segunda-feira, 24 de julho de 2017

A Arte da Capoeira - Parte 2 de 3 - Camille Adorno


A Arte da Capoeira - Parte 2 de 3 - Camille Adorno
A Arte da Capoeira -  Camille Adorno


Inclusive nas escolas e quartéis, surgindo aqui uma nova representação
social para essa prática, vista agora como "herança da mestiçagem no
conflito das raças" e, portanto, "nacional" (Moraes
Filho,1893/1979:257).




Muitos dos nossos escritores empolgaram-se com a Capoeira e
seus adeptos. Joaquim Manuel de Macedo, em Memórias de Um
Sargento de Milícias; Aluízio de Azevedo, em O Cortiço, são alguns dos
que buscaram retratar cenas do período em que capoeiras pontificavam,
nas suas lutas.
Desde o Império (1822-1889) a presença da Capoeira na vida
brasileira foi  acentuada. Consta que possuía D. Pedro I um capoeira
como guarda-costas, servindo-lhe de proteção em suas andanças
noturnas. E não eram poucos os nobres que dominavam recursos da
Capoeira. Os negros encarregados dos serviços domésticos muitas vezes
ensinavam aos sinhozinhos alguns de seus segredos. Cada vez mais a
luta era praticada, rompendo todas as barreiras.


O capoeira dessa época tinha por escola as praças, ruas e
corredores. Formavam bandos perigosos, que se davam a conhecer
entre si pelas características dos chapéus, lenços, roupas, fitas e tantas
convenções quanto era possível imaginar.
A criminalização da capoeira não foi consensual mas significou a
vitória política de uma determinada facção da classe dirigente nacional.
Em 11 de outubro de 1890 foi promulgada a Lei nº 487, de
autoria de Sampaio Ferraz, proibia a prática da capoeira e previa
punição de 2 a 6 meses de trabalho forçado na ilha de Fernando de
Noronha. No artigo 402, que tratava "Dos vadios capoeira", lia-se:
'Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e
destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em
correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão
corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou
incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena - prisão celular de dois
a seis meses. Parágrafo único: é considerada circunstância agravante
pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças se
imporá a pena em dobro".
Como não eram apenas os negros e mestiços que praticavam a
Capoeira, a lei acabou atingindo importantes pessoas da nobreza.
Exemplo disso foi o conhecido caso de José Elísio dos Reis. Seu pai era
o conde de Matosinhos, proprietário do jornal O País. Conhecido de
todos como praticante da Capoeira, Juca Reis, antes da aprovação da lei
estava em Portugal. Quando retornou ao Brasil foi preso por Sampaio
Ferraz. A sua liberdade foi conseguida graças à influência de Quintino
Bocaiúva, ministro das Relações Exteriores no primeiro governo
republicano brasileiro. Quintino ameaçou renunciar ao cargo se Juca
Reis não fosse liberto. O ministro teve seu pedido aceito pelo marechal-
presidente Deodoro: o capoeira Juca Reis foi solto e retornou a
Portugal.
Os capoeiras foram perseguidos por todo o século XIX. Se por um
lado a sua ação provocava verdadeiro pânico numa parcela da
população - especialmente nas elites! -  que apoiava a repressão
policial, muita gente desconfiava dessa  ação. O texto publicado no
jornal Diário de Notícias, da cidade do Rio de Janeiro, em 19 de janeiro
de 1890, é uma amostra irônica da reação popular à violenta campanha
policial:
"É polícia das primeiras/É levadinha do diabo/Deu cabo
dos capoeiras/Vai dos gatunos dar cabo/Já da navalha
afiada/A ninguém o medo aperta/Vai poder a
burguesada/Ressonar com a porta aberta
A ir assim poderemos/Andar mui sossegadinhos/Nessa
terra viveremos/Como Deus com seus anjinhos/Ai!
Assim continuando/A polícia hemos de ver/As suas
portas fechando/Por não ter mais que fazer"
Melo Moraes Filho, em Festas e Tradições Populares do Brasil
(1893), fala a respeito dos grupos que formavam - as maltas - e suas
proezas ao tempo do Império: "A categoria de chefe da malta só atingia
aquele cuja valentia o tornava inexcedível e de chefe dos chefes o mais
afoito entre estes, mais refletido e prudente.
'Os capoeiras, até quarenta anos passados, prestavam juramento


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solene e o lugar escolhido para isso eram as torres das igrejas. As
questões de freguesia ou de bairro não os desligavam, quando as
circunstâncias exigiam desagravo comum; por exemplo: um senhor, por
motivo de capoeiragem, vendia para as fazendas um escravo filiado a
qualquer malta; eles reuniam-se e designavam o que havia de vingá-lo.
'No tempo em que os enterramentos faziam-se nas igrejas e que
as festas religiosas amiudavam-se, as torres enchiam-se de capoeiras,
famosos sineiros que montados na cabeça dos sinos acompanhavam
toda a impulsão dos dobres, abençoando das alturas o povo que os
admirava, apinhado nas praças ou nas ruas."
Em seguida, passa o memorialista a descrever alguns movimentos
da Capoeira, com riqueza de detalhes que nos leva a supor não lhe
serem desconhecidos os segredos dessa arte: "A capoeiragem antiga e
a moderna tem a sua gíria e sua maneira de expressão, pela qual são
compreendidos os lances do jogo. Deveras arriscados, difíceis e
dependendo de rapidez e hábito, não é sem longa prática que
conseguem tais contendores fazerem-se notáveis. Para darmos uma
pálida idéia da gíria e do jogo, ajustamos por aquela algumas evoluções
deste. Um dos preparativos mais rudimentares do capoeira é o 'rabo de
arraia'. Consiste ele na firmeza de um pé sobre o solo e na rotação
instantânea da perna livre, varrendo a horizontal, de sorte que a parte
dorsal vá bater no flanco do contendor, seguindo-se após a cabeçada ou
a rasteira, infalíveis corolários da iniciação do combate.
'Por 'escorão' entendem eles amparar inesperadamente o pé de
encontro ao ventre do adversário, o que é um subterfúgio que difere do
'pé de panzina', que é o mesmo resultado porém feito não como um
recurso do jogo, mas deixando à destreza tempo de varrê-lo.
'O 'passo a dois' (gíria moderna) é um sapateado rápido que
antecede à cabeçada e a rasteira, da qual o acometido se livra armando
o 'clube x', que quer dizer o afastamento completo das tíbias e união
dos joelhos, que formando larga base, estabelece equilíbrio, recebendo
no embate o salto da botina, que ainda ofende o adversário.
'O 'tombo da ladeira' é tocar no ar, com o pé, o indivíduo que
pula; a 'rasteira a caçador' é o meio ginástico de que servem-se para -
deixando-se cair sobre as costas, ao mesmo tempo que firmam-se sobre
as mãos - derrubarem o contrário imprimindo-lhe com o pé violenta
pancada na articulação tíbio tersianal."
Melo Moraes traça um retrato de fatos sociais do Rio de Janeiro e
da intensa repressão policial à Capoeira, associada à criminalidade.
"As escolas de capoeiragem multiplicavam nesta cidade,
pertencendo cada turma de discípulos a esta ou aquela freguesia.
'Desde a dos caxinguelês, meninos que iam à frente das maltas
provocar inimigos, até a dos mestres que serviam para exercícios
preparatórios, esses cursos regulares funcionavam sendo os mais
freqüentados o da Praia do Flamengo, o do morro da Conceição, o da
Praia de Santa Luzia, não falando nas torres das igrejas - ninhos
atroados de capoeiras de profissão.
'Alistados nos batalhões da guarda nacional os capoeiras
exerciam poderosa influência nos pleitos eleitorais, decidiam das
votações, porque ninguém melhor do que eles arregimentavam votos,


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emprenhavam urnas, afugentavam votantes, etc.
'Muitos dos comandantes dos corpos e grande parte dos
aficionados entendia do jogo, ou eram habilíssimos na arte.
'Os desafios entre as freguesias transmitiam-se por meio de
pancadas de sino convencionais e em horas determinadas. Os combates
davam-se nas praças, nas ruas, em sítios mais ou menos distantes e
desertos.
'Às vezes, interrompendo a marcha de uma procissão, o desfilar
de um cortejo, ouvia-se, aos gritos das senhoras correndo espavoridas,
dos negros levando senhores moços ao colo, dos pais de família pondo
no abrigo a mulher e os filhos, o horroroso 'Fecha! Fecha!'. Os
caxinguelês voavam na frente, a capoeiragem disparava indômita,
seguindo-se aos distúrbios cabeças quebradas, lampiões apedrejados,
facadas, mortes, etc...
'A polícia, amedrontada e sem força, fazia constar que perseguia
os desordeiros, acontecendo raríssimas vezes ser preso este ou aquele
que respondia a processo.
'Pertencendo à segunda fase da capoeiragem no Rio de Janeiro,
essas cenas tiveram lugar durante a administração policial de Eusébio
de Queiroz e de seus sucessores, desaparecendo totalmente com a
guerra do Paraguai, que não acabou somente com os capoeiras, porém
assinalou o termo do patriotismo brasileiro."
Em seguida o cronista passa a reportar-se às personalidades
eminentes da época que se notabilizaram também pelos conhecimentos
do jogo da Capoeira.
"É geralmente sabido pela tradição que no Senado, na Câmara
dos Deputados, no Exército, na Marinha, no funcionalismo público, na
cena dramática e mesmo nos claustros, havia capoeiras de fama, cujos
nomes nos são conhecidos.
'Nas garrafadas de março, um dos nossos mais eloqüentes
oradores sacros fez prodígios nesse jogo, livrando-se de seus
agressores; recordamo-nos de um frade do Carmo que por ocasião de
uma procissão de enterro, debandou a cabeçadas e rasteiras um grupo
de indivíduos imprudentes que o provocaram.
'Pergunte-se por aí qual o ator cuja valentia e destreza como
capoeira eram respeitados, e acreditai que a popularidade precisaria
muito para atingir-lhe o pedestal.
'Quando estudamos no Colégio de Pedro II foi nosso lente de
francês o bacharel Gonçalves, bom professor e melhor capoeira.
'O Dr. D. M., jurisconsulto eminente e deslumbrante glória da
tribuna criminal, cultivou em sua mocidade essa luta nacional,
entusiasticamente levada a excessos pelo povo baixo, que a afogou nas
desordens, em correrias reprováveis, em homicídios horrorosos.
'Pode-se dizer que de 1870 para cá os capoeiras não existem e se
um ou outro, verdadeiramente digno desse nome pela lealdade antiga,
pela confiança própria e pelo conhecimento da arte resta por aí, veio
daquele tempo em que a capoeiragem tinha disciplina e dirigia-se a
seus fins.
'Navalhar à traição, deixar-se prender por dois ou três soldados e
espancar a um pobre velho, ser vagabundo e ratoneiro, nunca


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constituíram os espantosos feitos das maltas do passado, que brigavam
freguesia com freguesia, disputavam eleições arriscadas, levavam à
distância cavalaria e soldados de permanentes quando intervinham em
conflitos de suscetibilidade comum.
'O capoeira isolado, naqueles tempos, trabalhava, constituía
família, a vadiagem lhe era proibida, não era gatuno, afrontava a força
pública e só se entregava morto ou quase morto.
'Como fizemos ver em princípio, as turmas militantes
condensavam as classe operárias e os escravos, expressão nítida da
capoeiragem de rua."
Em outro momento da sua narrativa, Melo Moraes  fala da
presença de portugueses e demais cidadãos no meio da Capoeira, à
época assimilada como costume popular.
"Não sendo estranhos ao jogo, portugueses havia que se aliavam
às maltas avulsas, distinguindo-se entre eles homens de inaudita
coragem e espantosa agilidade.
'Luzidas companhias de batalhões da guarda nacional, de que
tinham orgulho briosos comandantes, reuniam magnífica rapaziada, de
onde eram tirados praças para diligências perigosas, servindo
igualmente para as campanhas eleitorais.
'A prova de que a capoeiragem entrava nos nossos costumes está
em que não havia menino que não botasse o boné à banda e soubesse
gingar, nem escolas que se não desafiassem para brigar, sendo de data
recente as lutas entre os famosos colégios Sabino, Pardal e Vitorio."
      Mello Moraes Filho dá uma idéia precisa da simulação e
dissimulação da intenção durante o jogo de capoeira:
      "O capoeira, colocado em frente a seu contendor, investe, salta,
esgueira-se, pinoteia, simula, deita-se, levanta-se e, em um só instante,
serve-se dos pés, da cabeça, das mãos, da faca, da navalha, e não é raro
que um apenas leve de vencida dez ou vinte homens" .
Ao encerrar a reportagem da Capoeira no começo do século XIX,
traça Melo Moraes o perfil do famoso capoeira Manduca da Praia.
"O Manduca da Praia era um pardo claro, alto, reforçado, gibento
e quando o vimos usava barba crescida em ponta, grisalha e cor de
cobre.
'De chapéu de castor branco ou de palha ao alto da cabeça, de
olhos injetados e grandes, de andar compassado e resoluto, a sua figura
tinha alguma coisa que infundia temor e confiança.
'Trajando com decência, nunca dispensava o casaco grosso
comprido, grande corrente de ouro que prendia o relógio, sapatos de
bico revirado, gravata de cor com anel corrediço, trazendo somente
como arma uma bengala fina de cana da Índia.
'O Manduca tinha uma banca de peixe na praça do Mercado, era
liso em seus negócios, ganhava bastante e trabalhava com regalo.
'Constante morador da Cidade Nova, não recebia influências da
capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte,
sendo capoeira por sua conta e risco.
'Destro como uma sombra, foi no curro da rua do Lavradio, canto
da do Senado, onde é hoje uma cocheira de andorinhas, que ele iniciou
a sua carreira de rapaz destemido e valentão, agredindo touros bravios


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sobre os quais saltava, livrando-se.
'Nas eleições de S. José dava cartas, pintava o diabo com as
cédulas.
'Nos esfaqueamentos e sarilhos próprios do momento ninguém
lhe disputava a competência.
'Um dia, na festa da Penha, o Manduca da Praia bateu-se com
tanta vantagem contra um grupo de romeiros armados de pau, que
alguns ficaram estendidos e os mais inutilizados na luta.
'O fato que mais o celebrizou nesta cidade remonta à chegada do
deputado Sant'ana, cavalheiro distintíssimo e invencível jogador de
pau, dotado de uma força muscular prodigiosa.
'Sant'ana, que gostava de brigas e não recuava diante de quem
quer que fosse, tendo notícia do Manduca, procurou-o.
'Encontrando-se os dois, houve o desafio, acontecendo àquele
saltar aos ares ao primeiro canelo do nosso capoeira, depois do que
beberam champagne ambos e continuaram amigos."
Outro capoeira famoso no começo do século XX  foi Prata Preta,
um dos principais líderes populares da Revolta da Vacina (1904), que se
notabilizou por seus confrontos com a policia durante o conflito. Sobre
essa época é interessante a leitura do relato de Lima Campos, em artigo
intitulado "A Capoeira", publicado em 1906 na Revista Kosmos.
trazendo o registro de um flagrante testemunhado pelo jornalista: "A
alma do capoeira é o olhar; uma esgrima sutil, ágil, firme, atenta, em
que a retina é o florete flexível, penetrante, indo quase devassar a
intenção ainda oculta,  o desejo apenas pensado, voltada sempre para
o adversário, apanhando-lhe todos os movimentos, surpreendendo-lhe
os mais insignificantes ameaços, para desviá-los, em tempo, com a
destreza defensiva dos braços em rebates lépidos ou evitá-los com os
desvios laterais e os recuos saltados do corpo, leve, sobre ponta de pés,
até facultar e perceber a aberta e entrar, 'para ver como é, para contar
como foi', segundo o calão próprio.
      'O capoeira não inutiliza unicamente o adversário pelos seus
golpes; inutiliza-o também, e pior, pelo ridículo.
      'Não lutava em silêncio, proferia sempre termos grosseiros
visando exasperar, ridicularizar o contendor. Na churumela (cabeçada),
por exemplo, que eles denominavam 'levar a torre do pensamento ao
aparelho mastigante do poeta', o adversário era atingido com a cabeça
num golpe vigoroso, desfechado embaixo do queixo, projetado no
espaço e finalmente, esborrachava-se de ventre no chão, ou em
cambalhotas com pernas para cima".
O jornalista e escritor Coelho Neto (1864-1934),  professor de
Literatura e Teatro, formado pela Faculdade de Direito do Largo do São
Francisco, autor de mais de cem obras literárias e um dos fundadores
da Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 2), também praticou a
Capoeira. Em 'O Nosso Jogo', um dos capítulos do seu livro Bazar,
também registra suas impressões sobre  as  características da arte no
seu tempo:
"O que matou a capoeiragem entre nós foi... a navalha. Essa
arma, entretanto, sutil e covarde, raramente aparecia na mão de um
chefe de malta, de um verdadeiro capoeira, que se teria por desonrado


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se, para derrotar um adversário, se houvesse de servir do ferro".
Em outra passagem Coelho Neto esclarece que a arma era
descartada pelo capoeira que sabia aplicar com eficiência os golpes,
tirando de ação o adversário: "O capoeira digno não usava navalha:
timbrava em mostrar as mãos limpas quando saía de um turumbamba
(briga, desordem). Generoso, se trambolhava (aplicava queda violenta) o
adversário, esperava que ele se levantasse para continuar a luta porque
"não batia em homem deitado"; outros diziam, com mais desprezo, "em
defunto".
É interessante observar os contornos do perfil do capoeira carioca
descrito por Coelho Neto: 'O capoeira que se prezava tinha ofício ou
emprego, vestia com apuro e, se defendia uma causa, como aconteceu
com a do Abolicionismo, não o fazia como mercenário.
'Quanto às provas de superioridade da capoeiragem sobre os
demais esportes de agilidade e força são tantas que seria prolixa a
enumeração.
'Além dos feitos dos contemporâneos de Boca Queimada e
Manduca da Praia, heróis do período áureo do nosso desestimado
esporte, citarei, entre outros, a derrota de famoso jogador de pau,
guapo rapagão minhoto, que Augusto Mello duas vezes atirou de
catrambias (desprezo) no pomar da sua chacarinha em Vila Isabel onde,
depois da luta e dos abraços de cordialidade, foi servida vasta feijoada.
'Outro: a tunda infligida por Zé Caetano e dois cabras destorcidos
a grupo de marinheiros franceses, de uma corveta Palas. A maruja não
esteve com muita delonga e, vendo que a coisa não lhe cheirava bem
em terra, atirou-se ao mar, salvando-se a nado, da agilidade dos três
turunas, que a não deixavam tomar pé".
  O escritor Manoel Querino,  no Jornal de Notícias, da cidade de
Salvador, na Bahia, do dia 2 de junho de 1914, em depoimento
intitulado 'A Combuca Eleitoral' trata das disputas entre liberais e
conservadores e do papel dos capoeiras a soldo dos partidos, na ocasião
em que se realizavam as eleições.
"O capoeira fora sempre figura indispensável nos pleitos
eleitorais, fazendo respeitar a opinião de correligionários, provocando a
desordem, sempre que se fazia necessário; espancando o adversário e
contribuindo desse modo para a formação da Câmara dos Fagundes."
Prosseguindo em sua narrativa Manoel Querino descreve o dia do
pleito eleitoral: "Chegado que fosse o dia da eleição, estavam as hostes
preparadas para a luta, cada partido arregimentava o seu pessoal,
composto de votantes, turbulentos, capoeiras e aderentes. Todos a
postos, começava a chamada, no campo da matriz da paróquia. Na
ocasião aprazada, dava-se um conflito, era o meio de perturbar a
eleição. Chamava-se um cidadão para votar; o grupo político que
dispunha de maior número de desordeiros, gritava: - É fósforo! - É!    
- Não é!... E fechava-se o tempo... Gritos, protestos, doestos, uma
vozeria ensurdecedora, e, por fim, recorriam ao argumento decisivo - o
cacete; e o sangue dos partidários ensopava as lajes do templo, sendo
alguma vez interdito pela autoridade diocesana.
'Aproveitando a confusão do momento, o votante mais sagaz
introduzia na urna um maço de chapas. Chamava-se esta ação -


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emprenhar a urna. De modo que a vitória das urnas estava na razão de
quem dispunha dos maiores elementos de desordem, fossem paisanos
ou militares."
O mesmo sistema que gerava a miséria provocava as turbulências
no contexto social: fabricava aquele estado de coisas. Os capoeiras
faziam uso da violência, indistintamente, contra membros de uma
sociedade que sobrevivia às custas da escravidão, a violência
institucionalizada sempre gerando mais violência. Enquanto isso, a
Capoeira fazia mais adeptos, em todas os segmentos sociais. Segundo
Francisco Pereira da Silva, o escritor Coelho Neto era exímio na arte:
"Ágil na pena quanto destro na rasteira, duas vezes publicamente se
valeu do ensino da capoeiragem recebido nos tempos de rapaz. Josué
Montello refere-se a um destes episódios, precisando a data de 6 de
agosto de 1886, quando à noite em meeting de abolicionistas no Teatro
Politeama do Rio de Janeiro, discursava Quintino Bocaiúva. A certa
altura, capoeiristas a soldo dos escravocratas irrompem das galerias e
armam tremendo salseiro. Luzes apagadas, vem Coelho Neto e realiza a
incrível proeza de desarmar o chefe do bando, que outro não era senão
Benjamim - o mais temível capoeira carioca."
De outra feita, o mesmo romancista Coelho Neto, em episódio
também narrado por Josué Montello e aqui transcrito de Pereira da
Silva, demonstrou seus atributos de destreza e valentia: "Na Academia
Brasileira de Letras, fizera o tribuno maranhense referência em
desfavor de um colega de imortalidade. Dias depois lhe apareceu um
filho do suposto ofendido exigindo satisfação. Gravemente
desentenderam-se e o jovem, que era atleta, não retardou seu golpe de
jiu-jitsu. Instantaneamente e com agilidade felina, partiu Coelho Neto
para o rabo de arraia levando o insolente a beijar o pó da calçada e a
sumir no oco do mundo..."
Do capoeira da Bahia, no século passado, traçou Manoel Querino
um perfil da sua figura inconfundível, que em muito se assemelhava à
do seu contemporâneo capoeira do Rio de Janeiro: "Era um indivíduo
desconfiado e sempre prevenido. Andando nos passeios, ao
aproximar-se de uma esquina tomava imediatamente a direção do meio
da rua; em viagem se uma pessoa fazia o gesto de cortejar a alguém, o
capoeira, de súbito, saltava longe, com a intenção de desviar uma
agressão, embora imaginária.
'Eram conhecidos à primeira vista pela atitude singular do corpo,
pelo andar arrevesado, pelas calças de boca larga, ou pantalona,
cobrindo toda a parte anterior do pé, pela argolinha de ouro na orelha,
como insígnia de força e valentia, e o nunca esquecido chapéu à
banda."
Muitos foram os capoeiras que deixaram seus nomes e feitos
inscritos nas páginas dos cronistas da história, deixando evidente a
aptidão para feitos de coragem e bravura. Exemplo disso são as páginas
do jornalista e escritor Monteiro Lobato, cronista e romancista, criador
do Sítio do Pica-pau Amarelo e seus personagens, obra que o
imortalizaria como maior nome da literatura infantil brasileira. O seu
testemunho sobre o 22 do Marajó foi transcrito por João Lyra Filho, em
Introdução à Sociologia dos Desportos: "Trata-se de um marinheiro,


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mestre em desordens, habituado a revirar de pernas para o ar
quiosques portugueses; imperava na Saúde, onde suas proezas de
capoeira exímio andavam de boca em boca. Tantas fez que o governo o
mandou para o Norte, onde foi servir no Alto Amazonas. Ali aclimado,
tornou-se rapaz sereno. Com boa pinta, ferrou namoro com a mulher
de um ship-chandler, tornando-se seu amante. Mas o trio teve pouca
duração; o marido enganado morreu. O marujo casou-se com a viúva,
herdeira de bons pacotes, pediu baixa e seguiu para a Europa. No velho
mundo, permaneceu dois anos, ao cabo dos quais veio morar no Rio de
Janeiro.
'O marinheiro já era outro; transformado em perfeito cavalheiro,
embasbacava a rua do Ouvidor com o apuro dos trajes, as polainas de
gala, as luvas de pelica e a cartola café-com-leite. Ninguém sabia quem
ele era, embora parecesse um fidalgo. Impávido, petroneando de
monóculo, olhava de cima. De hábitos certos, todos os dias passava pelo
largo São Francisco, assim como paca pelo carreiro. O logradouro era
ponto de encontro preferido por alguns rapazes grã-finos, fortemente
despeitados ante a esmagadora elegância do desconhecido. Este passou
a ser visto como um rival, sobretudo no jogo lúdico do namoro com as
donzelas. Os rapazes decidiram quebrar a proa do novo êmulo. Certa
vez em que este passava, mais imponente do que nunca, coincidiu
aproximar-se da roda um capoeira 'mordedor', que se gabava de ser um
mestre em soltas. 'Solta' era uma cabeçada desferida no adversário,
sem encosto da mão.
'Veio a hora da 'mordida' e com ela a hora da forra. Os rapazes
selaram o trato: o capoeira embolsaria cinco mil réis, desde que
sapecasse uma solta naquele freguês de monóculo. 'É pra já', disse o
valentão, já indo ao encontro do rival. Postou-se perto, na calçada por
onde caminhava o '22', desperdiçando passos de lorde e esticado dentro
do croisô confeccionado em Londres Um, dois, três. Quando o antigo
marujo o defrontou, o capoeira avançou e despejou-lhe primorosa
cabeçada. Mas o adversário, surpreendido, quebrou o corpo e mandou a
cabeçada do agressor beijar a parede. Ao mesmo tempo, com um pé
bem manobrado, plantou-o no chão com uma rasteira de placa. O
'mordedor' ergueu-se, tonto e confuso, para desabar, novamente, com
outra rasteira de estilo. De agressor passara a agredido; desnorteado,
deu sebo às canelas e foi amansar o galo da cabeça a cem passos
adiante.
'O Petrônio ficou por ali mesmo, onde estava, dando-se ao
conserto do laço da gravata. Mas não perdeu o ímpeto transformado no
desprezo dirigido aos rapazes grã-finos e mofinos da roda elegante: '- Só
uma besta desta dá soltas sem negaça. Já o Cincinato Quebra-Louça
dizia que soltas sem negaça só em lampião de esquina; se grampeasse,
vá lá. O Trinca-Espinha, o Estrepolia e o Zé da Gamboa admitem soltas
neste caso. Mas, assim mesmo, só quando o semovente não é firme de
letra.' E, num giro de bengala entre os dedos, rematou com um suspiro
de saudade: '- Já gostei desse divertimento. Hoje, minha posição social
não me permite cultivá-lo. Mas vejo, com tristeza, que a arte está
decaindo.' E lá se foi, imperturbável e superior, monologando. 'Soltas
sem negaça...Forte besta!'


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'Mas os rapazes não se deram por vencidos. Recuperados após o
estupor, uma nova tentativa de desforra cresceu no ânimo deles. A
desforra deveria ser contundente. Já então, a surra deveria ser
mediante contrato: adjudicaram a empresa ao famoso Dente de Ouro,
da Saúde, que haveria de romper o baluarte e quebrar de vez a proa ao
estranho figurão. Tudo bem assentado, foram colocar-se no momento
aprazado junto ao carreiro, com o rompe-e-rasga à frente. 'É aquele lá' -
apressaram-se em dizer, assim que ao longe repontou a cartola
café-com-leite do sobranceiro lutador. Dente de Ouro avançou para o
desconhecido; ao defrontá-lo, entreparou e abriu-se num grande riso
palerma: 'Ei  22! Você por aqui?' E a resposta: '- Cala o bico, moleque,
e tome lá para o cigarro. Afasta-te que hoje sou gente; não ando em
más companhias.' E o 22 do Marajó seguiu caminho honesto, depois de
meter uma pelega de dez na mão do Dente de Ouro. Este, alisando a
nota, voltou ao grupo dos grã-finos. 'Então?' - um dos rapazes
interrogou-o, desnorteado com o imprevisto desfecho. - 'Cês tão besta?
Aquele é o 22 do Marajó, tem corpo fechado para sardinha e pé que
nunca melou saque!' "
Em A Alma Encantada das Ruas, João do Rio, pseudônimo de
Paulo Barreto, jornalista, romancista, cronista, teatrólogo e contista,
autor de Dentro da Noite, A mulher e Os Espelhos, e dos livros de
reportagens As Religiões do Rio e Movimento Literário, nascido em 1880
e que veio a falecer em 1921, na crônica Presepes, aborda um grupo
carnavalesco formado por negros da Bahia, que tem sua sede na praia
Formosa, o Rei de Ouros. Descrevendo suas conversas com Dudú, um
dos integrantes do grupo, quanto à composição do Presepes, indagou:
"- Mas porque, continuo eu curioso, põem vocês junto do rei
Baltazar aquele boneco de cacete?
- Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do rei Baltazar porque
deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não esqueceu a gente.
Ora, não sei se V.S. conhece que Baltazar é pai da raça preta. Os
negros de Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança
cungú, em que se ensinava a brigar. Cungú com o tempo virou
mandinga e S. Bento.
- Mas o que tem tudo isso?
- Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem. Jogar capoeira é
o mesmo que jogar mandinga. Rei da capoeiragem tem seu lugar junto
de Baltazar. Capoeiragem tem sua religião.
Abri os olhos pasmados. O negro riu.
- V.S, não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de
verdade só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito da Praia, Chico Bolivar,
Marinho da Silva, Manoel Piquira, Ludgero da Praia, Manoel Tolo,
Moisés, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho e outros... Esses
cabras sabiam jogar mandingas como homens...
- Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as
presepadas.
- Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um
nome. É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V.S. pelas
pernas e viro: - V.S. virou balão e eu entrei de baixo. Se eu cair virei
boi. Se eu lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se


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usa mais. Mas posso arrestar-lhe uma tarrafa mestra.
- Tarrafa?
- É uma rasteira com força. Ou esperar o dégas de galho, assim
duro, com os braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco
na queda, ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o baú, pontapé na
pança. Ah! V.S. não imagina que porção de nomes tem o jogo. Só
rasteira, quando é deitada, chama-se banda, quando com força, tarrafa,
quando no ar, para bater na cara do cabra, meia lua...
- Mas é um jogo bonito!, fiz para contentá-lo.
- Vai até o auê, salto mortal, que se inventou na Bahia.
'Para aquela lição intempestiva, já se havia formado um grupo de
temperamentos bélicos. Um rapazola falou:
- E a encruzilhada?
- É verdade, não disseste nada da encruzilhada?
'E a discussão cresceu. Parecia que iam brigar...
'Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater
preguiçosamente meia-noite. As mulatinhas cantavam tristes: 'Meu rei
de Ouros quem te matou?/Foi um pobre caçadô'
'Mas Dudú saltou para o meio da sala. Houve um choque de
palmas. E diante do quarto, onde se confundia o mundo em adoração a
Deus, o negro cantou acompanhado pelo coro:
'Já deu meia noite/O sol está pendente
Um quilo de carne/ Para tanta gente!'
'Oh! Suave ironia dos malandros! Na baiúca havia alegria, parati,
álcool, fantasia, talvez o amor nascido de todas aquelas danças e do
insuportável cheiro do éter floral...
'Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só lhes
dera o dia de amanhã, a queixa se desfazia num quase riso. Um quilo
de carne para tanta gente!
'Talvez nem isso! Saí, deixei o último presepe.
'De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar de
sonho sob a chuva, um ar de milagre, o milagre da crença, sempre
eterna e vivaz, saudando o natal de Deus, através da ingenuidade dos
pobres. Como seria bom dar-lhes de comer, ó Deus Poderoso!
'Como lhes daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse
apenas a esperança de amanhã obter um quilo de carne só para mim!"
João Moniz, poeta nascido em Santo Amaro da Purificação, na
Bahia, deixou nas páginas do jornal A Tarde um relato das suas
impressões acerca do famoso capoeira Besouro, personagem que até os
dias de hoje é cantado nas rodas do jogo. Com palavras de evidente
admiração, afirmou o poeta: "Besouro foi a maior atração de minha
infância. Seus combates simulados com Doze Homens, Ioiô, Nicori e
outros capoeiristas seus amigos, ao som do berimbau e do pandeiro,
eram espetáculos magníficos de força, agilidade e delicadeza, em que os
suarentos e leais contendores se aplicavam, mutuamente, os perigosos
preceitos de ataque e defesa, cuidadosos de se não machucarem, por
que não saíssem mal-avindos do brinquedo. E Besouro, então, primava
por essas atitudes de nobreza, ele que era respeitado como o primus
inter pares,  no recôncavo e no costeiro baianos, da luta, que lhe
levaria o nome, em situação privilegiada, ao nosso folclore.


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'Conheci Besouro na pujança dos seus vinte e poucos anos. Era
amável, brincalhão, amigo das crianças e 'respeitador dos brancos'. De
uma coragem pessoal que parecia loucura, gostava de 'buli' com a
polícia. E não raro explodia um turundundum dos diabos em frente à
cadeia velha, sua terra natal. Era Besouro, que, noite velha, havia
acordado o destacamento para um 'brinquedo', que se prolongava em
correrias e tiros, e de que ele saía ileso e sempre sorrindo, como
entrava.
'Às vezes, no calor da luta, tirava um pouco de 'tinta' nos praças,
mas nunca matou ninguém. Tinha tanto horror a palavra assassino
quanto adorava o termo valente, que lhe cabia a rigor."
A respeito de uma versão - até hoje bastante acreditada - da
morte de Besouro, onde este teria sido "morto traiçoeiramente pela
polícia, por ter abatido oito praças com a capoeira, de uma só vez",
versão esta que foi publicada em reportagem assinada por Cláudio
Tuiuty Tavares, em O Cruzeiro, afirmou João Moniz em sua crônica:
"Aquele particípio - abatido - empregado pelo repórter, deixa
entender que Besouro matou oito soldados e por isso foi morto. Não, já
deixei dito que Besouro nunca matou ninguém, e posso afirmar, com
absoluta segurança, que não foi morto pela polícia.
'Contam-se duas versões da morte de Besouro. Uma, inverídica,
resultante de perfídia política, e a outra, verdadeira, em que Besouro,
embriagado, fora ferido a punhal, traiçoeiramente, por um rapazelho
subestimado por ele à vista de outros, quando bebiam numa venda. E
não morreu propriamente do golpe, mas, de mau trato, que o deixaram
no chão por mais de um dia, o intestino à mostra, antes que o
trouxessem para a Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro, onde
fechou os olhos para a vida, cercado de amigos, admiradores e
curiosos."
Além do famoso Besouro, muitos capoeiras se notabilizaram,
sendo que alguns se tornaram conhecidos mundialmente, como é o
caso do pescador Samuel Querido de Deus, de Salvador, numa fase em
que havia cessado a repressão ao jogo da Capoeira e sua prática já não
era mais proibida. Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos, traçou o
perfil do Querido de Deus, no ano de 1944, quando o pescador ainda
vivia, sob o título O Capoeira: "Já começaram os fios de cabelo branco
na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é indefinida.
Mulato, com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado
pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso?
Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido
de Deus essa cor que não é igual a nenhuma cor conhecida, nova para
todos os pintores. Ele parte com seu barco para os mares do sul do
estado onde é farto o peixe. Quantos anos terá? É impossível saber
nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro de Samuel
atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca
do mercado Modelo. Mas o velhos canoeiros poderão informar que mais
de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois
sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha que parece
eternamente molhada de água do mar?
'Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não há


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melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da
Conceição da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido
de Deus. Que venha Juvenal, jovem de vinte anos, que venha o mais
ágil, o mais técnico, que venha qualquer um, e Samuel, o Querido de
Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia de Todos os
Santos. Os demais são seus discípulos e ainda olham espantados
quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque elegância assim nunca se
viu... E já sua carapinha tem cabelos brancos...
'Existem muitas histórias a respeito de Samuel Querido de Deus.
Muitas histórias que são contadas no Mercado e no cais. Americanos do
norte já vieram para vê-lo lutar. E pagaram muito caro por uma exibição
do velho lutador.
'Certa vez seu amigo escritor foi procurá-lo. Dois
cinematografistas queriam filmar uma luta de capoeira. Samuel chegara
da pescaria, dez dias no mar e trazia ainda nos olhos um resto de vento
sul. Prontificou-se. Fomos em busca de Juvenal. E, com as máquinas de
som e de filmagem, dirigimo-nos todos para a Feira de Água dos
Meninos. A luta começou e foi soberba. Os cinematografistas rodavam
suas máquinas. Quando tudo terminou, Juvenal estendido na areia,
Samuel sorrindo, o mais velho dos operadores perguntou quanto era.
Samuel disse uma soma absurda na sua língua atrapalhada. Fora
quanto os americanos haviam pago para vê-lo lutar. O escritor explicou
então que aqueles eram cinematografistas brasileiros, gente pobre.
Samuel Querido de Deus abriu os dentes num sorriso compreensivo.
Disse que não era nada e convidou todo mundo para comer sarapatel
no botequim em frente.
'Podeis vê-lo de quando em quando no cais. De volta de uma
pescaria com seu saveiro. Mas com certeza o vereis na festa da
Conceição da Praia, derrotando os capoeiras, pois ele é o maior de
todos. Seu nome é Samuel Querido de Deus."
Os principais estudiosos da cultura brasileira, no passado
recente, imortalizaram o jogo da Capoeira em páginas magistrais. É este
o caso de Eunice Catunda, que concorreu com suas observações para
fixar análise do jogo e das suas tradições, em artigo intitulado Capoeira
no Terreiro de Mestre Waldemar, publicado em Fundamentos - Revista
de Cultura Moderna, no ano de 1952, em São Paulo.
"Todo artista que não acredita no fato de que só o povo é o eterno
criador, que só dele nos pode vir a força e a verdadeira possibilidade de
expressão artística, deveria assistir a uma capoeira baiana. Ali a força
criadora se evidencia, vigorosa, livre dos preconceitos mesquinhos do
academismo, tendo como lei primordial e soberana a própria vida que
se expressa em gestos, em música, em poesia. Ali se exprime a vida
magnífica e bela, em nada prejudicada pela capacidade limitada dos
instrumentos musicais primitivos, aos quais se adapta sem ser por eles
diminuída.
'O senso de realização coletiva, própria essência da arte, se revela
no tríplice aspecto da capoeira, que é uma fusão de três artes: música,
poesia e coreografia."
Em seguida, Eunice Catunda acrescenta sua opinião quanto ao
lugar ocupado pela Capoeira no contexto das artes, abalizada por sua


[Linha 1900 de 3846 - Parte 2 de 3]


formação musical erudita: "A dança da capoeira, na Bahia, é o que
jamais deixou de ser a verdadeira arte: não um divertimento, mas uma
necessidade. Aliás, é esse um dos fatores a que se deve a força mil
vezes mais viva da arte popular quando a comparamos à música
erudita: esse caráter funcional, esse aspecto de necessidade imperiosa
que tem toda arte que o povo cultua. Ao passo que a música erudita soa
cada vez mais falsa, se revela sempre mais um simples gozo de
sibaritas, sem função, desnecessária.
'Na Bahia, a arte da capoeira é atividade domingueira, tão normal
e querida quanto o nosso grande esporte nacional, o futebol. E quem a
exerce é, na maioria, o povo trabalhador: operários da construção civil,
carregadores do mercado, gente de profissão definida, que passa a
semana inteira no duro batente, lutando para garantir o pão de cada
dia, para si e para sua família."
Na apreciação da Capoeira e suas características, a cronista
prossegue registrando a função do mestre-capoeira e seu papel junto
aos praticantes, guardando uma tradição que continua no correr dos
anos: "O ritual, a tradição a que obedecem os participantes da capoeira,
são muito rígidos. O mestre é o conhecedor da tradição. Daí ser ele,
também a autoridade máxima. Supervisiona o conjunto todo,
determinando a música, o andamento, tirando ou indicando os cantos
ou indicando a pessoa que o faça.
'Os concorrentes novatos dançam entre si. Mas quando algum
bailarino se destaca, o mestre dança com ele, apontando-o, por meio
dessa distinção à atenção dos veteranos, novatos e assistentes. Essa
autoridade do Mestre é uma das coisas mais admiráveis e comoventes
que tenho visto. O respeito a ele demonstrado pela coletividade, o
carinho com que o cercam, fariam inveja a muito regente de música
erudita. Prova isto que o espírito de disciplina é mais vivo no povo rude
e inculto da nossa terra, quando este se organiza, que entre as camadas
superiores, já mais habituados à organização conseqüente da própria
instrução e do exercício de atividades culturais e que, por isso mesmo,
teriam maior obrigação de compreender a necessidade e a importância
da disciplina na coletividade. Acontece porém que o mestre nunca
abusa de seus direitos. Não se atribui poderes ditatoriais. Sabe que sua
autoridade emana da própria coletividade e comporta-se como parte
integrante desta."
Ao entrar na descrição do terreiro onde aprecia a Capoeira, as
anotações descrevem as condições de vida da gente anônima e humilde
que resiste com a luta: "O terreiro de mestre Waldemar localiza-se no
célebre bairro proletário da Liberdade. Bairro de grande densidade de
população, sem pretensões, esquecido da Prefeitura que se preocupa
em embelezar e cuidar só daqueles trechos da Cidade do Salvador que
se encontram à vista do turista. Quanto ao bairro da Liberdade, não é
para 'gringo' ver. Como todo bairro operário, não tem calçamento, é
cheio de valas onde, em tempo de chuva, as águas parecem envoltas em
nuvens de mosquitos; seus incontáveis casebres mal se têm de pé, e se
o fazem é por pura teimosia. Abundam as vendolas onde se compra
desde o jabá até a caninha. É um bairro repleto de vida e de
movimento, corajoso e revoltado."


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A descrição da Capoeira praticada à época evidencia a beleza do
jogo tradicional, na perícia e habilidade no manejo do corpo, sem
resvalar para o confronto aberto.
"Quando chegamos ao terreiro a capoeira já começara. Dois
dançarinos coleavam rentes ao chão, enquanto dois berimbaus e três
pandeiros acompanhavam com estranhos ritmos e sons aquela dança
magnífica e arrebatadora, de gente combativa e forte. Os dançarinos do
momento eram um carregador do mercado de Água dos Meninos e um
operário da construção civil. O operário estava todo de branco, sapatos
brilhando, camisa alvejando. Era um dos melhores dançarinos. É
costume da fina-flor dos capoeiristas o dançar assim, 'de ponto branco'
como se costuma dizer, para demonstrar sua perícia. Chegam ao
cúmulo da dançar de chapéu e os bailarinos hábeis se gabam de sair da
dança sem uma só mancha de terra na roupa, limpos e bem arrumados
como se ainda não houvessem entrado em função.
'A dança da capoeira é a representação simbólica de antigas lutas
autênticas. Na Capoeira de Angola, os dançarinos volteiam quase rentes
ao chão, realizando paradas de braço, em posição horizontal, girando,
escorregando como enguias e escapulindo por sob o corpo do
adversário. Os golpes são constatados por mesuras e pelas exclamações
dos assistentes. Aliás, não fora a precisão daqueles movimentos, muitos
dos golpes seriam mortais. Esse é o caso das célebres cabeçadas
assestadas contra o peito e cujo impulso é sustado só no
derradeiríssimo momento, quando a cabeça de um dos bailarinos já
aflorou o corpo do outro. A violência latente nunca se desencadeia e
esse extraordinário domínio de paixões mantêm a assistência numa
incrível tensão de nervos, empolgando a todos numa espécie de
hipnotismo coletivo quase indescritível. Só aqueles que assistiram a
uma demonstração de Capoeira de Angola poderão compreender a
monstruosa força e controle exigidos para que realize cada um daqueles
movimentos, sem que se dê lugar a qualquer agressão, sem que se
perca a elegância e a graça felina de cada gesto, absolutamente medido,
calculado por uma espécie de instinto, já que os elementos atuantes se
acham inteiramente entregues a aquela arte aparentemente tão
impulsiva e espontânea.
'Apesar da violência latente, não sobrevêm a hostilidade. Há no
meio daquilo tudo imensa fraternidade e júbilo. Verificam-se passes
espirituosos de bailarinos brincalhões e sorridentes, a realizar difíceis e
perigosíssimos passos e golpes. E entre os assistentes estouram
sonoras risadas... Jamais vi, em danças de conjunto, nacionais ou
estrangeiras, tão arrebatadora beleza, aliada a tal rapidez, precisão e
força reprimida, dominada por uma inteira disciplina e lucidez.
'Tivemos ocasião de admirar um menino de sete anos que dançou
com o próprio mestre Waldemar, de quem é aluno, e com aquele
operário exímio de quem já falei. Não se pode imaginar quanto era
comovente acompanhar a frágil figurinha infantil, hábil, compenetrada,
a competir com o homem mais velho, em cujo rosto se iluminava um
sorriso afetuoso, porém nada complacente. Concentrado, o menino
aplicava cabeçadas e rasteiras, escapulindo matreira e agilmente das
rasteiras e cabeçadas do mestre, cônscio de sua dignidade de futuro


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capoeirista, de futuro artista popular, imperturbável, sob os olhares e
exclamações dos espectadores.
'A voz masculina, pura e profunda, se elevava acima do pulsar do
conjunto instrumental, suave e intensa, muitas vezes modal, para só
dar lugar ao côro, verdadeiro canto recitativo. Depois a voz continuava,
fazendo floreios sobre a mesma base, sem nunca repetir, impossível
quase de anotar com exatidão por meios não mecânicos.
'Os solistas se alternavam, dando à melodia a característica
própria de seu temperamento humano. Umas eram mais vivas, mais
espirituosas, enquanto outras eram sonhadoras, singelas. Mas todos os
textos profundamente poéticos.
'Lembro-me bem de uma voz que se elevou para cantar a beleza
dos saveiros de velas enfunadas, louvando o mar generoso e o vento
que os conduz. Descreveu o vento a acumular nuvens para depois
dissolvê-las em gotinhas de chuva, sobre a branca vela dos saveiros que
embalou. Era a poesia popular que se fazia presente no esplendor típico
da arte única que é a Capoeira de Angola. E a tudo isso o côro
continuava a responder pela boca de todos os assistentes e
participantes: 'Eh! Paraná, eh! Paraná, camará...' enquanto os
dançarinos voltejando, girando, desviando os corpos das cabeçadas,
rindo alto, aos saltos, elásticos como gatos."

VICENTE FERREIRA PASTINHA -
O MESTRE  DA CAPOEIRA ANGOLA

Capoeira eu sou Angola/valha-me Deus, senhor São
Bento/tanto jogo para cima/
como jogo para o chão...'

Vicente Ferreira Pastinha, nascido em 1889, dizia não ter
aprendido a Capoeira em escola, mas "com a sorte": foi o destino o
responsável pela iniciação do pequeno Pastinha no jogo, ainda garoto.
Em depoimento prestado no ano de 1967, no Museu da Imagem e
do Som, mestre Pastinha relatou a história da sua vida: "Quando eu
tinha uns dez anos - eu era franzininho - um outro menino mais taludo
do que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair para a rua - ir na venda
fazer compra, por exemplo - e a gente se pegava em briga. Só sei que
acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido de
vergonha e de tristeza (...)"
A vida iria dar ao moleque Pastinha a oportunidade de um
aprendizado que marcaria todos os anos da sua longa existência.
"Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma
briga da gente. 'Vem cá, meu filho', ele me disse, vendo que eu chorava
de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque ele é
maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem
aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia. Foi isso
que o velho me disse e eu fui (...)"
Começou então a formação do mestre que dedicaria sua vida à
transferência do legado da cultura africana a muitas gerações. Segundo
ele, a partir deste momento, o aprendizado se dava a cada dia, até que


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aprendeu tudo. Além das técnicas, muito mais lhe foi ensinado por
Benedito, o africano seu professor.
"Ele costumava dizer: não provoque, menino, vai botando
devagarzinho ele sabedor do que você sabe (...). Na última vez que o
menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era
capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de
admiração e respeito (...).
'Aos doze anos, em 1902, eu fui para a Escola de Aprendiz de
Marinheiro. Lá ensinei Capoeira para os colegas. Todos me chamavam
de 110. Saí da Marinha com 20 anos (...). Vida dura, difícil. Por causa
de coisas de gente moça e pobre, tive algumas vezes a Polícia em cima
de mim. Barulho de rua, presepada. Quando tentavam me pegar eu
lembrava de mestre Benedito e me defendia. Eles sabiam que eu jogava
Capoeira, então queriam me desmoralizar na frente do povo. Por isso,
bati alguma vez em polícia desabusado, mas por defesa de minha moral
e de meu corpo(...). Naquele tempo, de 1910 a 1920, o jogo era livre.
'Passei a tomar conta de uma casa de jogo. Para manter a ordem.
Mas, mesmo sendo capoeirista, eu não me descuidava de um
facãozinho de doze polegadas e de dois cortes que sempre trazia
comigo. Jogador profissional daquele tempo andava sempre armado.
Assim, quem estava no meio deles sem nenhuma arma bancava o
besta. Vi muita arruaça, algum sangue, mas não gosto de contar casos
de briga minha. Bem, mas só trabalhava quando minha arte negava
sustento. Além do jogo trabalhei de engraxate, vendia gazeta, fiz
garimpo, ajudei a construir o porto de Salvador. Tudo passageiro,
sempre quis viver de minha arte. Minha arte é ser pintor, artista (...)."
O ritmo da sua vida foi alterado quando um ex-aluno o levou para
apresentar aos mestres que faziam uma roda de Capoeira tradicional,
na Ladeira da Pedra, no bairro da Gingibirra, em Salvador, no ano de
1941.
"Na roda só tinha mestre. O mais mestre dos mestres era
Amorzinho, um guarda civil. No apertar da mão me ofereceu tomar
conta de uma academia. Eu dei uma negativa, mas os mestres todos
insistiram. Confirmavam que eu era o melhor para dirigir a Academia e
conservar pelo tempo a Capoeira de Angola."
Foi na atividade do ensino da Capoeira que Pastinha se
distinguiu. Ao longo dos anos, a competência maior foi demonstrada no
seu talento como pensador sobre o jogo da Capoeira e na capacidade de
comunicar-se.
"Mas tem muita história sobre o começo da Capoeira que
ninguém sabe se é verdadeira ou não. A do jogo da zebra é uma. Diz
que em Angola, há muito tempo, séculos mesmo, fazia-se uma festa
todo ano em homenagem às meninas que ficavam moças. Primeiros elas
eram operadas pelos sacerdotes, ficando igual, assim, com as mulheres
casadas. Depois, enquanto o povo cantava, os homens lutavam do jeito
que fazem as zebras, dando marradas e coices. Os vencedores tinham
como prêmio escolher as moças mais bonitas (...). Bem, mas de uma
coisa ninguém duvida: foram os negros trazidos de Angola que
ensinaram Capoeira pra nós. Pode ser até que fosse bem diferente
dessa luta que esses dois homens estão mostrando agora. Me contaram


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que tem coisa escrita provando isso. Acredito. Tudo muda. Mas a que a
gente chama da Capoeira de Angola, a que aprendi, não deixei mudar
aqui na Academia. Essa tem pelo menos 78 anos. E vai passar dos 100,
porque meus discípulos zelam por mim. Os olhos deles agora são os
meus. Eles sabem que devem continuar. Sabem que a luta serve para
defender o homem (...). Saem daqui sabendo tudo, sabendo que a luta é
muito maliciosa e cheia de manhas. Que a gente tem de ser calmo. Que
não é uma luta atacante, ela espera. Capoeirista bom tem obrigação de
chorar no pé do seu agressor. Está chorando, mas os olhos e o espírito
estão ativos. Capoeirista não gosta de abraço e aperto de mão. Melhor
desconfiar sempre das delicadezas. Capoeirista não dobra uma esquina
de peito aberto. Tem de tomar dois ou três passos à esquerda ou à
direita para observar o inimigo. Não entra pela porta de uma casa onde
tem corredor escuro. Ou tem com o que alumiar os esconderijos da
sombra ou não entra. Se está na rua e vê que está sendo olhado,
disfarça, se volta rasteiro e repara de novo no camarada. Bem, se está
olhando ainda, é inimigo e o capoeirista se prepara para o que der e
vier (...)."
Os conceitos do mestre Pastinha formaram seguidores em todo o
país. A originalidade do método de ensino, a prática do jogo enquanto
expressão artística formaram uma escola que privilegia o trabalho físico
e mental para que o talento se expanda em criatividade.
"Capoeira de Angola só pode ser ensinada sem forçar a
naturalidade da pessoa, o negócio é aproveitar os gestos livres e
próprios de cada qual. Ninguém luta do meu jeito mas no jeito deles há
toda a sabedoria que aprendi. Cada um é cada um (...). Não se pode
esquecer do berimbau. Berimbau é o primitivo mestre. Ensina pelo
som. Dá vibração e ginga ao corpo da gente. O conjunto da percussão
com o berimbau não é arranjo moderno não, é coisa dos princípios.
Bom capoeirista, além de jogar, deve saber tocar berimbau e cantar. E
jogar precisa ser jogado sem sujar a roupa, sem tocar no chão com o
corpo. Quando eu jogo, até pensam que o velho está bêbado, porque
fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém
ainda me botou no chão, nem vai botar (...)"
Vicente Ferreira Pastinha se calou no ano de 1981. Durante
décadas dedicou-se ao ensino da Capoeira. Mesmo completamente
cego, não deixava seus discípulos. E continua vivo nos capoeiras, nas
rodas, nas cantigas, no jogo.
"Tudo o que eu penso da Capoeira, um dia escrevi naquele
quadro que está na porta da Academia. Em cima, só estas três palavras:
Angola, capoeira, mãe. E embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo
em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é
inconcebível ao mais sábio capoeirista".


MANOEL DOS REIS MACHADO:
 O MESTRE BIMBA

"Chora capoeira/capoeira chora/chora capoeira/ mestre
Bimba foi embora..."


[Linha 2150 de 3846 - Parte 2 de 3]



No dia 23 de novembro de 1899 nasceu no bairro de Engenho
Velho, freguesia de Brotas, cidade de Salvador, Bahia, Manoel dos Reis
Machado. Teve como pai Luis Cândido Machado, caboclo de Feira de
Santana. Sua mãe, Maria Martinha do Bonfim, era uma crioula de
Cachoeira.
Logo ao nascer o garoto ganhou um nome que se tornaria símbolo
e sinônimo da Capoeira. Isso graças a uma frase dita à hora do parto: -
olha a bimbinha dele! Esta exclamação definiu o resultado de uma
aposta entre a mãe da criança - que imaginava uma menina - e a
parteira, que previra um menino. Ninguém seria capaz de pensar,
naquele momento, que Bimba passaria a ser um nome destinado a
acompanhar o futuro capoeira em sua entrada na história do jogo.
O aprendizado de lutas se iniciou com o pai, à época famoso
lutador de batuque - uma antiga forma de luta negra. Aos 12 anos
começou a aprender Capoeira com o africano Bentinho, capitão da Cia.
de Navegação Bahiana. Segundo suas palavras, o sistema de aulas à
época era bastante violento. As rodas eram formadas na Estrada das
Boiadas (atual bairro da Liberdade), em Salvador, num ritmo bravio ao
som do berimbau. Mestre Bimba costumava recordar um golpe
formidável aplicado por Bentinho, que o acertara na cabeça, provocando
um desmaio até o dia seguinte...
Seu trabalho como mestre-capoeira iria distinguir-se pela
divulgação do jogo em todos os recantos do país e a elaboração de um
sistema próprio de  treinamento e transmissão dos conhecimentos e
técnicas do jogo: a Capoeira Regional Bahiana.
Graças aos seus esforços foi aberta a primeira Academia de
Capoeira com autorização oficial. Esta seria a forma adotada por
inúmeros mestres para obter e legalizar um espaço, onde a prática do
jogo não sofreria o perigo de perseguições. Afinal, era o ano de 1937 e o
país vivia sob uma ditadura - período que sempre se destaca pela
generalização das arbitrariedade e cometimento de toda sorte de
violências pelos detentores do poder. E o que era tolerado em um dia
poderia ser reprimido no outro.
Em sua vida Bimba foi trapicheiro, doqueiro, carroceiro,
carpinteiro. Mas acima de qualquer coisa e por todo o tempo,
mestre-capoeira. Um dos maiores nomes deste ofício.
Ninguém melhor que um contemporâneo de Bimba para
descrevê-lo brincando a Capoeira. Ramagem Badaró - de conhecida
família bahiana  da zona de cultivo do cacau, que foi enfocada por
Jorge Amado em Terras do Sem Fim -,  jornalista, advogado e  escritor,
autor do romance O Sol, deixou interessante relato acerca do mestre,
no artigo intitulado 'Os negros lutam suas lutas misteriosas; Bimba é o
grande rei negro do misterioso rito africano', publicado em Saga -
magazine das Américas, no ano de 1944, em Salvador.
"Tinha uma difícil missão a cumprir. Encontrar um assunto para
uma reportagem que não fosse sobre guerras,  suicídios ou crime. Um
assunto diferente que não proviesse da fonte comum de todas as
reportagens da cidade. Das delegacias de polícia, do Necrotério ou da
Assistência. Porque os casos de delegacia são sempre os mesmos:


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roubo, crime e sedução. Os de Necrotério são anacrônicos e os de
Assistência, banalíssimos.
'Estava nesse dilema, quando passou um negro de andar
gingante de capoeira. Tinha resolvido o problema. Lembrei-me de
mestre Bimba e da velha Roça do Lobo. Fui até o bairro elegante dos
Barris, em cujos flancos se derramam em desordem as casas de taipa
da vala do Dique. Presépios de palha da miséria sem esperança dos
homens do povo. Quando comecei a descer pela picada aberta na
ladeira pelos pés descalços e calosos daquela gente que nasce com o
atavismo dos párias e a herança do infortúnio, já os sons dos berimbaus
traziam aos meus ouvidos o cartão de boas vindas do terreiro de mestre
Bimba. Continuei descendo, até que de repente o caminho se alargou e
se confundiu com o terreiro onde os homens lutavam Capoeira. O povo
formava um círculo ao redor dos dois homens lutando. Jogando
Capoeira no centro do círculo.
'O berimbau batia compassadamente, tin-tin-tin... tin-tin-tin...
tin-tin-tin... enquanto os homens pulavam, caíam, levantavam-se num
salto e deixavam-se cair outra vez, se golpeando mutuamente. O povo
batia palmas acompanhando a música dos berimbaus e cantando o
estribilho da Capoeira:
Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um...
Caí também no meio da turma e comecei a bater palmas e a
tentar cantar o zum, zum da Capoeira (...)."
Badaró narra o instante que precede a entrada do mestre Bimba
no jogo e a emoção que tomou conta dos espectadores.
"De súbito, o tin-tin nervoso dos berimbaus sumiu, calou-se,
parou. Os berimbaus deixaram de tocar. Os homens que estavam
lutando também pararam. Com as roupas molhadas de suor
desenhando nas dobras do corpo os músculos possantes. Os
assistentes aplaudiram os homens que tinham acabado de lutar. E eles
cantaram um corrido, agradecendo os aplausos.
Ai-ai de lelô/ Iem-ien de lalá
Adeus meus irmãos/ Nós vamos rezar
'Nesse momento gritaram:
- Mestre Bimba vai lutar!
'Todo mundo se voltou para trás, batendo palmas e gritando:
- Mestre Bimba... mestre... viva... viva... vivôôôôôô.
'Um preto agigantado entrou no círculo formado pelo povo.
Sorrindo. A multidão aplaudiu com mais força. O sol bateu-lhe de rijo
no rosto escuro, iluminando-lhe as feições. Era de fato, alto. O rosto
oval. Os olhos fundos escondidos numa testa saliente. Nariz chato.
Carapinha rala quase careca. E um bigode pequeno, ralo, em forma de
triângulo sobre os lábios grossos. Mas no conjunto era simpático.
O jornalista narra a forma como Bimba se prepara para jogar,
enfatizando a aura de respeito que envolvia o famoso mestre. Uma
disputa de versos antecede o confronto na roda de Capoeira.
"Quando Bimba entrou no círculo os berimbaus começaram a
ensaiar uns toques. E a multidão que enchia o terreiro aplaudia
freneticamente o seu ídolo. Nisso, um crioulo possante entrou no


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círculo, aceitando o desafio. E o povo comentou a coragem daquele
homem que ia lutar com Bimba. Porque entrar numa luta com Bimba
sem ser convidado por ele é procurar encrenca. Mesmo sendo mera
demonstração. Porque ele é o rei da Capoeira. Os berimbaus ensaiaram
um toque e um dos homens perguntou:
- Qual é o toque? - São Bento Grande Repicado, Santa Maria, Ave
Maria, Benguela, Cavalaria, Calambolô, Tira-de-lá-bota-cá, Idalina, ou
Conceição da Praia?
'Bimba pensou rapidamente e disse:
- Toque Amazonas e depois Benguela.
'Os berimbaus começaram a tocar. O crioulo aproximou-se e
mestre Bimba apertou-lhe a mão. E o povo começou a acompanhar o
tin-tin-tin dos berimbaus, batendo palmas. Bimba balanceou o corpo e
cantou:
No dia que eu amanheço/ Dentro de Itabaianinha
Homem não monta  cavalo/ Nem mulher deita galinha
As freiras que estão rezando/ Se esquecem da ladainha
'Mas o crioulo não ficou atrás e cantou, negaceando o corpo no
compasso dos berimbaus.
A iúna é mandingueira/ Quando está no bebedor
Foi sabida e é ligeira/Mas capoeira matou
'Palmas festejaram o repente do crioulo. Porém, Bimba não deu
tréguas à vitória do outro. E respondeu:
Oração de braço forte/ Oração de São Mateus
Pro cemitério vão os ossos/ Os seus ossos, não os meus
'Novamente o povo aplaudiu e cantou o estribilho da Capoeira:
Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um
'O crioulo, entretanto, não deixou cair a quadra de mestre Bimba
e replicou:
E eu nasci no sábado/No domingo me criei
E na segunda-feira/ A Capoeira joguei
'A multidão deu vivas e bateu palmas para os dois lutadores no
centro do círculo. Uma preta comentou:
- Bom menino! Se é bom na briga como é no canto, boa parada
para Bimba.
Começa então a disputa na roda e Ramagem Badaró conta com
detalhes o momento final: "Os dois lutadores negaceavam os corpos ao
som da música dos berimbaus. Um defronte do outro. Olhando-se
dentro dos olhos, se estudando mutuamente. O crioulo foi o primeiro a
começar. Fazendo algumas fintas, procurando descobrir as partes fracas
do adversário. E mestre Bimba aparentemente deixava-se cair nas
ciladas do outro. O crioulo foi começando a tomar gosto e abrindo mais
a própria guarda, concentrado no ataque. A multidão no terreiro da
Roça do Lobo, continuava acompanhando com as mãos o tin-tin-tin dos
berimbaus. E a cantar em coro o estribilho da Capoeira:
Zum, zum, zum, zum/ Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/ No terreiro fica um
'Enquanto isso os lutadores continuavam negaceando os corpos,
procurando descobrir os pontos fracos do adversário.


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'De repente, pararam de súbito. E ficaram mudos de atenção,
apreciando o ataque. O crioulo avançou rápido, levantou uma perna e
deu uma meia-lua-armada pela direita de Bimba. Porém, não deu
resultado, porque Bimba foi mais rápido. Deixou-se cair na guarda,
enquanto tentava puxar o adversário numa rasteira. Mas, o crioulo
também era ligeiro e livrou-se do golpe com um aú pela esquerda.
Bimba insistiu, tornando a atacá-lo. Tentando pegá-lo numa cabeçada
presa. Porém o crioulo contra-atacou com uma calcanheira
violentíssima. Entretanto Bimba livrou-se agilmente com um formidável
pulo mortal.
'Os berimbaus tocavam com mais frenesi. Demonstrando a
excitação nervosa dos tocadores. Também as palmas de
acompanhamento diminuíram muito, quase cessando.
'Enquanto isso a assistência completamente em suspenso,
apreciava a luta nos seus mínimos detalhes.
'Bimba notou que tinha bom adversário. O crioulo era bom de
verdade. Manhoso, ágil e corajoso. O crioulo começou a se afastar de
Bimba como se fosse dar-lhe as costas numa fuga. Bimba percebeu de
relance o truque do adversário e ficou em guarda. Os músculos
completamente controlados, prontos para aproveitar aquela
oportunidade. Como ele esperava, o crioulo deu-lhe completamente as
costas, como se fugisse da luta. Esperando que ele caísse no velho
truque da Capoeira e mergulhasse num arpão de cabeça, dando-lhe a
oportunidade de contra-atacar com um mortífero arpão de joelho.
Mestre Bimba, que já previra o golpe, defendeu-se com uma negativa.
Puxando ao mesmo tempo a única perna do crioulo apoiada no chão,
com uma violenta rasteira. Pegado de surpresa, o crioulo perdeu o
equilíbrio, subiu e desabou no terreiro. Uma gritaria retumbante
festejou a sagacidade de Bimba. Todo mundo ficou excitado, menos
mestre Bimba.
'O capoeirista caído, levantou-se com a mesma rapidez com que
caíra. Porém, estava raivoso, com o sangue fervendo nas veias. Danado
de raiva e meio descontrolado. E afastou-se de Bimba, sempre
negaceando o corpo, procurando desanuviar a cabeça. A assistência
gritava e batia palmas acompanhando o tin-tin-tin nervoso da orquestra
dos berimbaus e o xique-xique dos chocalhos de vime, cantando
sempre o estribilho da capoeira:
Zum, zum, zum, zum/Capoeira mata um
Zum, zum, zum, zum/No terreiro fica um
'Nesse instante o crioulo voltou novamente para o centro do
círculo. E avançou para Bimba tentando pegá-lo numa vingativa pela
esquerda. Não acertou e tomou uma vaia. O crioulo se descontrolou e
avançou louco de raiva. Tentou apanhar Bimba com um golpe de
cotovelo e um sopapo galopante. Mas Bimba não se deixava alcançar.
Continuava negaceando o corpo, sempre fintando, por meio de rápidas
escapadas. A multidão delirava. Isso, entretanto, lhe distraiu a atenção.
Fazendo com que relaxasse a vigilância da sua guarda. E o crioulo
soube tirar partido desse descuido. Aproximou-se veloz, levantou a
perna e deu-lhe uma bênção em pleno peito. Mestre Bimba pressentiu
o golpe e tentou livrar-se. Foi ligeiro. Mas não o suficiente para se livrar


[Linha 2350 de 3846 - Parte 2 de 3]


completamente do golpe. O peito lhe doeu e a sua vaidade também.
Porque as palmas do público festejavam o crioulo.
'Bimba não deu tréguas à vitória do outro. Avançou para o crioulo
fingindo ir dar um balão açoitado. Depois, ensaiou uma palma e
levantou a perna como se fosse dar uma bênção. O crioulo ficou todo
confuso com a rapidez e a sucessão dos golpes. Pensou que aquele
último golpe era o verdadeiro ataque que Bimba queria fazer e procurou
defender-se caindo numa rasteira. Viu o seu erro e tentou derrubar
Bimba com uma encruzilhada. Também errou e mestre Bimba
dominou-o com um tronco de pescoço, antes que ele pudesse livrar-se
num balão. Tinha vencido a luta. O povo invadiu o terreiro aplaudindo
o rei da Capoeira. Bimba abraçou o adversário. E o crioulo mostrou que
era homem mesmo. Cantou:
Santo Antônio pequenino/Amansador de burro brabo
Amansai-me em Capoeira/com setenta mil diabos
'Bimba gostou do elogio e retribuiu, cantando:
Conheci um camarada/Quando nós andarmos juntos
Não vai haver cemitérios/P'ra caber tantos defuntos
'A multidão tornou a aplaudir e mestre Bimba abraçou o crioulo
(...)."
Com sua incursão no terreiro de mestre Bimba, Ramagem Badaró
conseguiu sua reportagem e escreveu bonita página sobre a Capoeira
desse tempo, mostrando-nos mais uma vez o quanto é solidária a
autêntica manifestação da luta, nessa arte.
Mestre Bimba dedicou-se ao jogo até o final dos seus dias. Em
seus últimos anos de vida, deixou a Bahia e veio para Goiás, atraído
pela possibilidade de encontrar o reconhecimento a que fazia jus. No
ano de 1974 mestre Bimba deixou definitivamente o convívio da
família, amigos e discípulos e passou a ocupar lugar de destaque na
memória da Capoeira.





III


NA RODA DA CAPOEIRA

'Ritmo na luz/ ritmo na cor/ ritmo no movimento
ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços
ritmo nas unhas descarnadas/Mas ritmo/ ritmo.
Ó  vozes dolorosas de África!
Agostinho Neto, Fogo e ritmo.

A MÚSICA DA CAPOEIRA

Berimbau já fez chamada/é hora de lutar
essa dança Capoeira, oi sinhá/ é de matar...'


[Linha 2400 de 3846 - Parte 2 de 3]



Como as primeiras manifestações musicais não deixaram
vestígios seguros, é impossível precisar como e quando surgiu a música.
A maior parte dos estudiosos sequer se arrisca a fazer especulações;
outros abordam hipóteses com base no que se sabe sobre a vida
humana pré-histórica e preenchem as lacunas óbvias com forte dose de
imaginação. Entretanto, nenhuma teoria afirma com certeza o momento
em que os primitivos começaram a fazer arte por meio de sons.
Ao que tudo indica, o homem das cavernas conferia à sua música
um sentido religioso, considerando-a um presente dos deuses e
atribuindo-lhe funções mágicas. Associada à dança, a música assumia
um caráter ritual, por meio do qual era possível reverenciar o
Desconhecido, agradecendo-lhe a fertilidade da terra, a abundância da
caça. Com o ritmo saído de movimentos elementares - batendo as mãos
e os pés - talvez eles buscassem também celebrar fatos da sua
realidade: vitórias nas guerras, descobertas surpreendentes. Com o
passar do tempo, além do uso das batidas de mãos e pés, suas danças
passaram a ser ritmadas com pancadas na madeira, a princípio de
forma simples e depois mais trabalhadas, para soarem de modo
diferente. Pode ter surgido daí o instrumento de percussão.
Não é difícil imaginar o quanto os barulhos da natureza deviam
fascinar o homem daqueles tempos, inspirando-lhe a vontade de imitar
o ruído das águas, o sopro do vento, os sons dos demais animais. Como
para isso o ritmo não era suficiente e o artesanato ainda não
possibilitava a invenção de instrumentos melódicos, estranhos sons
emitidos pela garganta devem ter constituído as formas rudimentares
de canto. Isto junto com o ritmo resultou numa mistura de palmas,
gritos e batidas. Era tudo ao alcance do homem primitivo. E certamente
terá sido um estilo que resistiu por muito tempo.
Segundo os conceitos atuais de música, essas tentativas de
expressão foram demasiado pobres para se enquadrarem na categoria
de arte musical. Do ponto de vista histórico, entretanto, tiveram uma
importância enorme, pois a rítmica elementar então desenvolvida
acompanhou o homem em sua caminhada, se espalhando sobre a terra,
preponderantes na elaboração de culturas e civilizações. E continuou
evoluindo com ele, acumulando todas as transformações vividas pela
humanidade até os dias atuais, sendo que muitas de suas antigas
descobertas permanecem em pleno uso, com pequenas modificações  

NA RODA DO BERIMBAU

A roda se enche de sons. É uma festa de ritmos e cantos bravios,
onde a sensibilidade se manifesta livremente. E acontece a dança e o
canto em meio à luta.
Na Capoeira a musicalidade é fundamental. Raiz e corpo da arte,
a melodia flui de toda parte. Berimbaus, atabaques, ganzás, agogôs,
pandeiros, tudo é som e movimento.
As cantigas estão presentes no jogo desde quando se forma o
círculo. E o primeiro canto - geralmente conduzido pelo capoeira mais
antigo presente à roda - pode ser um improviso.


[Linha 2450 de 3846 - Parte 2 de 3]


Se o berimbau toca Angola, o canto inicial é um solo denominado
ladainha. Neste momento, enquanto é ouvida a cantiga, não há jogo. A
atenção de todos está no conteúdo da música. Pode estar sendo
transmitida uma mensagem onde o capoeira dá expressão à sua
vivência na roda ou às experiências adquiridas ao longo da vida. Pode
ser ainda que a ladainha rememore fatos passados, trazidos à
lembrança como aviso aos jovens, enquanto perpetua um pouco da
história do jogo e dos capoeiras.
A música é um dos instrumentos de preservação da memória,
transmitindo as tradições de diferentes épocas do passado da Capoeira.
O canto às vezes exprime tristeza pela ausência de um camarada que já
morreu, encerrando ainda uma advertência ou observação, um exemplo
prático, uma lição para a vida. Ao encerrar a ladainha é iniciado pelo
solista um refrão, sinal para a entrada do coro formado pelos capoeiras.
À medida em que o jogo tenha seu desenvolvimento, as cantigas
irão acompanhar e descrever - numa linguagem peculiar - as situações
que acontecem na roda, quando não ocorre do canto determinar, de
forma sutil, o desenvolvimento das ações.
A poesia pode significar uma provocação a alguém ou uma
brincadeira com qualquer dos capoeiras; pode traduzir uma advertência
à forma muita das vezes perigosa em que transcorre o jogo; pode ser
ainda a reverência a um orixá. De qualquer forma, as cantigas trazem
uma característica comum - a linguagem figurada e de compreensão
restrita aos jogadores.
A sonoridade vibrante dos berimbaus é magnética. Agora tocam a
Iúna. Dizem os antigos que neste toque ressoa o canto da ave Inhuma
(ou Anhuma) e conta a lenda que ela é portadora de uma força mágica.
Encantada, dos seus pios de desprende a magia dos deuses...
Ouçamos o toque. Num dado momento se destacam os sons
agudos de um berimbau para no instante seguinte serem suplantados
por outro, que vibra com profunda gravidade. É o diálogo das Iúnas.
Como se dois seres mitológicos, tomados de profunda paixão,
tornassem audível seu canto de amor. Que às vezes ecoa aparentando
entendimento, para subitamente transfigurar-se no embate inarmônico
de apaixonado desencontro.
Ao final prevalece a compreensão entre berimbaus gunga e viola -
de timbres grave e agudo, respectivamente - mas fica a nítida impressão
que de repente começará tudo mais um vez.
O atabaque traz evocações que transportam ao mundo da magia.
O ritmo misterioso descobre - à visão da mente - um cenário de
realismo fantástico. A força dos sons invade o capoeira, arrastando o
pensamento, que se perde num turbilhão de emoções e pode levar à
trilha do sobrenatural: empolgação e fascínio se traduzem em agilidade
e força. E se descortina a África viva em cada um de nós. Misteriosa,
como a exaltação que brota bem de dentro, aos jorros, atinge a
superfície da pele e transborda, em gestos de força e beleza. Até que
sobrevenha a calma e sossego, como numa estranha dança.
Os tons do agogô se destacam num claro contraponto entre a
marcação discreta e a dissonância que fere os sentidos, despertando-os.
Essa é sua função, e à medida em que esses sons se fazem ouvir, se


[Linha 2500 de 3846 - Parte 2 de 3]


perde a noção do tempo e espaço, na excitação que atordoa: tudo se
torna encanto.
Ao fundo o ganzá impõe o balanço do som capaz de prender - no
seu movimento compassado - o fluxo da vontade, arrastando-a e
somente liberando o capoeira após conquistada sua alma. Só aí ele
retorna, entre surpreso e extasiado, ao confronto com a realidade.
Talvez uma serpente mítica tenha sacudido os guizos, em meio ao
torvelinho dos sentidos livres, e tenha capturado sua presa, tornando-a
semelhante, dando-lhe suas características de contida agressividade e
determinação.
O troar constante do reco-reco pode impelir o ouvinte a quedar-se
surpreso. A atenção é desviada para o soar imprevisível, que causa a
sensação de uma chibata imaginária, provocando estalos que ressoam
dentro do capoeira, os açoites despertando arrepios de coragem e
repercutindo na luta.
Noutro momento o berimbau toca Angola. Está prestes a
acontecer o jogo de maior importância, que define o espírito da
Capoeira. A voz do mestre se levanta, com um acento de tristeza e
lamento, entoando um canto de forte sabor nostálgico. O berimbau
gunga acompanha gravemente as modulações da voz, repicando de
forma compassada e realçando cada verso da cantiga. E talvez resida
nisto a grande musicalidade das ladainhas, todas de extrema
simplicidade.
Enquanto o gunga se ajusta à voz que puxa a cantoria, formando
um dueto, o berimbau viola acrescenta ao conjunto o timbre agudo,
despontando em improvisos que se sucedem numa riqueza de variações
impressionante.
Cada instrumento acrescenta à música colorido especial, dando
vida à Capoeira. Africanos pela origem, nascidos do sangue e natureza
do negro, construíram a brasilidade. Graças a eles, cantores nativistas
são capazes de encontrar elementos para a composição de uma
expressão musical brasileira, representativa dos sentimentos comuns à
nossa gente. O som vai prosseguir por horas a fio, fazendo a delícia dos
jogadores entregues à arte, embevecendo os que assistem à roda e
ensinando um caminho para a redescoberta de outras formas de
comunicação.

AS ORIGENS DO BERIMBAU

Talvez desde a pré-história o arco musical se constitui numa das
formas de instrumento encontradas pelo homem, na busca da
expressão sonora que lhe permitisse exteriorizar o íntimo. E o
acompanhou no decorrer da sua evolução, presente em diversas
culturas até os dias atuais.
Acreditam alguns pesquisadores que o arco musical resultaria do
desenvolvimento do arco de caça - cuja invenção pode ter ocorrido em
algum momento entre cerca de 20.000 a 15.000 anos passados, no
norte da África. Outros já supuseram exatamente o contrário: o arco de
caça é que teria se originado do arco musical... E para aumentar o
elenco de possibilidades, existem opiniões que discordam das


[Linha 2550 de 3846 - Parte 2 de 3]


anteriores: o arco musical e o arco de caça tiveram origem e
desenvolvimento completamente independentes um do outro...
Dentre a diversidade de teorias a respeito do arco musical
predomina certa concordância, ao ser fixado o período por volta de
15.000 a.C. como época em que possivelmente ocorreria o seu uso pelo
homem primitivo. Pinturas localizadas em uma caverna (Les Trois
Fréres) na região sudeste da França, feitas  nesse período da
pré-história, retratam um homem que se veste com peles de bisão,
trazendo seguro um objeto que se parece com o arco, mantido próximo
do rosto. O pesquisador Abbé Breuil identificou o desenho como de um
homem tocando um arco musical.
De todo modo, relatos mais recentes de exploradores e viajantes,
particularmente do século XIX, trazem outras evidências do arco
musical na África Central, do Sul, Patagônia, Novo México, Brasil...
Existem formas diversas de classificação do arco musical. Assim,


(Continue a leitura na parte 3 clicando no link abaixo)









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