A CASA DOS HORRORES NUCLEARES - Armas
O arsenal mais terrível do mundo tem seu lugar para a posteridade - se é que haverá alguma. Um museu americano guarda uma completa coleção de bombas atômicas e mísseis para turista ver.
Na manhã de 6 de agosto de 1945, quase ao fim da Segunda Guerra Mundial, o bombardeiro B-29 americano Enola Gay lançou a ainda não testada bomba de urânio Little Boy sobre a cidade de Hiroxima, a sudoeste de Honshu, a principal ilha japonesa. Ela rebentou no ar a 600 metros de altura e liberou uma energia equivalente a 20 quilotons (20 mil toneladas) do explosivo químico TNT, matando 64 mil pessoas instantaneamente. Três dias depois, após sobrevoar inutilmente durante 45 minutos um segundo alvo, a cidade de Kokura, sem visualizá-la, o avião mudou de rumo. E Fat Man, outra bomba, esta de plutônio, arrasou mais da metade da área de Nagasaki, no sul do Japão. Passados seis meses, 40 mil pessoas haviam morrido. O número de vítimas poderia ter sido ainda maior e incluir cidadãos americanos caso o mau tempo não tivesse afastado o bombardeiro 1500 metros do alvo: isso salvou a vida de 1300 prisioneiros de um campo de concentração japonês desconhecido dos Estados Unidos.
A devastação causada por essas bombas acabou de vez com a guerra, provocou espanto e horror no mundo inteiro, mas não impediu o desenvolvimento das armas atômicas - muito ao contrário. Elas instituíram o chamado "equilíbrio do terror", sustentado pelas mais de 25 mil ogivas nucleares das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, capazes de exterminarem múltiplas vezes a vida na Terra. O potencial das bombas de fusão, ou termo nucleares, é da ordem de 60 megatons (60 milhões de toneladas de TNT). É como se cada ser humano se tivesse tornado um refém da paz armada. É inegável também que o arsenal nuclear exerce uma atração algo mórbida sobre muita gente. E um lugar onde isso pode ser percebido claramente é o Museu Atômico Nacional, que funciona na cidade de Albuquerque, no estado americano do Novo México. "As pessoas se alegram de conhecer a tecnologia das armas atômicas", comenta Joni Hezlep, o diretor do Museu.
"Grátis! Educativo! Fascinante!", proclama o folheto distribuído aos quase 150 mil turistas que todo ano percorrem o ambiente escuro do velho hangar de helicópteros, hipnotizados pela visão de 68 armas nucleares iluminadas, imagens de cogumelos atômicos e pôsteres com a história das bombas. Sentado ao lado de uma Mark-17, a primeira bomba termonuclear desenhada para ser lançada de avião, o turista aperta um botão e logo aparece na tela de TV um filme das primeiras provas realizadas com ela. Esta versão moderna de "casa dos horrores" reúne sobras de guerra e material de treinamento.
O orçamento do Museu é suficiente para a permanente renovação do acervo. Exemplares de safras recentes da indústria bélica repousam, ainda encaixotados, atrás do hangar, entre a sucata de um jato supersônico F-105, peças de foguetes e uma coleção de mísseis,. Segundo o historiador do Museu, Richard L. Ray, a intenção não é chocar e sim conservar e exibir os equipamentos como parte da História. "Todo mundo sabe o que faz uma bomba desta. Não precisamos mostrar corpos carbonizados", justifica. Ele conta que dois sobreviventes de Hiroxima e Nagasaqui visitaram o Museu o acharam um boa idéia, apesar de não ter fotos que lembrem o martírio japonês. Ao observar as réplicas de Fat Man e Little Boy, lembra o historiador, os dois caíram de joelhos a chorar.
A maioria das armas expostas tem nomes muito atrativos: Lulu (bomba de explosão em profundidade submarina). Walleye (bomba de planagem), Honest John (míssil terra-ar) e David Crockett, SUBROC e ASROC (foguetes de lançamento submarino e anti-submarino). Os arsenais nucleares encontram-se divididos em três categorias: os mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs), lançados de terra; os mísseis lançados de submarinos (SLBMs), de menor porte e precisão; e os bombardeiros estratégicos. Para o observador atento, as armas mais antigas traem suas origens. É que muito da evolução ocorrida até se chegar aos mísseis modernos derivou das pesquisas desenvolvidas durante a guerra, há quase meio século, pela Alemanha nazista.
De fato, no dia 8 de setembro de 1944, cinco minutos depois de ser disparada de Haia, a capital da Holanda, então sob domínio alemão, a uma velocidade de 5 mil quilômetros por hora, caía em Londres o primeiro foguete nazista, batizado de V-2. Estava inaugurada a era das armas automáticas de longo alcance. Com a vitória dos aliados em 1945, mais de cem especialistas alemães, a começar pelo físico Wernher von Braun, foram acolhidos nos Estados Unidos (os russos também carregaram tantos quanto puderam). Além do pessoal, os americanos tomaram setenta dos mais avançados foguetes alemães para testes de treinamento. União Soviética, França e Inglaterra trataram igualmente de obter informações sobre foguetes e mísseis. A história dos testes nucleares também faz parte do roteiro do Museu Nacional. Toda semana, caravanas de turistas percorrem 200 quilômetros no escaldante deserto do Novo México até a Base Aérea de Alamogordo, para conhecer ao local da primeira explosão atômica do Mundo.
Mais de mil pessoas se aglomeram na cratera aberta pela bomba, enquanto os alto-falantes repetem sem parar a gravação da contagem regressiva original e o som autêntico da explosão. Em um reboque próximo, outra réplica de Fat Man mais parece a caricatura de uma bomba que o potente patriarca de uma família já excessivamente prolífera. Nesse desolado lugar, às 5h30 do dia 16 de julho de 1945, o Fat Man original explodiu no alto de uma torre de aço de 30 metros de altura.
Os cientistas acompanharam a explosão em abrigos subterrâneos a quase 100 quilômetros de distância. Primeiro foi uma luz intensa iluminando montanhas a 16 quilômetros, depois uma súbita onda de calor e um grande estrondo, assim que as ondas de choque ecoaram no vale. Uma bola de fogo surgiu rapidamente, seguida do cogumelo de 12 mil metros que iria tornar-se a imagem mais ameaçadora do século. A bomba havia gerado uma força explosiva equivalente a 20 mil toneladas de TNT. Rodeando o local da torre há uma cratera de mais de 300 metros de diâmetro por 3 de profundidade. A intensa pressão e o calor gerado pela fissão dos átomos fundiram a areia a ponto de convertê-la em uma matéria sólida, cristalina, de cor verde-jade. Essas pedras verdes se chamam trinitita, devido ao nome em código do projeto de teste - Trinity.
Sob o intenso sol do deserto, os turistas passeiam agachados, buscando trinitita. Aparentemente, não leram por inteiro o folheto que adverte: "Já que este material ainda retém um pequeno nível de radiação, que pode representar risco se suas partículas de pó forem inaladas ou ingeridas, pede-se não recolher pedras ou escavar o solo". Todo o lugar ainda é ligeiramente radioativo. O programa informa que "as crianças pequenas e as mulheres grávidas correm maior risco potencial" e avisa as pessoas que não comam, bebam, fumem ou levem animais domésticos ali. Enquanto se ouve um discurso ao ar livre de Robert Krohn, um dos cientistas que testemunharam a explosão, não é incomum ver sacerdotes de seitas místicas, seguidos de grupos vestidos de branco, gritando para exorcizar a "semente da destruição". As poucas sementes que germinaram ali, mais de quarenta anos depois do teste, mostram na verdade que o terreno volta a dar sinal de vida, não de destruição.
Carregando o seu souvenir radioativo, o turista da era atômica prossegue seu passeio, seguindo ao norte de Albuquerque até Los Alamos, o lugar onde a bomba foi efetivamente concebida. Ali funciona o Museu Científico Bradbury, a outra face do Museu Atômico Nacional. As salas bem iluminadas estão cheias de recordações dos primeiros dias da energia nuclear e, se se esquecer Hiroxima, o equilíbrio do terror e o acidente de Chernobyl, fica até fácil admirar essa grande conquista científica. De fato, o controle do poder do átomo representa um dos maiores resultados da atividade humana organizada. Em menos de cinco anos, cientistas de diferentes nacionalidades, trabalhando em várias frentes de pesquisa, transformaram a teoria em realidade. Foi o físico italiano Enrico Fermi (1901 - 1954) quem iniciou as primeiras experiências. Ele realizou uma série de testes com o urânio e o tório radioativos, recebendo o Prêmio Nobel em 1938 pelo que se acreditou serem novos elementos químicos.
A palavra grega átomo quer dizer, como se sabe, indivisível, e a idéia de partir a unidade básica da matéria ainda era estranha para os cientistas. Naquele mesmo ano, entretanto, os físicos austríacos Lise Meitner e Otto Frisch provaram que Fermi obtivera, isto sim, a quebra do núcleo de urânio em elementos menores, com grande liberação que, a partir de determinada quantidade de material, a chamada massa crítica, a fissão do núcleo do átomo criaria uma rápida reação em cadeia gerando ainda mais energia. O boneco de gesso em tamanho natural do físico J. Robert Oppenheimer, o responsável pelo laboratório de Los Alamos, recebe os visitantes do Museu Bradbury com um olhar triste. Na verdade, muitos dos cientistas envolvidos no projeto de construção da bomba não comemoraram propriamente o seu sucesso.
Num documento conhecido como Franck Report, eles pediram ao governo americano que não utilizasse a bomba. Mas o imprevisto aconteceu - o presidente Franklin Roosevelt morreu e Harry Truman assumiu, autorizando o bombardeio ao Japão. Desde aquela época, a energia nuclear saiu definitivamente do controle de um punhado de cientistas para se tornar propriedade cada vez mais comum. A França começou desenvolvendo energia nuclear para fins pacíficos, passando em 1960 a testar suas próprias armas. Os chineses começaram seu programa nuclear em 1958 com a ajuda soviética. Em 1964 testaram sua primeira arma de urânio e avançaram rápido para o estágio dos mísseis termonucleares, alcançado em explosão nuclear em 1980. A Índia também realizou uma explosão nuclear em 1974, demonstrando que não só os países ricos podem ter armas desse porte.
Calcula-se que já tenham sua bomba ou estejam em condições de produzi-la a curto prazo cerca de vinte outros países, entre eles África do Sul, Argentina, Brasil, as duas Coréias, Formosa, Irã, Iraque, Israel, Líbia e Paquistão. Ironicamente, a ameaça da proliferação de armas nucleares no Terceiro Mundo coincide com o sepultamento (que se espera definitivo) da Guerra Fria entre os blocos militares comandados por Washington e Moscou. Nas palavras de Joni Hezlep, de Albuquerque, "as armas que se podem ver num museu são as mais importantes: servem para lembrar que são um seguro de vida; é uma maneira terrível de ver o problema, mas a realidade é essa. São dissuasivas, não são?"
Os arsenais que ameaçam a Terra....
O projeto para a construção de armas termonucleares ou bombas H (de hidrogênio) começou já em 1942, paralelamente ao desenvolvimento das armas de fissão, mas não foi uma prioridade, mesmo depois da guerra, pois dependia de um potente sistema de aquecimento. Para se ter uma idéia da potência desse sistema, basta dizer que o Sol é uma bomba termonuclear, que consome deutério, o hidrogênio radioativo, a 10 milhões de graus centígrados. Em uma bomba, só a energia liberada por um mecanismo de fissão forneceria a temperatura suficiente para a ignição do combustível de deutério. A fissão ou quebra do núcleo - utilizada nas bombas lançadas contra o Japão - com certeza fundiria os átomos de deutério, liberando energia muitas vezes superior.
Tamanha energia despertou muitos cientistas para o fato de que o efeito devastador dessas armas não se restringiria a alvos militares e eles torciam para que ela jamais fosse produzida. Mas com a Guerra Fria entre EUA e URSS essa esperança foi por água abaixo. A informação dos primeiros computadores nos laboratórios militares simplificou cálculos tidos como quase impossíveis, viabilizando o teste inicial com a bomba H em 1952. As ogivas termonucleares, junto com a miniaturização e o refinamento dos mecanismos de controle de sua direção, representaram um salto tecnológico significativo no aperfeiçoamento dos arsenais atômicos na década de 50.
São dessa época os mísseis de longo alcance Pershing, Atlas (o primeiro intercontinental), Titan I e II, capazes de acertar com uma precisão de 200 metros um alvo a até 8 mil quilômetros, como a distância entre a capital brasileira, Brasília, e a cidade americana de Nova York. O desenvolvimento de combustíveis sólidos, mais facilmente armazenados, levou à criação, em 1958, do míssil submarino Polaris, além do Minuteman, o primeiro a ser lançado de um silo subterrâneo, como os que aparecem no filme O dia seguinte. Suas versões mais recentes datam de 1971. Trata-se do Minuteman III e do Poseidon, cujas múltiplas ogivas podem ser dirigidas a alvos diferentes após o lançamento.
A última palavra em arma nuclear nos Estados Unidos é o míssil MX, ou Peacekeeper (Mantenedor da paz), desenhado para lançar 21 ogivas de 10 megatons cada para alvos separados a mais de 8 mil quilômetros. A Inglaterra, que desenvolveu o míssil Blue Streak logo após a Segunda Guerra Mundial, cancelou o seu programa de pesquisas em 1960. A França aproveitou a tecnologia de foguetes no desenvolvimento do veículo espacial Diamant. A União Soviética seguiu os americanos na corrida armamentista, produzindo a série Frog de grandes foguetes de combustível sólido, além de inúmeros mísseis: Scud, Skean, Savage, SS-6, Sark, Serb, Sawfly, todos eles altamente móveis, montados em veículos de transporte ou submarinos nucleares.
Os foguetes Sasin e Scrag, de 1964, foram responsáveis pelos lançamentos de veículos em órbita. E foi o míssil soviético Sandal, montado em Cuba, que quase provocou a Terceira Guerra Mundial em 1962. Diante do bloqueio e das ameaças de ação militar dos Estados Unidos, os mísseis foram desmontados e retirados. A mesma sorte não tiveram os habitantes do atol de Bikini, no Pacífico Sul. Eles é que foram removidos, pouco antes dos primeiros testes atômicos americanos, em 1946. A explosão de 23 bombas ali fez desaparecer várias ilhas e transformou toda a região num inferno radioativo.
....e os acordos que podem salvá-la.
O famoso "telefone vermelho", uma linha direta de telex entre a Casa Branca e o Kremlin, foi a primeira providência sensata para evitar uma guerra nuclear por acidente ou por falta de uma palavra apaziguadora. Dois meses depois de sua implantação, em junho de 1963, veio o tratado que proíbe testes nucleares na atmosfera, debaixo d´água e no espaço. O tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, de julho de 1968, o passo seguinte na lenta, difícil e incerta caminhada pelo desarmamento atômico, proíbe os membros do Clube Nuclear de facilitar o ingresso de novos sócios, mediante a transferência de armas nucleares ou da tecnologia para produzi-las.
As tortuosas negociações entre americanos e soviéticos sobre armas nucleares conheceram uma nova fase na década de 70, quando o líder soviético Leonid Brejnev assinou vários acordos com sucessivos presidentes americanos. A assinatura do tratado que restringe o número e a localização dos sistemas antibalísticos - os mísseis que garantem a defesa de áreas vitais - foi o primeiro deles, em 1972. O acordo Salt-I, firmado em maio daquele ano em Moscou com o presidente Richard Nixon, congelou por cinco anos os testes e a instalação de mísseis balísticos intercontinentais.
Assinado em junho de 1979, mas nunca ratificado pelos Estados Unidos em represália à intervenção soviética no Afeganistão, o acordo Salt-II fixou um número máximo de veículos de lançamento e mísseis estratégicos: 2.400 - ainda uma colossal enormidade. Mais recentemente, o presidente Ronald Reagan e o líder soviético Mikhail Gorbachev colocaram seus nomes num documento inédito na história das negociações sobre desarmamento. O acordo, de dezembro de 1987, sacramentado em Moscou em 1988, elimina toda uma categoria de armas nucleares - os mísseis de médio alcance instalados na Europa. Os dois dirigentes abriram então a perspectiva de novos entendimentos, dessa vez para reduzir os respectivos arsenais pela metade. Cabe ao atual presidente americano, George Bush, ao lado de Gorbachev, continuar escrevendo esta história.
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