terça-feira, 26 de abril de 2011

Bomba Relogio - A Hepatite C

BOMBA RELÓGIO - A Hepatite C



Bomba! Não é mais um ataque terrorista. Mas a arma é biológica e causa um estrago daqueles. Pior: ela ataca o nosso organismo. E sem fazer alarde. Quietinha, quietinha, multiplica-se sem parar e come pelas beiradas um dos órgãos mais importantes do corpo: o fígado. Essa comilança pode durar décadas e, muitas vezes, só vai ser notada depois que o banquete foi servido. Sua ação é como a de uma bomba-relógio que, em geral, é descoberta apenas após explodir.

A arma é o vírus da hepatite C. Ou simplesmente HCV, na sigla em inglês. A doença que ele causa é uma das maiores e mais graves epidemias do planeta. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), são cerca de 200 milhões de pessoas infectadas pelo vírus. Isso mesmo: 200 milhões de seres humanos. Ou, se você preferir, 3% da população mundial, índice assustador para qualquer problema de saúde. Para se ter uma idéia, a aids, doença também causada por um vírus, atinge 38 milhões de indivíduos segundo a Unaids (programa da ONU para a doença).

A preocupação com a hepatite C, porém, não pára aí: ela está se alastrando de maneira assustadora e pouca gente tem noção disso. A cada ano - também de acordo com a OMS - surgem de 3 milhões a 4 milhões de novos casos. Além disso - e talvez o mais grave -, ela raramente produz sintomas e chega a provocar cirrose e câncer (veja infográfico à página 63). Ou seja, o HCV pode ficar anos a fio no organismo, trabalhando como uma bomba programada para acabar com o fígado. Dados dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, por exemplo, indicam que até 85% dos casos de hepatite C se tornam crônicos. São 170 milhões de pessoas, das quais 1,7 milhão a 8 milhões podem morrer por complicações decorrentes da doença.

"Poucos casos apresentam sintomas", afirma Carlos Ballarati, patologista clínico do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. "Somente 5% e isso na fase aguda." Essa fase é a inicial e pode durar até três anos. "O fígado sofre calado e só dói quando está inchado, o que pode indicar um estágio avançado, como a cirrose", diz o gastroenterologista Flair Carrilho, responsável pelo setor de hepatologia do Hospital das Clínicas da USP.

Uma conseqüência dessa falta de sinais é o fato de quase sempre os pacientes descobrirem que têm o HCV por acaso. Sua detecção - assim como a da bomba-relógio - é tardia em geral, numa fase em que o fígado já está comprometido. A pesquisadora Suzete Notaroberto, da USP, mostrou bem esse aspecto da doença em sua dissertação de mestrado, defendida em outubro deste ano. Ela estudou um grupo de 700 pacientes e constatou que 88% deles souberam casualmente que tinham hepatite C - ou porque o médico pediu um exame de sangue completo ou porque foram doar sangue e acabaram flagrados nos testes. Apenas 7,6% relataram algum sintoma como motivo que levou ao diagnóstico. Em seu estágio inicial, a doença, quando dá sinal, costuma se manifestar como uma mera gripe (febre, dores musculares e cansaço, por exemplo). E quase ninguém apresenta nem urina escura nem coloração amarelada da pele e dos olhos, bastante comuns em outros tipos de hepatite. "A icterícia, nome que se dá a esse sintoma, é muito rara na hepatite C", afirma Flair.

Difícil diagnosticar uma doença praticamente invisível, né? Imagine quantas pessoas podem ter o HCV no Brasil e nem desconfiam. Não há nenhum levantamento oficial, mas a Secretaria de Vigilância em Saúde, um órgão do Ministério da Saúde, prepara um inquérito epidemiológico que deverá ser concluído até o final de 2005. O estudo, que começou em agosto deste ano, irá determinar a quantidade de infectados nas capitais dos estados. Enquanto ele não sai, o jeito é recorrer aos dados disponíveis em bancos de sangue, que realizam testes para hepatite antes das transfusões. "Em uma estimativa conservadora, podemos afirmar que cerca de 1% da população brasileira tem hepatite C", diz a pesquisadora Gerusa Maria Figueiredo, coordenadora do Programa Nacional de Prevenção e Controle das Hepatites Virais, da Secretaria de Vigilância em Saúde. Por baixo, são 1,7 milhão de infectados. Esse número, é bom repetir, é baseado em estatísticas de hemocentros, que fazem uma triagem dos doadores. Sem essa seleção prévia (quem é promíscuo ou usa drogas injetáveis, por exemplo, é excluído das doações) a estimativa ultrapassa os 3 milhões de infectados (1,7% dos brasileiros).

Epidemia mundial
Os índices brasileiros seguem a taxa de infecção em países ricos, como os Estados Unidos, que possuem 3,9 milhões de portadores do vírus, o equivalente a 1,8% da população. Em regiões mais pobres a situação é pior, pois assim como outras doenças infecciosas a hepatite C se aproveita de condições precárias de higiene. A África, de acordo com a OMS, tem cerca de 32 milhões de infectados, de um total de 600 milhões de habitantes. Isso representa 5,3% da população do continente. "É uma epidemia mundial", afirma o infectologista Fernando Gonçalves Junior, do Hospital das Clínicas da Unicamp.

A encrenca é grande, mas não há motivo para pânico. Afinal, o HCV não se propaga pelo ar. Quem convive com alguma pessoa infectada - mesmo que ela não saiba disso - não precisa ter medo de contrair a doença. Também não há perigo ao usar um banheiro público, por exemplo. O contato corporal é igualmente seguro. Ninguém pega o vírus com um beijo ou abraço. "A hepatite C não é considerada uma doença sexualmente transmissível, como a aids", diz Flair. Esse tipo de contágio, no entanto, não pode ser totalmente descartado porque ainda não há estudos suficientes sobre o assunto - o próprio vírus desse tipo de hepatite só foi descoberto em 1989, o que é pouco tempo em termos de ciência e pesquisa e a principal razão de os seus mecanismos de infecção ainda não terem sidos totalmente desvendados. O que se sabe é que entre casais monogâmicos a disseminação é rara, assim como a transmissão de mãe para filho. Mas o sexo sem proteção aliado à troca freqüente de parceiros pode oferecer um risco real.

O maior perigo é o contágio pelo sangue de uma pessoa infectada. E isso pode acontecer de várias maneiras. A mais comum, até o início de 1990, era a transfusão do sangue e seus derivados. "Naquela época, 18% do sangue usado em transfusões tinha o HCV. Hoje, esse índice é inferior a 1%", afirma Flair. Se as transfusões já não representam uma ameaça, o que, então, faz com que o vírus continue se propagando? "O que nos preocupa atualmente é o compartilhamento de seringas entre usuários de drogas injetáveis", diz o médico. Em sua tese, a pesquisadora Suzete Notaroberto descobriu que 9,3% dos entrevistados usavam drogas injetáveis, índice que ficou atrás apenas dos 43,9% que disseram ter recebido transfusões antes de 1993, ano em que começaram a ser feitos testes para HCV nos bancos de sangue do Brasil.

Há um agravante: o HCV, ao contrário do HIV, sobrevive por várias horas ou até por alguns dias fora do corpo, em pequenos fragmentos de sangue coagulado. Por isso, além das seringas, é prudente também não compartilhar outros objetos, como alicate de manicure, agulhas de tatuagem e instrumentos odontológicos não esterilizados. Nesses casos, qualquer corte, mesmo aquele que não conseguimos ver, pode servir de entrada para o HCV.

O principal alvo do vírus é o fígado, uma massa esponjosa que faz de tudo no nosso corpo. Uma de suas funções mais conhecidas é a produção da bile, uma secreção esverdeada que ajuda na digestão das gorduras. Mas isso não é nada perto de suas outras tarefas. O órgão também participa do metabolismo de proteínas e carboidratos, armazena glicogênio - uma molécula que é transformada em glicose quando precisamos de energia - e diversas vitaminas. Para completar, ele é uma espécie de zelador do nosso sangue: fabrica fatores de coagulação, elimina substâncias indesejáveis e liqüida glóbulos vermelhos que não dão mais conta do recado.

Riscos
Um grande problema é detectar a infecção, já que ela pode ficar calada por até uma década. Sabe-se que há alguns fatores de risco: transfusões, internações e cirurgias feitas no Brasil antes de 1993, uso de drogas, sexo sem proteção com várias pessoas, parceiro sexual portador da doença, filhos de mães portadoras, tratamentos dentários sem esterilização adequada dos instrumentos e pessoas com risco profissional - quem trabalha com manipulação de sangue e derivados, por exemplo.

Quem se encaixa em pelo menos uma das situações não tem, necessariamente, a doença. Mas deve procurar um médico para afastar a possibilidade de infecção. O diagnóstico se dá por meio de exames de sangue. É possível fazê-los de graça em alguns estados, como em São Paulo, onde determinados hospitais públicos e postos de saúde garantem os testes desde que haja indicação médica. Em nível nacional, o governo ainda vai capacitar 250 centros de testagem do HIV - unidades do SUS que oferecem o exame gratuito a qualquer pessoa - para que eles também façam os exames para a hepatite C. O Ministério da Saúde promete concluir o processo até o final do ano. "Só poderemos oferecer os testes em âmbito federal depois que a capacitação terminar", diz Gerusa Figueiredo, da Secretaria de Vigilância em Saúde.

Ainda não há diagnóstico gratuito para todos, mas o governo já banca o tratamento dos infectados. "Os remédios são fornecidos pelo Sistema Único de Saúde", diz Gerusa. "Naqueles que possuem o subtipo 1, mais freqüente no Brasil, a cura ocorre em 55% dos casos", afirma Flair. Os subtipos são pequenas variações na estrutura do vírus. Existem seis deles para o HCV e o 1 é o mais grave. Nos outros, os remédios funcionam melhor: 80% dos pacientes, em média, conseguem se livrar do vírus. Aqui, vale dizer que nem sempre quem contrai o HCV vai desenvolver cirrose ou câncer. As quatro fases da doença (aguda, fibrose, cirrose e câncer) não são uma evolução irrevogável e o fígado infectado pode permanecer por décadas "apenas" fibrosado. Mais: quanto mais precoce o diagnóstico, maior as chances de os medicamentos deterem a evolução da doença.

No tratamento, as substâncias mais usadas são o antiviral ribavirina e o interferon, proteína que estimula o sistema imunológico a combater o vilão. Este último ganhou uma versão conhecida como interferon peguilado, que exige menos aplicações e é mais eficiente nos pacientes com o subtipo 1. O problema é o preço. "Quem precisa usar o interferon peguilado gasta, em média, R$ 6 mil por mês, enquanto os outros pacientes precisam desembolsar cerca de R$ 600 mensais", afirma Flair.
Para os que não respondem aos tratamentos, a alternativa é esperar novos remédios. "Inibidores de proteases, usados contra o vírus da aids, estão sendo aperfeiçoados para servir de arma contra a hepatite C", diz o médico infectologista Fernando Gonçalves Junior, da Unicamp. "Mas não devem estar disponíveis antes de 2007." O albuferon, um outro tipo de interferon, também está em fase de testes e deve trazer mais possibilidade de cura aos doentes. A vacina é outra promessa distante, pois o HCV, assim como o HIV, é um vírus mutante, que troca de disfarce o tempo todo para enganar nosso sistema imunológico. "Ainda teremos que esperar de cinco a sete anos por uma vacina", diz o especialista.

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