tinha mais peixe do que água. Voltou da pescaria com as mãos 
abanando, capiongo, meio leso e contou o caso à noiva, moça (falando com o devido 
respeito) bonita como uma imagem. Ela ficou desconfiada e quis, por fina força, ir, fora de 
horas, à lagoa. O rapaz fez todo o possível para tirar-lhe da cabeça semelhante doidice; 
disse-lhe que era um perigo porque as mães-d'água são ciumentas das moças que estão para 
casar, que houvera muita desgraça por causa disso; pediu, rogou por tudo quanto havia de 
mais sagrado. Ela prometeu não ir, mas cada vez mais desconfiada teimou, porque mulher, 


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quando malda, não chega ao moirão com duas razões. Fugiu de casa quando estavam todos 
recolhidos e foi à lagoa. Não lhe conto nada. Ao amanhecer, deram por falta da moça. Foi 
um Deus-nos-acuda. Ninguém dava notícias dela. O noivo ficou como um doido; mas, 
lembrando-se da história da mãe-d'água, pôs-se a rastejar e encontrou o rasto da chinelinha 
da infeliz, bem marcado no caminho orvalhado.

Acompanhou-o com outras pessoas, também rastejadoras, e foram bater na beira d'água. 
Estavam maginando no que teria acontecido, quando ouviram uma risada de mangação. 
Pensaram que era a moça escondida para zombar deles. Bateram o mato em redor, o 
pacoval, cheio de ninhos de azulões e papa-arroz. Nada. Os passarinhos fugiam espavoridos, 
e um bando de garças, alvas como capuchos de algodão, voava remando no ar. Os homens 
olharam uns para os outros sem saberem o que fizessem. O Isidro, mais morto do que vivo, 
numa aflição de meter dó, encarou n'água como se quisesse ver-lhe o fundo. Quem dera a 
risada? Aonde fora a moça parar? Onde se escondera? O rasto ali estava provando que ela 
não voltara para trás...

- Mas... é verdade isso? - inquiriu Luzia, com terror.

- Acredite, como se estivesse vendo. Eu não sou homem de inventar, nem de dizer uma 
coisa por outra. Ouça o resto. Um vaqueiro velho foi buscar uma cuia, pregou dentro uma 
vela acesa e largou-a em cima d'água. A cuia vagou à toa, de um lado para outro, conforme 
assoprava o vento; foi, depois, seguindo para o centro, até que ficou parada, obra de 
cinquenta braças de distância. Nisto, o Isidro, num abrir e fechar d'olhos, tirou o gibão de 
coiro e largou o braço n'água. Chegando ao lugar, onde a cuia estava parada, mergulhou, e... 
Que horror!... Nem gosto de me lembrar... Num instantinho, voltou à flor d'água; tomou 
fôlego e mergulhou outra vez... Quando deram fé, ele surgiu com um corpo nos braços e 
nadou para a terra como um desesperado. Vinha como um bicho feroz, arquejando, 
enlameado, coberto de ervas e raizes encharcadas. Os outros foram ao seu encontro para 
ajudá-lo. Trazia a noiva morta. Os olhos azuis da defunta estavam esbugalhados e vidrados. 
A boca meia aberta, parecia querer falar. Tinha as mãos juntas sobre o peito, aqui, lá nela, e 
amarradas em nó cego, com as duas tranças de cabelos loiros, compridos como os seus, sa 
Luzia...

- Que desgraça! Credo! Morreu de ciúmes!...

- Que ciúmes! Foi afogada pela mãe-d'água. A malvada amarrou-lhe as mãos para que a 
pobre se não pudesse salvar, pois nadava como uma piaba. Era dela a risada que ouviram; ria 
da sua obra maldita... Depois dessa tragédia, os comboieiros, que navegam para aquelas 
bandas e passam de noite pela beira da lagoa, ouviram arrepiados de medo, aquela risada 
medonha.

- Isso é busão! - disse do quarto a velha, atenta à história.

- Ah! tia Zefa, vosmecê estava acordada?

- Desde madrugada.

- Busão ou não - ponderou Raulino - o caso é verdadeiro. Quando a gente não pode 
explicar as coisas diz que é busão; mas o fato é que há no oco deste mundo velho muita 
coisa, que nem doutores, nem padres conhecem. E, com esta, vou andando.


[Linha 6050 de 6979 - Parte 5 de 5]



Habituada às histórias extraordinárias do imaginoso sertanejo, Luzia experimentou, todavia, 
forte abalo, ouvindo a reprodução da lenda, sempre viva nas recordações da infância, dura 
quadra despercebida, de gozos facilmente olvidados, porque é bem verdade que só o 
sofrimento tem o poder de cavar na memória sulcos indeléveis. É por isso que há estranho 
encanto, espécie de amargura e de saudade em exumar tristezas, em reviver lances de 
desgraça, como narrar crises de moléstia, lutas entre a vida e a morte, os dissabores, as 
desilusões, as mágoas suportadas com resignação, com heroismo, que se nos afiguram 
obstáculos transpostos, vitórias alcançados contra a fatalidade, os cruéis ínimigos ocultos, 
intangíveis, à maneira das tiranias onipotentes das forças misteriosas que engendram, nas 
terríveis profundezas do infinito, as calamidades, os cataclismos e os assombrosos 
fenômenos que assinalam o eterno combate entre o que destrói e o que produz.

- Espere pelo café, seu Raulino - disse Luzia.

- Estava quase requerendo - tornou o sertanejo. Por essa bebida, sou como macaco por 
banana. No tempo da fartura, eu era capaz de tomar uma canada de café por dia.

- Não viu, por ai, Teresinha?

- Nharnão, pensei que ela estava aqui.

- Esperei-a toda a noite.

- Deixe estar que aquela não se perde com duas razões. 

- Sempre estou com cuidado nela.

- O Alexandre disse-me que ela esteve com ele desde que foi solto até à tardinha, quando o 
deixou com promessa de se encontrarem aqui hoje.

- Aqui! - exclamou Luzia, alvoroçada.

- Sinharsim. Pelo menos, foi o que ouvi da própria boca dele - afirmou Raulino, tirando uma 
grande pitada de caco do corrimboque de chifre de carneiro.

- É para dar que pensar - observou a velha.

- O mais certo - considerou Raulino - é ter ela ficado no quarto da Gangorra, pensando, 
talvez, que, preso Crapiúna, vosmecês não precisassem mais de companhia. Poderiam 
dormir descansadas sem receio de alguma traição do excomungado.

- Se soubesse onde era a casa, iria buscá-la, tanta falta me faz... Coitada! Aquilo só é ruim 
para si.

- É pena, sa Luzia, porque ela teve bons princípios e foi bem afamilhada. Mas, caiu-lhe em 
cima a desgraça. Eu também tive a mesma sorte. Meus avós eram gente de consideração, 
bem arranjada; e, como me vê, poderia comer em pratos de ouro, se não... Para que lembrar 
tristezas que não pagam dívidas? Tive currais cheios de vacas de leite; apanhava meus 
oitenta bezerros por ano; possuía bons cavalos de sela, e o demônio, em figura de mulher, 


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levou tudo. Hoje, ando a trabalhar para não morrer de fome, com vergonha de me dar a 
conhecer à parentalha que tenho aqui mesmo em Sobral. Fui nascido e criado na ribeira do 
Jaguaribe. Ainda é do meu sangue essa gente de Xerez. Somos todos Furnas...

- Que feio nome?

- É meio esquisito, mas é de gente muito graúda, de muitas posses e honrarias, espalhada 
por estes sertões numa parentalha, que nunca mais se acaba, como a gente dos 
Olhos-d'Agua do Pajé, os Rochas e os Cavalcantes...

Agora, vou mesmo que já tocou a primeira vez da missa do dia.

- Se mãezinha tivesse com quem ficar, iria também à missa.

- Não seja essa a dúvida, filha - observou a enferma. - Basta que me deixes ao alcance da 
mão um caneca d'água.

- E vou mesmo. Há muito que não piso na igreja. É mesmo um pecado...

Raulino despediu-se, sorvendo, com estrépito, outra pitada, e partiu no seu passo de 
andarilho, bamboleando num chouto mole, miúdo, o corpo erecto e musculoso.

Preparada a refeição da mãe, Luzia ataviou-se, com o seu melhor vestido, um roupão de 
cassa lisa, que, amarrado à cintura, lhe desenhava as formas graciosas, e saiu na direção da 
cidade.

Não era a missa um pretexto para sair; mas, ao profundo sentimento religioso se aliava a 
casquilhice inocente de exibir os belos vestidos, as últimas fantasias da arte decorativa da 
mulher, importadas do Recife, uns trajes vaporosos de renda e cambraia, feitos com 
requintes convencidos de elegância, com raro gosto, pelas adoráveis criaturas que os 
vestiam. Nada havia de censurável em que as moças da cidade, metidas durante toda a 
semana em casa, ocupadas ern trabalhos sedentários de renda e labirinto, se desforrassem 
desse retraimento nas festas religiosas, celebradas, sempre, com extraordinário esplendor. 
Imitando à gente rica, Luzia, além do intuito de cumprir um piedoso dever, nutria a 
esperança de encontrar Teresinfia ou Alexandre, obter notícias deles, ou, pelo menos, 
encurtar a distância que os separava.

Ao passar pela rua do Menino Deus, ela esmorceu a marcha; aproximou-se do armazém da 
Comissão e olhou atentamente para dentro, erguendo-se nas pontas dos pés, para ver, 
através da multidão de indigentes, aglomerados à porta, a criatura querida.

Quando avistou a cadeia, cujas grades negras estavam cheias de presos amaciados e lívidos, 
sentiu-se a moca cortada de terror. Crapiúna estava ali dentro, como fera cativa, 
devorando-a, talvez, naquele momento, com os olhos injetados por uma congestão de 
cobiça e raiva impotente.

- Moça, ó! moça! - disse um menino que se aproximou dela correndo. - Ali tem um preso 
que quer falar com vosmecê.

Luzia repeliu, com um gesto enérgico de negação, o esperto pequeno, que insistia no 


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chamado, e apressou o passo para distanciar-se da sinistra prisão, onde uma voz rouca e 
vibrante, como um rugido, a voz de Crapiúna, bradava suplicante, e amaldiçoava:

- Luzia, Luzia!... Meu coração, meu amor da minha alma, tem pena de mim! Perdoa-me pelo 
amor de Deus! Vem! É um instantinho... Não te farei mal. Vem! Só duas palavras!... Ah! 
Não me ouves; não queres saber de mim!... Mulher do diabo!... Deixa estar, safada, 
amaldiçoada, que não ficarei preso toda a vida... Nem que tu vás para o inferno...

O soldado gritava, estorcia-se delirante, agarrado às enormes barras de ferro do portão, 
brandindo-as, abalando-as com inútil esforço para quebrá-las, arrancá-las dos gonzos 
chumbados ao portal de granito.

Perseguida pelo eco dos brados de insânia desesperada, ela penetrou no templo, como num 
abrigo inexpugnável, defeso à maldade humana, à curiosidade vexatória daquela gente que, 
lá fora, a considerava criatura impassível de coração, e se apiedava do prisioneiro, cuja dor 
feroz lembrava a simpatia dos grandes infortúnios.

A imensa nave da matriz desbordava de fiéis, amontoados, em confusa massa inquieta, 
alumiada pelos jorros de crua luz, que se projetavam das arcadas laterais, recentemente 
rasgadas nas formidáveis paredes de pedra e cal, sobre os mantos alvíssimos das mulheres 
ajoelhadas. No fundo resplendia a capela-mor, o tabernáculo, esculpido pelo cinzel do 
mestre João Francisco, o entalhador, com duas séries de elegantes colunas coríntiasl, 
enleadas de parreira, a vinha do Senhor, e rematadas de folhas de acanto, todas brancas, de 
figos doirados e sustendo a arquitrave e a curva do arco que emoldurava a grande tela de 
Bindsay, a Assunção de Nossa Senhora. Mais abaixo, dominando a banquete de prata 
maciça e os bustos dos Apóstolos, emergia, dentre palmas, dentre flores, a imagem da 
Virgem da Conceição, a padroeira da cidade, coroada de oiro, de palrarias, quase escondida 
no amplo manto de veludo azul, marchetado de estrelas, bordado com carinho pelas órfãs 
da Casa de Caridade. As chamas dos círios esmoreciam na suntuosa claridade da manhã, 
como pálidas placas, dissolvendo-se em ténues fios de fumo, a sumirem-se no ambiente 
saturado de incenso e de um odor agro de cera derretida.

Luzia, sobressaltada pela imprecação minaz do soldado, cujas palavras brutais lhe 
contundiam o cérebro, pensara encontrar na casa de Deus, aos pés da Mãe Santíssima, 
refúgio e conforto à sua alma atribulada. Mas, ali mesmo a perseguia a protérvia da 
multidão. De pé, hesitante na escolha do lugar para ajoelhar-se, era alvo de olhares, que a 
lapidavam, trocados entre as mulheres, que desembuchavam a malícia atroz dos ruins 
sarcasmos. Uma crispação de surpresa, de curiosidade assanhada agitou a onda viva que a 
cercava. Raparigas e meninas, matronas e velhas, fitaram-na com insistência, imobilizadas 
de pasmo, e de boca em boca perpassou ininterrupto murmúrio, cochichado de todos os 
lados:

- É a Luzia!... A Luzia-Homem!...

Prostrada à meia-sombra de um confessionário de jacarandá, salientemente adornado de 
arabeseos estranhos, absorta em sincera prece, ela ouviu a missa, celebrada pelo vigário 
Vicente Jorge de Sousa, cuja voz sonora e forte, recitando as orações do ritual, dominava os 
pigarros, as tosses incontinentes e o choro clássico das crianças que aguardavam o batismo, 
ocultas sob os lençóis das mães, que ali mesmo, as amamentavam. Rezou pela mãe 
entrevada, por Teresinha; rendeu graças a Deus pela libertação de Alexandre; e quando se 


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ergueu a Hóstia, ao ruído de peitos percutidos, do som argentino da campainha, tangida 
pelo sacristão, José Fialho, um velho doce e respeitável, pediu ao Deus sofredor e resignado, 
ao Deus de amor e misericórdia, como Jesus pedira ao pai celestial perdão para os algozes 
que o flagelaram e o crucificaram, se apiedasse do infeliz soldado, vítima da insânia de uma 
paixão brutal. E, como se esse generoso impulso rompesse os diques à inefável caudal de 
consolação, sentiu-se alvoroçada de suavíssima alegria, desse gozo incomparável da alma 
purificado, expungida das sombras do remorso. Seus olhos, fitos no doce semblante da 
imagem da Virgem, ,e aljofraram de pranto, lágrimas de reconhecimento, porque Deus se 
compadecera de Luzia-Honlem, ouvira a sua prece.

As últimas palavras do sacerdote, recitando, de cor, o evangelho de São João, os fiéis se 
ergueram com sussurro, espraiaram-se pelo patamar, sob um sol intenso, e se dispersaram em 
todas as direções, descendo pelo suave declive do cúmulo, onde se ergue o templo, acrópole 
da cidade.

No átrio, do lado da pia d'água benta, bela concha de lioz, erecta no centro da pequena 
capela consagrada a São João Batista, dezenas de mães piedosas esperavam o batismo dos 
filhinhos, crianças sadias, nédias, sorridentes, espantadas, pequeninos seres informes, 
moribundos, esqueléticos e arroxeados, mal podendo emitir lamentoso vagido. Do outro 
lado, reunidos em grupos, estavam os nubentes, rapazes e moças, de olhos baixos, confusos, 
vexados como delinqüentes de amores criminosos, vindo pedir absolvição ao sacramento.

Luzia permaneceu, no recinto sagrado, ajoelhada, até que se esvaziou a imensa nave; e, 
quando se dispunha a sair, foi atraída pelo choro das crianças e pelo doloroso contraste das 
mães venturosas e das mães aflitas: umas, radiantes de amor; outras, tristes. acabrunhadas 
de mágoa, animando, desenganadas, as inocentes vítimas, para as quais a água lustral seria a 
extrema-unção.

- Se lhe fosse dado - pensava ela - casar como aquelas ditosas moças, realizando o supremo 
anelo da mãe doente; se o seu amor fosse, como o daquelas mães, matronas beneméritas, 
sorrindo aos filhos vigorosos, abençoado por Deus, experimentarei o inefável júbilo de 
sentir-se mulher, humanizada, completa e fecunda. Não temeria que os seus filhos 
definhassem: defendê-los-ia contra as moléstias traiçoeiras e as intempéries, inimigas das 
criaturas tenras, as flores e as crianças. Dos seus seios de Pomona correria perene manancial 
de vida, que as pequeninas bocas rosadas sorveriam, sôfregas. E as suas entranhas virginais 
latejavam em alvoroço. Havia dentro dela, a insurreição dos gérmens da vida sofreados, e 
um clamor de instintos, entoando o hino de glória à maternidade vitoriosa.

- Vamos aos batizados - disse o vigário, chegando ao átrio, revestido de roquete rendilhado 
e cingindo estola roxa, de finíssimo lavor. - Os noivos não têm pressa, que esperem - 
acrescentou, atirando por cima dos óculos de ouro, um olhar de ironia aos grupos do outro 
lado.

Ao começar a cerimônia, Luzia se esgueirou e saiu, buscando a casa pelo caminho mais 
longo e afastado da cadeia, onde Crapiúna imprecava, ameaçador e furioso.

A mãe se arrastara até à porta do quarto, onde vigiava a panela fumegante, sobre a trempe 
de pedras, e ouvia Quinotinha ler, muito devagar, e por vezes soletrando, no jornal O 
Sobralense, a notícia dos episódios da audiência da véspera.



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- Tudo isso - inquiriu a velha - está escrito aí?

- Está, sim, senhora - respondeu a rapariguinha - Aqui no fim tem um pé, que diz: 
"Alexandre, a vítima da perversa aleivosia do soldado, que, assim, desdoira a farda dos 
bravos heróis do Paraguai, companheiros de jornada gloriosa dos lendários Sampaio e 
Tibúrcio, é noivo de Luzia-Homem, a extraordinária mulher, que é uma das melhores 
operárias da construção da penitenciária."

Luzia ouviu o último tópico, e prorrompeu indignada:

- 0 quê? Pois falam de mim nas folhas?... Era só o que me faltava.

- Sim - afirmou Quinotinha sorridente - Veja!... 

E as duas repetiram a leitura; a menina transbordante de alegria; ela, confusa, quase não 
acreditando nos seus olhos, diante dos quais dançavam as colunas e letras do jornal, mal 
impresso na tipografia Miragaia, a primeira estabelecida em Sobral.

- Só vim aqui mostrar isto a vosmecês. Agora, vou indo que saí quase fugida - disse 
Quinotinha, partindo a correr.

- Vai, anda, levadinha - murmurou a velha sorrindo. - Essa menina é uma capeta. Sabe ler 
letra redonda! Vejam só!... Agora que chegaste, deixa-me descansar um pouco na rede, 
enquanto me preparas um caldo.

Luzia conduziu a mãe, e voltou a cuidar da cozinha. Atordoada ainda pela leitura do jornal, 
ficou algum tempo pensativa, percebendo, então, por que toda a gente a contemplava no 
trajeto para a igreja, por que tanto se arrebatava Crapiúna, e os cochichos das mulheres 
durante a missa. Era uma vergonha estar na folha com aquele horrível nome - 
Luzia-Homem, tanto se lhe agarrara o cruel estigma. Ao emergir desse cismar, olhou, de 
soslaio, para o caminho, e, divisando um vulto de homem que se aproximava devagar, 
correu para o quarto com a tigela de caldo para a mãe.

Era Alexandre que se aproximava, a passo indeciso e lento. 

- Ó! da casa!

- É voz conhecida - observou a velha.

- É... é... - balbuciou Luzia comovida.

- Ó! de fora! Quem é? - respondeu a enfe,rma, falando com esforço.

- Sou eu... tia Zefa.

- Eu quem?

- O Alexandre.

- Ah! meu filho! Não te dizia, Luzia?... Vai ter com ele.


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Alexandre, fora do alpendre, raspava com a unha a casca seca de um dos esteios de pau 
branco. Deparando-se-lhe a moça, parada, indecisa, à porta do quarto, avançou para ela e a 
saudou com ligeiro sorriso.

- Adeus, sa Luzia.

- Adeus, seu Alexandre.

- As duas mãos geladas, hirtas, mãos de autômatos, apenas se tocaram.

- Como está? - perguntou Luzia, de olhos baixos.

- Eu! Melhor de ontem para hoje, como quem saiu da prisão.

- É horrível!...

- Nem pode fazer idéia do que é...

- Abanque-se...

- Estou bem. A demora é pouca.Vinha saber como está tia Zefa e vosmecê.

- Boas, graças a Deus.

Houve pausa cruciante de enleio e vexame para ambos. Muito pálidos, muito comovidos, 
não sabiam mais que dizer. Luzia, por fim, rompeu o silêncio:

- O senhor viu por aí Teresinha?

- Esteve, ontem, comigo, à tardinha. Prometeu estar aqui hoje...

- Não veio desde ontem.

- É esquisito.

- É. Não acha? O senhor não quer falar com mãezinha? Pode entrar.

Alexandre entrou no quarto, e Luzia ficou só no alpendre, inteiriçada, imóvel, 
contemplando o céu, em êxtase. E assim ouviu as ruidosas manifestações da alegria da mãe, 
as perguntas precipitadas que ela dirigia a Alexandre, as palavras de consolação, afetuosas, 
sinceras, embebidas de maternal carinho.

Venha sempre ver a gente - suplicava a velha, sorrindo.

Virei, sim. Virei amanhã, se Deus quiser. Só tenho medo de importunar - respondeu 
Alexandre, com ligeiro tom de mágoa.

Sentindo Alexandre a seu lado, quando ele saiu do quarto, Luzia, arrancada de súbito à 
meditação, fez um gesto de susto. A atitude do moço era a de quem hesita em dizer alguma 


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coisa, de abrir-lhe o coração, sufocado de ternura. Vencendo, por fim, o enleio, ele tirou do 
bolso os cravos murchos, e, como criança medrosa recitando um recado, murmurou:

- Aqui estão estas flores, que a senhora esqueceu no baldrame da grade da cadeia... Adeus... 
Até outra vez...

- Até... - suspirou ela arquejante, guardando as flores no seio, e apertando-as contra o peito, 
em frenético amplexo, enquanto ele lhe voltava as costas, e partia.

- Seu Alexandre!...

O moço estacou ansioso, não ousando encarar nela.

- Quero pedir-lhe uma coisa - disse a moça, caminhando para ele, vagarosa e humilhada. - 
Não repare... no que tenho feito... Sou má de nascença... Minha sorte é fazer os outros 
padecerem... Tenha dó de mim... Peço... Peço-lhe que me perdoe...

- Luzia! - exclamou ele, numa explosão de ternura, estendendo-lhe os braços para 
ampará-la, porque ela vacilava.

- Perdoe-me - repetiu a mísera, vencida, com voz angustiada, quase à surdina, estacando 
diante de Alexandre, que sorria.





XXVI



Dias depois, soube Luzia do paradeiro de Teresinha.

Raulino contou-lhe como a encontrara, sucumbida, em amarga tristeza, a se penitenciar no 
serviço doméstico de uma família desconhecida.

- É possível - exclamou Luzia - que aquela pobre esteja vivendo de aluguel? Por que nos 
abandonou sem motivo?

- Eu não sei dizer - observou Raulino. - O que sei é que ela está servindo a uns retirantes 
ricos, aboletados na casa da fortaleza. Não me disse porquê. Ali há coisa. Se vosmecê se 
encontrar com ela, não a conhece.

- Coitadinha!

- Não é mais aquela mulherzinha espevitada e alegre. Não fala quase. A modos que lhe 
botaram mau olhado!

- Quem sabe se não a intrigaram comigo?



[Linha 6400 de 6979 - Parte 5 de 5]


- Não duvido. Há gente para tudo. Quando eu lhe disse que íamos trabalhar nas obras da 
ladeira da Mata-fresca, ela ficou calada, maginando, e disse-me por aqui assim: "A Luzia é 
feliz; vai sair deste inferno... Eu é que estou condenada por toda a vida." E, como eu lhe 
inculcasse que devia abandonar aquela gente, os patrões, para, vir conosco, abanou a cabeça, 
desanimada que metia pena... Ah! Sa Luzia! Imagine que a pobre faz todo o serviço; até 
trata de um burro velho, pele e osso, sem préstimo para nada.

- Se seu Raulino fosse comigo, iria vê-la.

- Ora, ora, ora!... É já. Que não farei eu para servir ao meu anjo da guarda? Olhe, 
benefício no meu coracão pega de galho. Vamos por detrás do cemitério velho e num 
instante, estamos lá. Pelo caminho continuaram a conversar, Luzia marchava ligeira 
movendo o corpo com flexões de faceirice, a cabeça erecta, e o semblante sereno, 
rebrilhando ao júbilo de encontrar a amiga. Raulino aligeirava a travessia, contando, com a 
avidez contumaz do sucesso, as suas maravilhas, as suas histórias.

- Sabe - disse ela, abeirando ao assunto que a preocupava naqueles dias - que vamos morar 
na ladeira?

- Já sei. O Alexandre teimou em deixar o serviço da comissão. Eu, no caso dele, não largava 
o certo pelo duvidoso. Empregado, como está, não arranjará melhor arrumação. Enfim, pode 
ser que melhore. Na serra, a gente está mais à fresca, tem água com fartura. 

- E vai para longe desse povaréu de pobres, esfomeados que cortam o coracão... Não é?

- Lá isso é verdade. O doutô, engenheiro das obras pesque é inglês ou alemão. Não sei bem 
que língua ele fala. Bota o Alexandre no mesmo emprego que aqui tem, com uma 
gratificação de três mil-réis por dia, afora a ração. Quando é a viagem?

- Por estes dias. Talvez, depois d'amanhã.

- E eu rente...

- Também vai?

- Se estou nomeado feitor!... De mais a mais, já resolvi não largar de mão a gente que me 
quer bem. Comigo vai uma troça de rapazes de primeira ordem; homens que são mouros no 
trabalho.

- E eu que tenho pena de deixar aquela casinha, onde curti tantas amarguras!

- É assim mesmo. A gente tem saudade quando abandona o poleiro antigo; mas, ao depois, 
tendo junto os seus, se conforma depressa, e as saudades voam como folhas secas tangidas 
por um pé de vento.

- Quero ver se Teresinha também nos acompanha.

- Ela é meia bandoleiro.

- Mas, tenho certeza de que me quer muito bem.


[Linha 6450 de 6979 - Parte 5 de 5]



- Não digo o contrário. Experimente... E... a propósito... Sabe que o Crapiúna fez, outro dia, 
na cadeia um rolo danado? Estava como uma fera. Pensavam até que havia perdido o juizo.

Luzia sentiu percorrer-lhe o corpo intensa crispação de terror.

- Mas eu - continuou Raulino - disse logo que aquilo era cachaça.

- Quem sabe!... Talvez não - arriscou Luzia.

Haviam chegado ao renque de casas da Leonor, que terminava na casa mal-assombrada.

- E aqui - disse Raulino, indicando o pardieiro desengonçado. - Abeiremos às pedras da 
fortaleza, Teresinha deve estar nos fundos.

Junto dos rochedos a prumo, havia uma latada de palhas de carnaúba, recentemente 
construido para servir de abrigo ao burro, que ali estava de pé, sonolento, espantando, 
devagar, com açoites da cauda pelada, as moscas que erravam sobre as chagas da sarnelha e 
das espáduas, quase cicatrizadas numas manchas negras, lubrificadas com azeite de 
carrapato. Mais adiante, alguém lavava roupa, com um lânguido bater cadenciado de pano 
molhado, algumas peças enxombradas, arrumadas, em tulha, sobre um lajedo úmido.

- Teresinha! - chamou Luzia.

Cessou o rumor de lavagem, e Luzia insistiu. 

- Teresinha, sou eu, Luzia!...

E, avançando de jacto, deparou-se-lhe a amiga, que se erguera, seminua, com uma saia a 
tiracolo, molhada, colada ao corpo.

- Que é isto? - exclamou Luzia, passando-lhe o braço nos ombros.

- Nada - suspirou a amiga, baixando os olhos, quase opacos, de infinita tristeza. - Estou 
pagando as minhas culpas...

- Ingrata! E eu que esperei, que passei noites em claro, pensando em você.

- Para que afligir os outros com a minha desgraça!

- Que desgraça! Deus teve pena de nós.

E, com um meigo gesto de ternura, conchegou-lhe a cabeça ao seio.

- Sou amaldiçoada ...

- Amaldiçoada? Que maluquice! E por isso está servindo de negra cativa? Como está 
você mudada, magra! Como ficou outra em tão poucos dias!...

- Teresa, deixe, minha filha; não te mates tanto - disse, dentro de casa, uma voz carinhosa.


[Linha 6500 de 6979 - Parte 5 de 5]



- Quem é? - perguntou Luzia.

- É... é... - balbuciou Teresinha, com os olhos trêmulos, rasos de lágrimas - É... minha mãe...

- Tua mãe?!

- Sim, ela mesma.

E contou como encontrara a família, contou as suas alegrias por se mais não achar só no 
mundo, desprezada e vilipendiada, alegrias que foram efêmeras, desfeitas pela cólera do pai 
que lhe recusara a bênção, e a tratava como estranha à família. Os carinhos da mãe, o doce 
contacto da irmãzinha, a suave Maria da Graça, que era um anjo de bondade, mal lhe leniam 
a rudez fulminante do golpe, que lhe lascara o coração, e o expusera, retalhado, à luz com as 
suas máculas, como chagas sangrentas, descascados. Desde aquele momento, horrorizada de 
si mesma, obrigada a baixar os olhos diante dos entes queridos, sabedores do seu grande 
crime, e evitando o frio olhar paterno, se consagrara inteira à redenção do passado nefando, 
pelo castigo cruel e merecido.

- Tive ímpetos - concluiu ela, aos soluços - de trepar naquelas pedras e atirar-me de lá de 
cabeça para baixo, mas... não tive coragem de morrer...

- Deixa-te disso - acudiu Luzia, com ternura - Aqui estou eu para te ajudar, para te pagar o 
muito que me fizeste, porque se sou feliz, a ti é que devo e a Deus.

Vim atrás de ti. Iremos juntos para a serra, onde vamos trabalhar.

- Não posso... E meu pai?

- Teu pai, mãe, irmã irão mais nós. Alexandre encontrará meio de arrumar todos como uma 
família. Não é possível que, depois de vivermos como duas amigas, nos separemos, talvez 
para sempre.

- Se conseguisse isso, seria um alivio para mim. Pelo menos, deixaríamos esta casa maldita, 
onde não se pode pregar olhos toda a noite. Já vivo com o corpo moído; doem-me as 
cadeiras que, às vezes, não me atrevo a torcer-me; tenho nos ouvidos um besouro a zunir 
sem parar. Quando consigo passar por uma modorra, me vêm sonhos agoniados; sonho que 
me caem os dentes, o Cazuza me arrasta pelos cabelos para me atirar num despenhadeiro, e 
acordo em meio da queda. Esta noite senti mãos frias que me encalcavam o peito, mãos de 
defunto a me sufocarem, e ouvi uma voz fanhosa a dizer coisas sem pé nem cabeça. 
Despertei com o coração a saltar pela goela. Vi, então, um vulto branco que se desmanchava 
no ar, e com um gemido surdo e... gritei... Mamãe, que passa a noite a rezar, correu a ver o 
que era... Eu estava, como quem perdeu o juízo, apontando para o fundo escuro do quarto... 
Ah! Luzia! Nem pode imaginar o que tenho sofrido...

- Coitadinha!..

- Hoje de manhã, quando mamãe contou o caso a meu pai, ele respondeu... Que foi que ele 
disse? Deixa ver se me lembro... Ah!... Não se amofine, mulher; é o remorso. Depois, 
acrescentou com voz mais branda: Veja se arranja uma retirante limpa para certos serviços, 


[Linha 6550 de 6979 - Parte 5 de 5]


para que ela não se mate tanto... Dando casa e comida, não falta quem queira trabalhar.

O burro, num acesso de impaciência, orneou.

- Está pedindo milho - observou Teresinha - Este malvado é os meus pecados. Estava quase 
morto; não se dava nada por ele. Recobrou as forças, comendo da minha mão; e, quanto 
mais o trato, mais manhoso fica. Parece de propósito para judiar comigo. Se o ponho a 
andar, empaca; fica como uma pedra; não se mexe. Outro dia ao passar por ele, mordeu-me 
de furto... E é só comigo que ele implica.

- Tem paciência, minha negra. O que estás padecendo é bem recompensado pela fortuna de 
haveres encontrado tua família.

Raulino, que estivera à parte, examinando o animal enfermo, com olhares magistrais de 
conhecedor, aproveitou o ensejo para encartar uma das suas anedotas sobre astúcias e 
manhas de burros.

- Era por volta da era de sessenta. Não me lembra bem o ano; só sei que eu era rapazote; 
pelo tope dos doze. Andava por estes sertões uma comissão de doutores, observando o céu 
com óculos de alcance, muito complicados, tomando medida das cidades e povoações e 
apanhando amostras de pedras, de barro, ervas e matos, que servem para meizinhas, 
borboletas, besouros e outros bichos.

Os maiorais dessa comissão eram homens de saber, Capanema, Gonçalves Dias, Gabaglia, 
um tal de Freire Alemão, e um doutô médico chamado Lagos e outros. Andavam 
encoirados como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de graça, o retrato da gente, 
com uma geringonça, que parecia arte do demônio. Apontavam para a gente o óculo de uma 
caixinha parecida gaita de foles e a cara da gente, o corpo e a vestimenta saíam pintados, 
escarrados e cuspidos, num vidro esbranquiçado como coalhada. Uma tarde, chegaram, ao 
pôr-do-sol, à fazenda do velho. Iam no rumo da gruta do Ubajarra. Aboletaram-se no 
copiar, derrubando o comboio, que era um estandarte de malas, instrumentos, espingardas, 
na casa dos passageiros. Depois de jantarem um bom trassalho de carne de vaca gorda que 
parecia um leitão, assada no espeto, algumas lingüiças e um chibarro aferventado com pirão 
escaldado, armaram as redes nos esteios. Veio a noite, clara como dia, sem uma nuvem no 
céu, liso como um espelho. Convidava mesmo a gente a dormir na fresca do alpendre. Ali 
pelas sete horas, disse a eles o velho: "Achava melhor vossas senhorias passarem cá para 
dentro, porque vem aí um pé d'água de alagar." Ora, os doutores, que sabiam tudo e 
adivinhavam pelas estrelas as mudanças de tempo, zombaram do aviso; saíram para o 
terreiro e olharam para o céu, sempre limpo e claro, para verem o que diziam as estrelas. O 
mais sábio deles, o doutô Capanema, disse que o velho estava sonhando com chuva, mania 
de sertanejos, que não pensam noutra coisa. Teimaram em ficar no alpendre, embora o velho 
continuasse a assegurar que se arrependeriam. Quando estavam ferrados no sono, ali pelas 
onze horas, acordaram debaixo d'água e correram com a rede nas costas, em procura de 
abrigo dentro de casa, todos admirados uns dos outros, como haviam mangado do velho. 
De manhã, antes de deixarem o rancho, foram agradecer a hospedagem, e um deles 
perguntou ao velho: "Como é que vossa senhoria percebeu sinais de chuva, que escaparam a 
nós outros científicos, envergonhados do quinau de mestre que nos deu?" O velho sorriu, e 
respondeu: "É muito simples. Tenho ali, no cercado, um burro velho que, quando se está 
formando chuva, rincha de certo modo: é aquela certeza. A chuva vem sem demora. Foi por 
isso que avisei a vossa senhoria." O tal de Goncalves Dias, pequenino, muito ladino e 


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esperto, começou a bulir com os outros, dizendo a eles: "Estamos numa terra, onde burros 
sabem mais que astrônomos." Foi gargalhada geral. Aí está - concluiu Raulino - de quanto é 
capaz um burro velho. Ninguém se fie em semelhante raça de bicho...

Dispunha-se a contar outras histórias, quando apareceram Clara e Maria da Graça, que já 
conheciam Luzia, por informações de Teresinha.

- A Teresa - disse Clara com voz lenta e meíga - quer muito bem à senhora e eu já lhe quero 
também muito pelas ausências que ela lhe fez.

- Esta é a Luzia-Homem? - perguntou a ingênua Maria da Graça - Pois é bonita moça. Não 
tem nada de homens... Não é, mamãe?...

- É apelido que lhe puseram, filhinha. Não digas mais semelhante palavra.

- Não faz mal - observou Luzia, visivelmente enleada - É assim que me tratam.

- Perdoe - balbuciou a rapariga - Pensei que era mesmo o seu nome...

E, logo, houve palestra cordial, como se fossem conhecidas de longa data. O projeto da 
mudança para a Meruoca foi acolhido com entusiástica alegria; mas faltava o essencial: o 
consentimento de Marcos. Não ousando a mulher e a filha consultá-lo, Raulino e Luzia 
resolveram procurá-lo para saberem a sua opinião.

Marcos estava na sala da frente, sentado na rede branca, enfeitada a ponto de marca, com 
vistosas ramagens vermelhas e largas varandas franjadas, arrastando na esteira, onde ele 
deixara, em desalinho, um livro, As Missões Abreviadas marcado com os óculos de oiro, o 
lenço de ganga azul e uma caixa de rapé de tartaruga, restos da abastança perdida. Com as 
largas mãos descarnadas, eriçadas de pêlos, sustendo a cabeça, vergada ao peso das idéias 
tristes que a povoavam, o velho meditava, baloiçando-se lentamente.

Raulino chegou à porta; Luzia após ele.

- Dá licença, seu capitão Marcos - disse Raulino, cortesmente.

- Quem é? - respondeu o velho tomado de surpresa.

- É de paz.

- Queira entrar...

O velho ergueu-se; examinou-os com os pequenos olhos azuis e profundos; demorou-os 
sobre Luzia alguns instantes; e, indicando as malas que, com as redes, davam a mobília da 
sala, principiou, com uma pausa triste, a voz seca, penetrante e cava:

- Abanquem-se. Não ignorem a desarrumação, pois somos com boieiros de passagem.

- Eu e esta moça somos muito camaradas de sua filha, dona Teresinha.

Marcos tornou-se lívido. Raulino continuou, com a desenvoltura de homem despachado e 


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ladino:

- E sabemos que a vossa senhoria não se lhe daria de achar uma arrumação...

- Ainda tenho algumas migalhas - atalhou o velho - para não morrer à fome...

- Sabemos; mas, não seria mau ganhar alguma, ainda que só chegue para o prato.

- Contanto que seja serviço ao alcance de minhas forças... Eu já não posso com trabalhos 
puxados...

- Não há dúvida. É serviço nas posses de vossa senhoria, nas obras do Governo...

- Onde é isso?

- Na Meruoca...

- Já lá estive, há muitos anos, em compra de farinha.

- Então está feito? Nós ficamos muito agradecidos a vossa senhoiria, que nos faz um 
favorão. Esta moça é sa Luzia-Homem. Ela, estava com acanhamento de falar.

- Eu não sou mau, dona - murmurou o velho, compungido. - Os desgostos me puseram 
assim. Era feliz, na minha fazenda, uma situação bem boa, que não me dava cabedais, mas 
produzia com que viver sem ser pesado a ninguém. Entrou-me, um dia, de repente, a 
desgraça em casa e fugiu-me para sempre, o sossego. Vi... minha santa mulher 
envergonhada; ela e a filha caçula a chorarem, escondidas pelos cantos para me não 
amargurarem. Eu mesmo, tão ralado na vida, parecia oco, sem alma, como se me houvessem 
roubado o coração. E saía atrás dele, à toa pelo mato, como um desmiolado, em procura da 
filha ingrata, que o levara. Dias e noites, passei na aflição de sentir-me atolado na lama, 
estas barbas sujas, evitando os amigos e conhecidos, que me procuravam. Eu tinha vergonha 
de encarar nos próprios bichos, quanto mais em cristãos, que conheciam a infâmia... Pedi a 
Deus que me matasse, e Deus não me ouviu... Conservou-me a vida para castigo meu, para 
que eu ficasse no mundo como um condenado... Depois, o tempo foi roendo o que me 
restava de melindre. A negra chaga fechou por fora; mas continuou alastrando por dentro... 
Afinal, a gente se acostuma a tudo... Rezei por alma da ingrata e jurei que, dali em diante, 
só existiria para mim a filha mais moça, essa inocente que não tinha culpa da crueldade da 
outra...

A voz do velho rangia-lhe na garganta, em vibrações metálicas; tinha as modulações 
pungentes do estertor de uma alma estrangulada pelo mais querido dos afetos.

- Moça - continuou ele, erguendo-se e dirigindo-se a Luzia, que o contemplava, comovida. 
- A senhora é mulher de bem; possui mãe, tem pai?... Conserve a sua honra; defendas 
mesmo a preço da própria vida... Há filhos que matam os pais... Pois há piores monstros da 
natureza - as filhas que os desonram... Os mortos deixam de sofrer; mas, os vivos, 
infamados de dor e vergonha, ficam com a alma enferma para sempre...

- Teresinha também tem sofrido tanto - observou, a medo, Luzia.



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- Não me falem nela, se querem que os acompanhe... Se a ela perdoasse, era capaz de 
matar-me outra vez - murmurou o velho, cujos olhos azuis fulgiram num relâmpago de 
cólera.

Clara ouvia de longe, atrás duma porta, esse doloroso colóquio. Não ousou entrar na sala 
para ajudar Luzia na defesa de Teresinha tanto conhecia as crises terríveis daquela mágoa 
inextinguível; mas os seus lábios trémulos, lábios doloridos de mãe amantíssima, nuns estos 
brandos de ternura, murmuravam, súplices, desconsolados:

- Pobre da minha filhinha!...

Parece que açoitam diante de mim, a minha filha do coração.





XXVIII



O sol repontava no horizonte, como um rubro e enorme disco. Surgindo de um lago de oiro 
incandescente, quando o cortejo do êxodo se pôs em marcha, pela estrada da serra.

Luzia percorreu, com enternecimentos de saudade, os recantos da casa vazia, onde ficavam 
o pilão, o jirau da latada, a trempe de pedra, os tições extintos, enterrados sob tulhas mornas 
de cinza, tristes vestígios dos habitantes que a abandonavam. Contemplou, com lágrimas 
comovidas, o lar apagado, o terreiro, em torno, limpo, varrido, as árvores mortas, os 
mandacarus carcomidos até ao alcance dos dentes dos animais vorazes, a paisagem triste, 
coisas mudas e mestas, que se lhe afiguravam companheiros de infortúnio, dos quais se 
despedia para sempre. E partiu, conduzindo, à cabeca, uma pequena troixa.

Seis possantes rapazes e Raulino iam à frente, revezando-se na condução da tia Zefa, 
estirada na rede, amarrada a um caibro longo e flexível. A bagagem, duas malas e os 
cacarecos de serventia doméstica, foi levada na véspera por outros trabalhadores e 
Alexandre, que se adiantara para preparar a nova morada, o ninho da ventura sonhada. A 
família de Marcos também partira com ele.

Ao passar a rede pelas últimas casas da Lagoa do Junco, perguntavam as mulheres 
debruçadas sobre as janelas:

- Vai vivo ou morto?

- Bem viva, graças a Deus, respondia Raulino.

- Deus a conserve. Boa viagem!

Luzia lançou demorado olhar ao morro do curral do Açougue, onde começava de alvejar, de 
reboco, a penitenciária, enleada na floresta de andaimes, quase pronta para receber a 
cumeeira. E ocorreu-lhe, como recordação piedosa, a triste sina dos condenados que ali 


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ficavam, por toda a vida, encerrados, como em sepultura de pedra e cal. Dentre eles, surgia 
o espectro minaz de Crapiúna, cujos gritos terríveis de desespero ecoavam ainda no coração 
dela, por mais que se esforçasse por varrê-los da memória, e libertar-se da implacável 
obsessão, que lhe toldava a serenidade do amor vitorioso.

Desviando os olhos do morro sinistro, que fora o seu Calvário de vilipêndio, compensado 
pela florescência dos instintos sagrados e do afeto redentor de Luzia-Homem, ela 
resfolegou aliviada, como se dentro daquelas paredes maciças, colossais, ficassem 
encarcerados o passado, as mágoas, os dissabores dos opressivos dias de miséria.

A estrada coleava pelo terreno ondulado, cômoros calvos e vales cortados pelos sulcos dos 
regatos extintos, e alteando insensivelmente, ao passo que, com a montanha, se 
aproximavam, cada vez mais nítidos, o arvoredo, as manchas peladas dos roçados estéreis, 
as cintas de granito, os talhados a pique, em precipícios medonhos, e grotões sombrios, 
destacados, num esmalte bronzeado de nebrina vaporosa.

Madrugadores serranos desciam para a cidade, dirigindo comboios de farinha, de rapadura, 
o derradeiro produto da lavoira agonizante. Troteando à cadência do ranger das cangalhas, 
eles saudavam aos viajantes, repetindo a pergunta caridosa: "Vai vivo ou morto?" - quando, 
tirando o chapéu, se afastavam para darem passagem à rede da tia Zefa.

À margem da estrada, dentre moitas de mofumbos ressequidos e juremas desgrenhadas, uns 
fios de fumo azulado erguiam-se, em tênues espirais, dos ranchos de retirantes, acordados 
àquela hora da manhã, e pedindo, plangentes, uma esmolinha pelo amor de Deus.

Depois de duas horas de marcha, interrompida a espaços, para descanso dos carregadores, 
tornou-se o solo mais acidentado em sucessivas colinas e contrafortes tortuosos, dilatados, 
como raizes colossais pelo sertão, partido em vales profundos, refrescados pelas filtrações 
da serrania, sombreados por vegetação da folhagem pardacenta, retorcido e crestada. Mais 
longe, uma descida íngreme, sobre estratificações da piçarra cortante, os levou ao sopé da 
montanha, onde começava a ladeira, e apareciam as primeiras árvores, os oitizeiros 
frondosos, cedros, paus-d'arco e angicos em floração estiolada, contornando o riacho da 
Mata-fresca, do qual restava intermitente fio d'água a deslizar sobre lages, e gotejando de 
pedra em pedra, como vagarosa lágrima. O séquito parou ao abrigo de grandes rochedos, 
rolados e amontoados em confusão, por esforço titânico. Forte aragem rumorejava encanada 
pelo boqueirão, com um ruído de mar longínquo.

- Estamos quase em casa! - exclamou Raulino. - Mas o rabo é o mais difícil de esfolar. 
Ainda temos um pedaço de ladeira de suar topete. Se pudéssemos ir pelo atalho, 
encurtaríamos metade do caminho, mas a rede não pode passar na vereda cheia de voltas, 
troncos e barrancos que é mesmo uma escada de demônios.

- Não há dúvida, seu Raulino - observou um dos rapazes, limpando, com o dedo, o suor que 
lhe perolava a fronte. - Nem que fosse carga mais pesada; nós somos cabras de talento; 
vamos bater lá num fôlego, quanto mais a tia Zefinha que é leviana como uma pena.

- Vocês são mas é uns prosas - tornou o sertanejo, ironicamente. - Vejam como estão 
melados! Com qualquer forcinha ficam botando a alma pela boca. Vamos ver se chegamos à 
Cova da Onça sem arriar. Um trago da branca está esperando a gente lá em riba. Vosmecé, 
sa Luzia, que é ligeira, vá pelo atalho que é melhor. Quando chegar no primeiro cotovelo da 


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ladeira, quebre a mão esquerda por uma vereda trilhada, que desce de cabeça abaixo; chega 
no fundo da grota; passa entre dois muros de pedra; atravessa o riacho e sobe por dentro de 
um bananal. Chegando na lombada do oiteiro, avista logo a casinha no meio de laranjeiras.

- Você já esteve aqui, seu Raulino? - inquiriu Luzia.

- Ora, ora, ora! Eu conheço o oco do mundo. Oh! Aqui vai a Teresinha. Veja o rasto dela, 
pequenino, delgado no meio que não toca no chão. Se apertar o passo ainda a pega, porque 
ela vai cansada. O rasto miúdo e encalcado mostra que vai devagar... Eu rastejo, como se 
lesse no chão, até por cima da pedra, folharal e até dentro d'água...

E, voltando-se para os carregadores:

- Vambora! Pega de jeito; acerta o passo, cabroeira mofina!... Vamo, vamo, que é meio-dia... 
Agüenta o balanço! Aonde vocês botam o pirão que comem? Até daqui a um tiquinho, sa 
Luzia...

E seguiram, em festiva algazarra, estimulando-se com gritos, graçolas que repercutiam, com 
fragor, nas quebradas do boqueirão. Raulino os tangia com ordens de comando, emitidas no 
tom gutural dos vaqueiros, voz retumbante, que ele pretendia fosse ouvida a léguas.

Luzia foi subindo após eles, sem esforço, lentamente, até à primeira volta da ladeira, daí em 
diante cavada na aresta das rochas, talhadas, a prumo, sobre o grotão profundo. Desse sítio 
agreste, descortinou o panorama do sertão, cinzento de mormaço, terminando no recorte 
azulado das serranias, ao nascente, avultando, erectos, denteados e finos, como agulhas de 
catedral gótica, os picos, que eriçam as crateras extintas dos Olhos-d'Água do Pajé. Uma 
facha verde-escuro, serpeando a perder-se no horizonte, assinalava o interminável renque de 
oiticicas seculares, marcando o sulco do rio estanque; depois espelhavam ao sol glorioso 
daquele dia abrasador, a cidade em agrupamento informe, apenas esboçado, as casas das 
fazendas abandonadas, ponteando, aqui e ali, a planície devastada e quieta, como um 
imenso pântano.

Enternecida na contemplação daquele espetáculo extraordinário, na sua tristeza de paisagem 
morta, o sertão devastado como a terra combusta do Profeta, ouvia o festivo alarido dos 
silvos das cigarras escondidas nos troncos vetustos, e hauria o ar fresco da montanha, 
embalsamado pelo capitoso perfume das imburanas, a descascarem, numa exuberância 
magnífica de seiva.

Desse enlevo, arrancou-a o brado longínquo de Raulino, gritando aos carregadores da rede. 
Do outro lado do desfiladeiro, mais longe ainda, Alexandre, do terreiro da casinha, 
respondia, radiante de alegria pela aproximação dos entes queridos.

Obedecendo à indicação do sertanejo, Luzia desceu pela tortuosa ladeira, que ia no fundo 
da grota, e, sustendo-se nos arbustos das margens para não escorregar, colhendo flores 
silvestres, parando, a revezes, para desembaraçar as vestes dos espinhos que a detinham, 
chegou à garganta, que Raulino designara por dois muros de pedra, duplo dique donde se 
despenhava, em catadupas, o riacho, quando Deus dava ao Ceará chuvas benfazejas e 
fecundantes. Erguendo a saia, ela fruiu a delícia, havia muito não gozada, de imergir n'água 
sussurrante, os pés pequeninos, as pernas roliças e musculosas, adornadas de aveludada 
pelúcia negra. Com as vestes presas ao joelho, curvou-se, colheu aljôfares cristalinos nas 


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palmas côncavas das mãos, e banhou o rosto e os cabelos, polvilhados pela poeira do 
caminho.

Interrompeu-a pavoroso grito, e uma voz, que ela, transida de terror, reconheceu, rugiu:

- Foi o diabo que te atravessou no meu caminho. É a última vez que me empatas, peitica do 
inferno!...

Luzia, na confusão da surpresa, tentou recuar, esconder-se nas fendas dos rochedos; mas, 
vencendo o impulso de cobardia, e avançando, cautelosa, deparou-se-lhe Teresinha, na outra 
margem da torrente, algemada de terror, agitando, frenética, os braços, presa a voz na 
garganta e as pernas paralisadas, chumbadas ao solo. Aquém, arquejava Crapiúna em estos 
de cólera, tentando galgar as pedras que os separavam.

- Desta vez - grunhia o soldado - nem Deus te acode, ladra ordinária. Fugi, durante a faxina 
da madrugada, para vir lavar o meu peito... Ah!... Vais ver para quanto presto, cachorra!...

Em convulsão de nervos enrijados, Teresinha estertorava agoniada, agitando, com uns 
acenos epilépticos, as mãos desarticuladas.

- Deixe a rapariga, seu Crapiúna - bradou Luzia, avançando, resoluta e destemida.

O soldado voltou-se como um tigre, ferido pelas ccstas.

Diante da moça, em postura de firmeza impávida, magnífica de vigor e de beleza, o soldado 
empalideceu, fez-se lívido, e recuou, como se um prestígio sobre-humano lhe aplacasse os 
ímpetos incoercíveis de cólera e de vingança.

- Luzia! - murmurou ele, quase súplice - Não lhe quero fazer mal... Sou um desgraçado, um 
miserável... Pedi-lhe outro dia, pelo amor de Deus, um instantinho de atenção. Não fez 
caso; não teve dó de mim... Agora vai se decidir a minha sorte...

- Arrede-se; deixe-me passar!... - intimou Luzia, com força, num tom imperativo, breve e 
seco.

- Escute-me, meu coração... Nenhum homem neste mundo lhe quer bem como eu.

- Deixe-me passar!...

- Passar!?...

Luzia avançou agressiva.

- Pensas - continuou Crapiúna, recuando, transfigurado o rosto por diabólico sorriso - 
Pensas que tenho medo de Luzia-Homem? Desgraça pouca é bobage...

E atirou-se de um salto sobre Luzia, que, empolgando-o quase no ar, o torceu, e, atirando-o 
ao chão, subjugado, comprimiu-lhe o peito com os joelhos.

O séquito parara na Cova da Onça, cerca de cem metros de altura, donde se viam, 


[Linha 6900 de 6979 - Parte 5 de 5]


distintamente, os lutadores.

Crapiúna gemia, espumava de raiva, medonho, sob a pressão inexorável que o esmagava.

- Miserável, miserável! - gritava Luzia, rubra de pudor, de cólera, procurando deter as mãos 
crispadas do soldado a lhe rasgarem o vestido - Alexandre!... Raulino!...

A voz vibrante de angústia retumbou nas quebradas do boqueirão, como um clangor de 
clarim, e a de Raulino Uchoa respondeu como um eco:

- Agüente; tenha mão nesse malvado, que já vou!...

Aproveitando um movimento da rapariga para compor o traje, Crapiúna ergueu-se, e recuou 
de salto. Arquejava de cansaço, e da boca lhe borbulhava sangrenta espuma. Os olhos, 
injetados, fulgiam de volúpia brutal, louca, fixando-se desvairados em Luzia, desgrenhada, 
o seio nu e as pernas esculturais a surgirem pelos rasgões das saias, caídas em farrapos.

Ébrio de luxúria, exasperado pela invocação de Alexandre, o monstro, recobrado o alento, 
acometeu-a, rugindo.

Luzia conchegou ao peito as vestes dilaceradas, e, com a destra, tentou lhe garrotear o 
pescoço; mas, sentiu-se presa pelos cabelos e conchegada ao soldado que, em convulsão 
horrenda, delirante, a ultrajava com uma voracidade comburente de beijos. Súbito, ela lhe 
cravou as unhas no rosto para afastá-lo e evitar o contacto afrontoso.

Dois gritos medonhos restrugiram na grota. Crapiúna, louco de dor, embebera-lhe no peito a 
faca, e caía com o rosto mutilado, deforme, encharcado de sangue.

- Mãezinha!... - balbuciou Luzia, abrindo os braços e caindo, de costas, sobre as lajes.

Raulino precipitara-se no despenhadeiro. Agarrando-se aos arbustos encravados nos 
interstícios dos rochedos, escorregando onde o penhasco se inclinava em rápido declive, 
saltando com energia indômita por sobre as fendas, pendurando-se nos cipós que 
entreteciam a floresta, atufando-se nas frondes das árvores, passando de uma a outra com 
agilidade de símio, ou deslizando pelos troncos nodosos, enleados de orquídeas, chegou ao 
fundo da gruta.

Lá, em cima, se ouviam os brados dos carregadores e os grandes gemidos dilacerados da 
mãe angustiada:

- Meu Deus, Mãe Santíssima, valei-a, salvai a minha filhinlia!...

Momentos depois, o sertanejo surgiu do matagal, perto das pedras do riacho, ofegante do 
esforço da fantástica descida, atassalhada a roupa, escoriados os braços e pernas pelos 
espinhos, as mãos feridas, ensanguentadas.

Luzia, hirta e lívida, jazia seminua. Nos formosos olhos, muito abertos, parecia fulgir ainda 
o derradeiro alento. Os cabelos, numa desordem, escorriam pela rocha, forrada de lodo, e 
caíam no regato, cuja água, correndo em murmúrio lâmure, brincava com as pontas crespas 
das intonsas madeixas flutuantes. Na destra crispada, encastoado entre os dedos, encravado 


[Linha 6950 de 6979 - Parte 5 de 5]


nas unhas, extirpado no esforço extremo da defesa, estava um dos olhos de Crapiúna, como 
enorme opala, esmaltada de sangue, entre filamentos coralinos dos músculos orbitais e os 
farrapos das pálpebras dilaceradas. Sobre o seio, atravessado pelo golpe assassino, 
demoravam, tintos de sangue, como se reflorissem cheios de seiva, cheios de fragância, os 
cravos murchos que lhe dera Alexandre.

Raulino recuou, cortado de terror, ante o cadáver; e, num turbilhão de cólera, rugiu, 
arrepiado, apertando os dentes, e, com uns gestos, que eram crispações medonhas de fera, 
esquadrinhou o terreno, buscando e rebuscando o criminoso.

Crapiúna, ganindo de dor, estorcia-se, erguia-se, nuns movimentos loucos, comprimido, sob 
as mãos, o rosto mutilado; caía e erguia-se de novo, até que rolando de pedra em pedra, se 
sumiu no precípício...

Voltando, então, para junto do corpo de Luzia, Raulino curvou-se compungido; apalpou-lhe 
o peito, ainda morno; e, aproximando os lábios da divina cabeça da heroína, gemeu com 
intensa amargura, as palavras doloridas de unção aos moribundos:

- Jesus!... Jesus!... Seja contigo!... Jesus, Maria e José!...


FIM - FIM - FIM


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Luzia Homem - Parte 1 de 5 -  Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 2 de 5 -  Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 3 de 5 -  Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 4 de 5 -  Domingos Olímpio


Luzia Homem - Parte 5 de 5 -  Domingos Olímpio



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