VÔO SEM VENENOS - Tecnologia
Novos ventos sopram do leste: ar puro. O hidrogênio, um gás que não polui, é o combustível do Tu-155, o avião experimental soviético que promete uma revolução.
Cada vez que alguém pergunta ao engenheiro soviético Aleksandr Tupolev por que escolheu o hidrogênio como combustível para seu novo avião de passageiros - o Tu-155 - ele responde com toda simplicidade: "Porque o produto de sua combustão é água". Ele explica, então, que a queima do querosene normalmente utilizado pela aviação polui o ar com substâncias como o gás carbônico (CO2), que contribui para o famoso efeito estufa, a retenção de calor na atmosfera terrestre. De fato, uma das características mais atraentes do hidrogênio como combustível é que ele não polui - exatamente porque o resto de sua queima é água e não um rastro de fumaça tóxica. Por isso nada mudou nos céus de Moscou no dia 15 de abril de 1988, quando o Tu-155 fez um vôo experimental de 21 minutos, o primeiro de uma bem-sucedida série.
Sua vantagem não é apenas a ausência de poluição: além de pesar um terço a menos do que o querosene, o hidrogênio é mais eficiente em motores a explosão, pois contém em seus átomos de três a quatro vezes mais energia explosiva do que qualquer outro elemento químico. Há dez anos, essas qualidades levaram a revista americana Aviation Week a prever: "Quando o hidrogênio, embora obtido por processos pouco econômicos, se tornar viável em função da escassez de petróleo, teremos o avião a hidrogênio liquefeito. Ele será 26 por cento mais leve e 30 por cento mais barato, devendo os seus propulsores serem muito mais seguros e terem uma capacidade de carga e autonomia iguais aos atuais".
O problema é que não é nada fácil lidar com o hidrogênio, como bem sabem os técnicos do Centro de Projetos Aeronáuticos que, por sinal, leva o nome do pai do engenheiro Aleksandr, o célebre projetista Andrei Nikolaievich Tupolev (1888-1972), criador da ampla família de jatos Tu. Para o desenvolvimento de uma aeronave capaz de aproveitar a enorme energia do hidrogênio, muitos desafios tecnológicos tiveram de ser vencidos ao longo de dez anos de intensas pesquisas. Em primeiro lugar, as restrições de peso e volume nos aviões obrigam ao armazenamento do gás em estado líquido e em permanente ebulição.
Isso significa uma temperatura de 253 graus negativos no interior dos tanques, que obviamente devem ter total isolamento térmico e ser pressurizados por um sistema que lhes assegure níveis superiores aos dos valores atmosféricos normais, principalmente quando o avião alcança grandes altitudes, onde a pressão do ar é menor. Nos aparelhos modernos, os tanques de combustível situam--se nas asas, mas esses tanques especiais, cujo volume total é quatro vezes maior, só podem ser alojados no interior do avião, aumentando o risco de explosões fatais. Para entender os problemas de segurança numa aeronave desse tipo, basta simular um acidente como o vazamento de combustível.
No sistema convencional, o que escapa é querosene, que depende de uma faísca muito grande para inflamar-se. Já no sistema de combustão de hidrogênio, qualquer problema de despressurização pode liberar gases que ocupariam instantaneamente todo o interior do avião, misturando-se com o ar e inflamando-se com facilidade: nesse caso, seria suficiente a energia de uma faísca quase dez vezes inferior à que incendeia os combustíveis hidrocarbonados (querosene). "Nossos problemas estavam entre o gelo e o fogo", lembra Aleksandr, referindo-se à necessidade de manter baixas temperaturas nos tanques e ao mesmo tempo evitar vazamentos que pudessem provocar explosões.
Antes de tudo, era preciso isolar perfeitamente os sistemas envolvidos com o hidrogênio. Assim, o protótipo experimental, um avião comercial Tu-154B adaptado, cedeu grande parte da área em geral destinada aos passageiros a um compartimento hermético, onde foram instalados tanques de duplo revestimento com capacidade para vôos de uma hora e meia de duração, no máximo. Os técnicos reconhecem que é pouco tempo de vôo e pouco espaço para passageiros, mas argumentam que a grande capacidade energética do hidrogênio permite armazenar um volume três vezes inferior ao do combustível convencional para o mesmo consumo, aumentando desse modo a capacidade de "carga viva" do avião.
No compartimento de combustível, detectores de fumaça e sensores controlam automaticamente os sistemas de ventilação, equipados com tanques de azoto (nitrogênio), elemento químico que em caso de fogo rapidamente substitui o oxigênio do ar e extingue as chamas.
O propulsor NK-88, desenvolvido pelo engenheiro Nikolai Kusnetsov, funciona com hidrogênio gasoso e também com gás natural liquefeito. Entre os tanques e o propulsor, portanto, o combustível passa do estado líquido para o gasoso, ao percorrer tubos revestidos a vácuo, que se enchem de hélio cada vez que o propulsor está inativo. Esse tampão de hélio previne o contato do ar à temperatura ambiente com o gélido hidrogênio líquido, substituindo-o em caso de vazamento e diminuindo os riscos, por não ser inflamável. Todos os outros sistemas do avião foram instalados à margem do compartimento do motor. Além disso, os feixes de cabos elétricos e os condutos hidráulicos foram devidamente isolados com materiais que evitam faíscas e são constantemente ventilados em vôo pela corrente de ar resultante do próprio deslocamento do aparelho. Além de criar o avião a hidrogênio, foi preciso projetar e construir as instalações de abastecimento em terra. Pois também quando a aeronave está no solo todo cuidado é pouco. Um dos maiores perigos é a possibilidade de uma pequena porção de ar ficar no tanque do avião supostamente vazio depois do vôo. Submetido às temperaturas abaixo de zero do tanque, esta bolha se solidifica, podendo, se alcançar o propulsor, formar uma mistura explosiva com o hidrogênio em ebulição.
O enorme risco de acidentes levou a equipe de projetistas a submeter o avião às mais duras provas. "Quanto mais difíceis os exercícios, mais fácil a batalha", resume Aleksandr, citando um dito militar russo. Mas as barreiras científicas e também psicológicas que mantinham o projeto imobilizado nas pranchetas de alguns poucos engenheiros sonhadores só foram definitivamente superadas com os vôos experimentais do Tu-155. Tanto que a imprensa soviética já anunciou o desenvolvimento de um novo jato comercial, o Tu-204, que, embora programado para funcionar inicialmente a querosene, poderá utilizar também o hidrogênio.
A barreira dos custos
Por que, sendo tão energético e não poluente, o hidrogênio ainda não se tornou o combustível mais usado pelo homem? "As barreiras são mais econômicas do que tecnológicas", responde Ennio Peres da Silva, diretor do Laboratório de Hidrogênio da Universidade de Campinas (Unicamp). É caro produzir o hidrogênio, que ou é extraído do petróleo, ou é obtido da decomposição elétrica da água. Além disso, o processo de liquefação do gás é mais complicado do que no caso de outros elementos: o hidrogênio precisa ser esfriado a 180 graus negativos para só então ser liquefeito, o que ocorre a 253 graus negativos (apenas 20 graus acima da menor temperatura possível de ser obtida). Para Ennio esse raciocínio tanto vale para o Tu-155 quanto para o carro movido a gás de cozinha - ambos seguros e viáveis tecnologicamente, mas impraticáveis em termos econômicos.
"Tudo o que os soviéticos fizeram no avião, a rigor, foi construir uma garrafa térmica perfeita", compara ele. Na verdade, as dificuldades tecnológicas também existem. Mesmo os mais herméticos tanques de hidrogênio criados pela indústria espacial costumam perder 0,5 por cento de combustível ao dia pela simples evaporação. De qualquer forma, a solução de problemas desse tipo está ao alcance dos técnicos - há bastante tempo. Segundo Ennio, desde 1980, por sinal, o Laboratório da Unicamp tem um projeto de carro a hidrogênio. A idéia no entanto, não encontrou interessados em financiá-la nem no Brasil nem no exterior.
Extraído dos artigos "O Tu voa a hidrogênio", de Kolessova, e "Uma opção para manter o céu limpo", de Aleksandr Tupolev, publicados na revista soviética Ciência e vida.
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