domingo, 1 de abril de 2012

2 Mil Anos de Xadrez

2 MIL ANOS DE XADREZ



Criado para curar a depressão de um antigo rei indiano, o jogo simula o confronto de dois exércitos, cujas manobras podem se desdobrar numainfinidade de lances diferentes.

Há mais de 2 mil anos, provavelmente no século Vl a.C., nos abastados reinos da Índia começou a surgir uma modalidade de jogo destinada a conquistar a imaginação dos nobres e dos mestres da guerra. Em poucas gerações, a nova mania espalhou-se por terras e povos vizinhos-e daí, muito mais lentamente, para o mundo todo. O nome original do jogo era chaturanga-que significava "quatro reis" -, e dele descende o xadrez, praticado por milhões de pessoas que o consideram o mais complexo exercício de inteligência já inventado.
Existem várias versões sobre a origem e o desenvolvimento do jogo, além de muitas dúvidas sobre os caminhos de sua propagação. Ao que tudo indica, a princípio o chaturanga não era disputado por apenas dois jogadores, como o xadrez atual, mas sim por quatro. Cada um deles, em vez das dezesseis peças modernas, dispunha de oito peças que corriam as 64 casas do tabuleiro. Não existia ainda, por exemplo, a figura da rainha-hoje a peça mais poderosa do xadrez. Os contendores moviam um elefante, um cavalo, um carro de guerra e quatro peões. O objetivo já era defender a peça central, o rei, e capturar o rei do adversário. No entanto, ao contrário do xadrez, o chaturanga dependia da sorte, pois a ordem das jogadas era definida pelos dados.
Segundo a lenda, o jogo nasceu como um remédio: teria sido inventado por um dos sábios da corte do Hindostão, de nome Sissa, para curar a depressão do rei. Encantado com sua pronta recuperação e ainda sem perceber as espantosas possibilidades do novo entretenimento, o rei prometeu ao sábio a recompensa que quisesse. Sissa pediu pouco, aparentemente. Apenas um tabuleiro cheio de trigo, mas de modo que na primeira casa houvesse um grão, na segunda, dois, na terceira, quatro, e assim sucessivamente, dobrando a quantidade de grãos até a casa 64. Quando o rei mandou fazer os cálculos, descobriu, assombrado, que o trigo necessário para completar o tabuleiro chegava a quase 20 quintilhões de grãos (o número 2 seguido de 19 zeros). Mais do que toda a produção mundial.
Em cinco séculos. o chaturanga já havia chegado à China, a mais de 4 mil quilômetros da Índia. Ali recebeu o nome de "jogo do elefante". Na mesma época, alcançou o Japão, onde passou a ser chamado de go ou go bang, nomes que se conservam até hoje. Em tempos bem mais recentes, no sexto século depois de Cristo, o jogo ganhou grande destaque na Pérsia, sob o reinado do xá Cosroes I. O nome persa para o jogo era chatrang, do qual parece terem se originado as expressões "xeque" e "xeque-mate"-ameaça ao rei e rei morto, respectivamente. Na União Soviética, até os dias que correm, o jogo se chama "xeque-mate". Em inglês é chess, em alemão, schach, em francês, jeu des échecs. Da Pérsia, o jogo emigrou para a Arábia. Em 650 da era cristã, o imperador francês Carlos Magno ganhou um tabuleiro de presente do lendário califa Harum-alRashid. Foi assim, acredita-se, que os ocidentais tomaram conhecimento do xadrez. O jogo difundiu-se inicialmente na Espanha. Em 1088, o rabino Abrahan Ben Ezra, de Toledo, escreveu um poema sobre uma partida entre peças negras (etíopes, no poema) e vermelhas (edomitas).
O xadrez é um jogo de infinitas combinações-ou algo muito perto disso. Calcula-se que o número de jogadas possíveis em uma partida é tão grande como o número de átomos do Universo. Outra conta de tirar o fôlego é a seguinte: um computador que fosse capaz de analisar 100 milhões de jogadas possíveis por segundo demoraria aproximadamente 3 x 10104 anos (ou seja, o número 3 seguido de 104 zeros) para terminar a partida. Isso resulta do fato de que, ao longo dos séculos, o xadrez foi se tornando mais variado, mais complexo e cheio de possibilidades. A principal transformação parece ter sido o aparecimento da rainha-o que não só subverteu as regras do jogo como também foi um lance inusitado: afinal, figuras femininas não costumavam freqüentar campos de batalha, reais ou simulados.
A rainha entrou em cena no século XV, depois que os árabes, que tinham aprendido o jogo com os persas, levaram-no para a Espanha. Ali e na França o jogo começou realmente a mudar. As inovações começaram pelos peões. Estas peças, que podiam andar apenas uma casa em cada lance, ficaram mais ágeis, podendo avançar duas casas no primeiro movimento. Depois dos peões foi a vez das torres: ganharam um movimento novo, chamado roque, no qual uma delas troca de lugar com o rei. Enfim, o caso da rainha. Os árabes chamavam a peça que Ihe deu origem de firzan, que significa "vizir" ou "conselheiro". Tratava-se de um personagem masculino, portanto. Além disso, o firzan só se movia uma casa de cada vez-e não quantas casas se queira, como no jogo moderno.
Não se sabe por que ocorreu essa mudança. Pode ter sido resultado da presença marcante da rainha Isabel, a Católica, que governou a Espanha no século XV. Pode ter sido também fruto de uma analogia com o jogo de damas, onde as peças são coroadas depois de atravessar o tabuleiro. Então adquirem o direito de circular com muito maior desenvoltura, já com o título de damas. Também no xadrez, o peão que chega a cruzar todo o tabuleiro fica mais poderoso. É possível que esse peão, por analogia com a dama, tenha passado a se chamar rainha. (Tecnicamente, em português rainha é chamada de dama.) O bispo também mudou, provavelmente a partir da metamorfose do velho elefante indiano. As informações mais recentes sobre o antecessor do bispo vêm da Pérsia, onde o elefante acumulava dois movimentos.
Um desses era o passo em diagonal, como o dos atuais bispos (embora elefante persa desse só um passo por vez). O segundo movimento lhe permitia saltar outras peças, como o moderno cavalo. Os espanhóis descartaram este último movimento e deram à peça o nome pelo qual se tornou conhecida-alfil, bispo, em espanhol. Na França, porém, ela se chamou, palhaço. Na Alemanha, ganhou o nome de laufer, corredor. Na Rússia ficou o nome tradicional, slon, elefante. O antigo cavalo, por sua vez, já possuía o movimento aos saltos, como hoje, e assim permaneceu, retendo também o velho nome. O mesmo vale para o movimento das torres. Estas porém, receberam diversos nomes, conforme as línguas. No árabe, chamavam-se ruji, carro de guerra. Daí a denominação inglesa rook, com a mesma acepção. Os peões, enfim, devem seu nome uma tradução da palavra árabe daq, soldado a pé. Esses humildes habitantes do tabuleiro causaram certa confusão quando adquiriram a capacidade de se transformar em rainhas Teóricos da época, talvez vexados, diziam que não ficava bem o rei ter duas ou mais rainhas no Jogo, como se fosse polígamo. Mas tais objeções vingaram. Assim se encerraram mudanças nas regras relativas aos movimentos das peças, realizadas no século XV e XVI, que deram ao jogo sua fisionomia atual. O que mudou - e muito-, desde então, foram as técnicas, tornando os lances muito mais pensados e armados.
Em conseqüência disso, os chamados grandes mestres deixaram de ser campeões solitários, que se enfrentavam um a um diante do tabuleiro. Eles aprenderam a trabalhar em equipes de assessores que os ajudam a planejar uma partida. O campeão mundial Garri Kasparov, da União Soviética, por exemplo, nunca deixa de levar consigo pelo menos três analistas, grandes conhecedores do jogo, estudam a estratégia e as táticas dos adversários e sugerem modos de sobrepujá-las. Além disso, Kasparov emprega outros cinco ou seis auxiliares-incluindo um psicólogo, para cuidar de seu estado emocional, e um burocrata, para controlar os elevados gastos da equipe. Em outras palavras, ocorreu com o xadrez algo semelhante ao que aconteceu com a produção científica. No passado, os cientistas eram trabalhadores solitários como os enxadristas: verrumavam suas invenções e descobertas exclusivamente com o próprio cérebro. Hoje, em vez disso, trabalham em vastos e complexos laboratórios ao lado de dezenas de auxiliares. "Mas não se deve pensar que o individualismo do passado desapareceu por completo entre os enxadristas", lembra o brasileiro Hermann Claudius, mestre internacional. Pode ser. No entanto, por mais que conte o talento incomparável dos grandes jogadores, o jogo moderno também exige enorme habilidade tática, que nem sempre pode ser dominada por um único homem. No passado, o objetivo essencial do enxadrista era o ataque, a qualquer preço. Um exemplo notável desse estilo foi a partida denominada imortal, entre os alemães Adolf Andersen e Lionel Kieseritzky, jogada em Londres, em 1851, que deu a Andersen o título mundial. Logo no início, ele fez uma arrancada impetuosa, não se importando, para isso, de sacrificar um peão e duas peças peso pesado-as torres - antes do vigésimo lance. Pior ainda: no 22º, o lance, Andersen entregou também a rainha. Em compensação, na jogada seguinte ele daria o xeque-mate, fulminando o surpreso adversário.
Hoje seria muito difícil repetir uma carreira desabalada desse tipo, pois as táticas ensinam como evitá-la. Mesmo na época de Andersen a concepção do jogo já havia dado passos importantes - por exemplo, com a tática dos peões, criada pelo francês André Philidor na virada do século XIX. Para ele, os peões não eram simples soldados a pé, mas, como dizia, "a alma do xadrez". Ao invés de colocá-los à frente para serem sacrificados, Philidor preservava-os para dar apoio às peças mais fortes. Depois de Philidor e Andersen, o xadrez seria cuidadosamente pesquisado pelo austríaco Wilhelm Steinitz (1836-1900), um enxadrista profissional de tempo integral. Campeão do mundo de 1866 a 1893, ele criou, com um alemão, Siegbert Tarrash, as famosas aberturas defensivas, que transformaram os inícios de partida em verdadeiras equações matemáticas.
As aberturas e táticas cuidadosas acabaram criando um dos maiores enxadristas de todos os tempos, o cubano José Raúl Capablanca (1888-1942). Menino prodígio no xadrez e campeão do mundo durante seis anos, sem que ninguém ousasse disputar-lhe a supremacia, Capablanca recorria às táticas existentes como se tivesse nascido sabendo utilizá-las. Ele acabaria derrotado por um novo teórico do tabuleiro: o russo emigrado Alexander Alekhine (1892-1946). Desde o século passado, com efeito, os russos já eram notáveis enxadristas. Mas Alekhine seria o primeiro de uma interminável sucessão de grandes mestres a aparecer para o mundo. Em 1948, com a vitória de Mikhail Botvinnik no campeonato mundial, os soviéticos iniciaram o período de supremacia que dura até hoje.
Esse poder só lhes seria usurpado -temporariamente-em 1972, pela irrupção de um gênio, o americano Robert Fischer. Mas ele era temperamental demais para seguir as estritas regras do xadrez internacional. Em poucos anos, renunciou ao título para não ter de disputá-lo com o soviético Anatoli Karpov. Este último teve ainda grande dificuldade para defender-se de outro jogador turrão, Viktor Korchnoi, soviético vivendo no exílio. Na União Soviética, há 4 milhões de filiados à Federação Nacional de Xadrez, enquanto nos Estados Unidos o número de filiados à federação local é de apenas 20 mil e na Inglaterra, 10 mil. No Brasil, não se sabe quantos são os enxadristas de carteirinha. O Clube de Xadrez de São Paulo, o maior do país, tem 600 sócios. É claro que apenas a quantidade de filiações não conta toda a história da popularidade do jogo em cada país: muita gente pode jogar habitualmente xadrez sem se preocupar em assinar fichas de instituições ou clubes.
Está em gestação algo capaz de popularizar ainda mais esse jogo. Trata se de uma simplificação, dessa vez encurtando de duas horas para apenas meia hora a duração das partidas, a fim de deixar pouco espaço a grandes cerebrações. As primeiras partidas dessa nova modalidade já começaram a ser disputadas, inclusive no Brasil. No entanto, nenhuma mudança vingará se não for encampada pelos países da Europa Oriental, especialmente a União Soviética.



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quinta-feira, 1 de março de 2012

Os defensores do corpo humano - Imunologia

OS DEFENSORES DO CORPO HUMANO



Milhões de células vivem para matar qualquer invasor que ameace a saúde do ser humano. Em caso de perigo iminente, esse exército se lança a uma guerra sem quartel, em que ninguém faz prisioneiros. O nome dessa tropa de elite é sistema imunológico.

Um leve corte no dedo, tão superficial que mal assustaria uma criança. Indigno de merecer mais do que um "ai" ou, quem sabe, um palavrão. Afinal, ninguém morre por causa de um corte no dedo-pelo menos em 99,9 por cento dos casos. Não que um corte não possa matar, se mais não mata é graças a uma tropa de elite, em permanente prontidão para ir à luta pela vida. É uma guerra secreta: enquanto uma dorzinha no lugar é praticamente tudo o que a pessoa retém do acidente, dentro do organismo reina grande agitação e todas as atenções se voltam para a vizinhança do pequeno corte; ali a batalha poderá começar a qualquer momento. A tropa de elite-o sistema imunológico-está preparada para o que der e vier.
A mesma dor que avisa a pessoa que ela se machucou fez soar um outro alarme, destinado às células de defesa. Dai começou o corre-corre. A circulação sangüínea transporta rapidamente batalhões inteiros dessas células ao local atingido, onde passam a ocupar posições estratégicas, entrincheiradas entre os tecidos. Toda a movimentação é apenas uma medida de segurança. Pode ser que o pequeno corte seja apenas um machucado sem conseqüências e que as células de defesa logo possam se dispersar sem ter disparado um tiro. Aliás, essa tropa é tão precavida que pega em armas diante de qualquer ameaça: por menor que seja uma lesão física, desencadeia o alerta. Até mesmo quando se leva um tapa, o sistema imunológico fica a postos.
As células de defesa já estão se dispersando quando soa de novo o alarme-na verdade, trata-se da liberação das substâncias químicas produzidas pela pele ferida e também pelos invasores. Isso porque até um pequeno arranhão abre uma grande brecha para a ação de micróbios solertes, toxinas perversas, partículas exóticas. Ao segundo alarme, os soldados da infantaria-que os cientistas chamam granulócitos-se lançam à batalha, sem perda de tempo, valendo-se do alto grau de preparo que os tornam ágeis e dinâmicos. Muitos deles vão tombar em combate. Junto com os restos mortais do inimigo derrotado, formarão o pus que aparece nas feridas.
Então se aproxima a artilharia dos macrófagos, células mais fortes, cujos canhonaços pulverizam não só os invasores-vivos ou mortos-como os próprios granulócitos eliminados no começo da batalha. Tamanha é a quantidade de macrófagos, comprimidos nos espaços entre as células, que são uma das causas do inchaço no local machucado. Granulócitos e macrófagos usam armas fabricadas há muito tempo-tanto que foram encontradas nos arsenais de espécies primitivas, como as esponjas. Graças a esse material bélico de comprovada eficiência-as enzimas existentes em seu interior -, eles engolem, trituram e digerem os inimigos. Outras enzimas, produzidas por diversos órgãos, como o estômago, podem ajudar, perfurando a membrana de micróbios e parasitas feito balas de canhão.
Chamadas de fagocitárias, essas células reconhecem os invasores (conhecidos antígenos) por meio das substâncias químicas que Ihes são comuns. Não é difícil a identificação -tais substâncias inexistem no organismo. Ou seja, o uniforme do inimigo é inconfundível. Certas bactérias, como as pneumococci da pneumonia, ao longo da evolução aprenderam porém a se camuflar e a passar desapercebidas. Contra isso os vertebrados inventaram há 400 milhões de anos uma resposta formidável-as células linfócitos B. Assim que uma bactéria da pneumonia tenta invadir o corpo pelo pequeno corte, os linfócitos B disparam seus mísseis teleguiados que se encaixam na molécula da bactéria, ou de qualquer outro invasor infeccioso, bloqueando-a para que não contamine outras células do organismo.
Essas proteínas são os tão falados anticorpos. Sua função principal, porém, é típica dos serviços de contra-espionagem: desmarcar os inimigos camuflados. A técnica funciona às mil maravilhas. Ao combinar-se com o odiado antígeno, o anticorpo chama a atenção do macrófago para a presença do estranho. O inimigo, então, fica encurralado. "Além de tornar o antígeno reconhecível, os anticorpos ajudam os macrófagos a ingeri-los", explica o professor de Imunologia Momtchillo Russo, da USP.
Os linfócitos B, em geral, são os soldados mais especializados do exército de defesa. Nas aves, são treinados para o ataque na Bursa de Fabricius (daí a letra B), que fica na cloaca, a ponta do canal intestinal. Já no homem, que não tem bursa, essas células nascidas na medula óssea são treinadas em tecidos como os do baço, intestino, amídalas, fígado. Dali vão navegar na corrente sangüínea, prontas para a luta, onde quer que se localize o teatro de operações. Se todas as células da pele humana são idênticas, o mesmo não acontece com os linfócitos B. Faz sentido: afinal, precisam especializar-se na produção de anticorpos de tamanhos e formatos diversos, para se encaixar como peças de quebra-cabeça numa infinidade de inimigos. Calcula-se que entre o trilhão de linfócitos B do organismo, haja cerca de 1 milhão de tipos diferentes.
No curso de uma infecção, algumas células B adquirem o que os cientistas chamam memória: a propriedade que Ihes permite estudar detalhadamente as táticas do invasor, de maneira que, se ele infectar o corpo uma segunda vez, haverá células B especializadas no seu combate e capazes de agir mais rapidamente do que no ataque anterior. Quando um linfócito B se encontra porém face a face com o seu antígeno, não se põe a disparar anticorpos imediatamente, como um amador. Espera a ordem de atacar dada por uma substância, a interleucina enviada pela célula T auxiliar. A T auxiliar é um dos três tipos de células que rumam da medula óssea para o timo (daí a letra T), uma glândula atrás das costelas, na altura do coração. Sua função é controlar todo o sistema imunológico.
Como não produz anticorpos, embora seja especializada num único invasor, não se sabe até hoje quais são seus receptores, isto é, como ela e encaixa e percebe o inimigo, ativando a partir dai tanto as células B como os macrófagos. Além das interleucinas, a T auxiliar tem uma segunda arma: a interferona, que funciona como um gás paralisante nas células infectadas e dificulta a propagação do antígeno.
Quem nasce sem timo não sobrevir, por falta de células T para organizar suas defesas. Quando tais células são destruídas pelo vírus da AIDS por exemplo, o mesmo acontece. Não seria então o caso de simplesmente injetar interleucina no organismo dos pacientes para suprir a produção natural prejudicada? A resposta infelizmente é negativa. "Lançada na circulação, a interleucina ativaria todo o sistema imunológico em vez de estimular apenas o lifócito B necessário", esclarece o professor Russo, da USP. "O sistema muito ativado é tão nefasto quanto o deficiente, causando febres, dores, coagulação do sangue. Enfim, pode levar à morte".
Quem corrige os lamentáveis mas nem sempre evitáveis excessos da repressão e ao mesmo tempo dá a ordem para o recuo é um segundo tipo de célula T, a supressora. Ela envia uma substância que inibe a ação da célula T auxiliar e, por tabela, de todas as outras células. Na verdade, cientistas desconhecem como essas duas células, a auxiliar e a supressora, mantêm o equilíbrio do sistema imunológico. Como será que sabem quando é hora de parar? Essa é a grande questão que a Imunologia busca responder. O terceiro e último tipo de célula T, ao contrário de suas irmãs, não dá ordens- nem por isso é menos importante. Trata-se da célula citotóxica, uma espécie de assassino profissional. Daí a sua alcunha em inglês: killer, assassina. Enquanto as demais células do sistema reconhecem apenas os antígenos (substâncias estranhas), a killer perscruta os tecidos do próprio organismo, os quais vive espionando: se estiver faltando algo, como nas células cancerosas que degeneram, ou se houver algo a mais, como nas células infectadas que retiveram em suas membranas partículas de um vírus invasor, ela se ativará. Então, aproxima-se da célula doente e, como se Ihe desse o beijo da morte, transmite-lhe uma substância tóxica destruidora. Se a killer destrói as células defeituosas, por que então se morre de câncer? Quando se tem trilhões de células como no organismo humano é normal que no decorrer da vida um certo número delas comece a apresentar defeitos. Portanto, a pergunta correta deveria ser: por que se pode viver sem câncer? E a resposta é: graças ao controle exercido pela killer. O problema aparece quando ela se ausenta -como na AIDS, em que o doente logo padece de tipos raros da enfermidade, ou quando já não existem killers em número suficiente, como em pessoas idosas. "Com o passar dos anos, o sistema imunológico se enfraquece", esclarece o imunologista Antonio Lauro Coscina, do Hospital Albert Einstein.
Apesar das vastas zonas de sombra que ainda desafiam os imunologistas, avanços importantes têm ocorrido. Nos Estados Unidos, pesquisadores conseguiram isolar em laboratório as interleucinas específicas para ativar as células T que combatem determinado tipo de câncer. Também se descobriu que, em alguns casos, quando a célula cancerosa é contaminada por bactérias, as células killer vão ao ataque mais rapidamente. Por isso, os cientistas estão inoculando essas bactérias em tumores de pele, com resultados positivos. Sem dúvida, porém, uma das descobertas mais significativas foi a dos anticorpos monoclonais, no inicio dos anos 80: são anticorpos específicos, desenvolvidos em laboratório, marcados com substâncias radioativas.
Eles não só identificam células cancerosas, mas também o tipo de câncer, permitindo o diagnóstico precoce da doença. As vezes, ao invés de estimular o sistema de defesa, a ciência deve colocar-lhe freios. É o que ocorre nas doenças auto-imunes, quando algo faz com que as células de defesa passem a tratar as células do próprio corpo como inimigas. Suspeita-se que algumas doenças, como úlceras estomacais e intestinais, artrite reumatóide, problemas de tireóide e esclerose múltipla, sejam auto-imunes. O conceito existe desde a década de 50, mas até hoje pouco se sabe sobre os seus mecanismos. Há três hipóteses que não se excluem necessariamente: 1) As doenças auto-imunes são provocadas em tecidos de cuja existência o sistema de defesa não teve conhecimento prévio e por isso não estaria capacitado a reconhecer. Há casos de esterilidade masculina produzida por anticorpos que aniquilam os espermatozóides. 2) Determinada infecção poderia alterar a aparência das membranas celulares de um órgão qualquer, tornando suas células estranhas para o sistema de defesa. 3) Desequilíbrio nas funções das células T supressoras e auxiliares que controlam o sistema inteiro. Cientistas americanos, que testaram o sangue de portadores de doenças auto-imunes, constataram que nele havia menos células T supressoras do que normal.
Atualmente, essas doenças têm sido tratadas com drogas chamadas imunossupressoras. que inibem o sistema imunológico. São os mesmos medicamentos usados em casos de transplante, para evitar a rejeição do órgão. Mas evidentemente essas drogas têm a grande desvantagem de diminuir a eficiência do sistema como um todo. As pesquisas mais recentes voltam-se para a produção de anticorpos, ou seja, anticorpos que anulem os anticorpos fabricados pelo organismo contra si próprio. O professor Coscina acredita que no futuro a solução será ainda melhor: "A Imunologia daqui a alguns anos será a Imunogenética", diz. "Manipulando os genes se poderá ter sistemas de defesa mais eficientes e sanar os problemas das doenças auto-imunes."



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sábado, 11 de fevereiro de 2012

As Imagens da Relatividade

AS IMAGENS DA RELATIVIDADE



Em 1905, Albert Einstein abalou o edifício da Física clássica ao publicar a Teoria Especial da Relatividade, complementada onze anos depois pela Teoria Geral da Relatividade. Nelas, Einstein expôs a idéia revolucionária de que a velocidade da luz no espaço vazio é sempre a mesma, qualquer que seja a posição do observador. Esse é um dos fundamentos mais importantes do conceito de relatividade.

A explosão das supernovas
Como dois observadores percebem um mesmo acontecimento
Imagine duas réguas descomunais transportadas pelo Universo por duas naves que viajam lado a lado em velocidades diferentes. As réguas vão medir a relatividade do espaço e do tempo. Se, quando as naves passarem juntas no mesmo lugar, ocorrer a explosão de duas estrelas supernovas - uma em cada ponta das réguas -, cada tripulação tratará de medir a distância entre a sua nave e as estrelas e o intervalo de tempo entre as explosões. Começará então o aprendizado prático das teorias de Einstein.

O momento duvidoso
Nem tudo acontece quando parece acontecer
A régua vermelha e branca mostra que as supernovas E2 e E1 explodiram ao mesmo tempo a uma distância igual de cada lado da nave. É claro que os tripulantes só perceberam as explosões algum tempo depois que ocorreram, isto é, passado o tempo que a luz da explosão demorou para chegar até eles. A outra nave, que transporta a régua vermelha, se move em alta velocidade, quase igual à da própria luz, e se dirige de E2 para E1. Por coincidência, ela passou pela primeira nave no momento exato em que esta recebeu a luz da dupla explosão estelar.
Ainda assim, sua tripulação acha que as duas explosões não ocorreram ao mesmo tempo e, sim, que a explosão da supernova E2 foi muito mais próxima. Por que? Afinal, os dois veículos estavam na mesma posição quando as explosões foram detectadas pela primeira nave. Mas quando elas ocorreram, a segunda nave estava mais próxima da estrela E2. Portanto, sua explosão foi detectada primeiro. Isso não ocorreria se a velocidade da luz variasse. Pois, como a nave está fugindo da explosão, haveria um atraso na chegada da luz. No entanto, ensina Einstein, a velocidade da luz não muda. E a supernova E2 foi conhecida primeiro pela nave da régua vermelha.

O movimento invisível
Ninguém nota que a Terra gira em torno do Sol
O movimento da Terra em volta do Sol - à velocidade estimada em 108 000 quilômetros por hora-não pode ser determinado. A rigor, só existe em comparação com o movimento de outros astros, não podendo, portanto, ser percebido daqui. Ou seja, é relativo. Isso não acontece só com a Terra Ao explicar a Teoria da Relatividade, Einstein costumava usar como exemplo o deslocamento de um trem-visto de maneira diferente por um passageiro e por um observador numa estação. Da mesma forma, os pilotos das duas naves espaciais podem perceber que elas estão se aproximando uma da outra. Mas não podem dizer quem realmente está se movendo. Se o primeiro piloto estivesse parado e o segundo se movendo, este último poderia perfeitamente pensar que na verdade quem está parado é ele mesmo e quem está se movendo é o outro. Isso porque o movimento próprio não é observável, a menos que houvesse aceleração. Como os habitantes da Terra, os pilotos só percebem o movimento em relação a outros veículos espaciais, ou outros astros.
A lei da compensação
A descoberta que deu origem à bomba atômica
Uma bala de canhão tem como objetivo atravessar a placa blindada e destruí-la só com a força do seu impulso. Segundo os cálculos da tripulação da nave que disparou a bala, ela se moverá a 1000 metros por segundo até atingir o alvo. Novamente, os tripulantes da segunda não estão de acordo. Para eles, a bala se move a 800 metros por segundo, o que, em princípio, não seria suficiente para fazê-la atravessar a placa. Apesar disso, estão convencidos de que o projétil vai destruí-la.
Isso porque, embora seus cálculos mostrem que a velocidade da bala é menor, eles também mediram uma bala com uma massa maior. Esse fato compensaria a velocidade menor, garantindo assim o impulso necessário para perfurar a placa. Em altas velocidades, segundo Einstein, a energia do movimento se transforma em massa. Daí a famosa fórmula E = mc2, onde E é energia, m, massa, e c2, o quadrado da velocidade da luz no vácuo. Da mesma forma, uma pequena quantidade de massa pode transformar-se em grande quantidade de energia. Essa descoberta deu origem à bomba atômica.

Do elevador ao foguete
Duas forças que parecem diferentes podem ser equivalentes
Ao contrário do que pode parecer, a atração terrestre ou força gravitacional não é algo radicalmente diferente da aceleração. Essas duas forças provocam, na verdade, as mesmas conseqüências: a mudança na velocidade dos corpos sobre os quais elas agem. Um passageiro no elevador em ascensão sente o seu peso devido à gravidade que o puxa para o piso. De repente, o cabo do elevador se rompe. O homem pode morrer, mas, por estranho que pareça, não sentirá a própria queda. Como estará caindo junto com o elevador, ficará flutuando no pequeno espaço fechado-e só saberá que está caindo porque deixará de sentir o seu peso, isto é, a atração exercida pela força da gravidade. É exatamente essa a sensação dos astronautas lançados ao espaço vazio a bordo de uma cápsula em órbita. No momento do lançamento, os astronautas sentem a aceleração porque são pressionados violentamente contra os assentos. Quando os motores são desligados, deixa de existir a aceleração que lançou a nave ao espaço e os astronautas também deixam de sentir a gravidade. Eles flutuam no interior da nave, já que têm o mesmo movimento que ela. Ou seja, há uma equivalência entre gravitação e aceleração, como afirmara Einstein. O Principio de Equivalência e o postulado de que a luz caminha sempre à mesma velocidade, independente do observador, são essenciais à Teoria Geral da Relatividade.

As curvas do Universo
O que acontece com a luz ao passar por um buraco negro
A Relatividade Geral diz que o tempo não é algo essencialmente diferente do espaço. Assim, além das três dimensões conhecidas-comprimento, largura e altura-, o Universo tem uma quarta dimensão - o espaço-tempo. Esse espaço-tempo quadridimensional é flexível: suas formas se curvam quando contêm uma grande concentração de massa. Por exemplo, os planetas são mantidos em suas órbitas devido à força gravitacional, entendida como encurvamento do espaço-tempo produzido pela enorme massa do Sol. As depressões mostradas na ilustração são causadas pela concentração de massa, ou seja, são lugares onde a força gravitacional é especialmente forte. Da mesma forma, ali onde a paisagem é plana não há nenhuma ou quase nenhuma gravidade.
Segundo Einstein, uma certa quantidade de massa, como a de uma estrela, pode curvar até um raio de luz que passe por perto. Como a velocidade da luz não pode mudar, é o tempo que se adapta às curvaturas da paisagem. A velocidade da luz continua igual até em situações extremas, como, por exemplo, num buraco negro, onde o tempo simplesmente pára. Buracos negros são regiões hipotéticas do espaço com um campo gravitacional tão intenso que nada-nem a matéria, nem as radiações, nem a luz-pode escapar de sua atração. Eles se formam quando uma estrela maciça se funde depois de gastar todo o seu combustível nuclear, concentrado a sua massa em um ponto minúsculo. O espaço ao redor desse ponto curva-se indefinidamente, porque a massa também tende a se tornar infinitamente densa.


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sábado, 28 de janeiro de 2012

A outra Síndrome - AIDS

A OUTRA SÍNDROME - AIDS



Os efeitos sociais da AIDS revelam-se tão complexos como a própria enfermidade. Desde as campanhas educativas à exigência dos testes, todo um rol de problemas inesperados entra na ordem do dia. Uma coisa é certa: a doença mexe com a vida de todos.

Sete anos depois de ter sido identificada pela Medicina e de já ter provocado pelo menos 40 mil óbitos, a AIDS (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) derrama pelos quatro cantos do mundo uma variedade de conseqüências sociais tão complexas quanto a própria doença. De uma forma ou de outra, nas sociedades atuais ninguém está imune aos reflexos da AIDS nas relações humanas. "O problema da moléstia é muito maior do que aparece nas estatísticas de saúde", afirma Jonathan Mann, do alto de seu posto de observação como diretor do Programa Global da AIDS, da Organização Mundial da Saúde (OMS). "Existem implicações econômicas, comportamentais e demográficas que devem ser atendidas para atenuar o impacto pessoal da doença" adverte.
Foi com esse espírito que 1 milhão de delegados de 63 países e entidades internacionais como a OMS se reuniram recentemente em Londres para tentar montar o quebra-cabeça dos efeitos extraclínicos da AIDS. E, à medida que foram juntando as peças, começaram a enxergar os contornos de uma paisagem acidentada como poucas. Nela ressalta, por exemplo, o intrincado problema da linguagem, alcance e, em última análise, eficácia das campanhas de prevenção: como saber se elas estão ajudando de fato a conter a difusão de uma doença que - além de ser mortal e esconder ainda muitos segredos dos cientistas -tem a perversa peculiaridade de se manifestar só seis ou sete anos em média após o contágio?
Outro nó está na delicadíssima questão das tentativas (por parte de corporações e governos) de tornar obrigatórios os testes que identificam no organismo a presença dos anticorpos ao HIV, o vírus da AIDS: em que medida tais exigências podem configurar uma agressão aos direitos individuais e até que ponto têm alguma utilidade real? A reunião de Londres serviu também para confirmar que, assim como pode variar enormemente por país a proporção de doentes (por exemplo 2 por 100 mil habitantes na Alemanha e 20 por 100 mil nos Estados Unidos), também varia de país para país a escala dos problemas ligados à AIDS. Assim, enquanto na França o governo tem algum controle sobre 99 por cento do sangue usado em transfusões, no Brasil a fiscalização mal e mal cobre 50 por cento-uma carência que não pode ser subestimada, dado que as doações de sangue contaminado são uma das principais rotas de propagação da AIDS.
Mas, se com dinheiro e empenho os governos podem virtualmente acabar com o contágio por transfusão, muito dificilmente podem enquadrar as demais formas de transmissão, que, afinal de contas, de pendem exclusivamente do comportamento de cada um. "E nisso não se interfere sem tocar na liberdade individual", observa a médica Lair Guerra de Macedo Rodrigues, que representou o Brasil no encontro de Londres na condição de coordenadora do Programa Nacional de Controle da AlDS do Ministério da Saúde. "Neste particular, todos os países pisam o mesmo terreno escorregadio", constata.
O que torna o chão tão liso é o fato de se estar mexendo com um dos impulsos mais fundos do ser humano, a sexualidade-algo que, como na canção de Chico Buarque, "não tem juízo nem nunca terá". As obscuras leis que governam a conduta sexual de cada um às vezes se divorciam não só da moral sexual vigente como também dos mais razoáveis mandamentos do bom senso. Se a AIDS fosse tudo o que é, mas nada tivesse a ver com sexo, como tantas outras moléstias transmitidas por vírus, seria muitíssimo mais fácil apostar na racionalidade das pessoas como garantia contra a sua propagação. Para piorar ainda mais as coisas, a grande maioria dos transmissores da AIDS são pessoas clinicamente sadias-aquelas que (sem saber) carregam o vírus HIV mas ainda não apresentam os sintomas que ele provoca. Pelos melhores cálculos, existem para cada aidético entre 50 e 100 portadores do vírus. Isso significa que, se existem atualmente cerca de 80 mil casos notificados no mundo inteiro, a população de portadores pode chegar a 8 milhões. Mesmo que esses futuros doentes se distribuíssem mais ou menos por igual por uma centena e tanto de países, o mero porte de um número como aquele indica o tamanho do problema com o qual a humanidade terá de conviver antes que as esperadas mudanças de comportamento sexual se reflitam nas estatísticas (o que ainda é uma incerteza) e antes que a ciência descubra a cura ou a vacina para a AIDS (o que ainda vai demorar).
Em 1982, data das primeiras contas da OMS, os 366 casos da época haviam aparecido em dezenove países, incluindo o Brasil, com seis doentes. Hoje, a AIDS está em todos os continentes e em pelo menos 128 países. (Não se sabe, a rigor, se existe algum país sem AIDS; o que existe são países que não fornecem informações sobre o assunto.) No Brasil, com quase 3 mil aidéticos conhecidos e talvez outros 2 mil não registrados, o Ministério da Saúde estima em até meio milhão o número de possíveis portadores. A rapidez com que o vírus deu a volta ao mundo induziu alguns países a tentar barrar-lhe o caminho por meio de providências que em alguns casos deixaram à mostra uma face preconceituosa.
Na Índia (nove casos contabilizados) e na União Soviética (cinco) ninguém entra sem um teste anti-HIV negativo. Há pouco tempo, a cantora Alcione e os dezoito músicos que a acompanham precisaram submeter-se ao teste antes de viajar para uma temporada de shows na URSS. Mas nem sempre todos são iguais perante a AIDS-ou perante certos governos. A Bélgica, por exemplo, obrigou ao teste os quase mil estudantes negros do Zaire (sua antiga colônia) que ali residem, mas não incomodou alunos vindos de países brancos. O mesmo fez a Inglaterra em relação aos 1200 estudantes nascidos em Zâmbia, Uganda e Tanzânia, ex-colônias-e ainda em relação aos 20 mil turistas africanos, sem distinção de passaporte, que todo ano desembarcam em Londres. Só que não se exige teste dos ingleses que voltam de viagem da África.
Belgas e britânicos negam as acusações de racismo. Lembram que aqueles países não só estão entre os mais infectados como também que neles a AIDS não se espalha, como no Ocidente, a partir dos chamados grupos de risco (homossexuais, viciados em drogas injetáveis e hemofílicos), mas da população heterossexual. De fato, na região Centro-Leste, que compreende a Tanzânia, Ruanda, Burundi e Uganda, existem lugares onde um terço da população tem AIDS, incluindo mulheres e crianças. Ali a doença se propaga por causa da promiscuidade sexual. Mesmo assim, os especialistas da Organização Mundial da Saúde estão longe de se pôr de acordo sobre o efeito das políticas de testes obrigatórios para determinados grupos humanos. No Brasil, membros do governo e da classe média defendem que se exija teste anti-HIV de estrangeiros que solicitarem visto de permanência no país -umas 3 mil pessoas por ano. "Não vejo sentido nisso", objeta Lair Rodrigues, do Ministério da Saúde. Ela explica que, devido ao fato de não ser o teste verdadeiro em 100 por cento dos casos-daí os chamados "falsos positivos" e "falsos negativos" -, sempre se correrá o risco de se abrirem as portas a imigrantes contaminados e de fechá-las a pessoas sadias.
Mais complicado é o debate sobre a exigência do teste de candidatos a emprego. A discussão é muito acesa nos Estados Unidos, onde algumas corporações já adotam essa prática, enquanto uma lei a proíbe em empresas que recebem recursos do governo federal. Como no Brasil não existe lei alguma a respeito, a possibilidade de que certas companhias venham a pedir o teste preocupa o Conselho Federal de Medicina. "É uma questão de ética", explica Gabriel Oselka, vice-presidente do CFM. "O médico só deve informar ao empregador se o candidato está ou não apto ao trabalho; se é portador do vírus, só ele mesmo deve ser informado."
Com seus 13 500 funcionários espalhados por cinco Estados, a Rhodia é o exemplo da grande empresa que prefere apostar na informação e não na discriminação. Há dois anos ela gasta dinheiro em campanhas educativas, que incluem um filme de duas horas e meia sobre a AIDS. A Rhodia não oferece testes aos funcionários "porque não temos estrutura montada para isso", segundo Marcos Wasserstein, gerente do departamento médico. Mas não o nega aos interessados. A empresa tem dois funcionários com o vírus. Um deles, que já apresenta os primeiros sintomas da AIDS, recebe assistência de saúde. Nos Estados Unidos, onde um aidético gasta em tratamento algo como 20 mil dólares por ano (no Brasil o custo é um pouco maior devido aos medicamentos importados), as companhias de seguros estão em pé de guerra para recusar clientes portadores do HIV.
A maioria das seguradoras brasileiras já não dão cobertura a despesas com doenças infecto-contagiosas, como a AIDS. Uma exceção é o Itaú, com 1,2 milhão de clientes. "Não recusamos quem quer que seja", garante Alfredo del Bianco, diretor técnico da seguradora. "Damos cobertura à AIDS se a doença for notificada após o início do contrato e dentro dos limites nele estipulados." Com o inevitável aumento do número de aidéticos nos próximos anos, não faltarão episódios de discriminação. "Já é hora de as pessoas se organizarem pensando nisso", acredita o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa presidente da Comissão Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de São Paulo. Ele não vê, no caso da AIDS, um conflito entre direitos individuais e direitos coletivos, "mesmo porque, com o crescimento da doença, logo estaremos falando em direitos de uma coletividade com dezenas de milhares de indivíduos".
Nos Estados Unidos, onde em 1991 haverá 270 mil aidéticos, ocupando (em Nova York) dois em cada dez leitos de hospital, muita gente já reclama que as pesquisas sobre a AIDS consomem montanhas de dólares que deveriam ser gastas na busca da cura; para o câncer. Isso mostra uma competição por recursos sociais que só tende a se acirrar, com reflexos sobre a atitude das pessoas diante dos aidéticos. Também para conter esses conflitos as campanhas informativas são necessárias. "Elas são na verdade a única arma contra a AIDS", ressalta Lair Rodrigues. O problema é como fazê-las acertar o alvo.
Para começar, existe um verdadeiro tiroteio no escuro entre os que criticam as campanhas por serem desbocadas e os que acham que é preciso falar mais claro ainda. "Raramente a reação das pessoas é adequada", observa, desalentado, o médico Gabriel Oselka, do CFM. Além disso, para não pouco homossexuais, as campanhas não passam de propaganda moralista. Para um número talvez ainda maior de heterossexuais, as campanhas escondem que os riscos de se contrair AIDS são na verdade bem maiores. Mesmo em países desenvolvidos a desinformação e o medo alcançam níveis surpreendentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais da metade da população não sabe com segurança como o vírus da AIDS se transmite -e um em cada três médicos tem receio de tratar de aidéticos.
A paranóia não é menor aqui", suspira a médica Lair do Ministério da Saúde. "Quase todo dia algum colega me liga achando que pegou AIDS." Da mesma forma, a discussão sobre a linguagem das campanhas não é exclusividade desse ou daquele país. Na liberadíssima Dinamarca, uma organização de país conseguiu tirar do ar um filmete que insinuava sexo entre adolescentes. Na União Soviética, não poucas resistências precisaram ser vencidas para que um locutor pudesse dizer pela primeira vez na TV a palavra preservativo - agora, em março último. Na religiosa Itália, volta e meia trechos de filme sobre AIDS são censurados. É provável que, para funcionarem, as campanhas devam mesmo ser fortes, diretas e sem meias palavras. Mas não há como negar que, irrompendo nas casas via TV, proporcionam uma aula de educação sexual, prematura e carregada de problemas, ao público infantil. A AIDS também obriga as sociedades a virar a cabeça diante de certos comportamentos até bem pouco tempo frontalmente reprovados. Em Nova York, por exemplo, já se distribuem agulhas descartáveis a drogados, para que ao menos não transmitam o vírus. A experiência sofre cerrada oposição de setores sociais para quais ela significaria na prática aceitação da droga. Em outros Estados americanos, briga-se por causa da iniciativa de distribuir preservativo nas prisões: segundo os críticos, isso estimularia o homossexualismo, "Seria ótimo se o mesmo fosse aqui", retruca o médico Gabriel Oselka. Motivo: estima-se que até três em cada dez dos 300 mil sentenciados brasileiros são portadores do vírus HIV.
Às vezes, o próprio público-alvo rejeita as campanhas. Em certas tribos africanas, apesar das advertências, não se pensa em parar com certos ritos que envolvem cortes no corpo-uma prática milenar que se transformou em outra fonte de transmissão da AIDS. Apesar desses percalços todos, os maiores especialistas no assunto insistem em que só não se pode uma coisa na guerra contra a doença: ferir os direitos das pessoas. Não se trata apenas de um valor moral. Como observou na reunião de Londres, o diretor do programa da AIDS da Organização Mundial da Saúde, Jonathan Mann,"as ameaças aos direitos individuais acabam estimulando clandestinidade da doença-mais casos deixarão de ser notificados e mais difícil ficará atacar o problema".

De vigia a traidor

Cientistas americanos descobriram recentemente que o vírus da AIDS penetra no organismo não apenas na forma de microorganismos soltos no sangue ou no esperma, mas também dentro de macrófagos-e isso faz uma enorme diferença. Células do sistema imunológico, os macrófagos têm o notável poder de romper barreiras: assim, atravessam as paredes dos vasos sangüíneos em direção à mucosa ou em sentido contrário. Nesse trajeto, eles prendem os agentes estranhos que encontrarem, como os vírus, para que sejam melhor atacados pelo exército de anticorpos do sangue. Ora, se o HIV pode contaminar os macrófagos, isso significa-ao contrário do que se tinha como certo-que a transmissão do vírus não depende necessariamente do rompimento de microvasos sangüíneos durante a relação sexual.
Dentro dos macrófagos, os vírus atravessam a mucosa até chegar à corrente sangüínea O pior, nesse processo, é o que acontece com os próprios macrófagos. Normalmente, são eles que disparam os mecanismos de defesa do organismo, ao avisar as células que portam um inimigo a ser combatido. Infectados pelo vírus da AIDS, porém, eles passam a agir como traidores, deixando de avisar que há um invasor a caminho. Sem esse alarme, uma eventual vacina anti AIDS poderia ser inútil, visto que os anticorpos adquiridos graças a ela não seriam despertados. A descoberta, portanto, sugere que há mais obstáculos entre a AIDS e sua cura do que supunha a ciência.



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Deixando de Fumar - Vicio

DEIXANDO DE FUMAR - Vicio



A luta para largar o cigarro é um vale-tudo. Sem muita força de vontade não há campanha ou pressão que resolva.

Há pelo menos quatro anos o ator Nuno Leal Maia anota todos os dias na agenda a quantidade de cigarros que fumou. Assim, descobriu que nunca ultrapassa a marca de quinze-melhor ainda, alguns dias a agenda fica em branco, prova de que não fumou nada. Essa proeza ele conseguiu submetendo-se a um treinamento curto e grosso: trancou-se um dia inteiro dentro de casa sem fumar. "Foi ai que comecei a me libertar um pouco da muleta", conta o ator, um homem bem menos simplório na vida real do que o bicheiro Tony Carrado por ele interpretado na novela Mandola. Mesmo assim, ainda não conseguiu vencer o vício: basta ficar tenso para acabar fumando. Assim como Leal Maia, um número indeterminado mas ao que parece cada vez maior de brasileiros levanta todos os dias com a disposição-inabalável porém nem tanto, como se verá-de romper relações com o cigarro. Eles são a fatia arrependida de uma legião de 33 milhões de pessoas (algo como quatro em cada dez habitantes) que devem queimar este ano 168 bilhões de cigarros. É uma áspera peleja, essa de apagar o derradeiro cigarro e não tornar nunca mais a acender outro. Só os que tentaram e conseguiram sabem o quanto custa. Para começar, o candidato a ex-fumante vive num mundo onde é mais fácil ele ser estimulado a retomar o hábito do que o contrário.
Além disso, nos primeiros tempos de abstinência, os sintomas físicos e psíquicos tendem a ser desencorajadores. Por fim, como o cigarro está associado a uma série de situações prazerosas, das quais não há razão para se privar, o desejo de voltar atrás muitas vezes ameaça afogar as mais firmes promessas. Não são raros, por isso, os que acabam voltando. Estimativas sugerem que sete entre dez pessoas as desistem antes de completar um ano longe do fumo. Depois, porém, as chances de recaída diminuem drasticamente. O segredo, aparentemente, está em tentar de novo-e de novo-até vencer a batalha. Foi o que aconteceu com o pianista Arthur Moreira Lima, que fumou dos 15 aos 40 e libertou-se há sete anos, cansado de respirar mal e do gosto ruim que Ihe deixavam na boca os quatro maços consumidos por dia. Ele já fizera três tentativas, até que um dia decidiu procurar um acupunturista na esperança de que a aplicação de agulhas em pontos da orelha o ajudasse, como tinha ouvido dizer. "Era uma sexta-feira e a consulta estava marcada para a tarde. Aí pensei comigo: "Por que não paro agora mesmo de manhã? ", lembra-se ele com precisão. Moreira Lima não sabe, a rigor, se foi a acupuntura ou a força de vontade o que resolveu a parada. Mas recorda como se fosse ontem os heróicos tempos sem o cigarro: o primeiro fim de semana foi terrível e para me ocupar fiquei arrumando os armários de casa. O primeiro mês também foi o mais difícil. Eu comia chocolate feito doido; engordei uns 5 quilos. Mas depois fui me acalmando. Comecei até a pensar melhor".
Ex-fumante há nove anos, depois de 24 de cigarro entre os dedos, a atriz Dina Sfat também tinha tentado parar mais de uma vez, porque se sentia cansada e não respirava direito. "De repente, depois de vários fracassos, resolvi que fumar era ridículo e larguei", diz. A decisão mexeu com muita coisa em sua vida cotidiana. "Minha primeira providência foi cortar o café da manhã, para desfazer uma forte associação com o cigarro. Em compensação, passei a comer doces", lembra. Moral da história: Dina engordou 6 quilos (que perdeu um ano e meio depois à custa de muita ginástica), mas nunca mais fumou. Como Moreira Lima e Dina Sfat, muita gente engorda quando pára de fumar-algo que, nestes tempos de culto à forma física, pode submeter a dura prova uma decisão de banir o cigarro, mas na verdade é uma das evidências mais palpáveis das mudanças que ocorrem no organismo. Isso porque as células passam a respirar melhor e a metabolizar melhor os alimentos.
Não há dúvida, porém, de que se engorda também por causa de tudo que se leva à boca (e ao estômago) para compensar a falta de um cigarro nos lábios, principalmente balas, chocolates, chicletes e assemelhados. Outras válvulas de escape diminuem a tensão sem a desvantagem de aumentar o peso-no máximo, podem virar cacoetes: morder lápis, tampas de caneta, hastes de óculos ou o que estiver ao alcance da mão.
Afinal, explica o psiquiatra Arthur Kaufman, da Universidade de São Paulo, "como o cigarro representa quase um companheiro, as pessoas ficam sem apoio afetivo quando param de fumar; por isso alguns passam a consumir mais café, analgésicos e tranqüilizantes, na tentativa de substitui-lo". Em sua opinião, os motivos que levam o fumante a tentar abandonar o hábito-conselhos médico, campanhas educativas, conhecimento sobre os males do fumo, uma doença em família-não bastam logicamente para garantir a vitória na batalha. "É acima de tudo uma questão de resistir à frustração", acredita ele, credenciado por sua condição de ex-fumante.
Depois de vinte anos, Kaufman deixou de fumar pela primeira vez quando começou a escrever um artigo sobre os aspectos psicológicos do tabagismo. Duas recaídas mais tarde (a primeira ao cabo de vinte meses), recorreu à acupuntura e está sem fumar há um ano e meio. "Mas a determinação ajuda bastante", diz o médico. Resistir à frustração, como todos sabem, não é um desafio simples e é justamente quando enfrentam situações emocionais difíceis que alguns ex-fumantes acabam sucumbindo. Assim aconteceu com a assistente social Cecy Gonçalves, que parou duas vezes e duas vezes recomeçou por causa de complicações sentimentais. "Há questão de um ano resolvi segurar a barra tentar parar de vez", diz. "Por isso, conto cada cigarro que fumo-cinco em média por dia-e cada vez a consciência pesa mais, porque sei que estou me prejudicando", confessa ela.
De modo geral, problemas de saúde, menos ou mais graves, são a causa principal das decisões de abandonar o tabagismo. Não se sabe que influência em no Brasil as campanhas antifumo ou as notícias sobre restrições ao cigarro em outros países. Tampouco se sabe porque certas pessoas deixam de fumar e não sentem nada. Há quatro anos o advogado Luis Antônio Campos Arrudão descobriu que precisava fazer exercícios para baixar a taxa de gordura no sangue. Por isso ele deixou o cachimbo que fumava há dez anos. "Foi tranqüilo. Não tive qualquer tipo de ansiedade", garante.
Situação bem mais dramática-pelo motivo e pela dificuldade de parar -viveu um dos fumantes mais notórios do país, o senador paulista Mário Covas, quatro maços por dia. Em conseqüência de uma angina, que há dois anos o obrigou a uma semana de hospedagem no Instituto do Coração de São Paulo, muito a contragosto Covas deixou o partido dos fumantes. Isso, porém, não o livrou de uma cirurgia de ponte de safena no ano passado. O senador, que anos a fio ignorou os apelos de parentes, amigos e eleitores para aderir ao antitabagismo, ainda hoje não resiste à tentação de levar um cigarro aos lábios-felizmente para ele, o cigarro está sempre apagado. Tamanha é a força do hábito que, além disso, Covas mantém os gestos típicos de fumante: bate o cigarro na cinzeiro e o "apaga".
Às vezes nem o bisturi é suficiente. O prefeito de Petrópolis (RJ), Paulo Rattes, deixou de fumar após uma cirurgia de safena em 1984. Resistiu bravamente até 1986, mas a agitação da campanha eleitoral de sua mulher Ana Maria à Câmara dos Deputados revelou-se mais forte que o medo de um novo susto cardíaco. "É um hábito mecânico, tanto dos dedos como dos lábios", justifica o prefeito. Embora não fume mais os quase seis maços de antigamente, o cinqüentão Rattes fila um maço por dia dos amigos e costuma mastigar hastes de óculos, obrigando sua secretária a mandar trocá-los a cada quinze dias. Pressionado pela familia e pelos amigos que colocaram em sua mesa um pequeno cartaz com a frase "Ame-se e deixe-o", Rattes confessa que todos os dias pensa em parar de fumar. "Vou conseguir", promete.
Por mais que o cumprimento de tais promessas dependa da disciplina de cada um, é claro que o clima social, menos ou mais tolerante em relação ao fumo, joga um papel de peso. No Brasil, onde provavelmente há mais novos fumantes do que ex, o ambiente, de modo geral, ainda não é hostil ao tabagismo, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, onde os fumantes são hoje apenas 26 por cento da população (contra 42 por cento há vinte anos). Ali, um relatório da Academia Nacional de Ciências, chamando a atenção para os riscos de saúde que correm os fumantes passivos ou involuntários- aqueles que convivem com o fumo alheio em casa ou no trabalho-, vem tornando o ar muito pesado para os dependentes da nicotina. Em Nova York, por exemplo, uma lei recente proíbe fumar em táxis, lojas, hospitais, escritórios, museus, teatros e bancos e ainda obriga os restaurantes com mais de cinqüenta lugares a reservar metade das mesas a não-fumantes. Ao mesmo tempo, uma lei federal baniu o fumo de todos os vôos domésticos de duração inferior a duas horas. Os Estados Unidos são reconhecidamente os campeões mundiais da atual onda antitabagista.
Na maioria dos países europeus, sem falar no enfumaçado Oriente, fumar ainda é um hábito aceito pela grande maioria das pessoas. No entanto, em 68 países existem leis de combate ao tabagismo, incluindo (em 42 casos) medidas de proteção aos não fumantes. Às vezes, porém, o fumo faz inimigos onde menos se espera. Quem diria que o presidente do país que é o terceiro maior produtor mundial de tabaco começasse uma guerrilha contra o tabagismo? Pois foi o que aconteceu em Cuba, onde há dois anos Fidel Castro não só jogou fora o charuto que sempre esteve associado à sua imagem como também mandou promover ampla campanha antifumo. Nem por isso Cuba deixou de produzir seus afamados charutos. No Brasil, quem gostaria de se livrar do cigarro pode encontrar algum apoio nas campanhas que o governo começou a promover de dois anos para cá.
Existe até um Dia Nacional de Combate ao Fumo (29 de agosto) como parte do Programa Nacional de Combate ao Fumo. O alvo da propaganda contra o fumo são principalmente os jovens. Faz sentido: 20 por cento da população entre 15 e 19 anos -quase 3 milhões de pessoas-são fumantes. "A meta é criar uma consciência nacional para que os jovens nem comecem a fumar", explica o pneumologista José Rosemberg, do Grupo de Controle ao Tabagismo do Ministério da Saúde e seguramente a maior especialista brasileiro no assunto. Não há quem não perceba que as coisas começam a mudar. "Muitos fumantes, hoje, já perguntam aos outros se podem acender um cigarro", observa com satisfação Rosemberg.
De fato, ao acender o cigarro, o fumante é visto como aquele egoísta que incomoda muita gente. Para reforçar ainda mais essa idéia, os antifumantes espalham onde podem cartazes e adesivos contra o cigarro e fazem desaparecer os cinzeiros. É quase certo que essa pressão social induza os fumantes a pensar duas vezes antes de acender um cigarro-se não por amor à saúde, pelo menos por vergonha. No início do ano passado, ao criar cinco cartazes para uma campanha antitabagista, o cartunista Ziraldo Alves Pinto aproveitou a ocasião e deixou de fumar. "Era complicado viver a situação - do "faça o que eu mando mas não faça o que eu faço", explica ele, outro sócio do vastíssimo clube dos que tentaram parar mais de uma vez. "Deixar de fumar é uma saga", discursa Ziraldo. "Você tenta uma, duas, três vezes e acaba voltando." Para não voltar de novo, ele descobriu que o jeito é "botar na cabeça que você tem ódio do cigarro". Não porque tivesse ódio ao cigarro, mas porque a tosse e o pigarro estavam interferindo em seu trabalho, a atriz Cristiane Torloni deixou de fumar no primeiro dia deste ano. "Pouco depois", conta, "senti a maior gratificação em cena, quando percebi minha voz muito melhor." Isso, mais o aplauso dos filhos gêmeos de 9 anos, dão-lhe ânimo para não desistir. "De qualquer forma", observa, "a situação está ficando chata para quem fuma."
Leis contra o fumo no Brasil existem há bom tempo-mas poucas pessoas conhecem direito e menos ainda se preocupam em cumprir a legislação. Em São Paulo, por exemplo, é proibido fumar em elevadores, meios de transportes urbanos, hospitais e áreas de saúde, museus, lojas e supermercados, cinemas, teatros e garagens. No Rio de Janeiro é proibido fumar em recintos fechados e estabelecimentos comerciais É ainda proibido (desde 1958) fumar em ônibus. Também em outras capitais, como Florianópolis e Porto Alegre, existem leis semelhantes. É humanamente impossível fiscalizar o cumprimento desse tipo de lei. Ela será ou não respeitada conforme a atitude das pessoas -fumantes e não fumantes - diante da transgressão.
Se em muitos ambientes o fumante se sente uma espécie de agressor, isso resulta, não da existência de leis e fiscais, mas da iniciativa das vítimas- os não-fumantes reivindicando os seus direitos. Da mesma forma, não há lei no mundo capaz de fazer com que alguém deixe de fumar. A última tragada vai depender sempre dos pulmões e da consciência de cada um.

"Uma bela tarde, depois que deixei o cigarro, tomei um copo de vinho. Foi um prazer extraordinário como eu nunca tinha sentido"Dina Sfat, 49 anos, atriz, ex-fumante"Logo que saí do hospital, não tinha desejo de fumar, porque o receio era mais forte que a vontade "Paulo Rattes, 54 anos, prefeito de Petrópolis, fumante. "Não posso ver defunto sem chorar. Sempre que alguém acende um cigarro perto de mim me dá vontade de fumar"Nuno Leal Maia, 40 anos, ator, fumante"Sem fumar, o estudo rende muito mais e me livrei do problema de queimar as teclas do piano com os cigarros caídos do cinzeiro" .Arthur Moreira Lima 47 anos pianista, ex-fumante"Vou para o Instituto do Coração mas não deixo de fumar." (1983)"O caminho mais curto para o Incor é o maço de cigarro." (1986)Mario Covas, 58 anos, senador, ex-fumante


O mal e o bem da abstinência

Quem deixa de fumar geralmente experimenta um conjunto de sintomas desagradáveis que variam em intensidade e duração-de 24 horas a dois meses, em média. É a síndrome da abstinência, que se caracteriza por inquietação, ansiedade, nervosismo, fadiga, perturbações do sono e do ritmo cardíaco, dificuldade de concentração no trabalho e, naturalmente, intensa vontade de fumar. O motivo é a supressão da nicotina, um alcalóide presente nas folhas do tabaco; sua ação no sistema nervoso central cria a dependência, cujos mecanismos ainda são desconhecidos. É isso que explica o pouco êxito das drogas antagônicas à nicotina.
Depois de uma tragada, as substâncias tóxicas do fumo chegam ao pulmão, vão para o sangue e se difundem pelo organismo. Quando a nicotina chega ao cérebro, aumenta a produção de substâncias que através da circulação atingem o coração. Sem a nicotina, o organismo passa por uma readaptação. Livres do monóxido de carbono (que combinado com a hemoglobina do sangue acaba limitando a oxigenação do organismo), as células tornam a respirar. A irrigação sangüínea se normaliza e a pele recupera o viço. Sem as substâncias tóxicas do fumo, que lesam as papilas gustativas e o nervo olfativo, os ex-fumantes redescobrem cheiros e sabores. Com a desintoxicação do cérebro, o sono também melhora.

Guerreiros do Ar - Combate

GUERREIROS DO AR - Combate



Os novos aviões de combate são como falcões equipados com computadores. Neles, os ases da caça e os mais avançados recursos eletrônicos agem como partes de um mesmo organismo.

A cena se passa num dia qualquer de 1998. O lugar pode ser um país do hemisfério norte. No frio amanhecer, as silhuetas cobertas de gelo dos caças alinhados na pista aparecem recortadas contra o horizonte. De capacete e com o traje escuro que o fazem parecer um personagem de ficção científica, o piloto é levado por um carrinho elétrico para junto do avião. A uma ordem verbal, identificada por um dos computadores de bordo, a carlinga transparente se abre. Já dentro, conectado ao assento ejetor, o jovem oficial começa a sentir o ar quente do sistema de manutenção vital penetrar no traje de vôo. É o momento de ligar o dispositivo antiG, um tubo que entra na roupa pouco acima do joelho esquerdo e serve para injetar ar comprimido, de forma a contrabalançar os efeitos da gravidade artificial resultante de manobras repentinas.

Com base no desempenho dos melhores caças atualmente em serviço, como o F-16 americano e o Sukhoi Su-27 soviético, já começam a ser testados os protótipos dos aparelhos que tentarão dominar os céus no final do século. Um bom exemplo da geração que vem aí é o Lavi israelense, capaz de voar a 1900 quilômetros horários, carregando sob as asas um par de mísseis ar-terra, além de canhões, bombas e, ainda, nas pontas, dois foguetes-7 toneladas de armamentos ao todo.
Nesse modelo se destacam o canard -pequena asa presa ao lado da carlinga, que dá ao avião maior poder de manobra-e a qualidade dos chamados aviônicos, os componentes eletrônicos do aparelho. O radar do Lavi, localizado no nariz, será dirigido por um microprocessador programável apoiado por uma rede embutida de computadores extremamente avançados, que terá a capacidade de manejar todo o avião. No mesmo estágio de protótipo está outro guerreiro do futuro, o Eurofighter, criação de um consórcio de países europeus na Inglaterra, cuja característica mais marcante é só precisar de 500 metros de pista para levantar vôo. Enquanto isso, a França lançou o Rafale, que se destina a substituir os Mirage a partir de 1996. Segundo seus construtores-por sinal os mesmos da família Mirage-, o Rafale é a última palavra em aviação de combate. Reúne o que há de mais sofisticado em eletrônica, além de novos materiais como o titânio e derivados do carbono. Deverá ser capaz de destruir ao mesmo tempo até oito aviões inimigos, voando a altitudes diferentes e em direções opostas, à distância de até 30 quilômetros. De seu lado, a Suécia comparece com o Saab Grypen JAS 39. Com apenas 8 metros de envergadura, é o menor de sua geração ). À frente do piloto, o painel de controle apresenta a situação geral do aparelho, cujos reatores haviam sido ligados por controle remoto momentos antes da sua chegada. "Bom dia, tenente", soa a voz sintetizada dentro de seu capacete. A voz confirma os dados que aparecem na tela do monitor colorido do painel. Imediatamente, enquanto o computador começa a mover o avião rumo à pista de decolagem, o piloto toma conhecimento de sua missão por meio de um relato verbal do computador, enriquecido com mapas e ilustrações projetados no monitor. O audiovisual nem terminou e o caça já levanta vôo: bastaram-lhe 300 metros de pista.
Se nos anos 60 e 70 a velocidade e a capacidade de levar armamentos é que definiam a cotação de um novo caça no disputadíssimo mercado internacional de aviões de combate, o final do século será testemunha da valorização de um perfil diversificado.
O caça dos sonhos dos pilotos de hoje seria uma contraditória mistura do triplano Fokker do barão Von Richthofen-o temível Barão Vermelho da Primeira Guerra Mundial - com o supersônico S R-71, o avião espião americano Blackbird que ultrapassa Mach 2, o dobro da velocidade do som. Ou seja, unir a leveza e o poder de manobra de um antigo triplano com a força e a velocidade de um superjato. O mais ambicioso programa conhecido para um futuro caça de combate (pelo menos fora da União Soviética) é o do americano ATF, sigla em inglês de Caça Tático Avançado. Para gerá-lo concorrem as sete melhores equipes de projetistas da indústria aeronáutica dos Estados Unidos. A recompensa é um contrato estratosférico 50 bilhões de dólares.
Especula-se que a Força Aérea e americana tenda a escolher.os projetos das empresas Lockheed e s Northrop-talvez não por acaso as mesmas que detêm a tecnologia dos chamados aviões invisíveis ou stealth, desenhados para driblar os sistemas de detecção do inimigo. Pretende-se que o ATF seja capaz de usar pistas mínimas e ainda por cima danificadas de dar combate ao mesmo tempo a vários caças inimigos, dentro ou fora do alcance visual do piloto, e subir a 20 mil metros de altitude em um minuto.Tudo isso com uma eletrônica tão sofisticada que fará do ATF uma espécie "supercomputador de rapina". como dizem americanos. Missão: destruir posição de artilharia inimiga. Localização: 428 quilômetros da base. Defesa a ser enfrentada: mísseis inteligentes terra-ar. Possibilidade de confrontação aérea: positiva.
Em segundos, o avião ganha altitude. Seu perfil lateral estreito. A carlinga tem uma cobertura de policarbonato que se destaca corpo do aparelho. As asas, encurvadas para baixo e arredondadas absorver as ondas de radar, são enflechadas para trás, dando a impressão de que o avião voa ao contrário a mão direita sobre o reduzido manche, o piloto dirige o caça para um sobrevôo rente ao solo para fugir à detecção. Chegando à altitude desejada, aperta uma tecla amarela no console à sua esquerda. A tecla aciona um computador localizado na barriga do avião, que controla automaticamente as manobras necessárias para mantê-lo num trajeto paralelo ao perfil do terreno. Acionando outro botão ao alcance da mão que segura o manche, o piloto ordena ao computador central que ativa sua visão eletrônica, fazendo uma busca de 360 graus num raio de mais de 100 quilômetros. Por enquanto, nenhum outro aparelho à vista. Novo movimento do polegar ativa o controle de ataque por voz humana. "Foco do alvo, acionar", comanda o piloto. "Estado das defesas inimigas?", pergunta. "Passivas", responde imediatamente o computador.
O aperfeiçoamento constante dos sistemas de defesa tem obrigado os aviões de combate a voar o mais baixo possível. Como voar baixo é bem mais complicado do que voar alto, devido ao problema da estabilidade do avião, "o número de decisões a serem tomadas pelo piloto por unidade de tempo aumenta rapidamente", segundo constata o especialista inglês Bill Gunston, da Jane´s All the World´s Aircraft, a mais respeitada publicação aeronáutica do mundo. Tanto que cada ato do piloto é transmitido ao avião por meio de impulsos elétricos (bits digitais) transportados por fibras óticas as informações percorrem o trajeto em frações mínimas de tempo, dentro de um cabo de 25 milímetros de diâmetro. A alavanca ou manche lateral, como um joystick de fliperama, começou a ser introduzido nos modernos caças F-16 americanos e tende a se tornar equipamento padrão. A inovação, adotada pela primeira vez na aviação civil no Airbus A320 francês, facilita o controle do aparelho, pois cada movimento do manche determina eletronicamente uma resposta dos sistemas hidráulicos que movimentam os flaps das asas. Outra característica da nova geração de caças é a drástica redução da quantidade de instrumentos na cabine. O F-18, Hornet, americano, opera com uma cabine quase completamente monitorizada-para ocupar o mínimo da atenção do piloto. Isso se conjuga com a miniaturização dos componentes eletrônicos: quanto menores os aviônicos, maior número deles cabe no avião, o que permite multiplicar os sistemas vitais montados em paralelo. Assim, se um aviônico essencial ao funcionamento do caça é atingido, o computador central passa a trabalhar com outro idêntico, localizado em outra parte da aeronave e tudo segue como antes. "Alvo a 2 quilômetros", diz a voz do computador. Com o dedo, o piloto aperta o gatilho do manche, acionando os mísseis ar-terra inteligentes presos sob as asas. Sua velocidade é tão rápida que o piloto prefere acompanhar a trajetória no monitor. Graças a seus microcomputadores autônomos-daí sua característica inteligente-, os mísseis voam rente ao solo e em 20 segundos atingem o alvo. "Impacto", constata o computador. "Alvo atingido", completa. Dura pouco, porém, a satisfação do piloto. "Caça inimigo detectado", informa a máquina. Imediatamente aparece na tela a posição do adversário, devidamente identificado pela silhueta, marca, autonomia de vôo e capacidade bélica. Sem tirar os olhos do monitor, o piloto ao mesmo tempo reduz a velocidade do avião e o faz cair sobre a asa direita, numa curva fechada. Outro movimento repentino e o caça começa a subir rapidamente. "Armamentos de combate, acionar", ordena o piloto.
Embora seja mais um avião de pesquisa do que um caça operacional, o Grumman X-29 americano fornece o perfil do que será o combatente dos ares no final do século. Com uma tecnologia peculiar, menor tamanho e bom desempenho nas mais diversas condições de vôo, o X-29 tem as asas voltadas para a frente, o que melhora o aproveitamento do fluxo de ar que percorre o corpo do avião em vôo. As asas têm um revestimento de fibra de carbono para suportarem maior atrito com o ar. Além disso, ao lado da cabine há um par de asas móveis (cannards), cujo ângulo é checado e ajustado por um computador quarenta vezes por segundo. A fuselagem esguia do caça termina nos flaps estabilizadores, que proporcionam maior controle quando o avião perde a sustentação no ar (estol). O primeiro a atirar foi o inimigo. Com uma guinada rápida sobre a esquerda, o piloto conseguiu desviar-se do míssil. Com outra guinada, desta vez para a direita, faz uma curva bem fechada, reduzindo bastante a velocidade, para se pôr atrás do oponente e sair em sua perseguição. Como numa briga de gato e rato, toda manobra do perseguido é imediatamente respondida pelo perseguidor. Assumindo o papel de piloto artilheiro dos caças de gerações atrás, o computador informa: "Inimigo no alvo, disparar".Quando a eletrônica passou a ocupar a aviação militar, chegou-se a imaginar que os pilotos de caças estivessem com os dias contados. Máquinas comandariam máquinas, dispensando praticamente o engenho humano. A previsão espatifou-se. "O piloto é mais importante hoje do que na Batalha da Inglaterra", compara o engenheiro aeronáutico Anastácio Katsanos, brasileiro de origem grega, assessor da diretoria de Programas Militares da Embraer, numa referência aos famosos combates aéreos entre ingleses e alemães no começo da Segunda Guerra Mundial. De fato, se então nunca tantos deveram tanto a tão poucos, como disse o primeiro-ministro britânico Winston Churchill em homenagem aos pilotos que salvaram a Inglaterra da invasão alemã, hoje se acredita que no moderno cenário de combate aéreo o papel de um piloto bem treinado é nada menos que definitivo. "Isso foi provado tanto nos combates entre israelenses e sírios no Oriente Médio como na Guerra das Malvinas, entre ingleses e argentinos", observa Katsanos, que acompanha os projetos das Forças Aéreas de todo o mundo. A rigor, piloto e avião são cada vez mais partes complementares de um mesmo organismo. Diz o inglês Bill Gunston: "O piloto tornou-se um administrador que toma decisões de posse das informações instantâneas que Ihe são passadas pelo computador central. Isso só aumenta sua perícia na hora do combate.O piloto aperta o gatilho do manche e dispara uma rajada do canhão de projéteis guiados por laser. Em vão. O inimigo já se havia desviado para cima, dando início a um movimento que acabaria por deixá-lo na traseira do oponente. Com um giro rápido sobre o próprio corpo do avião, o piloto agora no papel de perseguido fica por um instante de cabeça para baixo. A manobra quase o fez tocar o solo, mas o resultado foi perfeito. À medida que subia na vertical, o inimigo se colocou sem querer dentro do campo de ação dos mísseis ar-ar inteligentes. O disparo foi instantâneo. Em fração de segundos, o avião adversário era uma bola de fogo se consumindo como um meteoro. Um estilhaço do caça atingido quase acerta a carlinga do vitorioso. O exercício de combate simulado por computador estava encerrado.

Salvos pelo Mimetismo - Insetos

SALVOS PELO MIMETISMO - Insetos



Certos animais fingem ser o que não são para escapar de seus perseguidores. Moscas parecem vespas, borboletas saborosas parecem venenosas, sapos parecem monstros pré-históricos. Eles são a melhor demonstração de que as espécies evoluem pela seleção natural, com a sobrevivência dos mais aptos, tal como Darwin descobriu há mais de um século.

Se a legendária figura de Sherlock Holmes houvesse um dia se aventurado pela Amazônia, caçando borboletas com uma redinha de filó, certamente estaria na pele de um naturalista inglês que viveu no século XIX, chamado Henry Walter Bates. Bates não era um detetive, mas, tal como Holmes, conseguiu enxergar através de sua lente de bolso as pistas de um grande mistério. Aliás, de um dos maiores enigmas biológicos ligados à história evolutiva das espécies. O fenômeno, parcialmente esclarecido por Bates, tem hoje o nome de mimetismo batesiano, em sua homenagem, mas na época do naturalista ficou conhecido como "o estranho caso das borboletas imitadoras".
Depois de haver passado onze anos embrenhado na selva amazônica, Bates embarcou de volta para a Inglaterra em 1860, levando uma espantosa coleção de animais e plantas. Mas foram os insetos e, muito em particular, as borboletas que acabaram se tornando o principal objeto de suas investigações. Maravilhado com a exuberância da fauna tropical, ele já havia escrito em seu livro O naturalista no rio Amazonas que capturara cerca de setecentas espécies de borboletas, depois de alguns passeios em volta da cidade de Belém. Bates tinha conhecimento de que em toda a Europa só haviam sido registradas 341 espécies e que ele retornara, portanto, com uma das maiores coleções de borboletas do mundo.
Porém, entre todas aquelas centenas de caixas repletas de exemplares belos e exóticos, havia uma que reservava algo de muito mais importante. Ela estava rotulada com a palavra Heliconii, indicando tecnicamente o conteúdo: um grupo bem característico de borboletas tropicais (hoje é a família das helicônidas). Quando o naturalista passou a examiná-las detidamente, com o auxílio de sua lente de bolso, verificou, surpreendido, que a caixa estava cheia de falsas helicônidas.
Sem dúvida, Bates tinha levado para casa "gato por lebre". Só que, naquele caso, os "gatos" é que eram de grande valor, pois evidenciavam um alto padrão de imitações entre animais sem nenhum parentesco entre si. Aquilo foi suficiente para despertar na cabeça do naturalista uma série de recordações adormecidas desde a época em que caçava insetos nas florestas da Amazônia. Ele recordou-se de como eram abundantes as helicônidas em algumas regiões que visitara e que, a despeito de seus coloridos chamativos, raras vezes eram atacadas pelos pássaros caçadores de insetos. Bates entregou-se, então, a uma série de suposições. Se aquelas borboletas não eram perseguidas por seus predadores naturais, possivelmente não deveriam servir de alimento e a causa mais provável daquilo seria, de certo, um gosto muito ruim. Talvez, se o colorido de certas borboletas "comestíveis" se aproximasse do padrão Heliconii, elas tivessem alguma vantagem na luta pela sobrevivência ao se passar por repulsivas frente aos predadores. Daí por diante, através de sucessivos cruzamentos entre si, elas produziriam raças cada vez mais parecidas com as verdadeiras helicônidas.
Essas brilhantes deduções teriam feito com que o naturalista retirasse o cachimbo da boca e exclamasse um "elementar, meu caro Bates", se ele não soubesse o quanto seria difícil comprová-las. E isso ele jamais chegou a fazer completamente. Entre tanto, todas as suas investigações sobre as borboletas "imitadoras" foram apresentadas em 1861, incluídas num trabalho de grande vulto sobre os insetos da Amazônia. Aí, pela primeira vez, os cientistas tomaram conhecimento da existência de um incrível fenômeno biológico batizado de mimetismo.
Uma experiência desagradável pode permanecer na memória de um animal por um certo tempo. Por exemplo: gosto ruim de uma presa. É quase certo que nas investidas seguintes o predador irá evitar qualquer presa que se assemelhe a um modelo reconhecido como repulsivo. Esse processo de aprendizado, tão comum entre os animais, foi profundamente observado em pássaros insetívoros, demonstrando que as formas, as cores e o comportamento de borboletas determinam a freqüência dos ataques das aves caçadoras.
Muitas espécies de borboletas são evitadas como alimento porque em seus organismos circulam substâncias repulsivas e venenosas. Essas substâncias são geralmente alcalóides de origem vegetal, absorvidos pelas lagartas que se alimentam de plantas tóxicas. Mesmo depois da metamorfose, os alcalóides continuam incorporados ao inseto adulto, tornando-o repulsivo para diversos predadores. Principalmente para aves .
Quanto mais abundante for uma espécie de borboleta repulsiva numa determinada área, tanto mais rápido será o "aprendizado" da população de pássaros insetívoros dali. Pequenas variações de colorido ou desvios na distribuição dos desenhos das asas podem condenar a borboleta ao ataque da ave. Assim, ficam geralmente poupados os indivíduos (machos e fêmeas) que menos se afastam do tipo padrão. Estes, ao se acasalar, perpetuarão o velho sinal de reconhecimento-inalterado- nas gerações seguintes. Da mesma forma como acontecem variações desastrosas entre as borboletas do grupo repulsivo, podem ocorrer desvios de padrão entre as de um grupo comestível que viva na mesma área. Uma pequena mutação genética pode produzir sobre as asas das "comestíveis" uma discreta mancha colorida ou desenho que se assemelhe vagamente com o sinal das "repulsivas". Isso já é suficiente para provocar, no mínimo, momentos de hesitação entre as aves durante as investidas sobre essas formas variantes. Como resultado, as variantes passam então a escapar das aves com mais freqüência do que as for mas menos desviadas do antigo colorido. Então, dos sucessivos acasalamentos dessas sobreviventes, resultam descendentes com o novo sinal de "imitação" cada vez mais aperfeiçoado.
Pode parecer incrível, porém, são os próprios predadores que indiretamente aperfeiçoam os padrões de imitação que irão enganá-los no futuro. Se tudo corresse só por conta dos disfarces, as "imitadoras" deixariam de ter problemas depois que as cores de suas asas atingissem um certo grau de perfeição como sinal de advertência. Não sendo mais perseguidas, elas poderiam se multiplicar à vontade, tornando-se mais abundantes do que as verdadeiras "repulsivas". Mas isso nunca acontece.
Um mecanismo de correção começa a funcionar sempre que as "imitadoras" começam a se tornar mais numerosas. Aves ainda sem aprendizado, que usam atacar as borboletas coloridas, acabam comendo mais "saborosas" do que "repulsivas", e assim não criam os mecanismos que as fariam evitar a espécie. Automaticamente, começa a diminuir o número das "imitadoras"-até que elas se tornam tão raras que os pássaros acertam cada vez mais nas "repulsivas". O mecanismo se refaz, as "saborosas" ficam outra vez defendidas e começam a proliferar. E assim o ciclo vai se repetindo indefinidamente, de forma que o equilíbrio, embora alterado momentaneamente, sempre se restabelece.

Esses preferem a camuflagem

A mímica é a arte da imitação, mas, quando se trata de um animal que exibe a aparência de outro, o problema não tem nada a ver com imitação e, muito menos, com arte. O nome usado para esse fenômeno é mimetismo e, embora sendo uma palavra derivada de mímica ela indica um curioso mecanismo genético colocado em funcionamento por um processo de seleção natural. Em outras palavras: nenhum animal chega a se parecer com outro movido por uma intenção, ainda que essa semelhança Ihe confira vantagem na luta pela sobrevivência.
A natureza está cheia de exemplos de animais miméticos. Existem moscas inofensivas que se parecem com vespas, serpentes não peçonhentas com o colorido das perigosas corais, e borboletas com desenhos de assustadores olhos de coruja sobre as asas. Estes exemplos já mostram que tanto o mecanismo genético quanto a seleção natural envolvidos no mimetismo têm como produto final uma espécie de sinal. Eles elaboram geralmente "mensagens" do tipo "Cuidado comigo" ou "Não sirvo para comida". Mas outras podem funcionar, ao contrário, como atrativos. Além disso, no jogo fantasioso de mimetismo, os sinais fluem ora como imagens, ora como sons e, em alguns casos, como odores. Entretanto, há uma outra variação da mímica natural que se caracteriza por não chamar a atenção. Isto significa que o resultado final deste tipo de mimetismo passa a ser a ausência de sinais, e podemos chamá-lo então de camuflagem. A prova mais evidente de que a camuflagem é o tipo mais comum de mimetismo é a freqüente frustração dos "naturalistas" novatos que retornam de suas excursões pelas matas sem ter visto bicho nenhum.