segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Memórias da Terra - Paleontologia



MEMÓRIAS DA TERRA - Paleontologia



Restos de animais e plantas preservados na rocha, os fósseis permitem contar a história do planeta. Sua pesquisa é uma aventura que empolga os cientistas.

Há mais ou menos 120 milhões de anos, quando o oceano Atlântico ainda não banhava o litoral brasileiro, a região hoje denominada Recôncavo, no litoral da Bahia, era um imenso lago, assim como a bacia dos atuais Estados de Alagoas e Sergipe. Pois, nesses remotos tempos, o grande continente de Gondwana começou a se desmembrar como resultado da deriva continental - que faz as massas de terra se afastarem umas das outras. Nesse processo, as costas do que viriam a ser a África e a América do Sul se separaram, fazendo surgir grandes depressões, que foram ocupadas inicialmente por lagos e depois por mares. A reconstituição de eventos tão grandiosos e antigos como esses se fundamenta na Paleontologia, uma ciência que só tomou impulso há quase dois séculos - menos do que um piscar de olhos na biografia da Terra - e tem conseguido fazer apaixonantes descobertas sobre o planeta e a gênese de seus habitantes.
Junção das palavras gregas palaiós (antigo), ontos (ser) e logos (conhecimento, estudo), Paleontologia é basicamente a análise dos fósseis. Quando se fala em fóssil, a primeira imagem que vem à cabeça é de alguma coisa velha, empoeirada. E nesse caso, de fato, a primeira impressão é a que vale, já que o termo fóssil, do latim fossilis, significa justamente "extraído da terra". Talvez por isso, os paleontólogos, que estudam, identificam e tiram conclusões às vezes ousadas a partir dessas estranhas formas eternizadas na pedra, acabaram associados a excêntricos colecionadores de objetos que não se sabe para que servem. A realidade, no entanto, é mais movimentada. Não fossem as rochas e os fósseis que elas hospedam, os paleontólogos não teriam como contar a história de tudo que viveu e ficou preservado na face da Terra.
A utilidade do estudo dos fósseis só foi demonstrada no início do século XIX, com os trabalhos do naturalista inglês William Smith e do francês Georges Cuvier - este, considerado o pai da Paleontologia. A partir da análise de vertebrados fósseis, Cuvier (1769-1832) chegou a conclusões que puderam ser aplicadas também aos invertebrados, por meio de comparações com espécies vivas. Cuvier estava convencido de que ao longo da história da Terra grandes e periódicas catástrofes extinguiram as faunas existentes, abrindo espaço para outras, biologicamente mais organizadas.
Cuvier era um cientista de fino faro, mas essa idéia tinha um ancestral. Muito antes, na Grécia Antiga, o filósofo e poeta Xenófanes de Colofon já observara no século VI a.C. restos de conchas e de animais marinhos fossilizados na ilha de Paros e os atribuiu a periódicos cataclismos, durante os quais as águas faziam desaparecer populações inteiras de homens e animais. Ainda hoje, a questão das extinções em massa tem sido uma das preocupações da Paleontologia. É geralmente nas rochas sedimentares que os paleontólogos buscam indícios que esclareçam como se deu a evolução da vida na Terra e em que condições bichos e plantas viveram. Da mesma forma como os detetives de histórias policiais colhem e investigam pistas, assim procedem os paleontólogos. Suas pistas são os fósseis. Diferentemente de outras ciências, como a Física, que procura descobrir quais são e como agem as forças que governam a matéria, por meio de cálculos e equações, criando teorias as mais abrangentes possíveis, a Paleontologia não se dedica a aplicar regras universais como E = mc2. Tomando de empréstimo os conhecimentos da Geologia e da Biologia, ela fala de um rol de fatores, do clima à Genética e à Astronomia - tudo para descrever a origem das coisas.
Os fósseis são uma espécie de arquivo onde está registrada a memória da evolução do planeta. Basta saber ler e interpretar. Tanto as plantas quanto os animais fósseis servem para definir a geografia de uma determinada região. Se em lugares hoje de baixas altitudes se encontram restos de plantas típicas de grandes altitudes, é sinal de que em outras épocas ocorreram ali mudanças topográficas. Da mesma forma, os fósseis são fundamentais para a datação das rochas. Estas são formadas por uma sucessão de camadas que foram se depositando em diferentes épocas. Assim, como o processo evolutivo é irreversível, cada etapa marcando uma fase única na história do planeta, quando um pesquisador encontra um grupo de espécies fósseis em determinada camada de uma rocha e outro grupo igual cravado numa rocha em outro local mais distante, pode supor que as camadas se depositaram na mesma época. Portanto devem ter a mesma idade.
No entanto, a matéria-prima da pesquisa é mais escassa do que se pode supor. "O fóssil é, por sua natureza, a exceção, não a regra", lembra Murilo Rodolfo de Lima, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia e professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. Isso porque, após a morte, animais e plantas se decompõem com rapidez, impedindo a fossilização que ocorre quando a matéria orgânica vai sendo gradualmente substituída por minerais. Daí por que apenas 5 por cento do seres vivos do passado chegam a ser encontrados fossilizados. "Como os fósseis ilustram o grande livro de rochas que compõem a Terra, ainda existem muitas páginas em branco, dificultando o entendimento dos capítulos que compõem", compara o professor Murilo.
Além dos fósseis, os paleontólogos também se valem de observações da vida no presente para imaginar como ela pode ter sido no passado - é, em paleontologuês, o princípio do atualismo. "Se o pesquisador encontra um coral fóssil, sabe que ele viveu em águas rasas, pois os corais de hoje não sobrevivem em águas profundas. Ele sabe também que as águas eram límpidas e pouco agitadas e a temperatura girava em torno de 18 e 20 graus", detalha o paleontólogo Josué Camargo Mendes, uma das maiores autoridades brasileiras em Paleontologia, ciência que reúne no país cerca de 250 praticantes, quase sempre graduados em Geologia, Biologia, Geografia e História Natural. Josué foi professor e pesquisador da USP por 38 anos antes de se aposentar.
Mas interpretações como aquela às vezes falham, alerta o professor. Os crinóides, por exemplo, parentes dos ouriços-do-mar, vivem hoje em águas profundas. No passado viviam predominantemente em águas rasas, como as conchas de praia. "Ocorreu que o clima mudou nos últimos 64 milhões de anos, tendo havido uma glaciação muito extensa nos hemisférios norte e sul. Isso, com certeza, determinou mudanças de hábitos e hábitats entre esses seres", explica Josué. Assim, o princípio do atualismo, apenas, não é suficiente para reconstituir o modo de vida de animais e plantas.
Mas, afinal, de que serve saber tudo isso? "É preciso entender o que ocorreu no passado para saber o que pode acontecer no futuro", responde Murilo Rodolfo de Lima, da USP. Mas o exemplo mais claro da utilidade dos fósseis está na indústria do petróleo. Do estudo dos microfósseis, diminutos seres que só podem ser vistos através de microscópios estereoscópicos, petrográficos, ou por modernos microscópios eletrônicos de varredura, reside boa parte do sucesso das perfurações.
Achar um macrofóssil completo (como o de um dinossauro), para os paleontólogos é como acertar a quina da Loto. Quase sempre, os pesquisadores têm de se contentar com fragmentos e voltar repetidas vezes ao local da descoberta à procura de outros pedacinhos que os ajudem a montar o complicado quebra-cabeça que é a razão de ser de sua atividade. Vestígios fósseis representados por pegadas, como as que existem, de dinossauros, no sertão da Paraíba, indícios fisiológicos fossilizados de animais, como excrementos, ou pedregulhos que um dia estiveram no estômago de uma ave também são material de estudo. E ainda fósseis quase perfeitos de mamute nas tundras geladas da Sibéria ou insetos fossilizados em nódulos de âmbar. Isso sem contar os fósseis de ancestrais humanos primitivos que são disputados tanto pelos paleontólogos quanto pelos arqueólogos.
Os achados fósseis dos antepassados humanos de 15 até 6 milhões de anos atrás são tão poucos que caberiam numa caixa de sapatos, como observaram Richard Leakey e Roger Lewin em seu livro O povo do lago. No trabalho de campo, os paleontólogos acabam sendo protagonistas de aventuras nada acadêmicas. São, por assim dizer, os ossos do ofício. "Enfrentei muitos ninhos de marimbondos, cobras e escorpiões", conta o italiano Guido Borgomanero, paleontólogo autodidata e ex-cônsul geral da Itália no Paraná e Santa Catarina. "Os paleontólogos têm que ter bunda de ferro", brinca ele.
Com razão, pois pesquisar no gelo polar a 50 graus abaixo de zero ou enfrentar temperaturas de até 60 graus positivos no deserto do Saara exige muito amor à ciência. Sem falar nas longas caminhadas por encostas íngremes onde o risco de cair e se ferir é permanente. "Eu caí algumas vezes em cima de plantas cheias de espinhos", relata Guido, um sexagenário bem-humorado, que há trinta anos se dedica à Paleontologia. O resultado de seu trabalho é a fantástica coleção particular de fósseis que ele guarda em sua casa, em Curitiba. Se não a maior da América do Sul, é certamente a mais variada. Entre os cerca de seiscentos exemplares que a compõem, há uma peça única no mundo, descoberta na chapada do Araripe, no Ceará: um par de asas de pterossauro, enorme réptil voador, que viveu há cerca de 130 milhões de anos.
Com 2,48 metros de envergadura, as asas estão em perfeita seqüência anatômica, osso após osso. Também faz parte da coleção um réptil fóssil, o Stereosternum tumidum, de cerca de 230 milhões de anos, que o próprio Guido encontrou em Assistência, na região de Rio Claro, interior de São Paulo. Um paleontólogo em pleno trabalho de campo pode ser facilmente confundido com um trabalhador rural. Afinal, no meio do mato, boné na cabeça, ele maneja alavancas, talhadeiras, pás, enxadas e martelos. Por isso não há nenhum exagero quando se diz que o preparo físico é fundamental para quem se propõe a caçar fósseis.
Depois de escavar e encontrar fragmentos enterrados nas rochas, a etapa seguinte não é menos cuidadosa:  anota-se o local onde foi encontrado o exemplar, em que tipo de rocha e em que camada ele estava. Então embala-se o material adequadamente - usando sacos plásticos, jornais, fita crepe e caixas - para que não se quebre durante a viagem até o laboratório, onde será preparado para análise. As técnicas de preparação, assim como as de coleta, variam de acordo com o fóssil e as características da rocha na qual se encontra. Se esta não for desgastada corretamente por meios químicos ou mecânicos, há risco de destruí-lo. Daí a importância dessas técnicas. 
"Mas parece que muitos pesquisadores não pensam assim, pois a maioria dos trabalhos publicados em algumas áreas da Paleontologia não se refere a elas", lamenta Fernando Fittipaldi, pesquisador da USP. Para estudar a epiderme que recobre externamente folhas fósseis, Fernando teve de desenvolver técnicas específicas, já que ninguém no Brasil havia trabalhado com isso antes.
"Perdi meus cabelos testando essas técnicas", diz ele, precocemente calvo aos 38 anos. "A preparação química, mecânica ou as duas são procedimentos necessários, pois os fósseis podem estar total ou parcialmente envolvidos nos sedimentos e todo cuidado é pouco: é preciso controlar o tempo de desgaste com brocas e também o tempo em que eles ficam no ácido e qualquer vacilação pode pôr tudo a perder", explica por sua vez Marcello Guimarães Simões, que cuida do Laboratório de Paleontologia de Invertebrados do Instituto de Geociências da USP. 
A preparação mecânica implica o uso de  martelos, talhadeiras, brocas (como as dos dentistas), vibradores tanto para desgastar quanto para provocar vibrações, além de aparelhos que expelem jatos de areia e limpam sem desfigurar a anatomia do fóssil e, ainda, aparelhos de ultra-sonografia. Já a preparação química requer ácidos. Para fósseis constituídos de sílica ou fosfato, por exemplo, utiliza-se o ácido acético. Outros são preparados só com água oxigenada.
Mas não só na coleta e preparação corre-se o risco de perder um belo fóssil. Marcello Guimarães e Fernando Fittipaldi, que costumam trabalhar juntos na coleta de campo, embora tenham especialidades diferentes, lembram um tronco fossilizado que encontraram certa vez quando pesquisavam em Itaquaquecetuba, perto de São Paulo. Depois de carregarem o tronco nas costas por quase uma hora, atravessando rios, fugindo de vacas e levando alguns tombos, chegaram finalmente até o carro e trouxeram o fóssil para a USP.
Como ele estava sujo, decidiram lavá-lo. Só que a reação da água com as substâncias químicas nele contidas começou a desagregá-lo. Alguns dias depois, a porta da sala em que ele estava guardado bateu com força e ele pulverizou-se. "Lavar o tronco foi fatal, demos um fora", reconhece Marcello, "e lá se foi um belo fóssil." Seja pesquisando no campo em condições nem sempre ideais, testando técnicas em laboratório ou estudando minuciosamente um fóssil, o que pode levar mais de uma semana, uma das maiores virtudes no trabalho do paleontólogo é, sem dúvida, a paciência.

Pequenos grandes fósseis

Eles são tão diminutos que só podem ser observados através de microscópios. E são tão leves que se não estiverem colados a uma lâmina basta um espirro e sumirão no ar. Apesar de tais desvantagens, os microfósseis são essenciais às pesquisas da indústria petrolífera. Explica-se: os lagos e mares que existiram em tempos remotos são hoje as bacias sedimentares onde se instalam as plataformas de exploração. "Para se procurar petróleo é preciso conhecer muito bem a história geológica de uma bacia sedimentar", assegura Dimas Dias Brito, da equipe de 28 paleontólogos do Centro de Pesquisas da Petrobrás, no Rio de Janeiro. 
Isso só é possível por meio dos microfósseis, que permitem determinar a idade das rochas de maneira bem precisa. "A vantagem de trabalhar com eles é que em apenas alguns gramas de rocha encontram-se milhares de exemplares bem preservados", explica Dimas, há treze anos nessa atividade. Os ostracodes, crustáceos cujo tamanho médio varia de 0,5 a 1,5 milímetro, são juntamente com os palinomorfos (grãos de pólen e esporos de plantas) os mais importantes para datar antigas camadas de rochas lacustres de uma bacia. Seu hábitat se confunde com o próprio hábitat em que ocorreu a deposição das rochas geradoras de todo o petróleo existente  no Brasil. Já os foraminíferos, protozoários de 0,02 a 44 milímetros, são importantes na reconstituição da história dos oceanos por serem essencialmente marinhos. Menores que os ostracodes e os foraminíferos são os nanofósseis, algas calcárias ou fragmentos delas, de  menos de 0,03 milímetro. Graças a eles, os pesquisadores puderam datar as rochas da bacia de Campos, no litoral fluminense.

Pistas falsas

Se os fósseis são o registro mais seguro que os pesquisadores têm para reconstruir o remoto passado do planeta, falsificá-los é colocar em dúvida a própria pesquisa paleontológica. Mas essas coisas acontecem. Recentemente, John Talent, um cientista australiano acusou o renomado professor Viswa Jit Gupta, da Universidade de Panjab, na Índia, de ter enviado fósseis a um colega alemão, como se tivessem sido descobertos por ele na cordilheira do Himalaia. Eram do Marrocos.
O mais célebre caso de fraude paleontológica, porém, ocorreu no começo do século, quando o arqueólogo inglês Charles Dawson anunciou ter encontrado exemplares fósseis do que seria o homem de Piltdown, em Sussex, na Inglaterra. A descoberta teve um papel decisivo nos rumos das pesquisas sobre a origem e a evolução do homem. Mas, em 1953, exames espectrográficos com raios X e testes com flúor revelaram uma grosseira montagem: os fragmentos cranianos pertenciam, na realidade, a um Homo sapiens de 10 mil anos; o maxilar, cujo dentes foram limados para simular desgaste e envelhecidos quimicamente, era provavelmente de um orangotango. E o homem de Piltdown sumiu dos livros de Paleontologia.

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