KEPLER: OS CAMINHOS DOS PLANETAS
Em pleno século XVII, ele estabeleceu as três leis gerais que descrevem as órbitas planetárias e promoveu uma revolução na Astronomia.
Johannes Kepler foi concebido às 4h37 da madrugada do dia 16 de maio de 1571 na aldeia de Weill região da Suábia, Sudoeste da Alemanha - e nasceu às 15h30 de 27 de dezembro, exatamente 224 dias, 9 horas e 33 minutos mais tarde. Esses são, pelo menos, os cálculos inscritos numa espécie de horóscopo que Kepler fez para si mesmo e sua família. Segundo o documento, seus parentes formavam uma formidável constelação de indivíduos degenerados, neuróticos ou francamente malucos. O que não impediria Kepler de revolucionar a Astronomia, estabelecendo as três leis gerais das órbitas planetárias, base sobre a qual o físico inglês Isaac Newton construiria, em 1665, a grande síntese da gravitação universal.
Kepler era uma criança enfermiça, de membros delicados, e sofria de miopia e poliocopia anocular (visão múltipla). Mas, graças à inteligência brilhante, foi aceito aos 13 anos no seminário teológico de Adelberg. Ganhara uma bolsa de estudo concedida pelo duque de Wurttemberg. Neurótico, como era de esperar, Kepler abominou o seminário em geral e seus colegas em particular. Atormentado por problemas de relacionamento, refugiou-se nos estudos. Tornou-se muito bem-visto pelos professores, alguns dos quais permaneceram seus amigos ao longo de toda a sua existência.
Há várias indicações de que no final da adolescência seu temperamento tornou-se mais fácil. Diplomou-se pela Faculdade de Artes da Universidade de Tubingen aos 20 anos e ingressou então na Faculdade Teológica, onde estudou mais quatro anos. Antes que pudesse prestar os exames finais, recebeu um proposta para ocupar o posto de professor de Matemática e Astronomia de Graz, capital da Estíria, província austríaca. Além das aulas, Kepler devia preparar todos os anos um calendário de previsões astrológicas, tarefa que ele classificava de "diversão simiesca e sacrílega", mas lhe rendia vinte florins extras. "O espírito habituado à dedução matemática, quando se vê frente a frente com os falsos alicerces da Astrologia", lamentava-se ele, "resiste longamente como um burro teimoso até que, compelido pelas pancadas e pragas, mergulha o pé no imundo lamaçal".
O acontecimento capital de sua estada em Graz, no entanto, foi uma espécie de lampejo que lhe atravessou o espírito em 9 de julho de 1595, no instante em que desenhava figuras geométricas no quadro-negro. Note-se que essa famosa descoberta era inteiramente equivocada e hoje parece estapafúrdia. Kepler estava ensinando a seus alunos o sistema heliocêntrico - os planetas girando em torno do Sol, grande novidade exposta havia apenas doze anos pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico (SUPERINTERESSANTE número 1, ano 3). Subitamente, pareceu-lhe muito significativo o fato de existirem apenas seis planetas (Urano, Netuno e Plutão ainda não haviam sido descobertos) e cinco sólidos perfeitos: tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro.
Ocorreu-lhe inscrever e circunscrever esses cinco sólidos em seis esferas. E verificou que a distância entre as diferentes esferas era proporcional à distância real existente entre as órbitas dos diferentes planetas. Ou melhor, mais ou menos proporcional. Porque, se os números concordavam aproximadamente no caso de Marte, da Terra e de Vênus, tornavam-se totalmente discrepantes para Júpiter e Mercúrio. Kepler "quebrou o galho" alegando que a discrepância em relação a Júpiter não espantaria ninguém, já que o planeta ficava "longe demais". Quanto a Mercúrio, recorreu provisoriamente à fraude, alterando o número segundo suas conveniências.
Mas era honesto demais para se contentar com esses subterfúgios e, na tentativa de provar sua teoria maluca, mergulhou em pesquisas persistentes e detalhadas sobre o sistema solar. Em 1596, aos 24 anos, Kepler publicou um resumo de suas primeira tentativas na obra intitulada Mysterium cosmographicum. No ano seguinte, casou-se. O horóscopo do dia do casamento, 27 de abril de 1597, que apresentava um "céu calamitoso" cumpriu-se integralmente.
Após atormentar a paciência do marido durante catorze anos, Barbara Kepler morreu louca. A vida do casal foi agitada. Mal tinham se casado, quando o jovem arquiduque Fernando de Hamburgo (mais tarde imperador Fernando II) achou que era hora de varrer as províncias austríacas da heresia luterana. No verão de 1598, a escola de Kepler fechou as portas e em setembro todos os professores luteranos receberam ordem de abandonar as províncias. Kepler, que tinha amigos entre os jesuítas, conseguiu evitar o exílio forçado, mas perdeu o emprego. A prudência recomendava que fosse procurar novos ares.
Há algum tempo ele desejava visitar o famoso astrônomo dinamarquês Ticho Brahe no observatório de Uraniborg, na ilha de Hven entre Copenhague, na Dinamarca, e Helsingborg, na Suécia. Ticho, obcecado pela idéia de precisão nas observações que fazia, dedicara-se a construir instrumentos científicos cada vez mais perfeitos e a comparar uns com os outros, para conhecer o erro inerente a cada um. Com eles produziu, ao longo de 35 anos, grossos volumes de anotações, espantosamente precisas para os padrões da época, que pretendia utilizar para reentronizar a Terra como o centro do Universo - posição da qual começava a ser afastada desde a publicação dos trabalhos de Nicolau Copérnico.
O notável observador tinha, no entanto, escassos dotes para a Matemática - daí alegrar-se com a perspectiva de ter Kepler a seu lado, a fim de fornecer-lhe os cálculos necessários para dar sustentação à sua idéia. Kepler, ao contrário, esperava ter acesso aos volumes de Ticho para desenvolver suas próprias teorias a respeito sobretudo da movimentação dos planetas. A hora era boa à execução do projeto, tanto mais que, por coincidência, Ticho se desentendera com o rei Cristiano IV e acabara de se mudar da longínqua Uraniborg para a cidade de Praga, capital da atual Tchecoslováquia, onde recebera o posto de Matemático Imperial das mãos do imperador Rodolfo II.
Os dois homens já se correspondiam há algum tempo e, sabendo que Kepler se encontrava em situação precária, Ticho convidou-o a mudar-se para Praga, onde poderia viver e trabalhar como seu hóspede no castelo de Benatek. A convivência diária entre eles foi, no entanto, um pesadelo. Kepler pretendia trabalhar em paz. Encontrou o castelo em reformas para a instalação do observatório e cheio de visitantes e membros da corte pessoal de Ticho Brahe. O pior é que não conseguia obter os dados que tanto desejava.
Queixou-se numa carta: "Ticho não permite que eu participe de suas experiências. Só durante as refeições, entre outros assuntos, ele menciona, de passagem, hoje o número do apogeu de um planeta, amanhã outro dado qualquer". Sabe-se lá qual seria o fim da relação entre os dois astrônomos se a morte não tivesse chegado para separá-lo dezoito meses depois do primeiro encontro. Ticho Brahe morreu inesperadamente e foi enterrado em Praga em 4 de novembro de 1601. Dois dias mais tarde, Kepler foi nomeado para sucedê-lo no posto de Matemático Imperial. Em Praga, Kepler ficou os onze anos seguintes, boa parte dos quais dedicou a cuidadosas observações da trajetória do planeta Marte.
Foi o período mais fértil de sua vida, sobretudo porque, confrontado com o fato de que Marte não se comportava nem como desejava Ticho Brahe nem como descrito no trabalho de Copérnico, pôs-se a elaborar sua própria teoria para dar seqüência às observações. Em 1601, publicou sua obra-prima, Astronomia Nova, que trazia duas de suas três leis planetárias fundamentais. A primeira delas afirma que os planetas descrevem órbitas em forma de elipses com o Sol em um dos seus focos. A segunda lei afirma que a velocidade dos planetas varia de tal forma que percorrem áreas iguais em tempos iguais.
São as primeiras leis naturais no sentido moderno, na medida em que utilizam termos matemáticos para descrever relações universais governando fenômenos particulares. Com ela, a Astronomia separou-se da Teologia para unir-se à Física. Não foi um divórcio fácil. Desde os gregos, filósofos afirmavam que os astros percorriam trajetórias circulares em velocidade uniforme. A tarefa dos astrônomos consistia, sobretudo, em construir sistemas cada vez mais complicados para conciliar essa "verdade decretada" com as observações que iam fazendo com seus próprios olhos.
Um dos sistemas em voga no tempo de Kepler distinguia dois centros para o sistema solar: um centro físico, que seria o próprio Sol, e um centro geométrico (não coincidente com o primeiro) eqüidistante de todos os pontos da órbita circular. Dava-se, igualmente, muita importância ao chamado punctum equans, ponto a partir do qual o planeta apresentava a velocidade angular constante. Kepler gastou cinco anos e cobriu novecentas páginas com cálculos em letra pequena na tentativa de determinar esses três pontos para o caso de Marte. Fracassou. Somente então, esgotadas todas as possibilidades, ousou examinar a hipótese de astros percorrendo órbitas não circulares em velocidades variáveis. Refez os cálculos e sem mais idéias preconcebidas e dentro de um ano encontrou as duas primeiras leis.
Nunca teria chegado a esse resultado se não tivesse herdado as observações acumuladas ao longo dos anos por Ticho Brahe. No último estágio de seus cálculos, empregou 180 medidas diferentes da distância entre o Sol e Marte. Mas de nada lhe adiantariam todos esses números se não possuísse também poderosa intuição sobre os mecanismos do Universo. Foi assim, por exemplo, que muito antes de Newton ele já descrevia a gravitação universal nos seguintes termos: "Se duas pedras fossem colocadas em qualquer lugar do espaço, uma perto da outra, e fora do alcance de um terceiro corpo material, unir-se-iam, à maneira dos corpos magnéticos, num ponto intermediário, aproximando-se cada uma em proporção à massa da outra".
E mais adiante: "Se a Terra cessasse de atrair as águas do mar, os mares se ergueriam e iriam ter à Lua (...)". "Se a força de atração da Lua chega até a Terra, segue-se que a força de atração da Terra, com maior razão, vai até a Lua e ainda mais longe." Caso Kepler tivesse se preocupado em conciliar a idéia da atração universal com suas próprias leis, poderia ter ido ainda mais longe. Mas parece ter recuado por uma espécie de repugnância filosófica partilhada por Galileu, Descartes - e o próprio Newton, de início - diante dessa força fantasmagórica capaz de agir a distâncias astronômicas, sem agente intermediário e de maneira instantânea, um conceito aparentemente místico e não "científico", indigno de cientistas modernos como ele.
Outros interesses e preocupações iriam ocupá-lo nos anos seguintes. Galileu publicou na Itália o Mensageiro das Estrelas, em que anunciava algumas descobertas feitas com o uso de um novo e revolucionário aparelho, o telescópio - e a que mais controvérsias causou foi a descoberta de quatro planetas (na verdade, satélites) girando ao redor de Júpiter. Kepler foi o primeiro nome de peso a apoiar o trabalho de Galileu, mas nem por isso conseguiu que estes lhe enviasse um telescópio para suas próprias observações. Quando conseguiu um, emprestado pelo duque de Colônia, escreveu Dioptrice, um tratado no qual lança as bases da Ótica, novo ramo da Física.
Com 141 definições, axiomas e proposições precisas e austeras, o tratado é uma exceção na sua obra cheia de digressões filosóficas. O ano de 1611 trouxe-lhe uma série de desgraças. Rodolfo II, seu protetor, foi obrigado a abdicar do trono, a vida em Praga tornou-se insuportável pelos efeitos acumulados da guerra civil e das epidemias. Morreram-lhe a mulher e um filho. Conseguiu conservar o posto de Matemático Imperial, mas foi transferido para a cidade de Linz, na Áustria, onde viveria catorze anos, até a idade de 55. Ali também não lhe faltaram peripécias. Casou-se novamente e dessa vez parece ter sido mais feliz. Susanna deu-lhe sete filhos. Em compensação, enfrentou horas dramáticas durante o processo de sua própria mãe, acusada de feitiçaria. Ainda assim continuou produzindo e, em 1618, terminou Harmonice Mundi (Harmonia do Mundo), uma espécie de síntese geral englobando Geometria, Música, Astrologia e Astronomia.
O fracasso dessa ambição desmedida só não foi absoluto porque, no meio de toda a barafunda que é o livro, aparece anunciada com toda a clareza a sua terceira lei sobre as órbitas planetárias: "Os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer estão entre si como os cubos de suas distâncias médias do Sol". Nos onze últimos anos que ainda lhe restariam de vida, Kepler publicou mais duas obras importantes: a Epitome astronomiae copernicanae e as Tabulae rudolphinae. Na Epitome ele demonstra que as leis planetárias originalmente deduzidas para o caso de Marte também são válidas para todos os outros planetas conhecidos, também para a Lua e para os satélites de Júpiter.
As Tabulae rudolphinae - assim batizadas em honra do imperador Rodolfo II - são as observações de Ticho Brahe, organizadas e ampliadas pelo próprio Kepler. Além de tabelas e regras para a localização dos planetas, o livro traz um catálogo de pouco mais de mil estrelas. Com a Europa convulsionada pela Guerra dos Trinta Anos, a vida particular de Kepler tornou-se cada vez mais problemática. Parte de Linz foi destruída por um incêndio durante a revolução camponesa de 1626 e ele deixou a cidade sem planos definitivos. Viveu um ano em Ulm, visitou Praga e acabou se instalando no condado de Sagan, na Silésia. Estava na miséria. O salário de Matemático Imperial, teoricamente muito bom, raramente chegava a ser pago. Em outubro de 1629, tomou o rumo de Viena, nova sede da corte, com a idéia de cobrar pelo menos parte do que lhe era devido. Morreu no caminho, poucos dias depois de chegar à cidade de Ratisbona - ou a Regensburg, segundo outra versão -, em 15 de novembro de 1630. Sua sepultura acabou destruída.
As três leis, em resumo
1 - A órbita de um planeta P tem a forma de elipse com o Sol S em um dos seus focos. T é a Terra.
2 - Os planetas percorrem áreas iguais em tempos iguais, como para ir de B a A, de D a C, de F a E. As áreas BSA, DSC e FSE são iguais.
3- Os quadrados dos períodos de revolução de dois planetas quaisquer estão entre si da mesma forma que os cubos de suas distâncias médias do Sol. Isso se aplica também a Urano, Netuno e Plutão, que Kepler não chegou a conhecer.
Por analogia entre a idéia e a observação.
Por Albert Einstein
Em nossos tempos, justamente os momentos de grandes preocupações e de grandes tumultos, os homens e suas políticas não nos fazem muito felizes. Por isso estamos particularmente comovidos e confortados ao refletirmos sobre um homem tão notável e tão impávido quanto Kepler. No seu tempo, a existência de leis gerais para os fenômenos da natureza não gozava de nenhuma certeza. Por conseguinte, ele devia ter uma singular convicção sobre essas leis para lhes consagrar, dezenas de anos a fio, todas as suas forças, num trabalho obstinado e imensamente complicado.
Com efeito, ele procura compreender empiricamente o movimento dos planetas e as leis matemáticas que o expressam. Está sozinho. Ninguém o apoia nem o compreende. Copérnico fizera notar, antes dele, que o melhor meio de compreender e de explicitar os movimentos aparentes dos planetas consiste em considerar esses movimentos como revoluções ao redor de um suposto ponto fixo, o Sol. Portanto, se o movimento de um planeta ao redor do Sol como centro fosse uniforme e circular, seria singularmente fácil descobrir, a partir da Terra, o aspecto desses movimentos. Mas, na realidade, os fenômenos são mais complexos e o trabalho do observador muito mais delicado. Foi preciso primeiro determinar tais movimentos empiricamente, utilizando as tabelas de observação de Ticho Brahe,. Somente depois desse enfadonho trabalho, tornou-se possível encarar ou sonhar com as leis gerais a que se moldariam esses movimentos.
Mas o trabalho de observação dos movimentos reais de revolução é muito árduo e, para tomar consciência deles, é preciso meditar na evidência: jamais se observa em momento determinado o lugar real de um planeta. Sabe-se somente em que direção ele é observado da Terra, que, por seu lado, perfaz ao redor do Sol um movimento cujas leis ainda não são conhecidas. As dificuldades pareciam praticamente insuperáveis.
Kepler viu-se forçado a encontrar o meio para organizar o caos. A princípio, ele descobre que é preciso tentar determinar o movimento da própria Terra. Ora, esse problema seria simplesmente insolúvel se só existisse o Sol, a Terra, as estrelas fixas, com a exclusão dos outros planetas. Porque se poderia, empiricamente, determinar a variação anual da direção da linha reta Sol-Terra (movimento aparente do Sol em relação às estrelas fixas). Mas seria só isso. Poder-se-ia também descobrir que todas essas direções se situariam num plano fixo em relação às estrelas, na medida em que a precisão das observações recolhidas na época permitira formulá-lo. Porque ainda não existia o telescópio!
Ora, era preciso determinar como a linha Sol-Terra evolui ao redor do Sol. Kepler notou então que, a cada ano, regularmente, a velocidade angular desse movimento se modificava. Mas essa verificação não ajudou muito, porque não se conhecia ainda a razão por que a distância da Terra ao Sol variava. Se apenas se conhecessem as modificações anuais dessa distância, ter-se-ia podido determinar a verdadeira forma da órbita da Terra e a maneira como se realiza.
Kepler encontrou um processo admirável para resolver o dilema. Em primeiro lugar, de acordo com os resultados das observações solares, ele viu que a velocidade do percurso aparente do Sol contra o último horizonte das estrelas fixas é diferente nas diversas épocas do ano. Mas viu também que a velocidade angular desse movimento permanece sempre a mesma na mesma época do ano astronômico. Portanto, a velocidade de rotação da linha Terra-Sol é sempre a mesma, se está dirigida para a mesma região das estrelas fixas. Pode-se, então, supor que a órbita da Terra se fecha sobre si mesma e que ela a realiza todos os anos da mesma maneira.
Essa descoberta já significou um progresso. Mas como determinar a verdadeira forma da órbita da Terra? Imaginemos uma lanterna M, colocada em algum lugar no plano da órbita, que lança viva luz e conserva uma posição fixa, conforme já verificamos. Ela constituirá então, para a determinação da órbita terrestre, uma espécie de ponto fixo de triangulação ao qual os habitantes da Terra poderiam se referir em qualquer época do ano. Precisemos ainda que essa lanterna está mais afastada do Sol do que da Terra. Graças a ela, pode-se avaliar a órbita terrestre.
Ora, a cada ano, existe um momento em que a Terra T se situa exatamente sobre a linha que liga o Sol S à lanterna M. Se, nesse momento, se observar da Terra T a lanterna M, essa direção será também a direção SM (Sol-lanterna). Imaginemos essa última direção traçada no céu. Imaginemos agora uma outra posição da Terra, em outro momento. Já que, da Terra, se pode ver tão bem o Sol S quanto a lanterna M, o ângulo em T do triângulo STM se torna conhecido. Mas conhece-se também pela observação direta do Sol a direção ST em relação às estrelas fixas, ao passo que anteriormente a direção da linha SM em relação às estrelas fixas fora determinada de uma vez por todas. Conhece-se igualmente no triângulo STM o ângulo em S. Portanto, escolhendo-se à vontade uma base SM, pode-se traçar no papel, graças ao conhecimento dos dois ângulos em T e em S, o triângulo STM. Será então possível operar assim várias vezes durante o ano e, de cada vez, se desenhar no papel um localização para a Terra T, com a data correspondente e sua posição em relação à base SM, fixa de uma vez por todas. Kepler determinou assim, empiricamente, a órbita terrestre.
Porém, objetarão, onde é que Kepler encontrou a lanterna M? Seu gênio, sustentado pela inesgotável e benéfica natureza, ajudou-o a encontrar. Podia, por exemplo, utilizar o planeta Marte. Sua revolução anual, isto é, o tempo que Marte leva para realizar uma volta ao redor do Sol, era conhecida. Pode acontecer o caso em que Sol, Terra, Marte se encontrem exatamente na mesma linha. Ora, essa posição de Marte repete-se a cada vez depois de um, dois etc. anos marcianos, porque Marte realiza uma trajetória fechada. Nesses momentos conhecidos, SM apresenta sempre a mesma base, ao passo que a Terra se situa sempre em um ponto diferente de sua órbita. Portanto, nesses momentos, as observações sobre o Sol e Marte oferecem um meio para se conhecer a verdadeira órbita da Terra, pois o planeta Marte reproduz nessa situação a função de lanterna imaginada e descrita acima.
Kepler descobriu assim a forma justa da órbita terrestre, bem como a maneira pela qual a Terra a realiza. Temos de admirar e glorificar Kepler por sua intuição e sua fecundidade. A órbita terrestre estava então empiricamente determinada; conhece-se a qualquer momento a linha SA em sua posição e grandeza verdadeiras. Portanto, em princípio, não devia ser muito mais difícil para Kepler calcular, pelo mesmo processo e por observações, as órbitas e os movimentos dos outros planetas. Mas na realidade isso apresentava enorme dificuldades, porque as matemáticas de seu tempo ainda não eram primárias.
Contudo, Kepler ocupou sua vida com uma segunda questão, igualmente complexa. As órbitas, ele as conhecia empiricamente, mas seria preciso deduzir suas leis desses resultados empíricos. Ele estabeleceu uma suposição sobre a natureza matemática da curva da órbita e foi verificá-la depois por meio de enormes cálculos numéricos. E, se os resultados não coincidiam com a suposição, ele imaginava outra hipótese e verificava de novo. Executou prodigiosas pesquisas e obteve um resultado conforme a hipótese ao imaginar o seguinte: a órbita é uma elipse da qual o Sol ocupa um dos focos. Encontrou então a lei pela qual a velocidade varia durante uma revolução, no ponto em que a linha Sol-planeta realiza, em tempos idênticos, superfícies idênticas. Enfim, Kepler descobriu que os quadrados de durações de revolução são proporcionais às terceiras potências dos grandes eixos de elipses.
Nós admiramos esse homem maravilhoso. Porém, para além desse sentimento de admiração e veneração, temos a impressão de nos comunicar não mais com um ser humano mas com a natureza e o mistério de que estamos cercados desde nosso nascimento. A razão humana, eu o creio muito profundamente, parece obrigada a elaborar antes e espontaneamente formas cuja existência na natureza se aplicará a demonstrar em seguida. A obra genial de Kepler prova essa intuição de maneira particularmente convincente. Ele dá testemunho de que o conhecimento não se inspira unicamente na simples experiência, mas fundamentalmente na analogia entre a concepção do homem e a observação que faz.
O veemente advogado de Katherine
Entre 1615 e 1629, 38 mulheres acusadas de feitiçaria foram queimadas vivas na praça principal de Weill, a aldeia onde nasceu Kepler. Em Leomberg, a localidade vizinha, outras seis tiveram a mesma sorte, apenas na primavera de 1615. Katherine, a mãe de Kepler, que estava vivendo em Leomberg e era especialmente malquista, logo se viu cercada por suspeitas. Segundo se comentava, ela teria oferecido bebidas à mulher de um certo Bastian Meyer e ao mestre-escola Beutelspacher. O mestre-escola ficou paralítico e a senhora Meyer morreu de mal súbito. Também morreram os dois filhos do alfaiate Daniel Schmidt, supostas vítimas de seu mau-olhado. Diziam todos na aldeia, enfim, que ela era capaz de entrar nas casas através das portas fechadas e que mandara o coveiro desenterrar o crânio de seu próprio pai para fazer uma taça.
Mas o que parece ter desencadeado a abertura do processo foi uma briga com a mulher do vidraceiro Jacob Reinho, cujo irmão tinha certa influência por ser barbeiro da corte do duque de Wurttemberg. Nos seis anos seguintes, deixando de lado antigos desentendimentos, Kepler dedicou-se à tarefa de salvar sua mão da fogueira. Sua conhecida veemência parece ter impressionado desfavoravelmente o escrivão que deixou anotado: "A acusada apareceu neste tribunal acompanhada, infelizmente, pelo filho Johannes Kepler, matemático". A fase final do processo demorou um ano. O ato de acusação continha 49 itens e o da defesa, redigido em sua maior parte pelo próprio Kepler, se estendia por 128 páginas. Katherine foi finalmente libertada, mas não pôde voltar a Leomberg. A população local estava decidida a linchá-la.
C=168.267
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