GÁS CARBÔNICO - Construtor de Planetas - Astronomia
Toda vez que alguém respira e esvazia o pulmão, devolve ao ar uma das substâncias mais importantes na vida do sistema solar.
Por mais firme que seja, o chão da Terra nem sempre é estável e seguro. Terremotos e vulcões, perio-dicamente, fazem tremer ou fendem regiões inteiras, com conseqüências bem conhecidas e temidas. Mas nada que, sequer de longe, se assemelhe ao inferno que é a superfície do planeta Vênus. Coberta por uma atmosfera ácida e 100 vezes mais espessa que a da Terra, ela acumula calor em quantidades monumentais e se mantém à temperatura média de 475° C - metade do necessário para derreter rochas. Não é um lugar agradável, e pode ser ainda pior, como sugere a mais recente teoria sobre a natureza desse planeta. É possível que Vênus simplesmente não tenha chão, no sentido usual da palavra.
Imagens obtidas por radar indicam que sua crosta rochosa, amolecida pelo calor intenso, não é rígida como a da Terra. Vez por outra, ela se deixa esticar e inflar como o topo de uma bolha com centenas de quilômetros de extensão. Em outras circunstâncias, planí-cies inteiras desabam para o interior do planeta, de onde vazam torrentes incandescentes de lava. Os restos desse dilúvio, que se vêem derramados sobre quase toda a crosta, parecem estar ainda frescos, em termos geológicos. Como se Vênus, em passado recente, tivesse mudado inteiramente de rosto, num único e formidável espasmo.
Curiosamente, esse remoto cenário extraterrestre tem mais a ver com a Terra do que se possa imaginar. E não é por outro motivo que vem atraindo a atenção de cientistas geralmente desligados dos assuntos do espaço, como geólogos e meteorologistas. Eles querem saber o que há de comum entre a Terra e outros planetas próximos do Sol. O inferno venusiano, por exemplo, pode ter sido criado pelo mesmo gás que parece estar elevando a temperatura da Terra, por meio do alardeado efeito estufa. Trata-se do gás carbôni-co (ou CO2), que dominava, junto com o vapor de água, tanto a atmosfe-ra primitiva de Vênus como as de Marte e da Terra.
Mas isso foi quando esses mundos nasceram, há longínquos 4,6 bilhões de anos. Daí para a frente, o destino do CO2 - bem diferente em cada lugar - moldou um rosto particular em cada um dos planetas. A própria vida, na Terra, surgiu e se desenvolveu com sua ajuda, pois ele era o alimento básico das algas primitivas. Como resíduo, estas descartavam oxigênio, que no futuro se tornaria mais abundante que o CO2 na atmosfera. As plantas ainda absorvem gás carbônico, apesar de, co-mo todos os animais, respirarem pelo processo inverso: absorvendo oxigênio e descartando CO2. Em resumo, co-mo resultado dessa íntima relação com a vida, uma fração não desprezível do CO2 original acha-se hoje estocada na massa das florestas e seus habitantes.
Uma outra parcela de gás, maior que a anterior, dissolveu-se nos oceanos. Mas a imensa maioria, absorvida pelo solo, passou a fazer parte da crosta terrestre, na forma de rochas chamadas carbonatos. As rochas, de vez em quando, devolvem parte do CO2 ao ar por meio de processos como as erupções vulcânicas. Esse ciclo encanta os bió-logos por sua perfeição. A americana Lynn Margulis, por exemplo, da Universidade de Boston, conta no livro Microcosmos que até 90% do carbono dos seres vivos já teria, algum dia, feito parte da crosta. Nada disso foi possível em Vênus, onde o ciclo histórico do gás carbônico tomou um rumo no qual a vida seria inconcebível.
Retido maciçamente na atmosfera, o CO2 venusiano é 280 000 vezes mais abundante do que o terrestre. Ele perfaz nada menos que 96,5% do ar, contra 0,03%, na Terra, e o ar, por sua vez, é 90 vezes mais pesado que o da Terra. Vem daí a fantástica temperatura venusiana, capaz de amolecer toda a sua casca de rocha sólida - como na Terra, a crosta envolve todo o planeta e pode ter entre 10 e 100 quilômetros de espessura. Esse mecanismo explica facilmente o perfil radical recortado na face venusiana, diz o americano Sean Solomon, do Departamento de Magnetismo Terrestre do Instituto Carnegie, em Washington. Em vista daquilo que se vê em Vênus, o aquecimento devido ao efeito estufa, na Terra, torna-se uma brincadeira de criança, pois parece causar um aumento relativamente pequeno de temperatura, da ordem de 1 grau centígrado.
O fenômeno causa preocupação porque o ciclo vital é frágil, e pode estar sendo quebrado por uma estabanada intervenção humana. No fundo, o que se está fazendo é arrancar da crosta parte do carbono estocado na forma de petróleo ou de carvão mineral. Tais combustíveis contêm grande quantidade de carbono (C) que, durante a queima, se combina com o oxigênio (O2) do ar. O produto é um gás, o CO2, que assim retorna à atmosfera. O resto do problema é bem conhecido: o CO2 deixa passar a luz solar, mas retém o calor que a superfície da Terra emite constantemente para o espaço. Portanto faz aumentar a temperatura global: um exemplo claro de como se pode alte-- rar a face de um mundo por meio de ações relativamente simples. Tanto que hoje se alimenta a idéia, aparentemente absurda, de usar o efeito estufa em sentido positivo: para dar vida a Mar-te.
Para isso, um dos primeiros passos seria devolver ao rarefeito ar marciano o CO2 estocado na crosta do planeta. Este, então, esquentaria até derreter quantidades razoáveis da água gelada existente nos pólos e no subsolo. Um cálculo recente mostra que se o volume de CO2 atmosférico fosse aumentado cerca de 150 vezes Marte poderia ter água em forma líquida. A água marciana certamente existe, e em grande quantidade. Marcas profundas de erosão na superfície do planeta tornam quase certo que em alguns períodos o fluxo de água pode ter sido milhares de vezes maior que o do Rio Amazonas.
Essas inundações teriam ocorrido entre 1 e 3,5 bilhões de anos atrás, e o tamanho dos canais que escavaram sugere que elas fluíram à taxa de até 1 trilhão de litros por segundo. Isso posto, o grande debate atual consiste em saber se algum dia essa água chegou a encher um raso oceano que cobriria quase todo o hemisfério norte do planeta, com profundidade média de 500 metros (contra os 5 quilômetros dos oceanos terrestres). Uma polêmica análise, divulgada este ano, afirma que os vulcões marcianos podem ter criado mares em uma ou mais ocasiões. Autênticas crises de vulcanismo teriam degelado água subterrânea na quantidade necessária, ao mesmo tempo em que enchiam o ar de CO2.
O efeito estufa, então, elevou a temperatura a ponto de manter os oceanos líquidos por algum tempo - cerca de 1 milhão de anos - até que a água escoasse de volta ao subsolo. Ainda é cedo para saber se tais especulações têm fundamento, mas elas denotam a crescente esperança que muitos alimentam de dar a Marte um perfil menos hostil ao homem. Seja como for, Vênus está numa situação inteiramente diferente, alegam os defensores de uma nova teoria, de acordo com a qual Vênus, Terra e Marte foram razoavelmente parecidos na infância, a ponto de exibir uma mes-- ma atmosfera embrionária. Esta seria composta por três ingredientes pri-mordiais: CO2, vapor de água e nitrogênio gasoso (de símbolo químico N2).
É possível que Vênus tenha tido água em abundância, tanto quanto a Terra, na verdade. Mas nesse caso foi inevitável o conflito com o CO2, diz o americano Donald Hunten, do Laboratório Lunar e Planetário da Universidade do Arizona, em Tucson. Em fevereiro passado, ele descreveu na revista Science as últimas novidades sobre as atmosferas primitivas. "Mesmo que Vênus tenha tido tanta água como a Terra, sua perda deve ter sido facilitada por um provável efeito estufa logo no início de sua história." Cientistas como Hunten referem-se à totalidade da água venusiana como "oceano", embora não se saiba se ela existiu em forma líquida.
Essa possibilidade não está excluída, mas, então, o próprio vapor de água teria levado à desertificação do planeta, diz Hunten. Primeiro, boa parte da água virou vapor e fortaleceu o efeito estufa do gás carbônico. A molécula de água, então, se partiu em oxigênio e hidrogênio e este último voou para o espaço por ser muito leve. Um problema curioso, nessa história, refere-se ao Sol, que emitia menos luz que hoje. Os físicos estimam que ele era cerca de 30% mais fraco, mas a intensidade real não é conhecida com precisão. Se seu valor tiver sido muito alto, os oceanos líquidos de Vênus devem ter tido vida bem curta. Na melhor das hipóteses analisadas por Hunten, eles teriam durado por volta de 1 bilhão de anos e existiram há mais de 2 bilhões de anos.
Também em Marte, o Sol pode selar o destino da água líquida - mas nesse caso, em sentido oposto. Lá, a falta de energia luminosa teria mantido a água na forma de gelo. E esse obstáculo persiste mesmo quando se considera que o CO2 dominava a atmosfera marciana, embora em quantidade bem menor do que em Vênus. A solução, nesse caso, é complicada, pois há muitas evidências de que a água efetivamente fluiu sobre as areias marcianas. Uma possibilidade é que o efeito estufa do gás carbônico foi reforçado por poeira suspensa na atmosfera. Hoje, não há dúvida de que a poeira é um elemento importante, mas o debate sobre o passado não está resolvido, diz Hunten.
Para os biólogos, a questão mais interessante é o chamado "paradoxo do jovem Sol fraco", que poderia ter impedido o aparecimento da vida na Terra. É que, aqui, como em Marte, a carência de energia teria mantido a temperatura abaixo do ponto de congelamento da água. O planeta teria ficado sem água líquida, essencial à vida, durante os primeiros 2 bilhões de anos de sua existência. O paradoxo surgiu porque os fósseis não deixam dúvida: os mais primitivos microorganismos são quase tão velhos quanto a Terra e existem desde que ela tinha apenas 1 bilhão de anos, ou menos. A saída pode estar numa proposta recente do especialista americano em atmosferas, James Kasting, do Departamento de Geociências da Universidade Estado da Pensilvânia.
Vale a pena acompanhar seus cálculos sobre a história cósmica da Terra. Ele estima que, há 4,6 bilhões de anos, a massa original do planeta continha enorme quantidade de gás carbônico, talvez apenas seis vezes menor que a existente hoje em Vênus. A temperatura da Terra alcançaria 85°C, um forno em que grandes volumes de água ferviam espontaneamente. Mas isso foi antes que a crosta tomasse forma definitiva, absorvendo grandes volumes de CO2. Além disso, a atmosfera primordial pode ter sido modificada por um cerrado bombardeio de asteróides e outros pequenos corpos celestes - suas marcas, preservadas na Lua, mostram que os choques foram especialmente freqüentes e violentos, nesse período.
Enfim, quando a paz se estabeleceu, há 3,8 bilhões de anos, o CO2 era quase 100 vezes menos abundante do que antes. Ou seja, insuficiente para que, nos milhões de anos seguintes, uma gorda sopa química nos mares começasse a modelar os primeiros esboços de células, as primeiras unidades da vida. O problema, diz Kasting, é imaginar que o ciclo do CO2 seja inflexível - ao contrário, ele tende a mudar justamente para manter seu equilíbrio. O mecanismo é simples. Primeiro, o frio reduziu a quantidade de gás carbônico absorvida pelo solo, pois as reações químicas das rochas com o ar se tornam mais lentas em baixa temperatura.
Segundo, os vulcões continuaram a expelir CO2 ao mesmo ritmo que antes, porque suas erupções dependem apenas do calor interno do planeta, que não é afetado pela luz solar. O resultado é que o gás carbônico começa a se acumular na atmosfera e a elevar a temperatura por meio do efeito estufa. Chega a parecer que o planeta é vivo; regula seu próprio clima. De fato, é assim, até certo ponto. O raciocínio de Kasting também mostra que não se de-vem tirar conclusões precipitadas sobre as consequências futuras do atual efeito estufa. É muito provável que o notável ciclo do gás carbônico já esteja movendo as engrenagens planetárias de modo a corrigir, pelo menos em parte, erros humanos.
Mas essa não é a última lição que o cientista extrai da história remota do sistema solar. Para ele, os conhecimentos obtidos aqui podem ser aplicados a qualquer estrela da Via Láctea, e sugerem que muitas delas talvez tenham dado origem a outras formas de vida. Atmosferas de CO2 e água parecem ter surgido automaticamente nos planetas próximos do Sol, Vênus, Terra e Marte. E muitas estrelas conhecidas poderiam abrigar planetas do mesmo tipo. Bastaria essa perspectiva para justificar a vontade e o empenho de conhecer melhor os mundos vizinhos.
A morte do ar: ou como a Terra se tornará Vênus amanhã
O efeito estufa que tanto preocupa a sociedade contemporânea é não só um fenômeno minúsculo, como também oposto à tendência inexorável do planeta. Causado por um episódico excesso de gás carbônico no ar, ele esconde o fato de que esse gás está se tornando cada vez mais escasso, e isso levará à destruição definitiva da biosfera, o conjunto da vida na Terra. Não é algo que possa ocorrer do dia para a noite, nem de um milênio para outro. Mas o que resta de tempo, comparado aos quase 5 bilhões de anos do planeta, é mínimo - 100 milhões de anos. Esse ousado cálculo foi feito há dez anos pelo renomado cientista planetário inglês James Lovelock. O problema básico é que, enquanto envelhece, o Sol emite cada vez mais energia luminosa e acelera a química terrestre.
Como conseqüência, o solo absorve mais CO2 do ar e o converte em carbonatos, um tipo de rocha. Além de certo nível não haverá mais gás suficiente para as plantas fabricarem substâncias básicas por meio da fotossíntese - a fonte de alimentos do planeta. A quantidade mínima de gás carbônico necessário, em cada 1 000 litros de ar, equivale a meia garrafa de refrigerante -- 0, 15 litro - contra pouco mais de uma garrafa inteira, hoje. Melancólico na aparência, esse raciocínio é apenas realista e mais útil do que pode parecer. Com uma teoria geral, como a de Lovelock, fica mais fácil prever o efeito das atividades humanas, que poderiam ser planejadas de modo a reduzir eventuais agressões à natureza.
Mas Kasting acha que Lovelock exagerou: talvez a biosfera possa durar mais 1,5 bilhão de anos, a partir do presente. Primeiro, porque não há só um meio de extrair energia da luz: plantas que usassem outros tipos de fotossíntese prolongariam a existência da vida. Também é possível que as rochas não absorvam CO2 tão rapidamente quanto se calcula: seu ritmo pode ser desacelerado pela química das raízes e dos microorganismos do solo. De qualquer modo, daqui a 1 bilhão de anos, o calor do Sol será suficiente para vaporizar toda a água do planeta e expulsá-la para o espaço. A Terra começará a se tornar tão árida e estéril como sua irmã Vênus.
Incertezas sobre a origem da vida
As muitas incertezas remanescente sobre as primitivas atmosferas dos planetas próximos ao Sol pode alterar as hipóteses existentes a respeito da origem da vida. Alguns acreditam que as moléculas básicas dos seres vivos não podiam ter se formado a partir de reações entre gás carbônico (CO2) do ar e hidrogênio liberado pelo interior da Terra. Surgiram, então, duas hipóteses. Primeiro, as moléculas básicas vieram do espaço, durante o choque de pequenos corpos celestes. Segundo, a vida surgiu no fundo do oceano, em fendas da crosta por onde vazam compostos de diversos tipos. Microorganismos ainda hoje encontrados nesses locais não fazem fotossíntese, pois aí não chega luz solar. Por isso, não dependem do CO2 para sintetizar compostos orgânicos. Dois desses compostos são essenciais: o formaldeído (H2CO), que as células usam na produção de açúcares e o cianeto de hidrogênio (HCN), com o qual se fazem, por exemplo, os nucleotídeos, moléculas básicas dos genes. Sabe-se que uma atmosfera rica em CO2 poderia gerar H2CO, mas há dúvidas com relação à síntese do HCN, diz o especialista James Kasting. "Explicar como se formou o HCN é uma das maiores barreiras às teorias sobre a origem da vida, atualmente". Portanto, quanto mais se souber a respeito do ar primitivo, mais fácil será decidir entre as hipóteses existentes.
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